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BIOTECNOLOGIA

Uma tecnologia controversa


Os genomas dos diferentes seres vivos, organizados durante a evolução da vida
na Terra, são eventualmente alterados por mutações, mas esse processo é lento
e limitado por sistemas internos de proteção e por barreiras naturais entre as
espécies. Nas últimas décadas, porém, os cientistas desenvolveram técnicas
– chamadas, em seu conjunto, de biotecnologia – que permitem alterar o material
genético e até transferir genes de uma espécie para outra. As técnicas de
transformação genética podem ser consideradas a continuação de uma longa
lista de métodos tradicionais de melhoramento, como a indução de mutações, a
hibridização entre espécies e gêneros, a duplicação de cromossomos, a cultura
de células e tecidos in vitro e a fusão de células somáticas. A modificação de
bactérias, animais e plantas com essas novas técnicas, superando as barreiras
naturais, vem gerando muita polêmica.

Luiz Gonzaga Esteves Vieira


Laboratório de Biotecnologia Vegetal,
Instituto Agronômico do Paraná (Iapar)
lvieira@iapar.br

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BIOTECNOLOGIA

O ser humano, ao longo de toda a sua história, tem aplicado sua


engenhosidade para ter acesso à variabilidade gené- BIOTECNOLOGIA,
tica disponível em organismos usando diversos mé-
todos, entre eles mutações, seleção artificial, MODIFICAÇÃO GENÉTICA
hibridizações e, recentemente, a transgenia. Até há
pouco tempo não era comum que mudanças tec- E TRANSGENIA
nológicas provocassem grandes discussões na socie- O termo biotecnologia pode ser definido como a
dade. Entretanto, por sua novidade, a transgenia aplicação de técnicas biológicas em organismos vi-
tem causado preocupações e transformações, sejam vos, ou suas partes, para obter um produto, processo
de caráter científico, social, econômico ou cultural. ou serviço. Esse termo abrange uma ampla relação
Assim, a controvérsia provocada pelas novas técni- de técnicas, a maioria relacionada com os recentes
cas da biotecnologia, em especial o uso de organis- avanços das pesquisas em biologia molecular e ce-
mos transgênicos ou de organismos geneticamente lular, visando a aplicações tecnológicas.
modificados (OGMs), deve ser considerada uma Historicamente, o termo biotecnologia vem sen-
mudança na percepção pública sobre a ciência e do usado desde o princípio do século 20, podendo
sobre as conseqüências das suas aplicações englobar técnicas já tradicionais, como as fermenta-
tecnológicas. ções, até as mais recentes, como cultura de tecidos,
Ainda hoje, cerca de 17 anos após o primeiro anticorpos monoclonais, análise de DNA (desde mar-
teste em campo de uma planta transgênica, há opi- cadores moleculares até projetos de seqüenciamento
niões conflitantes entre diversos segmentos da so- de genomas) e engenharia genética. A chamada bio-
ciedade sobre as características básicas de um or- tecnologia moderna pode ser considerada uma nova
ganismo desse tipo, especialmente os aspectos re- versão dos processos que vêm sendo utilizados há
lativos a mudanças genéticas aleatórias, à transpo- bastante tempo para aumentar a produtividade na
sição das barreiras entre espécies e aos impactos agricultura, melhorar a segurança alimentar e pro-
no ambiente e na saúde humana. Para evitar deba- duzir alimentos melhores e mais nutritivos.
tes simplificados, distorcidos ou alegóricos, é funda- Durante muitos séculos os agricultores têm sele-
mental definir claramente conceitos e nomenclatu- cionado, semeado e colhido sementes para produzir
ras e, ainda, explicitar de forma simples e objetiva colheitas mais abundantes e de melhor qualidade
informações sobre as técnicas usadas para a obten- mesmo sem entender toda a ciência envolvida na
ção de organismos transgênicos. sua ação. Híbridos entre diferentes variedades já
eram conhecidos no século 16, quando agricultores
70
A área de Total selecionavam plantas com mais alto rendimento e
60
plantações Países industrializados com maior resistência a pragas e doenças. O mesmo
50
transgênicas Países em desenvolvimento tem sido feito com as espécies animais domestica-
40
em 18 países das pelo homem para a produção de carne, leite e
30
(em verde, no
outros produtos ou para atividades como o transpor-
mapa) chegou 20

a 67,7 milhões 10 te, o trabalho agrícola e outras.


de hectares 0 No entanto, foi apenas há menos de um século e
1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003
em 2003 meio, em 1865, que o monge austríaco Gregor 

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BIOTECNOLOGIA

BASEADO EM PEARSON EDUCATION/PUBLICADO POR BENJAMIN CUMMINGS


mo é alterado pela inserção de
segmentos de DNA exógenos, ou
seja, de outro organismo, o novo
ser é denominado transgênico.
Através da tecnologia do DNA
recombinante, é possível hoje cor-
tar o DNA em pontos específicos
utilizando enzimas (clivagem),
isolar seletivamente um segmen-
to de interesse (clonagem), unir
esse segmento a outro DNA que
servirá como portador, ou vetor,
e, finalmente, introduzir a molé-
cula de DNA resultante dessa
união em outro organismo (trans-
formação genética).
Atualmente, essa e outras téc-
nicas também capazes de elimi-
nar, inserir e transferir genes per-
mitem a construção de diversos
tipos de organismos com o geno-
ma modificado, como, por exem-
plo, bactérias e até animais capa-
Figura 1. Transformação de plantas e bactérias visando a aplicações na agricultura zes de produzir certas proteínas
e na saúde humana de interesse para a saúde huma-
na (como a insulina e hormônios
Mendel (1822-1884) estabeleceu a base para a mo- de crescimento), camundongos e outros animais de
derna biotecnologia, ao demonstrar que a transmis- laboratório sem determinados genes ou com genes
são, de geração em geração, de certas características alterados (destinados a pesquisas de vários tipos), e
de uma planta seguia um padrão estatístico, indi- uma ampla variedade de plantas com característi-
cando a presença de ‘unidades de hereditariedade’
(hoje conhecidas como genes). Mas a relação entre o
ácido desoxirribonucléico (DNA) e os genes só seria
estabelecida pela ciência em meados do século 20,
em 1953, quando o inglês Francis Crick (1916-) e o
norte-americano James Watson (1928-) descobri-
ram como o DNA direciona o desenvolvimento e o
crescimento de todos os organismos vivos.
A partir daí, iniciaram-se trabalhos para transfe-
rir genes, ou segmentos de DNA, de um organismo
para outro, o que se tornou possível nos anos 80, com
o aprimoramento da tecnologia do DNA recombinan-
te (que permite obter fragmentos de DNA específi-
cos e inseri-los em locais determinados do genoma).
Essa tecnologia levou à obtenção dos primeiros ‘or-
ganismos geneticamente modificados’ (OGMs). Plan-
tas, animais e microrganismos nos quais foram in-
troduzidos (ou removidos) trechos de DNA são de-
signados OGMs. Quando o genoma de um organis-

Figura 2. Construção de uma molécula de DNA


recombinante (A) e montagem de uma construção
gênica (B): após obter o gene de interesse (1),
adicionam-se o promotor e terminador (2).
Quando necessário, acrescenta-se um gene seletivo
na construção (3), que é posteriormente inserido
em um plasmídeo para transformação

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BIOTECNOLOGIA

Figura 3. Transformação de plantas a partir


da Agrobacterium tumefaciens

certos genes responsáveis por características dese-


jáveis, como a resistência a pragas e doenças.
O biólogo molecular mexicano Luis Herrera-Es-
trela (e outros) e o geneticista norte-americano
Robert B. Horsch (e outros) foram os primeiros a
conseguir, em 1984, plantas de tabaco transforma-
das geneticamente via Agrobacterium, através da
união das técnicas de biologia molecular, cultura de
tecidos vegetais, transformação e seleção in vitro.
Portanto, foi demonstrado que essa bactéria poderia
servir como um vetor natural para a transformação
de plantas, possibilitando que genes com caracte-
rísticas de interesse agronômico pudessem ser trans-
cas especiais, como resistência ao ataque de pragas feridos para vegetais (figura 3).
e doenças, tolerância a diversos estresses ambientais Além de estudos para aumentar a eficiência da
(seca, frio, salinidade etc.), maiores teores de ami- transferência de genes com a ajuda da Agrobac-
noácidos essenciais, de vitaminas e de compostos terium, foram idealizados novos métodos para a
com ação farmacológica, além de alterações na co- transferência de DNA, incluindo o bombardeamento
loração, no sabor ou em aspectos físicos e químicos de células vegetais com partículas de metal reco-
dos alimentos (figura 1). bertas com DNA, desenvolvido no laboratório do
geneticista norte-americano John C. Sanford, em
1987. Segundo processo mais utilizado para a trans-
formação de plantas, esse bombardeamento (ou bio-
PLANTAS COM balística) é feito com partículas de metal recobertas
com DNA e aceleradas a altas velocidades. Tais
ALTERAÇÕES GENÉTICAS partículas penetram no núcleo das células do vege-
O início do processo de transformação genética de tal-alvo, permitindo a incorporação do DNA ao seu
plantas envolve a construção de vetores contendo os genoma (figura 4). 
genes de interesse. Os vetores normalmente utiliza-
dos são os plasmídeos de bactérias – moléculas de
DNA circular existentes nesses seres microscópi-
cos, fora dos seus cromossomos, e capazes de se
replicar de modo independente. As construções
gênicas, feitas através de reações enzimáticas que
cortam e ligam o DNA em fragmentos específicos,
são geralmente compostas de três partes principais
dos genes: a região promotora, a região codificadora
e a região terminal. Cada uma dessas regiões, no
fragmento a ser transplantado, pode ter como ori-
gem um organismo diferente (figura 2).
As plantas transgênicas nada mais são do que as
espécies e variedades tradicionalmente cultivadas,
às quais foram acrescentados um ou mais genes,
introduzidos através das técnicas de transformação
genética. A obtenção de plantas geneticamente mo-
dificadas foi possibilitada no início dos anos 80,
Figura 4. Corte transversal mostrando sistema
quando se descobriu que uma bactéria presente no de aceleração de partículas. O tubo de aceleração
solo (Agrobacterium tumefaciens) tinha a capacida- é preenchido com gás hélio, que rompe a membrana
de de transferir segmentos de seu próprio DNA, a uma determinada pressão. O fluxo de gás impulsiona
chamado de DNA de transferência (T-DNA), para as partículas e o DNA, colocados em uma segunda
membrana, na direção do tecido vegetal.
certas plantas. Esse fenômeno natural de transfe-
Uma tela de proteção bloqueia as membranas
rência de genes entre espécies mostrou a possibili- e apenas o DNA e as partículas atingem o tecido.
dade de usar essa bactéria para inserir em plantas Todo o processo ocorre dentro da câmara de vácuo

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BIOTECNOLOGIA

comparação com um idioma, por


exemplo, é possível dizer que os
indivíduos são como os livros, on-
de os cromossomos seriam os ca-
pítulos e as palavras seriam os
genes. A modificação genética
consiste na modificação de uma
ou várias palavras no livro.
A característica fundamental
que determina a diferença entre
organismos transgênicos e não-
transgênicos é a possibilidade de
incorporação de material gené-
tico ultrapassando barreiras na-
turais. De modo geral, o melho-
ramento convencional é basea-
do na transferência de material
genético entre indivíduos da
mesma espécie ou espécies bas-
tante assemelhadas. As técnicas
da biotecnologia permitem in-
troduzir no material genético do
organismo-alvo seqüências de
Figura 5. Aquelas células que receberam os genes através DNA codificadoras de certas características que
Transformação dos plasmídeos ou da biobalística são selecionadas nunca, ou somente em casos extremamente raros,
de plantas
de cafeeiro e, em cultura de tecidos, regeneradas, produzindo seriam observadas naturalmente em determinada
as plantas transgênicas. A regeneração de plantas in espécie.
vitro nada mais é do que o cultivo de tecidos ve- Apesar dessa óbvia diferença entre transgênicos
getais, como pedaços de folha, cotilédones (as pri- e não-transgênicos, é a nova característica adqui-
meiras folhas visíveis após a germinação de uma rida pelo OGM e sua interação com o meio ambien-
semente) ou o hipocótilo (parte do caule de um te que devem ser consideradas na análise de um
embrião ou plântula, abaixo dos cotilédones), em organismo transgênico, e não o método utilizado
condições controladas, levando à produção de mu- para a introdução dessa característica. De forma
das em larga escala (figura 5). semelhante à mudança de sentido de uma palavra
É importante ressaltar que ambos os métodos conforme o contexto de uma oração, o resultado da
Sugestões promovem a integração dos novos genes, de manei- ação de um gene depende da interação com outros
para leitura ra aleatória, nos cromossomos da planta recipiente. genes. Atualmente, devido aos trabalhos em biolo-
Essa aleatoriedade ainda é uma limitação da tec- gia molecular, já se conhece um grande número de
HERRERA-ESTRELLA,
L. e outros. nologia, pois a função e a atividade de um gene é genes e, por vezes, algumas de suas funções, mas
‘Light-inducible influenciada por sua posição no cromossomo. Além ainda não é possível saber precisamente como um
and chloroplast-
associated
disso, a inserção de um gene exógeno pode causar o gene vai agir em um contexto diferente daquele em
expression silenciamento ou a superexpressão de um gene na- que atua normalmente. Portanto, estudos de cada
of a chimeric gene tivo de maneira não previsível. Tal limitação torna OGM de maneira individualizada são imprescindí-
introduced into
Nicotiana tabacum necessário avaliar detalhadamente os diferentes veis para verificar os potenciais impactos do uso
using a Ti-plasmid eventos de transformação para verificar os efeitos dessa tecnologia, seja em termos ambientais, de saú-
vector’, in Nature,
v. 310, p. 209, 1984. da introdução do novo gene. de humana ou de segurança alimentar.
HORSCH, R. B. e Finalmente, tendo como exemplo o que ocorre
outros. ‘Inheritance
com o melhoramento tradicional de plantas, a utili-
of functional
zação de organismos transgênicos pode objetivar a
foreign genes in
plants’, in Science, TRANSGÊNICO E TRADICIONAL: geração de novos produtos e processos dentro dos
v. 223, p. 496, 1984.
limites do atual modelo tecnológico (baseado no
KLEIN, T. M. e outros.
‘High-velocity DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS emprego de insumos de origem industrial – quími-
microprojectiles for
delivering nucleic
Todos os organismos carregam nas células sua he- cos, mecânicos ou biológicos – e na intensificação
acids into living rança genética. Os genomas são diferentes, mas as da produção por área e tempo) ou, eventualmente,
cells’, in Nature, v. informações que contêm estão escritas em uma lin- em qualquer outro modelo (como a agricultura sus-
327, p. 70, 1987.
guagem comum a todos os organismos vivos. Em tentável, a agricultura orgânica e outros). ■

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ENGENHARIA GENÉTICA

O panorama nacional
Na última década, a produção agrícola brasileira teve um enorme
impulso. A produção de grãos no país aumentou 100%, enquanto a área
plantada cresceu apenas 12%. Isso é resultado da crescente utilização
de tecnologias modernas, sobretudo as associadas a programas de
melhoramento de plantas, que vêm gerando variedades mais adapta-
das às diversas condições ambientais e de cultivo e aos diferentes
solos que existem no Brasil.

Francisco J. L. Aragão Os principais objetivos do melhoramento genético são resistência a


Laboratório de Transferência doenças e insetos, adaptação aos estresses ambien-
e Expressão de Genes, tais e melhoria da qualidade nutricional. O uso da
Embrapa Recursos Genéticos tecnologia do DNA recombinante (DNAr), ou en-
e Biotecnologia genharia genética, tem permitido ampliar as estra-
tégias que podem ser utilizadas pelos programas
de melhoramento, uma vez que as características
encontradas em um organismo podem ser transfe-
ridas para plantas.
Já é possível obter, com bastante sucesso, plantas
resistentes a doenças usando métodos de melhora-
mento tradicionais, como cruzamentos interespecí-
ficos, indução de mutações etc. A maior contribui-
ção da tecnologia de DNAr para a geração de plantas
resistentes a pragas até o momento vem do desen- 

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ENGENHARIA GENÉTICA

volvimento de estratégias contra possível obter exemplares resistentes a essa doen-


doenças virais. Os biólogos norte- ça, responsável por perdas de 40% a 60%, poden-
americanos John Sanford e Ste- do chegar a 100%, dependendo da fase de cultivo
phen Johnson, da Universidade em que ocorre a infestação pelo vírus. A partir do
de Cornell, foram os primeiros a uso da técnica de expressão do gene da capa
propor, em 1985, a possibilidade protéica viral, também foram obtidas plantas de
de se obter plantas resistentes a mamoeiro resistentes ao PRSV e batatas resisten-
patógenos (organismos capazes tes ao PVY e vírus do enrolamento. Essas plantas
de provocar doenças) modifican- foram introduzidas nos programas de melho-
do-as geneticamente a partir da ramento da Embrapa para geração de novas va-
introdução de seqüências ge- riedades. Avaliações de segurança para introdução
nômicas dos próprios patógenos. de tais plantas no meio ambiente e para a saúde
Na verdade, esse conceito já humana e animal têm sido feitas pela Rede da Em-
havia sido empregado pelo me- brapa de Biossegurança.
nos duas décadas antes, em um Esses estudos tiveram que ser interrompidos por
processo chamado de premuni- até três anos, a partir de 2001, quando, por determi-
zação, no qual uma planta é pro- nação judicial, tornou-se necessário à obtenção de
positadamente infectada por uma várias licenças por parte dos órgãos de saúde, meio
estirpe fraca de um vírus para ambiente e agricultura para realização de experi-
ganhar tolerância contra suas for- mentos de campo. Em 12 de março último, porém,
Feijoeiro mas mais severas. Desde que se obteve a primeira o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Re-
resistente planta transgênica (fumo) resistente a vírus, em cursos Naturais Renováveis (Ibama) autorizou a
ao vírus 1986, em que se transformou a capa protéica do Embrapa a realizar testes de campo com o feijão
do mosaico
vírus do mosaico do tabaco (TMV), mais de uma resistente ao vírus do mosaico dourado.
dourado
recém-liberado centena de publicações têm sido apresentadas, rela- O estresse provocado por déficit hídrico, baixa
para testes tando a obtenção de plantas geneticamente modifi- temperatura e alta concentração salina nos solos
de campo cadas resistentes a vírus dos mais variados grupos. vem sendo amplamente estudado. Vários genes
As primeiras plantas liberadas para o setor pro- foram isolados, caracterizados e introduzidos em
dutivo foram o fumo resistente ao TMV na China, e plantas. Um deles – que responde à desidratação
o mamoeiro resistente ao vírus da mancha anelar (DRE) – mostrou ter papel importante na regula-
(PRSV) nos Estados Unidos. Nesse país, várias outras ção da expressão de genes em resposta ao estres-
plantas têm sido aprovadas para comercialização, se hídrico e à baixa temperatura. O gene DREB1A
como abóboras resistentes aos vírus WMV (water- foi introduzido em várias plantas, mostrando que
melon mosaic virus), ZYMV (zucchini yellow pode conferir alta tolerância ao estresse hídrico.
mosaic virus) e CMV (cucumber mosaic virus) e Genes DREB têm sido inseridos em plantas de
batatas resistentes aos vírus PLRV (potato leafroll soja e trigo com o objetivo de obter maior tolerância
virus) e PVY (potato virus Y). ao déficit hídrico. Em expe-
riência feita pelo Centro In-
ternacional de Mejoramiento
de Maíz y Trigo (CIMMYT),
CASOS DA do México, em que o gene
DREB1A foi introduzido no
EMBRAPA trigo, as plantas transgênicas
A Empresa Brasileira de Pesqui- foram capazes de tolerar um
sa Agropecuária (Embrapa) tem período de 15 dias sem irriga-
obtido plantas transgênicas resis- ção, em condições de campo,
FOTOS EMBRAPA RECURSOS GENÉTICOS E BIOTECNOLOGIA

tentes a viroses causadoras de apresentando apenas uma re-


grandes perdas para a agricultu- dução na turgescência das
ra brasileira. Utilizando a estra- folhas. Experimentos reali-
Soja, tégia de expressão replicase do zados na Universidade Fede-
que recebeu vírus do mosaico dourado do ral de Viçosa (MG) demonstra-
genes para feijoeiro (BGMV) – em que as ram que a expressão do gene
obter mais plantas são modificadas para BiP (chaperone binding pro-
resistência
produzir o RNA ou a enzima ca- tein) isolado da soja, em plan-
à seca,
em casa paz de multiplicar o genoma do tas transgênicas de fumo com
de vegetação vírus – em plantas de feijão, foi acúmulo da proteína BiP,

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ENGENHARIA GENÉTICA

foi capaz de conferir grande tolerância à falta de ção, sobretudo, de vitaminas


irrigação por até quatro semanas. Esse gene está ago- e aminoácidos essenciais.
ra sendo testado em várias leguminosas (soja, feijão Por outro lado, fatores
e feijão-de-corda) na Embrapa Recursos Genéticos e antinutricionais são
Biotecnologia. reduzidos ou removi-
Grande número de estudos envolvendo resis- dos, como o fitato
tência a fungos também tem sido desenvolvido. Em- (myo-inositol hexa-
bora ainda não haja plantas com essa característi- kisfosfato) das se-
ca sendo comercializadas, já existem variedades mentes. O fitato reti-
em pré-melhoramento. As principais estratégias ra importantes ele-
buscam expressar proteínas hidrolíticas (glucana- mentos para a nutri-
ses, quitinases etc.), proteínas dos patógenos (de- ção, como o cálcio, o
fensinas, osmotinas etc.), expressão de proteínas ferro e o fósforo, além de
heterólogas antimicrobianas (tioninas, defensinas, reduzir a biodisponibili-
peroxidases, lisozimas etc.), expressão de fitoale- zação destes nutrientes. Na
xinas (restaverol), inibição da virulência do patóge- Embrapa, os esforços têm se concentra-
no e alteração de componentes estruturais. Vários do na produção de soja com menor teor de fitato. Alface
peptídeos antimicrobianos presentes em plantas e Também há estudos para caracterizar genes res- transgênico
animais têm sido caracterizados e genes sintéti- ponsáveis pela produção de enzimas envolvidas na que expressa
antígeno
cos foram obtidos e introduzidos em plantas como síntese de vitaminas (C, A e E) e de óleos essenciais.
antileishmaniose,
banana, soja e alface. Estas estão agora em avalia- Isso será fundamental para a manipulação desses que poderá
ção para resistência a muitas doenças fúngicas im- compostos em plantas usadas na alimentação hu- ajudar no combate
portantes, como a ferrugem asiática da soja, a po- mana e animal. à doença
dridão da alface e a sigatoga negra da banana. A produção de fármacos em plantas e animais
Várias abordagens têm sido propostas para ob- geneticamente modificados é outro campo muito
ter resistência a pragas (insetos) nos sistemas agrí- fértil. Nos Estados Unidos, existem no mercado ou
colas. Em geral, as estratégias estão relacionadas à em fase final de teste mais de 300 fármacos produ-
expressão de genes de proteínas que alteram o ciclo zidos com o uso da engenharia genética. A grande
de vida ou que são letais para os insetos: inibido- maioria tem sido produzida em bactérias, levedu-
res de proteinases, inibidores de amilases, lectinas ras ou células animais geneticamente modifica-
etc. Até o momento, a utilização do gene Bt (Cry) das. Têm-se buscado alternativas para reduzir o
tem sido a estratégia mais eficiente e amplamente custo de produção desses fármacos ou aumentar a
usada no mercado. O gene Bt codifica uma toxina segurança do consumidor. A Embrapa está avalian-
da bactéria gram-positiva do solo, Bacillus thurin- do a síntese de proteínas de interesse farmacológico,
giensis. Muitos genes isolados dessa bactéria pro- como o hormônio de crescimento humano e anticor-
duzem nas plantas inclusões cristalinas (cristais pos produzidos em sementes de leguminosas e gra-
formados pela aglomeração das proteínas Bt no míneas ou em animais usados como biorreatores.
interior das células) de um potente inseticida Além dos exemplos citados, muitos outros estão
(d-endotoxinas) chamado toxina cristal (Cry) ou em andamento nos vários centros de pesquisa da
toxina citolítica (Cyt). Embrapa e em grande número de institutos e uni-
Três espécies de plantas geneticamente modi- versidades brasileiras, tanto públicas quanto priva-
ficadas vêm sendo comercialmente cultivadas das. Entretanto, o ambiente para a pesquisa cientí-
contendo genes Bt: milho, algodão e batata. No en- fica nessa área tem sido desfavorável, uma vez que
tanto, genes Bt têm sido introduzidos e avaliados o país está buscando somente agora resolver as pen-
em um grande número de espécies, como soja, dências jurídicas para aprovar uma lei que permita
maçã, arroz, álamo, alfafa, cana-de-açúcar, uva e dar segurança a pesquisadores e investidores. Sugestões
tomate. Cerca de 15% dos cultivos comerciais com Pela nova lei, em discussão no Congresso Nacio- para leitura
plantas geneticamente modificadas nos Estados nal, cria-se o Conselho Nacional de Biosseguran-
ARAGÃO, F.J.L.,
Unidos, China, África do Sul, Indonésia e Austrá- ça, responsável pela formulação da Política Nacio- Organismos
lia contêm o Bt. Na Embrapa, genes Bt têm sido nal de Biossegurança. Esse fato, muito relevante, transgênicos, ed.
Manole, Barueri
isolados e caracterizados. Outros genes e estraté- só surtirá o efeito necessário se o Brasil contar tam- (SP), 2003.
gias em análise buscam obter feijão resistente a bém com uma Política Nacional de Biotecnologia, CHARLES, D., Lords
of the Harvest,
carunchos e café resistente a brocas. que permita que haja investimento na proporção
ed. Perseus
A engenharia genética também tem sido utili- suficiente e continuidade garantida para a geração Publising,
zada como uma ferramenta para melhorar nutri- das tecnologias de que o país precisa para desenvol- Cambridge
(Inglaterra), 2001.
cionalmente as plantas, aumentando a concentra- ver sua agricultura e pecuária. ■

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B I O S S E G U R A N Ç A

Riscos e benefícios
A desconfiança em relação à segurança dos alimentos transgênicos, comum em vários
países, inclusive no Brasil, não se baseia em fatos. As análises de risco dos produtos
geneticamente modificados ou derivados deles e outros estudos científicos deixam
claro que não há riscos em sua produção ou em seu consumo. A discussão sobre a
legislação brasileira de biossegurança deve levar em conta o conhecimento existente,
para proteger o meio ambiente e a população sem inibir o desenvolvimento da ciência
e da tecnologia.

Franco M. Lajolo
Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental,
Faculdade de Ciências Farmacêuticas,
Universidade de São Paulo

Poucas pessoas sabem que a engenharia genética, se bem utilizada, que podem ajudar a controlar anemias nutricionais,
tem enorme potencial para dar mais qualidade de que afetam milhões de pessoas no mundo inteiro.
vida às populações. Ela pode aumentar a produtivi- Com tudo isso, deveria haver um grande entu-
dade agrícola, beneficiar o meio ambiente e melho- siasmo pela introdução dos transgênicos. Mas, in-
rar a qualidade dos alimentos e a saúde humana. felizmente, não é o que acontece.
Diversos exemplos demonstram esse potencial. Diversas circunstâncias têm gerado desconfian-
É o caso de plantas resistentes a insetos, que ne- ça em relação aos transgênicos, em especial no Bra-
cessitam de menos inseticidas, preservando o meio sil. Mas ela não se baseia em fatos e sim na per-
ambiente e a saúde humana. Ou de frutos com ama- cepção individual equivocada do risco possível. O
durecimento controlado e, portanto, de melhor equívoco se deve tanto a medidas conflitantes de
conservação e qualidade. Ou ainda de sementes de origem governamental quanto ao despreparo da
plantas como soja, milho, canola e arroz, que já mídia para bem informar seus leitores em assuntos
tiveram seu valor nutricional melhorado por enge- de ponta de ciência e tecnologia, e ainda à falta
nharia genética. de educação científica da média da população bra-
A mesma tecnologia também produziu óleos com sileira. Em resumo, a desconfiança decorre do co-
teor mais equilibrado de ácidos graxos (saturados e nhecimento limitado do assunto e das informações
insaturados), melhores para o coração, bem como pouco esclarecedoras veiculadas pela mídia.
raízes cujos carboidratos auxiliam as funções intes- Como qualquer tecnologia, a da produção de trans-
tinais. Ao lado disso, sementes enriquecidas com vi- gênicos deve ser avaliada criteriosamente, para que
taminas e minerais – a chamada biofortificação – sua segurança seja garantida. A ciência e a prática
são importantes em programas de saúde pública, já têm mostrado, até o momento, que a produção e o

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B I O S S E G U R A N Ç A

consumo de alimentos transgênicos não acarretam vêm sendo obtidos nessas análises suge-
riscos novos em relação aos já existentes nos ali- rem que o instrumental disponível para
mentos produzidos de maneira convencional. a avaliação é bastante confiável para
A avaliação de segurança alimentar – parte da ro- estabelecer a sua segurança. O risco de
tina do estudo dos alimentos – utiliza uma metodo- ocorrência de efeitos adversos da in-
logia denominada ‘análise de risco’. Tal procedimen- gestão de alimentos transgênicos – por
to, adotado e aceito internacionalmente, investiga exemplo, a transferência natural do
os riscos de possíveis efeitos adversos dos alimentos gene introduzido para bactérias in-
na população, propõe o gerenciamento desses riscos testinais ou para o organismo huma-
através de políticas normativas e de controle e faz no, ou problemas causados pelas proteí-
circular informação entre os setores envolvidos. nas expressas por esse gene ou por alterações signi-
Na produção dos alimentos transgênicos, transfe- ficativas na composição nutricional do alimento – é
rem-se genes de um organismo (doador) para outro extremamente pequeno. Isso vem sendo demons-
(receptor), no qual o gene transferido será expresso, trado pelo uso desses produtos em rações animais e
alterando alguma característica desse receptor (uma na alimentação humana, por muitos anos e em di-
planta ou um animal). A análise de risco avalia os versos países, sem qualquer registro confirmado de
perigos potenciais associados a esse gene, ao organis- efeito adverso à saúde.
mo doador e aos efeitos intencionais ou não que po- No Brasil, por determinação legal, qualquer ali-
dem resultar da expressão desse gene no receptor. mento que contenha organismos geneticamente
Protocolos de avaliação de segurança de organis- modificados deve trazer essa informação no rótulo.
mos transgênicos vêm sendo sucessivamente pro- Mas essa exigência nada tem a ver com a segurança
postos, aperfeiçoados e endossados por organismos de tais alimentos: a norma apenas garante que o
internacionais como a Organização das Nações Uni- consumidor exerça de forma mais informada e ple-
das para Alimentos e Agricultura (FAO). Tais proto- na o seu direito de escolha. Os alimentos transgêni-
colos envolvem a geração de informações baseadas cos já encontrados no mercado em vários países –
em estratégias e etapas específicas, que ocorrem ao inclusive no Brasil – foram avaliados e considera-
longo de todo o processo de produção, desde a con- dos seguros por diversos organismos científicos e
cepção inicial do produto até seu lançamento no órgãos de saúde pública internacionais de gran-
mercado. Essas estratégias e etapas são as seguintes: de credibilidade.
• avaliação da segurança do organismo que deu Vale apontar, porém, que se essa rotulagem obri-
Sugestões
origem ao gene (ausência de patogenicidade ou gatória garante, por um lado, um direito dos consu- para leitura
toxicidade); midores, pode, por outro, se for mal regulamentada,
• descrição do organismo transformado e da esta- gerar custos desnecessários e instaurar desconfian- LAJOLO, F. M. & NUTTI,
M. R. Transgênicos
bilidade da transformação; ça. Não há base científica, por exemplo, para impor — Bases científicas
• descrição das técnicas utilizadas e caracteriza- essa rotulagem a produtos refinados (como açúcar da sua segurança,
São Paulo, SBAN,
ção molecular da modificação genética ocorrida; ou óleo) obtidos a partir de plantas transgênicas ou
2003.
• caracterização (bioquímica, funcional, toxico- a alimentos em cujo processamento são usadas BORÉM, A., DEL
lógica) dos novos produtos decorrentes da ex- enzimas produzidas por organismos transgênicos GIUDICE, M. P.
& COSTA, N. M. B.
pressão do gene introduzido; (como acontece em alguns casos na produção de Alimentos
• composição química do produto, relativa a ma- queijos). A exigência também não se aplica à carne geneticamente
modificados,
cro e micronutrientes, e a outras substâncias, de animais alimentados com sementes transgênicas. Viçosa, UFV, 2003.
conforme o caso, para identificação de efeitos Esses produtos não apresentam riscos à saúde e, em COSTA, N. M. B.
não intencionais; nenhum desses casos, é possível detectar nos produ- & BORÉM, A.
Biotecnologia
• ensaios nutricionais ou toxicológicos com tos finais a presença de genes modificados, tornan- e nutrição, São
animais; do impossível a fiscalização exigida pela lei. Paulo, Nobel, 2003.
THOMAS, J. A. & FUCHS,
• estudos de possível alergenicidade (capacidade O desenvolvimento da biotecnologia é essencial R. Biotechnology
de causar alergias) com base nas características para que o Brasil adquira competitividade em áreas and safety
estruturais da proteína expressa, envolvendo en- estratégicas, como as de agronomia e saúde. Por assessment,
Londres, Academic
saios in vitro e in vivo. isso, é também essencial que a lei sobre biossegu- Press, 2003.
rança, atualmente em tramitação no Congresso ICSU (International
Council for
Nacional, se apóie no conhecimento científico exis-
TRANSGÊNICOS SÃO CONFIÁVEIS tente, disponibilizado pelos pesquisadores brasi-
Science). New
genetic foods and
agriculture:
A evolução das normas referentes à avaliação de leiros às autoridades envolvidas em sua elaboração.
scientific
segurança dos alimentos geneticamente modifica- Só assim ela poderá garantir a segurança ambien- discoveries –
dos, os trabalhos de harmonização dessas normas tal e a saúde pública sem inibir o desenvolvimento societal dilemmas,
Paris, ICSU ,2003.
em nível mundial e os dados experimentais que científico e tecnológico. ■

abril de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 37


B I O S S E G U R A N Ç A

A experiência da AgroGenética
A presença de ingredientes derivados de plantas transgênicas em produtos alimentícios
vem aumentando no mundo inteiro, inclusive no Brasil. De 2000 a 2003, verificou-se no
país um aumento de 5% para 32% desses componentes em grãos, sucos, sopas, salsichas,
temperos, entre outros itens analisados por uma empresa incubada na Universidade
Federal de Viçosa (MG). O cumprimento das normas para a produção e o comércio dos
transgênicos, que o país vem discutindo, depende da existência de laboratórios capazes
de detectar e quantificar a presença de resíduos desses produtos nos alimentos.

Francismar Corrêa Marcelino O cultivo e o comércio de organismos geneticamente modificados


e Marta Fonseca Martins (OGMs) vêm crescendo significativamente em todo
Laboratório de Análises Genéticas o mundo, inclusive no Brasil, onde se constatou a
– AgroGenética presença de soja transgênica em lavouras do sul do
país, o que levou o governo a estabelecer normas pa-
Márcio Antônio Silva Pimenta, ra o plantio e a comercialização desse grão na safra
Maurílio Alves Moreira de 2004, através da Lei nº 10.814 (de 15/12/2003).
e Everaldo Gonçalves de Barros Essa ampliação mundial das culturas geneticamen-
Instituto de Biotecnologia te modificadas, em especial a soja e o milho, refle-
Aplicada à Agricultura, tiu-se também no aumento da presença de resíduos
Universidade Federal de Viçosa (MG) transgênicos em produtos alimentícios que têm em
sua composição esses dois tipos de grãos.
No Brasil, a grande maioria dos produtos alimen-
tícios disponíveis no mercado apresenta soja ou mi-
lho em sua composição, adicionados na forma natu-
ral do grão ou como proteína, gordura, óleo, amido,
extrato ou lecitina. Esses produtos incluem biscoi-
tos, chocolates, sopas, temperos, condimentos, su-
cos, leite em pó, iogurtes e produtos cárneos (salsi-
chas, lingüiças, mortadela, presunto, empanados,
frango congelado etc.), entre outros. A possibilidade
de que a soja ou o milho transgênicos sejam utiliza-
dos na fabricação desses produtos e a discussão –
hoje mundial – quanto à aceitação dos OGMs e dos

38 • CIÊNCIA HOJE • vol. 34 • nº 203


B I O S S E G U R A N Ç A

produtos deles derivados fazem com que a detecção 35,0


e a quantificação de resíduos de transgênicos em
matérias-primas e em alimentos se tornem essen- 30,0

ciais. Muitas empresas alimentícias estão preocu- 25,0


padas em informar aos consumidores que seus pro-

Porcentagem
dutos não contêm transgênicos, já que estes ainda 20,0

não são aceitos pela maior parte da sociedade. 15,0


Portanto, a existência de instituições, públicas ou
privadas, capazes de detectar a presença de OGMs – 10,0

e quantificá-los – em produtos finais e em matérias-


5,0
primas revela-se imprescindível para o país, já que
existe um limite absoluto para a presença de OGMs 0,0
2000 2001 2002 2003
em um produto final e as pessoas têm o direito de sa-
ber o que consomem. Esse limite, fixado em 1% pelo
Decreto no 4.680 (de 24/4/2003), que trata do direito Percentual de amostras positivas para a presença de resíduos
de OGMs com relação ao número total de amostras analisadas,
à informação do consumidor brasileiro, é semelhan-
entre os anos de 2000 e 2003
te ao adotado na Europa. Assim, produtos que conte-
nham acima de 1% de OGMs em sua composição Essas técnicas conseguem determinar o percentual
devem trazer essa informação em suas embalagens. total de contaminação existente na amostra em aná-
Já antevendo esse cenário, em 1999 o Instituto de lise. A metodologia, bastante sensível, é capaz de
Biotecnologia (Bioagro) da Universidade Federal de identificar material transgênico em uma amostra
Viçosa (UFV) iniciou o desenvolvimento de metodo- mesmo que ele represente apenas 0,1% do alimen-
Sugestões
logias para determinar a presença e quantificar resí- to (para proporções menores que esse limite, o re-
para leitura
duos de transgênicos em amostras de DNA extraídas sultado é negativo).
de grãos e de produtos derivados, com base na técni- Durante os últimos quatro anos, as análises de AHMED, F. E.
ca de amplificação de fragmentos de DNA deno- OGMs pela AgroGenética, em grãos e diferentes ti- ‘Detection
of genetically
minada reação em cadeia da polimerase (PCR, de pos de alimentos revelaram um aumento gradual no modified organisms
polymerase chain reaction). Tais estudos levaram à número de amostras positivas, evidenciando que, in foods’ in Trends
in Biotechnology,
criação, através do sistema de incubadora de empre- embora o plantio e a comercialização de organis- v. 20, no 5,
sas da UFV, da AgroGenética, que desde o final de mos geneticamente modificados fossem proibidos 215-223 pp., 2002.
1999 analisa grãos e alimentos processados para a no país, eles estavam de alguma forma presentes no SCHREIBER, G. A.
‘Challenges for
detecção de resíduos transgênicos, sendo atualmente mercado brasileiro desde 2000. Naquele ano, a pre- methods to detect
a empresa nacional de maior experiência nessa área. sença de resíduos de OGMs foi constatada em ape- genetically
modified DNA
Um organismo é considerado geneticamente mo- nas 5% das amostras testadas na empresa. Em 2001, in foods’ in Food
dificado quando um fragmento de DNA exógeno é esse índice subiu para 11,5%, chegando a 28,5% control, v. 10,
351-352 pp., 1999.
inserido em seu genoma por métodos não naturais. em 2002 e subindo para 32,3% em 2003, até setem- CASTRO, L. A. B.
A presença de organismos geneticamente modifica- bro (figura). ‘Alimentos
dos em alimentos pode ser facilmente determinada Observou-se ainda uma diversificação dos tipos transgênicos,
o impasse
com o auxílio de técnicas de biologia molecular. de amostras analisadas. De início, a demanda era continua’ in
Nos laboratórios da AgroGenética, a detecção e principalmente para a análise de grãos, rações e di- Biotecnologia,
ciência
quantificação de transgenes em grãos, alimentos e ferentes tipos de proteínas de soja. Em 2001, anali- e desenvolvimento,
produtos derivados é feita basicamente pela técni- samos diferentes produtos processados, como sopas, no 26, 4-8 pp., maio
ca de PCR. Inicialmente é feito um processo quali- misturas para bolos, salsicha, produtos cárneos, con- a junho de 2002.
Na internet: http://
tativo, no qual amostras de DNA são extraídas do dimentos e temperos. Atualmente, a AgroGenética www.ctnbio.gov.br
material em análise e são multiplicadas (amplifi- examina os mais diferentes tipos de amostras. e http://
www.biotecnologia.
cadas) as porções desse DNA que correspondem ao Os dados das análises permitem concluir que, com.br
transgene, ou seja, ao DNA exógeno que foi trans- entre 2000 e 2003, aumentaram gradualmente a BRASILEIRO, A. C. M.;
ferido ao OGM. No processo de amplificação, são presença de grãos transgênicos na safra nacional e a LACORTE, C.
‘Agrobacterium:
adicionados às amostras outros segmentos de DNA presença de resíduos de transgênicos (em especial um sistema natural
(primers), que se ligam especificamente a seqüên- de soja) em ingredientes e alimentos derivados no de transferência
de genes para
cias transgênicas (já conhecidas, pois têm de ser pa- país. Esses dados também indicam a necessidade de plantas’
tenteadas pelas empresas que produzem os OGMs), o país definir normas claras para a rotulagem de in Biotecnologia,
Ciência
dando início à amplificação. alimentos que contenham resíduos de OGMs. Pa- e Desenvolvimento,
Uma vez detectada a contaminação, são realiza- ra que tais normas sejam de fato cumpridas, é im- no 26, 12-15 pp.,
dos os testes quantitativos, empregando-se técnicas portante dispor de laboratórios qualificados para maio a junho
de 2002.
aceitas internacionalmente para essa finalidade. realizar esse tipo de análise. ■

abril de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 39


CULTURA ALIMENTAR

A recente introdução, entre os alimentos do homem ou de animais de criação, de


organismos geneticamente modificados ou produtos que contêm tais organismos
vem gerando sérios questionamentos quanto aos seus aspectos sanitários, ecológicos
e econômicos, entre outros. Do ponto de vista cultural, essa alteração vem acentuar
um problema atual: o mal-estar da alimentação, causado pela perda do controle
sobre o que comemos e pela sensação de artificialidade no alimento.

Henrique S. Carneiro* Há um mal-estar contemporâneo ligado à alimentação que não decorre


Departamento de História, apenas do crescimento simultâneo da fome e da
Universidade de São Paulo obesidade, mas subordina-se à natureza do comple-
xo industrial alimentar, que submete a sociedade a
seus interesses e pressupostos. Grandes volumes de
* Autor de Comida e Sociedade – produção de poucos e invariáveis grãos, a maior
uma história da alimentação parte para consumo como ração animal, e um ex-
(Rio de Janeiro, Campus, 2003) cesso de carboidratos, gorduras animais e açúcares,
disseminados com uma técnica publicitária insidi-
osa e atordoante. Essas características levaram ao
que já foi chamado de ‘gastroanomia’.
Além do polarizado crescimento da carência e
do excesso, o problema contemporâneo da alimen-
tação é que ela se torna cada vez mais heteronômica,
ou seja, menos autônoma. Preparamos cada vez me-
nos o que comemos, perdemos os sentidos culturais
do alimento e do tempo partilhados, comemos mal e
rapidamente e, sobretudo, não controlamos e não
sabemos o que comemos.

40 • CIÊNCIA HOJE • vol. 34 • nº 203


CULTURA ALIMENTAR

Os alimentos transgênicos, ou seja, que contêm ção, mas essa especialização agrícola em monocul-
produtos ou subprodutos de organismos genetica- turas para exportação não garante o abastecimento
mente modificados, constituem uma das mais re- de alimentos para o mercado interno.
centes alterações introduzidas na alimentação – isso As conseqüências da disseminação de produtos
aconteceu há menos de uma década. As empresas transgênicos no mercado de alimentos têm várias
de biotecnologia ampliaram seu controle do merca- dimensões. Do ponto de vista histórico, podemos ob-
do da alimentação humana e animal por meio da servar algumas alterações inéditas. A maior transfor-
invenção de novos organismos vivos, plantas e/ou mação na forma como a humanidade se alimenta
animais – produtos artificiais da combinação de ocorreu na revolução neolítica, há cerca de 10 mil
genes de espécies distintas (chegando até a mistura anos, quando surgiu a agricultura. Desde então, as
de filos diferentes, através da transferência de genes técnicas agrícolas, em especial o saber dos agriculto-
entre animais e plantas). res sobre as sementes e a forma de selecionar as me-
A quimera, animal mitológico, híbrido e impos- lhores para o replantio, estiveram na base da produ-
sível, com corpo de cabra, cabeça de leão e cauda de ção de alimentos. A segunda maior transformação,
dragão, tornou-se real. Desde 1973, apesar das pro- produto do intercâmbio moderno de gêneros entre
postas efêmeras de moratória, vêm sendo criados os continentes, seguido da industrialização, permi-
novos organismos vivos com genes recombinados, tiu uma globalização do saber arcaico da domes-
destinados não só a servirem de alimentos. A guer- ticação das plantas alimentícias, levando as espe-
ra biológica foi uma das fronteiras de vanguarda na ciarias, o milho, a batata, a cana-de-açúcar, entre
pesquisa de novas ou velhas doenças e de toxinas tantas outras espécies vegetais, a tornarem-se pe-
geneticamente manipuladas, mas as mais rentáveis ças-chaves na constituição do moderno sistema
aplicações dos organismos transgênicos foram as mundial de mercado.
industriais, como no uso de bactérias transformadas Atualmente, a adoção de sementes transgênicas
para produzir insulina, interferon e hormônio do que geram plantas com grãos infecundos, devido à
crescimento humano. presença de um gene ‘exterminador’, ameaça a auto-
A tecnologia de manipulação genética de espé- nomia dos produtores agrícolas sobre as sementes,
cies animais e vegetais para fins industriais, medi- tornando-os inteiramente dependentes de grandes
cinais ou alimentares certamente pode ter usos fornecedores de fertilizantes, agrotóxicos e das pró- 
adequados, com uma potencialidade imensa ain-
da desconhecida. No entanto, o uso atual dos trans-
gênicos na agricultura de grãos tem trazido a mar-
ca de uma expansão precipitada, levando ao temor
global de uma decomposição ainda maior na qua-
lidade da alimentação humana.
O mais curioso não é o fato – já suficientemente
bizarro – de se misturarem na comida genes de se-
res vivos diferentes, criando o que os europeus cha-
mam de frankenfoods, mas o de que a mais poderosa
empresa de produção de alimentos transgênicos do
mundo também seja a maior produtora de venenos.
A empresa norte-americana Monsanto, maior pro-
dutora mundial de herbicidas, produziu um tipo de
soja que recebeu genes de uma bactéria e de uma
flor para tornar-se mais resistente ao herbicida
Roundup, fabricado pela própria Monsanto. A soja
resistente, chamada Roundup Ready, assim como o
milho que incorpora o veneno nas próprias folhas
através de um gene recombinado, são os principais
produtos transgênicos no mercado mundial de ali-
mentos, embora enfrentem grande resistência no
mercado europeu.
Assim, a soja transgênica tem servido para au-
mentar o uso e a dependência de um agrotóxico
específico de uma empresa multinacional. Ao custo
de maior contaminação ambiental e maior devasta-
ção florestal consegue-se maior volume de produ-

abril de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 41


CULTURA ALIMENTAR

ses pobres diante de algumas empresas transna-


cionais que, ao obter patentes biológicas, amplia-
ram o âmbito da propriedade privada.
Mas há outro aspecto menos evidenciado, de um
ponto de vista cultural. A cultura dos transgênicos
reforça uma alimentação e uma cultura alimentar
cada vez mais heteronômica. Cada vez sabe-se e
controla-se menos e o que se está comendo. A som-
bria previsão da ficção de que pílulas alimentícias
substituiriam a comida ainda não aconteceu. Embo-
ra haja uso crescente de pílulas de vitaminas ou
suplementos alimentares, estas não se tornaram a
forma predominante de se alimentar, mas a nature-
za sintética das coisas que comemos torna-se cada
vez mais dominante.
A industrialização produziu um resultado ambí-
guo, ampliou as capacidades de produção e tornou
global o intercâmbio de produtos, mas retirou a
autonomia que as sociedades agrárias tinham para
produzir e identificar o alimento na sua gênese, no
seu sentido e no seu conteúdo exato. Há um dito que
afirma que as pessoas comuns não deveriam saber
como se fazem as salsichas e as leis, pois ficariam
horrorizadas. Atualmente, além de ainda não saber-
mos exatamente o que contêm as salsichas, não po-
prias sementes. O direito de propriedade estende-se demos imaginar o que comem as vacas, porcos e ga-
sobre organismos vivos, mercantilizando a vida. Essa linhas de que supostamente elas são feitas. E, ainda
agricultura totalmente subordinada a empresas pior, deixamos de saber o que de fato são os grãos
transnacionais de agrobusiness expropria os sabe- que hoje alimentam os animais e a nós próprios.
res etnobotânicos e etnoagrícolas, destrói os peque- O que ocorre com os transgênicos não é apenas a
nos produtores, inviabiliza a reforma agrária, inter- artificialidade química, mas também a biológica.
fere no equilíbrio ecológico e concentra a renda. Os híbridos produzidos, organismos geneticamente
A produtividade agrícola ampliada, nas condi- modificados, remetem a velhos pesadelos do imagi-
ções da competitividade do mercado oligopolizado, nário contemporâneo dos riscos da ciência. Isso evi-
vem levando a um fenômeno paradoxal: mais agri- dencia apenas um aspecto da importância crescen-
cultura para animais do que para seres humanos. te do ‘biopoder’. As questões éticas da biotecnologia,
Sugestões Como já ocorreu com o milho, a pressão pelo aumen- já antecipadas nas ficções utópicas (ou distópicas)
para leitura
to da produção de soja decorre principalmente da de John B. S. Haldane (1892-1964) e Aldous Huxley
BERLAN, J.-P. (Coord.), sua utilização em ração para gado de corte. Um uso (1894-1963), tornaram-se plenamente atuais. A en-
La guerre au vivant, perdulário da terra agricultável. genharia genética poderá criar novas espécies de
OGM et
mistifications
Esse modelo alimentar de carne produzida cada plantas e animais. Resta saber se, nessa perspectiva,
scientifiques, vez em maior quantidade e a um custo sempre as diferenças genéticas entre as populações huma-
Marselha, Agone, reduzido levou a alguns dos maiores desastres re- nas não podem intensificar-se e serem manipuladas
2001.
CONWAY, G. Produção centes da indústria alimentar: a doença da vaca de forma deliberada para fins de suposta eugenia e
de alimentos louca e contaminações avícolas na Ásia. Confina- predomínio racial, para não falarmos da criação de
no século 21.
Biotecnologia
mento, abuso de hormônios e antibióticos e, no caso novos seres híbridos, com resultados imprevisíveis
e meio ambiente, específico da vaca louca, rações com restos de ani- na biosfera.
São Paulo, Estação mais para herbívoros, criaram a pior doença veteri- Os transgênicos trazem aos alimentos contempo-
Liberdade, 2003.
FLANDRIN, J.-L. & nária do final do século 20, obrigando o abate de râneos uma suspeita oculta. Mesmo que os rótulos
MONTANARI, M. rebanhos nacionais quase inteiros. de todos os alimentos indiquem se podem conter al-
História da
Alimentação, Os organismos geneticamente manipulados, já gum OGM, como prevê o protocolo de Cartagena,
São Paulo, Estação amplamente usados na indústria alimentar humana restam vários riscos de contaminação ou de ocul-
Liberdade, 1998.
e animal, trazem inúmeros questionamentos quan- tação. Isso aumenta o mal-estar cultural da alimen-
LEITE, M. Os alimentos
transgênicos, to à plena segurança, à contaminação e à diminui- tação planetária, uma sensação de risco e artifi-
São Paulo, ção da diversidade genética, e ainda em relação à cialidade no alimento, de perda da autonomia sobre
Publifolha, 2000.
intensificação da dependência econômica dos paí- os meandros mais íntimos da vida cotidiana. ■

42 • CIÊNCIA HOJE • vol. 34 • nº 203


E C O L O G I A

Já foi demonstrado, em laboratório e em estudos de campo, que organismos geneticamen-


te modificados podem causar danos ao ambiente, de diversas formas. Isso ocorre, por
exemplo, pela passagem dos transgenes para outras espécies e por efeitos adversos sobre
o ecossistema exposto a esse organismo. A avaliação dos riscos ambientais dessa nova
tecnologia, porém, é muito complexa, exigindo critérios científicos e uma abordagem que
envolva também as suas implicações econômicas, sociais, sanitárias e éticas.

Rubens O. Nodari A avaliação dos riscos e impactos ao meio ambiente do uso em larga
e Miguel P. Guerra escala de organismos geneticamente modificados
Departamento de Fitotecnia, (OGMs) ou transgênicos deve se basear em boas
Centro de Ciências Agrárias, práticas científicas e em uma abordagem multi-
Universidade Federal de Santa Catarina disciplinar. Embora as implicações econômicas, so-
ciais e éticas também devam ser avaliadas em con-
junto com a análise de riscos ambientais, elas não
são abordadas neste artigo.
Entre os alertas mais contundentes sobre os pos-
síveis riscos ao meio ambiente decorrentes do culti-
vo ou liberação de plantas transgênicas estão (1) a
geração de novas pragas e plantas daninhas; (2) o
aumento do efeito das pragas já existentes, por meio
da recombinação gênica entre a planta transgênica
e espécies filogeneticamente relacionadas; (3) os
danos a espécies não-alvos; (4) a alteração drástica
na dinâmica das comunidades bióticas, levando à
perda de recursos genéticos valiosos, seguido da
contaminação gênica de espécies nativas, que intro-
duziria nestas características originadas de paren-
tes distantes ou até de espécies não relacionadas; (5) 

abril de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 43


E C O L O G I A

ADAPTADO DE PETERSON ET AL., 2000


Escala espacial

Impactos Riscos e benefícios potenciais


dos OGMs
Pequeno Grande

Diretos Planta Parcela Propriedade Região


Agricultura
Simples
Ecologia
Predição, testes
Social e monitoramento

Indiretos Difícil

A dificuldade de prever, testar e monitorar os efeitos diretos e indiretos do cultivo de variedades transgênicas
(OGMs) depende da escala em que esses efeitos ocorrem: essa dificuldade aumenta à medida que cresce a escala
espacial e à medida que os efeitos se tornam indiretos e envolvem aspectos ecológicos e sociais

os efeitos adversos em processos ecológicos nos populações e de outras espécies com as quais inte-
ecossistemas; (6) a produção de substâncias tóxicas ragem. Do ponto de vista agrícola, a transferência de
após a degradação incompleta de produtos quími- genes pode provocar o surgimento de plantas dani-
cos perigosos codificados pelos genes modificados; nhas e pragas resistentes, bem como variantes ge-
e (7) a perda de biodiversidade. néticos cujas características não se pode anteci-
Esses alertas foram lançados no final da década par. Além disso, a agrodiversidade, composta pelas
de 1980 por cientistas de várias universidades nor- variedades ‘crioulas’ ou tradicionais ainda cultiva-
te-americanas, entre eles os microbiólogos James das pelos agricultores, poderá ser drasticamente
Tiedje e Richard Lenski e o biólogo Philip Regal. afetada. Devem ser considerados outros riscos em
Mais tarde, outros cientistas não apenas reforçaram espécies não-alvos, como microrganismos e ani-
tais riscos como incluíram outros. Cabe destacar os mais, assim como a contaminação do solo e da água
trabalhos do biólogo Norman Ellstrand, da Univer- por transgenes. As dimensões desses problemas
sidade de Riverside, e outros, relacionados à trans- também não podem ser previstas sem estudos de
ferência dos transgenes para parentes silvestres e impactos ambientais.
outras variedades de plantas em cultivo. A avaliação ambiental deve ser baseada nos ris-
Dos riscos acima mencionados, todos já foram cos potenciais de cada um dos transgênicos. Precisa,
comprovados experimentalmente ou constatados em
campo, exceto a geração de substâncias tóxicas pela
degradação dos produtos gênicos. Entretanto, à me-
dida que o conhecimento científico avança nessa
área e diferentes transgênicos são desenvolvidos,
novos riscos potenciais são evidenciados. Também
não se pode deixar de considerar que são múltiplas
as ameaças aos componentes da biodiversidade, já
que um ecossistema é constituído não só por seres
vivos, mas também pelos processos ecológicos.
Entre os riscos ambientais, a transferência dos
transgenes por cruzamentos sexuais, já constatada
em várias situações, é considerada hoje uma das
ameaças mais sérias. Espécies que adquirirem cer-
tos transgenes dessa forma poderão alterar seu valor
adaptativo e, em conseqüência, a dinâmica de suas

44 • CIÊNCIA HOJE • vol. 34 • nº 203


E C O L O G I A

portanto, levar em conta as características dos genes plantas transgênicas. Concluídos em 2003, tais es-
inseridos e as implicações do uso em larga escala tudos indicaram que os sistemas de cultivo que
dos organismos modificados. Os procedimentos para incluíram variedades transgênicas foram mais no-
essa avaliação estão associados à identificação dos civos à biodiversidade que os convencionais para
perigos, à estimativa de sua magnitude e da fre- duas (beterraba e colza) das três espécies testadas.
qüência de ocorrência, e à existência de alternati- Assim, os estudos científicos tornaram possível, nes-
vas ao uso desses organismos. Os riscos ambientais se caso, tomar uma decisão sabendo das possíveis
de uma variedade transgênica dependem das conseqüências.
interações complexas decorrentes da modificação A diretriz maior é a de que um novo produto
genética, da história natural dos organismos envol- deve ser seguro e sadio para a espécie humana e
vidos e das propriedades do ecossistema no qual para o meio ambiente. Portanto, o impacto de um
essa variedade é liberada. transgene no ambiente e na saúde humana deve ser
A análise dos riscos ambientais, porém, é difi- criteriosamente avaliado. Assim, é relevante men-
cultada por vários fatores: a imprevisibilidade do cionar a estratégia e o objetivo de uma avaliação de
sítio do DNA onde será feita a inserção do(s) gene(s); plantas transgênicas proposta pelo ecólogo cana-
a presença de genes de resistência a antibióticos e dense Garry Peterson, hoje na Universidade McGill
outras seqüências que favorecem a transferência de (Estados Unidos), e colegas, na revista Conservation
DNA e causam instabilidade; a ausência de controle Ecology (v. 4-1, p. 13, 2000). Essa proposta é, de
da expressão gênica; a falta de controle do fluxo certa forma, adequada para as condições e a legisla-
gênico; a imprevisibilidade dos efeitos pleiotrópicos ção brasileiras (ver quadro à esquerda).
(colaterais) e dos efeitos a organismos não-alvos, ao Os estudos de impacto ambiental, no entanto, são
ambiente e à saúde humana. complexos, e devem incluir abordagens multidisci-
plinares. Três manifestações a esse respeito mere-
cem ser destacadas. A primeira é do jornalista cien-
tífico Cláudio Cordovil, no site Observatório da Im-
QUE CRITÉRIOS prensa (17/6/2003): “…estudos de avaliação de ris-
Sugestões
para leitura
co realizados por especialistas, para alegar uma
LEVAR EM CONTA? suposta inocuidade das novas tecnologias, extrema- NATIONAL RESEARCH
COUNCIL.
Por que é necessário realizar estudos ambientais mente valorizados por jornalistas, são considerados Environmental
antes da liberação comercial? Porque um risco é simplistas por cientistas sociais, por não contem- effects
definido em função da magnitude do seu efeito e da plarem as dimensões socioculturais da construção of transgenic
plants: the scope
probabilidade de ocorrência. Portanto, sem estudos do risco”. A segunda, da Academia Nacional de and adequacy
científicos, que critérios serão levados em conta Ciências dos Estados Unidos (National Science of regulation,
Washington,
para a tomada de uma decisão? Embora a decisão Academy), diz que a avaliação de plantas trans- National Academy
sobre a adoção de uma nova tecnologia ou produto gênicas deve ser feita de maneira “mais rigorosa e Press, 2002.
NODARI, R. O.
seja de natureza política, a base é científica. transparente”, com a participação de especialistas
& GUERRA, M. P.
Conhecendo-se os riscos, pode-se tomar uma de- independentes e maior envolvimento da população ‘Avaliação de riscos
cisão. É o que está ocorrendo na Inglaterra, onde o em geral. ambientais
de plantas
governo solicitou à comunidade científica, em 1999, A terceira, também dessa Academia, está em um transgênicas’,
a realização de estudos de impacto ambiental de relatório recente sobre o ‘confinamento biológico in Cadernos
de Ciência
de organismos geneticamente engenheirados’ e Tecnologia, v. 18,
(www.nap.edu/books/0309090857/html). O docu-
FOTO SILVIO AVILA/FOLHA IMAGEM

nº 1, p. 81, 2001.
mento concluiu que a falta de ciência e de dados de ROYAL SOCIETY.
Lavoura de soja transgênica no município Philosophical
de Tupanciretã, na região noroeste qualidade é o fator mais significativo que limita Transactions:
do Rio Grande do Sul nossa capacidade de alcançar métodos efetivos de Biological Sciences,
v. 358, nº 1.439,
bioconfinamento – métodos biológicos que visam novembro de 2003
confinar ou conter os OGMs e seus transgenes em si (edição especial
mesmos, ou seja, evitar o escape gênico. Como os sobre OGMs).
TIEDJE, J. M. e outros.
métodos podem falhar, um método, isoladamente, ‘The planned
seria insuficiente para prevenir o escape gênico. introduction
of genetically
Por isso, os cientistas recomendam desenvolver e engineered
testar múltiplos métodos para evitar o escape dos organisms –
Ecological
transgenes e seus efeitos adversos ao meio ambien-
considerations and
te. Por todas essas razões, os autores do relatório recommendations’,
enfatizam a necessidade de uma regulamentação in Ecology, v. 70,
nº 2, p. 298, 1989.
abrangente e rigorosa. ■

abril de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 45


D I R E I T O A M B I E N T A L

O controle legal
Novas regras estão sendo elaboradas para garantir a segurança biológica, ou biossegurança,
das atividades de engenharia genética e permitir o avanço da área sem que haja agressão à saúde
humana ou ao meio ambiente. O projeto de Lei nº 2.401/2003 já foi aprovado na Câmara de Deputados
e aguarda votação no Senado Federal. Algumas questões não resolvidas na legislação de 1995
permanecem sem solução no novo projeto, mas ainda há tempo para respostas legislativas que
permitam aprimorar a política nacional de biossegurança.

Paulo Affonso Leme Machado* A Câmara de Deputados aprovou em 5 de fevereiro o projeto de Lei
Departamento de Ecologia, nº 2.401/2003, que discorre sobre construção, cul-
Instituto de Biociências, tivo, produção, manipulação, transporte, transferên-
Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), cia, importação, exportação, armazenamento, pes-
campus de Rio Claro e Faculdade de Direito, quisa, comercialização, consumo, liberação e descar-
Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) te no meio ambiente dos organismos geneticamente
modificados (OGM). Caberá agora ao Senado Fede-
ral apreciar o projeto, voltando em seguida à Câma-
ra para a votação final.
As novas regras estão sendo elaboradas para que
haja segurança biológica ou biossegurança na en-
genharia genética, com o objetivo de se avançar na
área de biotecnologia sem agredir a saúde huma-
na, animal e vegetal, protegendo-se a vida e o meio
ambiente.
Normas legais já existem desde 1995, com a pro-
mulgação da Lei nº 8.974, modificada posteriormen-
* Autor do livro Direito ambiental brasileiro te pela Medida Provisória nº 2.191-9 em 2001. Pela
(Malheiros editores, São Paulo) Lei nº 8.974, o governo federal – através dos minis-
e professor convidado térios da Agricultura, do Meio Ambiente e da Saúde
na Universidade de Limoges, – detém o controle sobre as atividades de engenha-
França (1986-2003). ria genética, como ocorre com a regulação de agro-

46 • CIÊNCIA HOJE • vol. 34 • nº 203


D I R E I T O A M B I E N T A L

tóxicos. Criou-se, na ocasião, a Comissão Técnica trabalhos somente na ausência do titular, como
Nacional de Biossegurança (CTNBio), instalada no consta do próprio projeto. Portanto, não deveria ha-
Ministério da Ciência e Tecnologia. Mas não tem ver dúvidas na estruturação de uma comissão que
sido fácil nem harmônico, desde então, entrosar vai desempenhar papel central na biossegurança do
os ministérios e a CTNBio. Incertezas e discordân- país; é preciso deixar claro se ela vai funcionar com
cias sobre qual o tipo de controle que deve ser feito 27 ou com 54 membros.
em relação aos OGMs e quem deve exercê-lo Na nova lei, uma das funções da CTNBio foi
norteiam a discussão. inserida nas disposições finais e transitórias, que
determinam que a comissão deliberará em última e
definitiva instância, no âmbito das atividades de
pesquisa, nos casos em que a atividade for potencial
DISCÓRDIA ou efetivamente poluidora, bem como sobre a ne-
O pomo de discórdia foi a liberação do estudo de cessidade do licenciamento ambiental. Esse arti-
impacto ambiental para o plantio e a comercializa- go está deslocado, devendo ser encaixado junto
ção da soja geneticamente modificada no fim do ano com as competências da CTNBio. A avaliação do
passado. Houve ação cível pública contra esse com- possível ou efetivo dano ambiental (EPIA/RIMA)
portamento administrativo, mas o governo federal causado pelas atividades de pesquisa não ficou res-
acabou, por medidas provisórias, liberando a safra trita à competência da CTNBio.
de soja de 2003 e 2004, sendo que o projeto de lei A CTNBio passa a ter novas responsabilidades.
determina a liberação da safra de 2005. Conserva o poder de emitir pareceres sobre o uso
O meio ambiente encontrou na Constituição Fe- comercial de OGMs, ganhando as atribuições de Esse símbolo,
deral de 1988 uma excelente normatização através autorizar, registrar e acompanhar as atividades de de acordo com
de seu artigo 225. Dando a devida importância à pesquisa com OGMs ou derivados de OGMs. Com a nova lei,
deverá
prevenção do risco ambiental, através do estudo tais poderes, vale a pena insistir em que esses 27 aparecer no
prévio de impacto ambiental, ensejando a parti- membros titulares e os 27 suplentes precisariam rótulo de todo
cipação do público na sua aprovação, a Constituição comprovar sua idoneidade moral, fazendo publi- produto com
estabelece como um dever do poder público o con- car sua declaração de bens, antes de sua posse e ao componentes
trole da produção, da comercialização e do emprego se desligar de suas funções. É importante lembrar transgênicos
de técnicas, métodos e substâncias que comportem que essas pessoas decidirão sobre tecnologias de
risco para a vida, a qualidade de vida e o meio vanguarda e de risco que interessam a milhões de
ambiente. brasileiros, e que essas decisões administrativas
envolvem fortíssimos interesses econômicos.
A composição da CTNBio tem dado destaque aos
cientistas – já compõem quase a metade da comis-
A NOVA LEI são. Espera-se que eles contribuam não só como pes-
A concepção dos mecanismos de controle da lei que quisadores e professores, mas também como inte-
tramita no Congresso Nacional muda completamen- grantes da sociedade, à qual devem prestar contas.
te o quadro atual. Pelo projeto a ser apreciado pelo Não se deve supervalorizar nem apequenar os profis-
Senado Federal, as ações de controle estão divididas sionais da ciência antecipadamente: seu mérito será
em duas partes: a atividade de pesquisa e a ativida- julgado pelo trabalho criterioso, independente e
de de uso comercial de OGMs. A primeira será ana- transparente que esperamos seja feito na Comissão.
lisada exclusivamente pela CTNBio; já o controle Os especialistas, os integrantes da sociedade ci-
sobre o uso comercial dos OGMs será efetuado pela vil e os representantes do governo deverão incorpo-
Secretaria de Aqüicultura e Pesca e pelos ministé- rar em suas decisões administrativas os deveres le-
rios da Agricultura, do Meio Ambiente e da Saúde. gais da motivação, razoabilidade e proporcionalida-
A CTNBio será composta por 27 cidadãos brasi- de, aplicando, entre outros, os princípios da preven-
leiros de reconhecida competência técnica, de notó- ção, da precaução e da informação. Ainda que indi-
rios atuação e saber científicos, com grau acadêmi- cados pelas sociedades científicas ou por associa-
co de doutor: 12 especialistas, nove representantes ções, os especialistas e os integrantes da sociedade
de vários ministérios e seis representantes da socie- civil não estarão representando suas corporações,
dade civil. Foi um equívoco de redação a exigência respondendo pessoalmente pelas suas decisões.
de que todos os 27 membros sejam doutores. Uma Como cabem, pelo menos, 23 atribuições à Comis-
contradição é a de que tanto os membros titulares são Técnica Nacional de Biossegurança, e conside-
quanto os suplentes venham a participar das subco- rando o tempo a ser empregado nos trabalhos desse
missões, cabendo a todos a distribuição dos proces- colegiado, seria injusto e ineficiente não se prever
sos para análise. Ora, o suplente participará dos remuneração aos conselheiros não funcionários. 

abril de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 47


D I R E I T O A M B I E N T A L

CARTA
Pela nova legislação, o uso comercial de OGMs
e seus derivados passará a ser regulado pelos minis-
térios da Agricultura, do Meio Ambiente e da Saúde
e pela Secretaria de Aqüicultura e Pesca, podendo
ser revisto pelo Conselho Nacional de Biosseguran-
ça (CNBS). Esse Conselho está sendo criado pelo
projeto de lei e será órgão de assessoramento supe-
rior do presidente da República para a formulação
e implementação da Política Nacional de Biossegu-

C ientistas represen-
rança. Terá competência para analisar, exclusiva-
mente, os pedidos de liberação para uso comercial
de OGMs e seus derivados com relação aos aspectos tantes de 13 socie-
da conveniência e oportunidade socioeconômicas
dades científicas, encabe-
e do interesse nacional. A expressão ‘interesse na-
cional’ abarca um número enorme de interesses çados pela Associação
presentes na questão, como os relativos ao meio
ambiente, à saúde e à biossegurança. Na esfera da Nacional de Biosseguran-
socioeconomia, estão o emprego, a produção agrí-
ça (ANBio), encaminha-
cola, o comércio exterior e nacional.
O Conselho Nacional de Biossegurança será a ram em 17 de fevereiro uma
última instância administrativa dos organismos
geneticamente modificados. Ao ser dito que anali- carta aos senadores brasi-
sará a liberação para uso comercial sob os aspectos
leiros na qual pedem mu-
da conveniência e da oportunidade, juridicamente
está se dizendo que decidirá discricionariamente danças significativas no
(sem restrições). Felizmente a concepção de dis-
cricionariedade evoluiu de uma ilimitada autonomia texto do Projeto de Lei
do Poder Executivo para um controle moderado,
no 2.401/03, que estabele-
mas efetivo, do Poder Judiciário.
Filtro das pressões políticas, econômicas e am- ce uma lei de biossegu-
bientais da questão, o Conselho Nacional de Biosse-
gurança deverá procurar a solução de possíveis confli- rança no país, aprovado
tos entre a CTNBio e os orgãos de fiscalização. Quan-
pela Câmara Federal na
do o governo não tiver decisões já previamente fe-
chadas, esse conselho poderá ter um eficiente papel madrugada do dia 5 de
de entrelaçamento da segurança da saúde e do meio
ambiente com o desenvolvimento da biotecnologia. fevereiro. Esse é um raro
Há uma última questão que não foi resolvida
momento para a história
nem na lei de 1995 nem no novo projeto: a seguran-
ça econômica das empresas que atuam em biotec- brasileira da ciência, em
Sugestões nologia, frente a possíveis danos decorrentes de
para leitura suas atividades. A engenharia genética ficou res- que várias entidades se
trita às pessoas jurídicas; as pessoas físicas foram
MAE-WAN HO E reuniram em torno de uma
OUTROS, Génie proibidas de atuarem nela de forma autônoma e
génétique, Paris,
Éditions Sang
independente. Continuará em vigor a responsabi- causa comum: a real ado-
de la terre, 1997. lidade civil objetiva, que é importante, mas não
FARAH, S.B., suficiente. Ao se expedir o certificado de qualida- ção da biotecnologia no
DNA — Segredos
de em biossegurança, indaga-se sobre a situação
& mistérios, Brasil. Apresentamos aqui
São Paulo, Sarvier, financeira do requerente. Contudo, não há, ainda,
1997.
VALLE, S. e TELLES,
parâmetros para identificar qual a garantia econô- a íntegra do texto.
J.L. (org.), mica e financeira de uma empresa que pretende
Bioética atuar em biotecnologia. Se danos ocorrerem e a
e biorrisco
— abordagem
empresa falir, quem pagará os danos pessoais e am-
transdisciplinar, bientais, que podem ser enormes? Ainda é tempo
Rio de Janeiro, de encontrarmos respostas legislativas para aper-
Interciência, 2003.
feiçoar a política nacional de biossegurança. ■

48 • CIÊNCIA HOJE • vol. 34 • nº 203


D I R E I T O A M B I E N T A L

AO SENADO
As sociedades e entidades científicas brasileiras que ves burocráticos, os investimentos em pesquisa nes-
subscrevem o presente documento vêm mui respei- te setor serão reduzidos bruscamente, levando o país
tosamente apontar os pontos que consideram serem a um atraso irrecuperável.
fundamentais para o aprimoramento do PL de Biosse- 3. Igualmente relevante é a convalidação dos atos
gurança, aprovado pela Câmara dos Deputados no dia já praticados pela CTNBio em obediência à Lei no 8.974,
5 de fevereiro de 2004 e encaminhado à esta Casa. de 1995, em consideração à integridade que ela repre-
O projeto de lei aprovado na Câmara dos Deputa- senta e por significar um grande investimento já prati-
dos, de relatoria do deputado Renildo Calheiros, repre- cado com erário público. Portanto, é importante que o
senta sem dúvida um grande avanço para a pesquisa Senado Federal modifique o texto enviado pela Câma-
brasileira, todavia a complexidade científica da matéria ra, convalidando os atos praticados pela CTNBio des-
requer o seu aprimoramento criterioso no Senado Fede- de 1995 até a presente data, independentemente de
ral, sob pena de vermos lograda a expectativa de retorno estarem relacionados à comercialização ou à pesquisa.
social dessas pesquisas para a população brasileira. 4. Os textos do PL que tratam da pesquisa com
Dentre os pontos que deverão ser considerados pelo células-tronco embrionárias são particularmente alar-
Senado Federal indicamos: mantes quanto aos efeitos na saúde pública. A tera-
1. A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança pia celular com células-tronco embrionárias pode repre-
(CTNBio) deve ser a única e definitiva instância para jul- sentar a esperança de tratamento para milhões de bra-
gar sobre a natureza científica da matéria de tamanha sileiros afetados por doenças genéticas, que atingem
complexidade. Somente uma instância como a CTNBio mais de 5 milhões de pessoas, a maioria crianças e jo-
com a multidisciplinaridade e abrangência necessá- vens. Não se trata de produzir embriões para esta fi-
rias, conforme definido em sua composição em texto nalidade, mas de utilizar aqueles que são descartados
legal, com representantes tanto dos setores interessa- em clínicas de fertilização. Em resumo, é justo deixar
dos do poder executivo (aí incluído o Ibama através da morrer uma criança ou um jovem afetado por uma
representação do Ministério do Meio Ambiente), como doença neuromuscular letal para preservar um em-
das sociedades científicas e da sociedade em geral, é brião cujo destino é o lixo? A exacerbação burocráti-
que possibilitará a legitimidade, a transparência e a de- ca, baseada em crenças não compartilhadas pela maio-
mocratização do processo decisório de temas desta ria da população brasileira, impedirá que sejam sal-
complexidade científica. Acreditamos portanto que o vas milhares de vidas e a busca de cura de inúmeros
parecer da CTNBio deverá ser vinculado tanto para as problemas de saúde. A CTNBio também deve ser con-
atividades de pesquisa como para as de comercia- siderada com legitimidade para decidir em última ins-
lização. Convém ressaltar que estudos de impacto am- tância sobre esta matéria.
biental serão exigidos sempre que a CTNBio considerar
que a atividade é potencialmente causadora de degra-
dação do meio ambiente, tanto para atividades de pes- • Academia Brasileira de Ciências (ABC)
quisa como de comercialização e que a manifestação do • Associação Nacional de Biossegurança (ANBio)
Ministério do Meio Ambiente sobre a matéria deverá se
• Associação Brasileira de Biotecnologia (Abrabi)
dar no âmbito da CTNBio onde terá assento.
• Associação Brasileira de Distrofia Muscular
2. É fundamental para o desenvolvimento nacional
• Associação Brasileira para a Proteção dos Alimentos (Abrapa)
que as pesquisas oriundas das instituições públicas
• Centro Brasileiro de Estocagem de Genes
possam ser rapidamente incorporadas ao nosso setor
• Centro de Estudos do Genoma Humano
produtivo, sob pena de a sociedade brasileira não po-
der usufruir dos investimentos em ciência e tecnologia • Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (SBAN)
no Brasil. Portanto, a CTNBio deve ser a única e definiti- • Sociedade Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos (SBCTA)
va instância com legitimidade para julgar a segurança • Sociedade Brasileira de Genética (SBG)
desses produtos, cabendo ao Conselho de Ministros • Sociedade Brasileira de Melhoramento de Plantas (SBMP)
(CNBS) opinar sobre a pertinência socioeconômica da • Sociedade Brasileira de Microbiologia (SBM)
permissão de comercialização. A continuar esses entra- • Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia Vegetal (UFRJ)

a b r i l d e 2 0 0 4 • CCIIÊÊNNCCIIAA HHOOJJEE • 4 9
É T I C A

O uso de OGMs na Agricultura


O uso de organismos geneticamente modificados (OGMs) na agricultura – assim como
ocorre com a introdução de qualquer nova tecnologia – suscita inevitavelmente
questões éticas. OGMs são utilizados porque empresas, agricultores e consumidores
esperam se beneficiar de algumas das inovações presentes neles: por exemplo, safras
resistentes a herbicidas comerciais ou tomates mais saborosos.
No entanto, a eficácia de uma dada tecnologia e os benefícios que dela se esperam não
são suficientes para legitimar eticamente seu uso disseminado. Legitimar requer
também – em primeiro lugar – que os OGMs não causem riscos sérios à saúde humana,
ao meio ambiente, às relações sociais, às instituições democráticas e à integridade
cultural. Em segundo lugar, que não excluam alternativas agrícolas que prometam
benefícios mais amplos para a nação como um todo.

Hugh Lacey
Swarthmore College,
Pensilvânia (Estados Unidos)
e Departamento de Filosofia,
Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo*

* Primeiro semestre de 2004. Lacey é autor de Valores e atividade científica (São Paulo, Discurso Editorial, 1998)
e atualmente está escrevendo The structure of the ethical controversies about transgenic crops (Estrutura das
controvérsias éticas sobre safras transgênicas), com o apoio da Fundação Nacional de Ciências (Estados Unidos).

50 • CIÊNCIA HOJE • vol. 34 • nº 203


É T I C A

Os defensores do uso de OGMs na agricultura são a Genes obtidos do narciso (acima)


favor da legitimação, insistindo e de uma bactéria foram
introduzidos no arroz,
que o desenvolvimento e as várias
criando o arroz dourado (abaixo),
utilizações de OGMs respondem rico em beta-caroteno
a um estímulo ético. Para defen-
der esse ponto de vista, eles apon-
tam para os benefícios reais e pro- há comprometimento com cer-
metidos. Ao mesmo tempo em que tos valores.
reconhecem que os benefícios dos Para os críticos da legitimação,
OGMs atualmente em uso são re- as alternativas são melhores em
lativamente modestos –menor uso função de elas contribuírem si-
de pesticidas, maiores lucros para multaneamente para tornar mais
agricultores etc. –, eles acrescen- densos valores como produtivi-
tam que os OGMs poderão contri- dade, sustentabilidade, preser-
buir para a solução de problemas vação e manutenção da biodi-
que afetam áreas empobrecidas versidade, integridade cultural e
do planeta, alegando, com base fortalecimento de comunidades
em futuros desenvolvimentos, que locais. Esses valores – defendidos
os OGMs irão causar danos menos nos quatro encontros do Fórum
significativos ao ambiente; au- Social Mundial em Porto Alegre,
mentarão e tornarão mais eficien- Brasil (2001, 2002 e 2003), e em
te a produção e a distribuição de Mumbei, Índia (2004) – conflitam
comida, sendo que este argumento também valeria com outros, como os da propriedade e do mercado,
para safras – como as do famoso ‘arroz dourado’ – que que dão sustentação às alegações dos defensores de
serão dotadas de nutrientes essenciais. que os OGMs prometem grandes benefícios.
Os defensores da legitimação afirmam que, a As controvérsias sobre os OGMs são marcadas
menos que essas promessas sejam cumpridas, não pela polarização sobre os valores. E isso tem impac-
haverá como alimentar a população mundial nas to sobre os desentendimentos a respeito dos riscos e
próximas décadas. Além disso, ainda segundo esse das possibilidades alternativas.
grupo, não há evidências científicas de que os
OGMs – tanto aqueles que estão atualmente em uso
quanto os que estão por vir – ocasionem qualquer JUÍZO DE VALORES
risco à saúde humana ou ao ambiente que não possa Se há alternativas produtivas suficientes para o uso
ser controlado adequadamente no contexto de uma dos OGMs, então os riscos ganham um novo aspecto;
regulamentação bem estabelecida. se não as há, então, certamente, riscos maiores de-
A partir da defesa desse ponto de vista – ou seja, vem ser eticamente tolerados. Onde os valores do
o da ausência de riscos –, eles alegam que tanto mercado predominam, haverá pouco interesse nas
os agricultores têm o direito de optar pelo uso dos possibilidades alternativas, e a importância da pes-
OGMs quanto as empresas de comercializá-los. quisa que poderia sustentar a potencial produ-
E, com base na falta de meios alternativos para tividade dessas alternativas estará comprometida.
alimentar o mundo, eles defendem que os OGMs Em contraste, onde os valores (não comerciais)
deveriam se tornar uma consideração prioritária dos críticos predominam, os esforços de pesquisa
das políticas públicas de agricultura em todos os relacionados às alternativas agrícolas – como a agro-
países. ecologia – serão priorizados. Além do mais, a di-
Os críticos, no entanto, desafiam cada um desses minuição dos valores não comerciais e as práticas
pontos em favor da legitimação. Eles negam, por agrícolas que incorporam esses valores – bem co-
exemplo, que a ausência de riscos sérios e incon- mo a posterior desvalorização da vida dos mais po-
troláveis já tenha sido estabelecida de modo apro- bres – serão consideradas riscos que precisam ser
priado pela pesquisa científica. Mas nem sempre investigados. Assim, os mecanismos de riscos po-
são sensíveis ao fato de que essa negação está dire- tenciais propostos para investigação irão incluir
tamente relacionada com a alegação de que há alter- não apenas aqueles relativos à área biológica – os
nativas melhores – por exemplo, agroecologia – tan- do tipo assumido nas avaliações do risco-padrão –,
to para produzir comida que sustente toda a po- mas também aqueles que dizem respeito a ques-
pulação quanto para atacar o problema da pobre- tões socioeconômicas ligadas ao controle corporativo
za. ‘Melhor’, obviamente, é uma palavra com teor da maioria dos OGMs e aos direitos financeiros de
ético e deve ser empregada em um cenário em que propriedade intelectual relativos às sementes. 

abril de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 51


É T I C A

FOTO MARCELO BARABANI/FOLHA IMAGEM


Isso reflete que todas as questões que apresenta-
remos a seguir – e também aquelas similares sobre
o potencial produtivo das técnicas agrícolas al-
ternativas – implicam juízo de valores: O que é um
sério risco? Quais são os mecanismos de risco? Qual
é o período de tempo apropriado para investigar os
riscos? Quais são as evidências-padrão para julgar
que um risco não controlável está presente? Quan-
do se pode dizer que evidências suficientes foram
obtidas? Quem deve assumir o ‘ônus da prova’?
Não há respostas ‘científicas’ neutras para essas
questões. Dependendo de que valores (comerciais
ou não comerciais) são adotados, as respostas serão
diferentes. Isso não significa que a pesquisa ‘cientí-
fica’ é irrelevante para responder a essas perguntas.
Significa apenas que, seja qual for a pesquisa cien-
tífica conduzida sobre os riscos, isso, de alguma
forma, já pressupõe respostas para essas questões.
E, desse modo, ela não pode resolver questões relati-
vas à legitimação.
A polarização aparente aqui pode ser confronta-
da – segundo este autor – ao se reconhecer que há re-
Sugestões
lações dialéticas entre: a) os resultados da pesquisa
para leitura
empírica sobre os riscos e as alternativas; b) os pa-
LACEY, H. drões de evidência que devem ser utilizados para
‘TECNOCIÊNCIA sustentar esses resultados; c) os valores implicados
E OS VALORES
DO FÓRUM SOCIAL na percepção do que sejam os benefícios e do que
MUNDIAL’, in I. M. pode estar sob risco.
Loureiro, M. E.
Cevasco e J. Corrêa Embora juízos de valores não possam ser deriva-
Leite (eds.), dos de resultados científicos, estes, algumas vezes,
O espírito de Porto fornecem fortes evidências de que certos valores
Alegre, ed. Paz
e Terra, São Paulo, não podem ser mais amplamente incorporados e Plantação experimental de mamão
pp. 123-147, 2002 transgênico em Brasília (DF)
podem levar a repensar os juízos de valores.
COSTA GOMES, J. C.
e ROSENSTEIN, S. Por outro lado, juízos de valores podem motivar a
‘A geração pesquisa científica a priorizar algumas questões sam, de modo legítimo, ser considerados somen-
do conhecimento
mais que outras, ou seja, em vez de questões sobre te no caso de alternativas menos arriscadas ou
na transição
agroambiental: as possibilidades relativas aos OGMs, priorizar, por mais valiosas não estarem disponíveis. De modo
em defesa exemplo, a questão de como a extraordinária mais geral, julgamentos éticos bem fundamenta-
da pluralidade
epistemológica biodiversidade do Brasil pode ser usada para desen- dos sobre os OGMs deveriam responder à questão:
e metodológica volver safras que, ao mesmo tempo, sejam mais Como podemos produzir safras de modo que todos
na prática
científica’.
produtivas e auto-sustentáveis do ponto de vista os habitantes de uma dada região de produção ga-
Cadernos ecológico. nhem acesso a uma dieta bem balanceada em um
de Ciência contexto que eleva o bem-estar local, incrementa a
e Tecnologia
(vol. 17, pp. 29-57, biodiversidade, preserva o meio ambiente e ampara
2000) a justiça social?
LEITE, M. Os alimentos TRÊS QUESTÕES 3) Enquanto o viés científico é essencial para
transgênicos,
PubliFolha, Assim, este autor levanta três conclusões: avaliar a legitimação do uso de OGMs, as questões
São Paulo, 2000 1) Uma reflexão clara sobre a legitimação do uso éticas envolvidas vão muito além da competência
NODARI, R. O.
e GUERRA, M. P. de OGMs requer entender a crucial interação entre específica da biologia molecular e da engenharia
‘Avaliação de riscos as arenas da ciência e da ética. genética. Conseqüentemente, uma política pública
ambientais
de plantas 2) Há uma necessidade urgente de que sejam sobre esses temas deveria ser determinada não por
transgênicas’. feitas mais pesquisas científicas – o que não avalia comissões dominadas por cientistas que estão en-
Cadernos
com antecipação se há ou não papéis legítimos volvidos na pesquisa e no desenvolvimento de OGMs,
de Ciência
e Tecnologia para os OGMs – sobre o potencial produtivo de for- mas sim por grupos que reúnam tanto a compe-
(vol. 18, pp. 61-116, mas alternativas de agricultura, a fim de que os tência científica quanto a diversidade da perspec-
2001).
possíveis riscos relacionados ao uso de OGMs pos- tiva de valores da sociedade como um todo. ■

52 • CIÊNCIA HOJE • vol. 34 • nº 203

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