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‘Tempo Social, Rev. Sociol. USP, S. Paulo 3(1-2): 7-40, 1991 A PRISAO SOB A OTICA DE SEUS PROTAGONISTAS Itinerdrio de uma Pesquisa Sérgio Adomno* © trabalho de um intelectual nao é modelar a vontade politica dos outros; é, através das andlises que cle faz nos dominios que s4o seus, reinterrogar as evidéncias € 0s postulados, sacudir os habitos, as maneiras de fazer ¢ de pensar, dissipar as familiaridades aceitas, retomar a medida das regras ¢ das instituigdes ¢ a partir desta reproblematizacdo (onde ele desempenha um papel especifico de intelectual) participar da formagao de uma vontade politica Michel Foucault. O dossier. RESUMO: © objetivo deste artigo & descrever um programa de investigago sociol6- gica cujo objeto consistiu no estudo da reincidéncia criminal € da violencia nas prisdes do Estado de Sao Paulo (Brasil). O artigo discute questdes metodoldgicas a respeito do processo de construgao do objeto, sobre as relagdes entre observador e observado, as diferentes técnicas e métodos de investigagdo, bem como 0 emprego de historias de vida UNITERMOS: crime, violéncia, prisio, reincidéncia. Séo Paulo (Brasil), 1974-1987. * Professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP, Vice-Coordenador Cientifico do Nicleo de Estudos da Violéncia (USP), Presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia - SBS (1991-1993), ADORNO, Sérgio. A prisdo sob a dtica de seus protagonistas, Itinerdrio de uma pesquisa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 7-40, 1991 Muitos acreditam, certamente nao sem motivos, que a agressao criminal é hoje mais violenta do que no passado. As sondagens de opiniao tém mostrado com relativa freqiiéncia que 0 crime se situa entre os primeiros lugares na agenda de preocupagées do cidado brasileiro. Cada um em particular tem uma historia a ser contada. Ja foi vitima de furtodentro do transporte coletivo, ja foi assaltado em via publica ou dentro de estabelecimentos bancarios ou comerciais, ja teve sua residéncia arrombada, seus filhos ja tiveram de entregar ténis e blusdes a porta das escolas ou nos pontos de 6nibus, seu veiculo particular foi furtado ‘ou roubadoe encontrado, alguns dias apés, completamente transfigurado, sem motor, pneus, aparelho de som ¢ outras pegas de elevado valor no mercado de equipamentos usados. Quando nfo foi protagonista imediato desses acontecimentos, ouviu falar com certa intimidade: a vitima foi o vizinho, o parente, o professor da escola, a empregada doméstica, 0 comerciante da esquina, 0 taxista conhecido, uma personalidade publica, familiar através da proximidade no tempo ¢ no espago que nos proporcionam a imprensa escrita ¢ a midia eletrénica. Nao ha mais espago para inocéncia. A nostalgia de uma cidade sem violéncia criminal esvai-se no passado. As imagens de pureza sao substituidas pelas do perigo permanente ¢ iminente, Nas conversas cotidianas 0 assunto é recorrente, Nas casas, nas ruas, nos bares, nas festas, no local de trabalho, onde quer que a vida pulse, sente- se saudades do tempo em que se podia deixar janelas abertas e portas destrancadas; as criangas podiam brincar nas calgadas e pragas sem qualquer constrangimento que nao fosse aquele decorrente das imposigdes de seus pais; namorava-se despreocupa- damente a porta de entrada de residéncias ¢ edificios de moradia sem o risco de ser importunado por estranhos; circulava-se a pé, pelas ruas, a noite, com certa tranquilidade pois havia a dupla de inspetores de quarteiréo, identificada pelo uniforme azul impecavel e popularmente conhecida como Cosme e Damiao, cuja circunspeg&o - que escondia uma bonomia digna de um sargento Garcia - contribuia para que a policia fosse vista com menor suspeigdo e aceita pela comunidade. Além do mais, havia a radio-patrulha, cuja ronda noturna assegurava sonos ininterruptos € 0 sonho de uma vida cotidiana seno feliz, ao menos um pouco mais livre do sobressalto inesperado da ofensa criminal Esse sentimento contemporanco de medo ¢ inseguranga ndo parece infunda- do. Os estudos brasileiros disponiveis (Adomo, 1991a; Brant e outros, 1989; Coclho, 1978; 1980 e 1988; Paixdo, 1983 ¢ 1988; Zaluar, 1989a) ja apontam para importantes observagées. Primeiro, nas grandes cidades brasileiras, nos ultimos dez anos, vem ADORNO, Sérgio. A pristio sob a otica de seus protagonistas. Itinerdrio de uma pesquisa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 7-40, 1991 crescendo a chamada criminalidade violenta'. Em Sao Paulo, os crimes violentos que representavam, no inicio dos anos 80, cerca de 20% do total de crimes saltaram para 30% aproximando-se o final dessa década. Todas as modalidades de ago criminal violenta vém apontando crescimento, sendo que o roubo representa, na Regidio Metropolitana da Grande So Paulo, algo cm torno de 50% desses delitos, desde 1983 (Cf. SEADE’ 1981-1988). Segundo, ndo apenas crescem em intensidade os crimes urbanos violentos, como também se alteram os padrées convencionais. A criminalidade urbana violenta esta se tornando cada vez mais organizada, alcangando em certas modalidades padrdes de empreendimento mercantil, como o trafico de drogas (Zaluar, 1989b¢ 1990). Terceiro, tudo leva a crer, por conseguinte, que nesse terreno haja uma compatibilidade entre a percepedo coletiva da inseguranga, manifesta sob o prisma da experiéncia intersubjetiva, ¢ 0 crescimento real da violéncia criminal, detectada por estatisticas oficiais ¢ pelos estudos disponiveis. Nesse sentido, as percepgdes coletivas afiguram-se importante veiculo de compreensao do que se passa nos bastidores da vida social. Nao admira pois que os cientistas sociais brasileiros tenham se interessado pelo estudo da criminalidade, sendo recentemente, a despeito da tradi¢do de estudos americanos, estimulada pela emergéncia do crime organizado, desde os anos trinta, em cidades como New York ¢ Chicago*. Nesta sociedade, ao menos, é recente a incorporagao da criminalidade urbana como objeto de pesquisa ¢ de reflexdo critica por uma modalidade de pensamento cientifico - as ciéncias sociais. De fato, foi somente a partir de meados da década de 1970, que a abordagem cientifica da criminalidade urbana ultrapassou o restrito ambito de sua formulagao juridica - de que se nutriu por longo periodo - para deslocar o eixo de atengao: em lugar de situd-la, descrevé-la ¢ explicd-la tendo por parametro o saber juridico ¢ a legislaco penal, a abordagem sociolégica lato senso vem buscando refletir sobre as relagdes possiveis que possam ser estabelecidas entre o recrudescimento da criminalidade, o modelo de desenvolvimento capitalista em sua atual etapa de realizagdo nesta sociedade agrario- * Compoem a chamada criminalidade urbana’ violenta ocorréncias - tentativas e atos consumados - de homicidio doloso, roubo, latrocinio, trifico de drogas, estupro e sequestro. > Nesta iiltima inclusive suscitou 0 aparecimento de sugestivos estudos que buscaram associar a concentragdo da populagdo urbana, a expansio dos mercados € da divisio do trabalho, a especia- izagdo dos grupos ¢ individuos, a intensificagao da mobilidade social e das transformagdes experimentadas nos modos tradicionais na estratificagdo e hierarquizagdo sociais, difusto de comportamentos desencadeados por agentes estimulados a uma leitura divergente das pautas normativas dominantes na sociedade ¢ na cultura, perspectivas presentes nos estudos de William ‘Thomas, Robert E. Park, Louis Wirth, Emest W. Burgess e Roderick McKenzie (Cf. Grafmeyer € Joseph, 1990, p. 5-50), ADORNO, Sérgio. A prisfo sob a dtica de seus protagonistas. Itinerario de uma pesquisa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 7-40, 1991 industrial, o estilo vigente de exercicio dos direitos civis, sociais ¢ politicos ¢ as mutagdes que se operam no interior da cultura (Adorno, 1991b). Nao é de admirar, no mesmo sentido, que a auséncia de uma tradicdo critica no terreno das ciéncias sociais tenha contribuido, a seu modo, para manter uma visio algo ingénua do desempenho do poder piblicona execugao de suas funges repressivas, poupando as agéncias de contengao da criminalidade -a policia, 0s tribunais de justica ¢ as prisdes - de se encontrarem, desde cedo, na mira dos criticos ferozes ¢ alvo privilegiado dos movimentos de defesa de direitos humanos. A recente incorporacdo da criminalidade urbana como objeto de conhecimento das ciéneias sociais é indicativa de que algo mudou. Nas duas tiltimas décadas, mudou e vem se alterando a percep¢do coletiva da violéncia criminal. Nas diferentes instancias de produgao discursiva, de produgio de poder ¢ de produgéiode saber (Cf, Foucault, 1977a, p. 17)-como scjam as universidades ¢ centros de pesquisa, os gabinetes executivos onde se formulam e implementam politicas publicas penais, as equipes técnicas que promovem peritagens criminologicas, os meios de comunicago de massa que tornam o crime proximo, os saberes instituidos (médico, sociolégico, psicolégico, psicanalitico, estatistico) -, a nostalgia de um passado idilico cede lugar a um presente percebido como muito violento e perigoso. Nesse sentido, as percepges sociais da violéncia criminal podem ser compreendidas ‘enquanto “drama social”, no sentido atribuido por Tuner (1974). A sociedade desnuda-se em seus fragmentos e pde a mostra sua complexidade: seus miltiplos cenarios, os diferentes atores que intervéem com suas forgas ¢ suas falas, os estilos de ago, as regras que fazem funcionar © aparato institucional repressivo ¢ juridico, as emogdes que experimentam aqueles que vivem o drama na condi¢ao de protagonistas ou de seus expectadores. Enquanto “*drama social”* que envolve atores situados de modo diferente na arena da vida coletiva, 0 crime traduz um sentimento desmesurado de medo: o perigo esta muito préximo, circunda as ruas, o ambiente privado dos lares ¢ do trabalho. Esta também difuso e presente nos mais rec6nditos espacos da vida social. Todo contato ou vinculo social passa a ser visto como passivel de “‘impureza””, o que reforga expectativas de isolamento segregagao. Trata-se de um sentimento perverso: ao mesmo tempo em que expressa a inseguranga da vida social na sociedade brasileira em sua etapa contemporanea de realizacdo, reascende desejos de solugdes drasticas, enérgicas, pouco compativeis com uma sociedade democratica voltada para a preservagao dos dircitos humanos. Dai o apoio popular as ““blitz”’ preventivas nos morros cariocas ¢ 0 extcrminio de delingientes por todo o pais, expressdes do édio que se devota aqueles que transgridem as regras que protegem a vida ¢ os bens materiais ¢ simbélicos dos cidadaos (Brant ¢ outros, 1989, Wright, 1987). Dai também as propostas de contengao da violéncia a qualquer custo, para o que se instrumentalizam as agéncias de preservagao da ordem piblica 10 ADORNO, Sérgio. A pristio sob a tica de seus protagonistas. Itinerério de uma pesquisa. Tempo Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 7-40, 1991. E nesse mesmo horizonte de preocupagdes ¢ questdes que se situa um programa de pesquisa sobre a justica criminal, mais particularmente sobre as prisées. A énfase do programa residiu em deslindar o funcionamento das instituigdes de contengdo e de reparago social, encarregadas de preservacdo da ordem piiblica. Enfocando esse objeto a partir da ética daqueles que so objeto das chamadas politicas piblicas penais, cuidou-se de descrever, analisar ¢ interpretar praticas punitivas em nossa sociedade, verificando a hipétese, corrente em certas tendéncias da literatura especializada, segundo a qual “‘respos- tas institucionais a comportamentos desviantes resultam na elaboragdo de identidades ¢ carreiras criminosas”” (Campos, 1980, p. 379). Em outras palavras, cogitou-se de investigar ‘0 modo pelo qual a ago repressiva do Estado, ao privilegiar certas modalidades de conduta, tipificadas como crime ou contravengdo penal, ¢ ao cleger determinados segmentos da populacdo comoalvo preferencial de seus efeitos, abre espao para que uma pequena parcela desses segmentos construa estratégias particulares de existéncia, convertendo a delinguiéncia em modo de vida. Neste relato, prioriza-se a exposigdo de descobertas, de erros ¢ de acertos, de ansiedades ¢ de angustias, freqientemente ausentes dos relatos produzidos segundo as rigidas etiquetas académicas que nos convidam a descrever processos de investiga- ‘go, métodos ¢ procedimentos técnicos adotados com certo distanciamento em rela- go ao objeto como se a intimidade contaminasse a pureza do conhecimento cientifico. Falar-se-4 com muita paixdo do objeto de estudo. Pretende-se sugerir que a ‘‘objetivida- de”” do conhecimento em ciéncias humanas ¢ sociais compreende tanto a observancia de regras formais ¢ de prescrigdes técnicas - no hé porque ignora-las - como também um dialogo permanente com o fugaz, com 0 contingente, com o inesperado, com a Tareza dos acontecimentos. No sem razzio, relato vai por em cena o que muitas vezes parece desprovido de sentido ¢ de importincia. Dai o peso concedido 4 narrativa de casos ¢ de situagdes, postura que coloca em plano secundario 0 relato dos resultados. © que se busca com tal empreitada? Primeiro, reproblematizar as relagdes centre sujeito ¢ objeto nas ciéncias sociais ¢ humanas. Nao é de hoje que a rigida separa- 40, pressuposto positivista solenemente proclamado por Emile Durkheim em As Regras do Método Sociolégico, vem sofrendo sérias criticas, Alias, 4 sua época, j4 tinha merecido substantivo reparo por scu contempornco Max Weber quem, em ensaio hoje classico, punha em causa a possibilidade de um conhecimento objetivo da realidade social, que no fizesse mengdo a valores ¢ dissolvesse o principio da interpretagio como seu fundamento ADORNO, Sérgio. A prisdo sob a dtica de seus protagonistas, Itinerdrio de uma pesquisa. Tempo Social; Rev, Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 7-40, 1991 epistemoldgico®. A despeito do reparo, por longas décadas tanto a sociologia quanto a antropologia perseguiram a orientagao positivista. Pelo menos nos ultimos vinte anos, uma renovagdo epistemoldgica tratou de situar ‘a questo em outros termos. Mudangas profundas na sociedade contempordnea alterando decisivamente as formas de percepgio do social -a complexidade e heterogencidade passam ahabitar com freqiiéncia o discurso dos cientistas sociais - trouxeram a baila novas questdes: © engajamento politico veio questionar, ao que parece definitivamente, o principio da neutralidade cientifica, tornando observador e observados aliados na produg4o do conheci- mento; a necessidade de dar voz aqueles que viviam concretamente a experiéncia da ‘exploragaoe da opressao recolocou sob novas bases 0 lugar de onde falam os investigadores, sua posigéio comomediadores entre o real ea explicagao cientifica, as relagdes intersubjetivas que vao se estabelecendo, no curso da investigagao, entre aquele que vé ¢ aquilo que ¢ visivel;, a recuperagdo de velhos temas sob novas abordagens, ao lado de temas emergentes que surpreenderam em curto espago de tempo a sensibilidade dos cientistas sociais e alargaram seu campo de visibilidade, contribuiram para‘a proliferagao de estudos empiricos cujo estoque de experiéncias permitiu que a discussdo metodologica se deslocasse do universo positivista para o terreno da hermenéutica. O mundo das representagdes passou a ser incorporado a analise e interpretagao das formas de ser, estar, agir, se comportar, pensar. Estava presente nao apenas na ago e fala dos atores, aqueles que se posicionavam como sujeito observado, mas também na reconstru- cdo que cientistas sociais faziam dos processos sociais aos quais debrugavam sua reflexdo critica. A propria disposigdo para adotar este ou aquele quadro tedrico, este ou aquele conjunto de categorias analiticas, este ou aquele arcabougo interpretativo se dava no interior de um quadro de representagdes sobre a sociedade, a politica e a cultura. Nesse particular, muito contribuiram os antropélogos com a difustio, em no poucos estudos, da técnica de observa¢ao indireta e direta participante, refutando a separacao entre sujeito ¢ objeto e, em contrapartida, defendendo uma relagdo de intimidade ¢ solidariedade, admiravelmente 3 Segundo Max Weber, ‘‘jé vimos que no campo das ciéncias sécio-empiricas da cultura, a possibi- lidade de um conhecimento judicioso do que a nossos olhos é essencial na infinita riqueza do devir esta ligadod utilizagao ininterrupta de pontos de vista de cardcter especificamente particular que, em iltima instincia, esto alinhados sobre idéias de valor. Estas, por sua vez, podem ser comprovadas e vividas ‘empiricamente como elementos de toda ago humana plena de sentido, porém o fundamento de sua validade niio se deriva de matéria empirica, A “‘objetividade’” do conhecimento no campo das ciéncias sociais depende melhor do fato de que o empiricamente dado se acha sustentado constantemente sobre idéias de valor, as quais sfo as unicas a conferir um valor para o conhecimento”. (CE. Weber, 1974, p. 89), 2 ADORNO, Sérgio. A prio sob a dtica de seus protagonistas. Itinerario de uma pesquisa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, (1-2): 7-40, 1991 descrita por Mintz, em seu artigo ““Encontrando Taso, me descobrindo’” (Mintz, 1984, p. 45-58)* Pois bem, 0 relato que se segue penetra nessa seara, Porém o faz de um modo um pouco diferente. Quando se aborda um objeto tio pouco convencional para as ciéncias sociais no Brasil, como ¢ 0 caso da criminalidade, € dificil nao ser o investigador invadido por idéias profusas ¢ sentimentos contraditorios. Por um lado, nao ha como desconhecer a perversidade com que certos crimes so cometidos. Explorada largamente pela midia eletrénica ¢ pela imprensa escrita, a violéncia criminal suscita reagSes autoritarias, expressas em opinides, procedentes dos mais diferentes grupos ¢ classes sociais, que desejam © recrudescimento do tratamento a ser dispensado aos delingiientes: maior policiamento ¢ aperfeigoamento dos métodos policiais, enrijecimento na aplicagdo das penalidades, legali- zago da pena de morte. Sob esse Angulo, ha que se manter um certo distanciamento em relagdo ao objeto para que o investigador nao seja contaminado por tais opinides ¢ reagdes que, a despeito de exprimir sentimentos socialmente construidos, nao deixam de carregar forte matiz ideolégico que traz embutido preconceitos que ultrapassam o mundo do crime € da criminalidade ¢ dizem respeito as dificuldades da sociedade em lidar com suas diferengas edesigualdades. Por outro lado, a relagao intersubjetiva que se estabelece entre pesquisador edelinguente, sobretudoaqueles que se encontram em situagdo de encarceramento, comporta forte dose de apelo emocional. Nao é incomum o pesquisador se sentir solidario com 0 delingitente. Por detras de uma carreira socializada na delinguéncia, em que se sucedem e se combinam crimes violentos de diferentes modalidades - como assaltos, homicidios, seqiies- tros ¢ estupros -, se descortina um mundo de profundas injustigas, experimentadas por essa “forma vergonhosa de pobreza, que ¢ a pobreza de direitos’ (Martins, 1991, p. 11)’, Nao ha como se manter indiferente quando nos colocamos na situa¢ao de escuta € nos defrontamos com vidas dilaceradas, submetidas s mais torpes atrocidades e cuja existéncia ¢ permanen- temente negociada. Todavia, a relagdo solidaria pode se constituir em armadilha. De modo geral, a situagao de encarceramento faz com que os individuos sujeitos as grades desenvolvam certas habilidades e particularidades de comportamento, Uma delas ¢, sem divida, a sedugdo. * Um interessante inventaério destas quest@es encontra-se em Cardoso (1986, p. 95-105). + Certamente, alguns poderdo argumentar que essa situagao de caréncias no é particular da populagao delinqdente, todavia propria da maior parte da populagdo brasileira. Tendo a concordar com essa objego, ‘mesmo porque a associago mecdnica entre pobreza ¢ criminalidade ja mereceu criticas convincentes por no poucos cientistas sociais. Veja-se a propésito artigo de Edmundo Campos Coelho (Coetho, 1978). No entanto, 0 que parece diferenciar a populagfo deliqiente do conjunto da populagdo pobre ¢ a experiéncia precoce da punigo (Cf. Adomo, 1991). 13 ADORNO, Sérgio, A pristo sob a dtica de seus protagonistas. Itinerdrio de uma pesquisa. Tempo Social, Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 7-40, 1991 Duranteas entrevistas, mostram-se ‘“‘humanos’’, isto€, portadores de sentimentos *‘nobres”” em relagdo 4s instituigdes encarregadas de preservar a ordem publica; expdem suas angiistias ¢ arrependimentos; revelam-se sensiveis face aos problemas sociais que circundam a si ¢ a scus pares; ¢, antes de tudo, manifestam agudo senso critico relativamente 4 experiéncia na delingiiéncia, construida no interior de uma tensa rede de relagdes sociais que perpassa ¢ enreda outros delinquentes com a policia, com a justiga ¢ com a prisaio. Aqui, a maior proximidade ¢ solidariedade entre observador ¢ observado, longe de ser garantia de “‘objetividade”’ do conhecimento cientifico, ¢ fonte de perigo ¢ de contaminagao. Seduzido pelas “‘artimanhas”’ da fala ¢ imbuido de forte sentimento de justiga social, o pesquisador acaba capturado. Capturado, é visto pelo preso como um “‘igual” e assim deve ser considerado, Estabelece-se assim um relacionamento intersubjetivo civado de des- confiangas, asticias ¢ idiossincrasias, que perturba a observagdo empirica da realidade social sem qualquer possibilidade de saneamento®, Dai a necessidade de uma certa “‘eqiiidisténcia”” que, por certo, ndo supde a passagem para o lado de la. Diante das especificidades do objeto enfocado © dos sujeitos observados, ao pesqui- sador outra alternativa resta sendo uma espécie de “‘terccira via’’. Nao se apresentar como “‘igual’? ao preso ¢ sequer como pertencente a equipe dirigente da instituigao prisional, pois ambas situagdes desembocam em dificuldades insanavei: ‘Um segundo aspecto a merecer atengdo neste relato diz respeito 4 propria identifi- cago do objeto. Nossos “‘manuais’” de metodologia de pesquisa ¢ a ‘*boa’” etiqueta do pesquisador ensinam-nos a recortar de modo preciso a realidade. Recomenda-se definir com clareza: os limites do objeto no tempo ¢ no espago; os objetivos a serem perseguidos com a investigagao; 0 campo empirico sobre o qual a observagdo se atém; as técnicas aplicadas coleta de dados que devem estar adequadas aos propésitos a serem alcangados; o modelo de anlise¢ interpretagao que necesita estar conectado com o quadro teérico¢ conceitual. Nada Seguramente, desconfiangas, asticias e idiossincrasias fazem parte do universo cultural carcerdi No podem dele ser excluidos senfo as custas de deformagdo do real. Creio contudo que a0 pesquisador cabe penetrar nesse universo, compreendendo-o criticamente, isto é, descrevendo-o, analisando-o € descobrindo seu ‘‘segredo”’, sua razio de ser, seu modo de funcionamento € realizagao, as relagBes que o contém. Penetrar nesse mundo requer 0 estabelecimento de uma relago de alteridade, em que o observador conhece o ponto de vista do outro e o julga, com fundamento em instrumental tedrico ¢ analitico, respeitando-o em suas perticularidades culturais ¢ historicas, sem contudo se deixar capturar pela ‘légica’” do outro. No entanto.- nunca é demais lembrar -, a perspectiva que advoga uma ciéncia social critica, cuja produgo de conhecimento desce as raizes dos problemas sociais e desmistifica a possibilidade de um conhecimento politicamente neutro, se coloca ao lado dos oprimidos € desprovidos de direito. E essa perspectiva que informa a pesquisa cujo relato se segue. E ela que perfila o ponto de vista do outro, porém com as precaugdes indicadas 4 ADORNO, Sérgio. A prisdo sob a dtica de seus protagonistas, Itinerario de uma pesquisa. Tempo |; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 7-40, 1991 disso é, em principio, refutavel, exceto no momento em que tais ‘‘regras”’ sio tomadas como imperativas em si mesmas. O ato de investigar - que diz respeito a uma certa relagdo que 0 sujeito do conhecimento estabelece com o que se possa convencionar de verdade - é ato de descoberta continua € permanente; ¢ dindmico e interativo, Em seu vagar metodico € desinteressado em busca da ‘‘verdade’’, a investigagdo envereda por labirintos imprevistos, acabando em terrenos desconhecidos, movedigos até, os quais todavia iluminam areas de pouca visibilidade, atribuindo sentido aquilo que se afigurava a primeira vista marginal, secundario, irrelevante. Desse modo, para as ciéncias sociais, 0 recorte tedrico-empirico claborado a priori ¢ tao somente indicativo, pois 0 objeto vai sendo construido ao longo do proceso de investigagao. O objetoé, poressa via, ofeixe de relagdes sociais que se descortina ao final, revelando sua unidade ¢ complexidade, nao perceptiveis ab initio ¢ que permitem problematizar as evidéncias, sacudir os habitos de pensar sempre o mesmo, reinterrogar nossas certezas. Nisto parece residir a especificidade do discurso cientifico* e o lugar da sociologia na sociedade contempordnea’. ‘No relato que se segue, a pesquisa transita da definigo de um tema paraa construgdo de um objeto. Nesse movimento, recolhem-se, incorporando-os, fragmentos de discursos € de observagées extraidas de instantdneos quase fotograficos obtidos em corredores das instituigdes prisionais, nos cafés em conversas paralelas ¢ aparentemente ingénuas, nos servigos de revista ¢ nas passagens pelos portdes de seguranca ¢ “‘gaiolas’’, nas salas de espera ¢ nas visitas cerimoniosas, na disposigdo das coisas ¢ das pessoas em um espago que inspira de modo ambivalente medo ¢ curiosidade. Nada disso péde ser desprezado, carregado que esta de significado. E a recomposigdo desses fragmentos, tendo por base uma pesquisa * A esse respeito conviria lembrar célebre passagem de Marx, ao refutar criticas, contidas na Revue Positive de Paris, a respeito do método empregado n’O Capital: “Claro est que 0 método de exposigo deve distinguir-se formalmente do método de investigago. A investigag&o deve tender a assimilar-se em detalhe & matéria investigada, a analisar suas diversas formas de desenvolvimento € a descobrir seus nexos interns. Somente.apés coroado este trabalho, pode 0 investigador proceder a expor adequadamente 0 movimento real. E se sabe fazé-lo e consegue refletir idealmente na exposigao a vida da matéria, cabe sempre a possibilidade de que se tenha a impressio de se estar diante de uma construgdo a priori’”. (Marx, 1973, livro I, postfacio 4 2a. edigdo, p. XXII). Em perspectiva tedrica distinta, também Max Weber cuidou de estabelecer 0 estatuto da investigagso Cientifica no terreno das ciéncias da cultura, da qual fazem parte as ciéncias sociais, no ensaio jé anteriormente mencionado (Weber, 1974). E justamente neste processo de construg4o dos objetos que a sociologia guarda e conserva sua particularidade na sociedade contemporinea: a de ser por exceléncia a disciplina, no émbito das cigncias sociais, que se debruga criticamente sobre 0 conhecimento produzido, reportando-se 4s suas raizes, deslindando seus compromissos histérico-sociais, identificando a perspectiva politico- ideologica que Ihe subjaz (Cf. Martins, 1977, p.1-8, Sader e Paoli, 1986, p. 39-67) ADORNO, Sérgio. A prisio sob a ética de seus protagonistas, Itinerério de uma pesquisa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 7-40, 1991 cujo propésito inicial consistia em investigar a reincidéncia criminal, que anima este relato, fundamenta as consideragdes metodologicas indicadas e aponta para a construgdo de um objeto, qual seja o poder nas instituigdes de controle ¢ contengdo da criminalidade. vee Em 1982, os pesquisadores responsaveis pelo projeto de investigagao trabalhavam ‘em um 6rgao publico vinculado a Secretaria de Estado dos Negécios da Justica'®. Epoca de intensa mobilizagao social ¢ politica que perfilava a reconstrugéo da democracia ¢ a instauragao do Estado de direito, antevia-se - face ao desenrolar da campanha eleitoral e das prospecgdes feitas pelos institutos de pesquisa de opinido - a vitdria de um dos partidos, Aquela época de oposigaio, apés dezoito anos de vigéncia de regime autoritario. Esse clima de possibilidades latentes, afinal concretizadas, propiciava ampla discussdo de problemas sociais, politicos, culturais, administrativos da qual se procurava extrair diretrizes para a implantago de um governo estadual democratico. Como era de esperar, a area de seguranga ejustica no ficou imune aos debates e ao preparo de planos imediatos de aco, quandomenos porque representava uma das areas de maior atrito entre forgas politicas conservadoras ¢ progressistas e onde se encastelavam os mais sérios desafios aos propésitos de democratizar as instituigdes politicas Eleito, o governo Montoro (1983-86) anunciou o nome de seu Secretario de Justiga, alias largamente cogitado pela imprensa escrita ¢ falada: Jos¢ Carlos Dias, advogado que se notabilizara na luta contra a ditadura ¢ na defesa de cidaddos sobre os quais pesava a imputagaode crimes politicos. Dias, ex-presidente da Comissio Justigae Paz da Arquidiocese de Sao Paulo, desde que assumiu 0 cargo politico, elegeu o problema carcerario como uma das metas prioritérias de intervengdo. Definiu como orientagao da politica penitenciaria trés objetivos, que se materializaram em algumas iniciativas e programas de trabalho: primeiro, adotar medidas de urgéncia ¢ de impacto de forma a oferecer resposta imediata ¢ pronta 4 opinido publica, sequiosa de solugdes capazes de assegurar a “‘tranquilidade”” dos cidadaos, segundo, estabelecer uma linha de atuagao cuja pauta incidia na descompressio da rigidez disciplinar a que os institutos penais haviam sido coagidos ¢ relegados ha anos ¢ que se © Trata-se do Instituto de Medicina Social ¢ de Criminologia de Séo Paulo - IMESC, autarquia origindria do antigo Instituto Oscar Freire. © IMESC dispunha de uma pequena equipe de pesquisadores, sob minha coordenagio € que contava com a participagdo e assessoria estatistica de Eliana Blumer Trindade Bordini, com quem compartilhei a direg8o do projeto de pesquisa ADORNO, Sérgio. A prisio sob a dtica de seus protagonistas. Itinerério de uma pesquisa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 7-40, 1991 intensificara durante o regime autoritario com a militarizagdo da seguranga publica Cuidava-se de coibir torturas e maus tratos impingidos a populacdo carceraria, assegurando a0s presos 0 respeito aos direitos de integridade fisica, psicologica e moral. Terceiro, fomentar a prestagao de assisténcia judiciaria bem assim de servigos de escolarizagao ¢ profissionalizago a massa encarcerada, modo pelo qual se julgava proporcionar condigdes adequadas de reinsergaio de egressos penitenciarios a vida civil (Adorno ¢ Fischer, 1987) Logo batizada de “politica dos direitos humanos do preso”’, a nova orientagdo impressa a questo penitenciria suscitou debates apaixonados ¢ polémicas acirradas, ao mesmo tempo ‘em que acolheu a realizagao de pesquisas sobre as condigdes de vida, sobre as praticas institucionais nas prisdes ¢ sobre as politicas penais formuladas ¢ implementadas por diferentes gestdes governamentais ao longo das quatro iltimas décadas"’ ‘Nesse horizonte de debates, um dos temas que freqiientemente vinha a baila dizia respeito a reincidéncia criminal. Acreditava-se, com base em avaliagSes cuja origem se desconhecia ou, quando conhecida eram pouco confidveis, serem elevadas as taxas de reincidéncia, argumento em que se apoiavam tanto forgas politicas conservadores quanto progressistas. Para os conservadores, a suspeita de taxas clevadas vinha apoiar pressdes para aumento do policiamento repressivo ¢ para uma politica nada tolerante para com a defesa dos direitos humanos, presses que ganharam pouco a pouco espaco nos meios de comunicagdo social, organizadas ¢ mobilizadas que se encontravam na preservagao de privilégios herdados do regime autoritario. Para os progressistas, taxas elevadas denunci- avam a faléncia das politicas penais implementadas durante a ditadura militar, consideradas lesivas ao interesse piiblico na medida em que agravavam a violéncia, inviabilizando a contengao da criminalidade nos estritos limites ditados pelo respeito aos direitos e garantias constitucionais. Foi justamente a auséncia de taxas de reincidéncia criminal dotadas de fidedignidade cientifica que motivou os pesquisadores a adentrar nesse terreno, inaugurando uma linha de investigagéio que se manteve durante quatro anos. Os pesquisadores iniciaram sua “‘saga” por intermédio de um pequeno estudo cujo objetivo consistia em estimar a reincidéncia criminal no Estado de Sao Paulo, com base em "Ao que se sabe, durante a gestéo de José Carlos Dias na pasta da Justiga foram realizadas pesquisas por Boris Fausto ¢ Rosa Maria Fischer na Penitencidria do Estado (1984-85), por Vinicius Caldeira Brant € equipe a propésito do trabalhador preso no Estado de So Paulo (1986), convertida recentemente em livro cuja publicagdo se espera para o proximo ano; por Sérgio Adomo © Rosa Maria Fischer a respeito das politicas penitencidrias implementadas pelo poder pablico no periodo de 1950-1985 (1987), e por Sérgio Adomo ¢ Eliana Blumer Trindade Bordini cujo objeto reside no estudo da reincidéncia criminal e penitenciéria (1985-87). Uma interessante andlise da “politica de direitos humanos do preso”” encontra-se em tese de mestrado também recentemente defendida (Goes, 1991). Vide igualmente Caldeira (1991), 7 ADORNO, Sérgio, A prisilo sob a dtica de seus protagonistas. Itinerério de uma pesquisa, Tempo Social, Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 7-40, 199L dados extraidos de cadastro criminal inserido no arquivo da Secretaria de Seguranga Piiblica do Estado implantado em sistema de computagdo. Para a realizagao desse estudo, que se poderia categorizar como de médio porte, foi indispensavel um cuidadoso e arduo trabalho preparatorioa fim de quea investigagao fosse conduzida segundo padrées cientificos aceitos na comunidade académica primeiro passo consistiu em breve avaliagao da literatura especializada. Desde logo foi possivel verificar que a questo da reincidéncia criminal nao ocupara a atengao dos nossos cientistas sociais. A época em que 0 estudo estava sendo realizado, havia apenas algumas meng@es ao tema nos estudos de Paixdio (1983) ¢ de Fausto (1984). Em outros ‘campos, a literatura era também exigua, A maior concentragao bibliografica situava-se no campo do direito ¢ da jurisprudéncia que, a despeito das especificidades, revelou alguma valia para nossos propésitos!?. Tornou-se, por conseguinte, imperativo recorrer & literatura especializada estrangeira que possibilitou conhecer as dificuldades a serem enfrentadas, como também 0 carter multifacetado do conceito de reincidéncia. Apés a avaliagdo das dificuldades, optou-se pelo emprego do conceito juridico de reincidéncia, tal como definido no Cédigo Penal (1940) com as alteragées introduzidas pela Lei no. 6.416/77 e pela Lei das Contravengdes Penais (1941), Com base nesse conceito, definiui-se como universo empirico de investigagao somente os condenados pela Justica Criminal do Estado de Sao Paulo, universo estratificado em reincidentes € nao reincidentes para fins de célculo da taxa de reincidéncia criminal, © Por exemplo, a leitura da jurisprudéncia € dos comentaristas permitiu conhecer uma “falha’” da legislagao penal. O legislador brasileiro, acompanhando tendéncias no direito penal europeu, diferencio crime de contravengdo penal. Considerou crime 0s atos de maior gravidade (como roubo, homicidio, estupro, tréfico de drogas etc.) para os quais reservou prioritariamente penas de reclusio. Para as contravengBes penais (como porte de anna sem autorizagdo, direydo perigosa, {jogo de azar) destinou penas mais leves, de multa, privagdo de direitos ou penas de detengio. De ‘acordo com a legislago penal vigente a época em que a pesquisa foi realizada (1983), considerava~ se reincidente criminal o agente que reunia as seguintes condigdes: (a) condenag&o anterior por cerime ou contravengdo penal, com sentenga transitado em julgado, nao importando a natureza da infragdo penal; e (b) prética de um novo crime ou contravengao penal, no prazo de cinco anos contados da data de cumprimento ou extingao da pena, exceto quando o agente fosse considerado absolvido do novo delito. Devido as discrepancias de texto entre 0 Cédigo Penal e a Lei das Contravengdes Penais, considerava-se juridicamente reincidente as seguintes “‘evolugdes"’: de crime para crime, de contravengo para contravengao, de crime para contravengiio, No entanto, a “‘evolugdo"”, teoricamente mais “*perigosa’”, de contravengiio para crime nfo possibilitava a declaragio de reincidéncia, como proclamavam os tribunais ¢ se valiam largamente 0s advogados de defesa. As limitagdes do conceito e seus problemas encontram-se descritos em estudos publicados (Rodello e outros, 19848; Abreu e Bordini, 1986). 18 ADORNO, Sérgio. A pris sob a ética de seus protagonistas. tinerdrio de uma pesquisa, Tempo Social, Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 7-40, 1991 O segundo passo consistiu em avaliar as fontes primarias de informago. De toaas as fontes consultadas, optou-se pelo arquivo indicado. Havia, porém, bices que necessita~ ram ser contornados. O arquivo estava atualizado até 27/12/82. Compreendia 889.445 prontuarios criminais inseridos no sistema de processamento eletrénico de um total aproximado de dois milhées de pessoas indiciadas, desde a década de 1920. O arquivo priorizava a insergao das informagdes policiais relativas a mandados ¢ contra-mandados de prisio, relegando a um segundo plano informagées judiciarias, pertinentes a condenagao, indispensaveis a pesquisa". Em conseqiiéncia, nao havia certeza nem seguranga de que todos os condenados de fato poderiam ser identificados no arquivo. Ademais, havia um outro problema: 0 programa de computagdo utilizado nao permitia prévia identificagio dos condenados. Mesmo considerando-se esses dbices, optou-se por construir uma amostra cstatisticamente representativa, compreendendo 1.336 prontuarios criminais'*. A decisdo revelou-se acertada, a despeito das cautelas de que se cercaram os resultados alcangados. © passo seguinte residiu em algo mais audacioso: conquistar as autoridades policiais a fim de se obter acesso 4 fonte primaria, Trata-se, aqui, de um capitulo a parte. Primeiro, é preciso averiguar qual o caminho mais adequado para semelhante empreitada: trilhar os canais oficiais, pleiteando acesso através de expedientes sempre morosos ¢ com resultados imprevisiveis; ou, explorar relagdcs constituidas no interior do aparelho de Estado, simplificando expedientes burocraticos ¢ viabilizando © acesso em menor periodo de tempo? Embora opgdes dessa ordem devam merecer exame individualizado, nesta pesquisa se decidiu pela segunda altemativa que se afigurava mais ajustada a uma conjuntura de mudangas politico-administrativas em que as suscetibilidades pessoais, funcionais ¢ corporativas se encontram exacerbadas. ‘Apés troca de iniimeros telefonemas - nas reparticdes piblicas os funcionarios ndo apenas detém informagées parceladas ou, quando delas dispdem, buscam eximir-se da res- ponsabilidade de oferta-las, como se essa atitude fosse uma escusa ¢ nao uma obriga- do -, conseguiu-se marcar uma audiéncia com 0 delegado responsivel pelo cadastro criminal, pessoa afavel ¢ inclinada ao didlogo, aspecto que contrasta com a rudeza dos tipos humanos que habitam as dependéncias policiais. No dia marcado, comparecemos a portaria da repartigo. Fomos submetidos rotina da inspegdo ¢ vigilincia. Tivemos que nos Por acaso, um dos pesquisadores dispunha de um parente que trabalhava nesse Arquivo a época da pesquisa. O parente confirmou o privilégio conferido as informagdes policiais, As informagdes judicidrias eram inseridas quando ‘‘sobrava algum tempinho’ “Os procedimentos técnicos de construgdo da amostra encontra- € outros, 1984) no estudo jé mencionado (Rodello 19 ADORNO, Sérgio. A prisilo sob a dtica de seus protagonistas Iinerério de uma pesquisa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 7-40, 1991 identificar, apresentar carteira funcional, prestar esclarecimentos a respeito da audiéncia, declinarmais de uma vezonome do delegado com quem manteriamos encontro, além, é claro, de sermos revistados. Pediram que esperassemos a chamada no saguio de entrada enquanto confirmavam, por telefone, a audiéncia. Confirmada, fomos convidados a transpor a barreira de vidro e nos dirigir ao andar onde estava instalado 0 cadastro criminal. A entrada nesses organismos policiais néo ¢, como se sabe, agradavel. Constitui verdadeiro “‘ritual de passagem’”. Os caminhos so trpegos ¢ labirinticos, escuros ¢ estreitos, por onde cruzam pessoas estranhas que langam olhares de suspeigdo e intimidagéio. Aos poucos, somos tentados a imaginar o quio dificil seria abandonar tudo de stibito e sair correndo por aqueles corredores, Uma reflexao posterior sugeriu que omedo ¢ componente essencial desse espago institucional. O claro-escuro do ambiente, as paredes cinzentas, os olhares de azedume, as esparrelas que parecem surpreender o visitante a cada passo, oamontoado cadtico de objetos espalhados por diferentes cantos tornando absurdamente irregular a geografia local - tudo na mais perfeita harmonia contribui para intimidar os olhares externos, manté-los distante como se possivel fosse cega-los. Nada ver, nada ouvir, nada dizer, eis a lei de ferro que habita tais instituigdes! O jeito era mesmo ir a frente. Atingimos uma grande sala, onde se encontravam os cadastros, ao que parece organizados segundo os mais tradicionais métodos de arquivamen- to. Por paradoxal que possa parecer, nas agéncias de contengio da criminalidade a racionalizagdo burocratico-administrativa, cujos méritos nao se pode desconhecer, custa a chegar. Sao agéncias pouco permedveis & introdugiio de inovagées. Tudo parece funcionar impulsionado por uma sorte de inércia cuja forga motriz éa repetigao do jé sabido. Apés essa rapida vista d’olhos, indagamos pelo delegado responsavel. Apontaram uma sala onde deveriamos aguarda-lo. Cerca de quinze minutos apés nossa chegada, fomos afinal recebidos. Tivemos que ouvir rapida peroragdo sobre as dificuldades do servigo, a quantidade de trabalho, o imenso volume de solicitagdes provenientes das delegacias e das varas criminais, além de consideragdes a respeito do crescimento da criminalidade e da presteza, sempre mais violenta dos delingiientes. Tudo ¢ dito com muita convicgao; soa como para justificar sua razo pessoal de ser e a da instituigdo de controle. Ouvimos com atengao, sem tecer comentarios, porém de modo a vez ou outra manifestar sinal de aprovagao de fragmentos do discurso introdutorio, 0 que se revelava pelo movimento das maos ou da cabe¢a. Faz parte do ritual de boas-vindas. Concluida a sessio inicial, os pesquisadores puseram-se a expor os motivos da visita, apresentago ensaiada em minimos detalhes, sobretudo quanto aos momentos de siléncio ¢ de empostagao da voz. Era indispensavel ‘‘vender”” a idéia, conquistar a autoridade sublinhando-Ihe a importincia da pesquisa, os “‘beneficios”” ‘que traria ao 20 ADORNO, Sérgio. A priso sob a dtica de seus protagonistas. Itinerario de uma pesquisa. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2) 7-40, 1991 poder piblico e a sociedade. A exposig&o era feita em certo tom: buscava-se transmitir uma imagem “‘positiva’’, de seriedade e confiabilidade. Sem dizé-lo abertamente, era necessario convencé-lo de que nao se pretendia difamar a instituigdo policial junto a opinido publica ¢ sequer trazer lume reparos depreciativos ao comportamento das autoridades policiais na ‘condugao da politica de seguranga. Apés respondermos a algumas indagagées ¢ recebermos valiosas informagGes a respeito do modus operandi do cadastro inserido no sistema de processamento eletrdnico, obtivemos autorizagdo para acesso as informagdes desejadas mediante acordo segundo qual nao haveria qualquer identificagao dos indiciados. Adquirida confianga, tivemos a posse de uma lista contendo todos 0s indiciados inseridos no arquivo eletrénico, o que nos habilitou a proceder a selegao probabilistica ¢, em seguida, a requisitar ‘os cadastros selecionados. De posse deste material, os pesquisadores tiveram que se familiarizar com os cédigos adotados pelo sistema de processamento cletrénico, requisito para o qual foi indispensavel 0 concurso de um manual de decodificagiio. Vencidas as dificuldades de acesso fonte priméria, o trabalho operacional consistiu em uma leitura criteriosa dos cadastros criminais. A primeira tarefa residiu em examinar cerca de 5.000 prontuarios a fim de identificar os réus condenados, pois, como ja se disse, apenas estes faziam parte do universo empirico de investigagdo. Nessa etapa, algumas peculiaridades exigiram leitura acurada da fonte documental. Assim, ndo era incomum que uma condenag&o fosse anulada nos estagios superiores do tramite processual. Havia também parcela significativa de indiciados que acusava apreciavel carreira delinqiencial manifesta pelo mimero de inquéritos policiais instaurados, muitos deles em curto periodo de tempo. No entanto, nao havia, em nenhum deles, qualquer sentenga condenatéria'’. Cumprida essa etapa, 0 processo de investigagao foi se tomando mais complexo. Cuidava-se agora, no interior da amostra de condenados, de identificar aqueles que se caracterizavam como reincidentes criminais, ao mesmo tempo em que transferiam para um formulario dados sobre sexo, ocupagdo e natureza do delito cometido. Os resultados alcangados revelaram que 0 coeficiente de reincidéncia criminal - 29,34% - ¢ baixo quando comparado com a suspcita de valores clevados, em toro de 70%, divulgados pela imprensa escrita e falada. Nesse particular, acompanhamos as taxas médias de reincidéncia criminal alcangadas em paises como Estados Unidos, Inglaterra, Franga, Tal circunstincia pode decorrer da morosidade na introdugdo de informagdes judicidrias no arquivo inserido no sistema de processamento eletrénico de dados. Pode outrossim resultar de “ negociagdes"” entre partes envolvidas - vitimas, agressores e autoridades policiais - que acabam retardando o prossegui- mento do inquérito policial 21 ADORNO, Sérgio. A prisio sob a dtica de seus protagonistas. Itinerdrio de uma pesquisa. Tempo Social, Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 7-40, 1991 ‘Alemanha e Italia. A pesquisa revelou também nao haver diferengas estatisticamente significativas entre os sexos masculino ¢ feminino, Sob esse particular, a mulher ¢ tio reincidente quanto o homem, 0 que problematiza explicagdes correntes, tanto no senso comum quanto no senso dito cientifico, que reputam aos atributos da natureza feminina - maior docilidade, maior conformidade as regras sociais, menor agressividade etc. - cocfici- entes inferiores de violéncia criminal. Indicou também que a taxa de reincidéncia tende a ser mais elevada entre os condenados procedentes dos estratos ocupacionais menos qualifica- dos. Quanto natureza do primeiro delito, a taxa é maior para furto, roubo ¢ trafico de drogas. No que concerne ao segundo delito, a reincidéncia tendea estar associada aos crimes contra o patriménio Mas, o resultado mais significativo dessa colegdo de dados relaciona-se ao tipo de condenagaio. Observou-se a tendéncia do coeficiente de reincidéncia ser mais clevado nos casos em que 0 réu foi condenado a pena de prisdo (detengao ou reclusdo), comparativamente a0s outros tipos de pena (multa, sursis, liberdade vigiada, medida de seguranga, prisiio preventiva). Esse resultado veio apontar para a assertiva foucaultiana: a prisio produz a delingiiéneia c agrava a reincidéncia (Foucault, 1977). Foi justamente esse resultado que ‘encaminhou os pesquisadores para uma etapa subseqiiente, cujo “‘objeto”” ndo mais residia no estudo da reincidéncia criminal, todavia da reincidéncia penitenciaria. set A seqiiéncia da investigagao"® cuidou de explorar as relagdes entre reincidéncia e prisdo, inquirindo sobre a magnitude do fendmeno, buscando conhecer 0 perfil social de reincidentes penitenciarios e averiguando 0 modo pelo qual a tecnologia penal incide diferentemente sobre reincidentes ¢ nao-reincidentes, delimitando e particularizando suas estratégias de sobrevivéncia apés a retomada dos direitos civis. O universo empirico de investiga¢o compreendeu todos os condenados, libertados da Penitenciaria do Estado, nos anos de 1974, 1975 e 1976, identificados através de consulta aos boletins didrios do movimento carcerario, cujo resultado apontou a existéncia de 252 setenciados nessa condigdo. Considerou-se reincidente penitencirio o individuo que, apés ter cumprido pena € sido libertado, foi novamente recolhido a priséo para cumprimento de nova pena Projeto de pesquisa ““Homens Reincidentes, Instituiges Obstinadas: a reincidéncia na Penitencidria do Estado de Sao Paulo”, aprovado e financiado pela FAPESP, proc. 85/1898-9. (Cf. Abreu e Bordini, 1986), 2 ADORNO, Sérgio. A prisdo sob a ética de seus protagonistas. Itinerdrio de uma pesquisa. Tempo Social, Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2) 7-40, 1991 A detecgao da reincidéncia reclamou a observa¢ao, dentro de um lapso de tempo determinado - de janeiro de 1974 a dezembro de 1985'”-, do comportamento dos egressos penitenciarios. Verificou-se, com base em informagées disponiveis nos cadastros da Penitenciaria do Estado, da Coordenadoria dos Estabelecimentos Penitencidrios e da Secretaria de Seguranga Publica, quem havia retornado ao sistema penitenciario ou as Cadeias Publicas do Estado de Sao Paulo. Esse procedimento indicou a taxa de reincidéncia penitenciaria da ordem de 46.03%, valor que confirma conclusdes anteriores que apontavam taxas mais clevadas de reincidéncia criminal para os condenados que haviam recebido pena de detengo ou reclusao. A pesquisa ocupou-se também de conhecer o perfil social de reincidentes ¢ nao- reincidentes. A literatura especializada, sobretudo a de feigdo criminologica, tende a caracterizar o reincidente como aquele que possui atributos distintos dos atributos caracte- risticos da massa carceraria. Grosso modo, os reincidentes - aqueles que de fato constroem uma carreira delingiiencial - so representados como individuos que, embora possam até ter iniciado a experiéncia de modo fortuito ¢ ocasional, tendem a se especializar na pratica de crimes violentos, sobretudo contra o patriménio. A especializagao ocorre concomitante a socializagdo no mundo da delingiiéncia, como alias vem demonstrando Alba Zaluar em varios de seus estudos (Zaluar, 1985, 1989b, 1989c e 1990), processo que contribui para uma radical separagdo entre ‘“trabalhadores”” ¢ ‘‘bandidos”’ ¢ implica em contatos perma- nentes ¢ negociados com as agéncias de contengdo da ordem piiblica, mais particularmente com a policia. Pretendeu-se, portanto, avaliar essa hipotese. Para tanto, selecionaram-se variaveis biograficas (pessoais ¢ juridico-penais), que foram examinadas comparando-se reincidentes penitencidrios aos nao-reincidentes. Por um lado, isolaram-se variaveis que diziam respeito aos atributos pessoais ¢ aos adquiridos no curso da socializagaio mais ampla, tais como idade, procedéncia, instrugio, profissionalizagdo/ocupacao, estado civil. Por outro lado, atributos adquiridos no mundo do crime, em contato com a delingiiéncia e com as agéncias repressivas, tais como natureza do crime, idade de inclusao, extensdo da pena, instituigdo de procedéncia, tempo de cumprimento da pena na Penitenciaria do Estado, puni- do softida nesse estabelecimento penal. Assim, perseguindo “‘pistas”” sugeridas por 1” Aqui se faz necessario uma observaciio de cariter ténico-metodolégico. Quando se estimam tras elevadas de reincidéncia, de modo geral se consideram apenas os individuos que voltaram a cometer novos delitos, tendo sido em conseqiéncia condenados ¢ aprisionados. Assim, qualquer “lotogra- fia" atual de um estabelecimento penitencidrio, como a Casa de Detengao de Sio Paulo ou a Penitencidria do Estado, registraré um niimero elevado de reincidentes encarcerados. No entanto, fa taxa de reincidéncia é fungdo tanto daqueles que reincidiram quanto daqueles que nto reincidi- ram. Dai a nevessidade de acompanhamento do movimento da populag no tempo ADORNO, Sérgio. A prisio sob a dtica de seus protagonistas. Itinerdrio de uma pesquisa. Tempo Social; Rev. Sociol, USP, S. Paulo, 31-2): 7-40, 1991 Foucault segundo o qual a prisdo transforma o criminoso em delinqiente, cuidamos de verificar em que medida os atributos juridico-penais explicavam a reincidéncia penitencia- ria!® . levantamento de dados, efetuado por auxiliares de pesquisa treinados"’, teve por base trés arquivos da Penitenciaria do Estado: cadastro criminal, cadastro de educagao © cadastro de profissionalizagdo. Apesar de distintos, esto todos eles organizados em torno do mesmo numero de matricula do sentenciado na Coordenadoria dos Estabelecimentos Penitenciarios. Para que o levantamento lograsse éxito de acordo com padrdes cientificos, reconhecidos na comunidade académica, se torou indispensavel uma acurada pesquisa exploratoria ¢ um criterioso trabalho de planejamento. Em pesquisa desta espécie, por mais que se abominem, os “‘controles’’ sobre o processo de coleta de dados acabam se impondo”". Dai terem sido necessérias varias visitas 4 Penitenciaria do Estado para se “‘sentir 0 ambiente’”: 0 scu modo de funcionamento ¢ organizagao, seus registros ¢ documentagao, suas rotinas ¢ disciplinas, Ademais, as visitas asseguravam que os pesquisadores pouco a pouco se familiarizassem com espagos € pessoas, sobretudo com aquelas que fazem parte da equipe dirigente © que, por conseguinte, so capazes de autorizar. Essas visitas constituiram, uma vez mais, capitulo a parte. Desta vez, nossa entrada procedeu-se a partir do “‘alto’”, mediante autorizagao da Secretaria de Justi¢a e aval da Coordenadoria dos Estabelecimentos Penitenciarios. No entanto, é preciso que se diga, a entrada pelo “‘alto”’ tem vantagens e grandes desvantagens. Nenhuma autoridade abaixo do Secretario de Estado ou do Coordenador - seja diretor de estabelecimento penitenciario, diretor de seguranga ¢ disciplina, diretor de programas de ressocializagao etc. - se inclina a criar obstaculos ou impedir que a autorizagao se efetive. Em contrapartida, a autorizagdo superior nem sempre é bem vista. Especialmente em periodos de transigo politica, a desconfianga em relagdo a esses expedientes recrudesce. No periodo em que se faziam as visitas exploratorias, inicio do segundo semestre de 1985, os confrontos entre a cupula da Secretaria de Justiga ¢ os dirigentes de base atingiam seu auge Ilustrativo dos confrontos ¢ a sucesso de rebelides carcerarias que se verificaram desde 1982, Em margo de 1985, um motim na Casa de Detengio ocasionara a entrada da tropa de ™ Os resultados dessa etapa da pesquisa encontram-se publicados (Cf, Adorno e Bordini, 1989. p. 70-94), Nessa etapa, a coleta de dados primérios foi realizada por Anamaria Cristina Schindler, Deise J. da Silva, Femanda R, Martins e Vicente Latorre Filho, supervisionados por Toshimi Kojimi Hirano, ® Esses controles constituem instrumentos de extrema valia, pois asseguram a “qualidade” do processo de coleta de dados, somente quando so tomados como meios e nfo como fins em si préprios, 24 ADORNO, Sérgio. A priso sob a dtica de seus protagonistas. Itinerdrio de uma pesquisa. Tempo Social, Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 3(1-2): 7-40, 1991 choque da PM, acontecimento sempre evitado pelo Secretario de Justiga. Portanto, mais do que nunca cra preciso ter cautela, para obstar armadilhas ¢ boicotes. Foi necessario suportar um novo “ritual de passagem’” que compreendia ouvir qucixas dos guardas ¢ funcionarios ‘a respeito das condigdes de trabalho nas prises, do comportamento arredio do preso, da perfidia interna ¢ notadamente longas lamurias contra a ‘politica de direitos humanos do preso’”. Novamente, comportamo-nos de modo lacénico, vez ou outra manifestando sinais de surpresa ou de aprovagdo. Instituiges austeras ¢ autoritarias como sao as prisdes reclamam de quem quer que viva sob seu abrigo, seja na condigao de tutor ou de tutelado, um comportamento ambiguo ¢ pleno de manhas. A instituigo é pouco tolerante a criticas: todos, e cada um em particular, desconfiam da propria sombra; ndo ha solidariedade que resista a logica de um mundo cuja lei predominante ¢ a do mais forte. Logo, vive-se sob 0 dominio do medo ¢ da incerteza, pisando-se em terreno movedigo cujo abismo é logo ali em frente, O proprio pesquisador acaba um pouco contaminado pelo ambientena medida em que precisa se cercar de precaugdes quando conversa com presos, com guardas, com funciona- rios administrativos, com técnicos ¢ com dirigentes. Durante as visitas, percorremos os pavilhdes ¢ as diversas sessées ¢ sctores da Penitenciaria. O objetivo desse percurso cra conhecer a estrutura organizacional da instituigdio enfocada, procedimento necessario para o estabelecimento de diretrizes para 0 trabalho dos auxiliares de pesquisa. Algumas informagées revelaram-se valiosas: quando 0 preso chega ao estabelecimento penal, passa por um setor, o da inclusao. Nele, despoja-se de todos os seus pertences, inclusive documentos que o acompanham, raspam-lhe cabelo ¢ barba, vestem-no com o uniforme institucional, ritual admiravelmente descrito por Goffman ao analisar os processos pelos quais, nas “‘instituigdes totais’, se consolida a deterioragao da identidade social (Goffman, 1974). Os funcionarios que trabalham na “‘inclusdo”’ fazem quest4o de demonstrar honestidade: tudo é minuciosamente anotado ¢ conservado de modo a que 0 preso, quando libertado, transferido de estabelecimento ou para outro regime penal, possa resgatar seus bens. Apds a ‘‘inclusiio”’, o preso é destinado a uma cela, enquanto sua documentagdo é enderegada ao cadastro criminal. ‘Na Penitenciaria do Estado, constatamos a existéncia de dois setores - Cadastro Criminal ¢ Prontuario Criminal - que praticamente desempenham as mesmas fungdes. Entre ambos, as relagdes so conflituosas, ora latentes, ora manifestas. Por exemplo, no Cadastro Criminal, informaram-nos que o prontuario criminal que acompanha o preso é, logo que o preso chega a inclusdo, depositado junto a esse setor para que sejam feitas as anotagdes cabiveis em fichas préprias. Em seguida, o documento ¢ enviado ao setor de prontuarios. Neste setor, informaram-nos justamente 0 contrario. Soubemos que a existéncia de ambos setores era andmala; o ultimo setor, nao oficializado no organograma da instituigo, tinha sido constituido para acomodar conflitos entre grupos de funciondrios na disputa por espagos 25

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