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Judith Butler Quadros de guerra Quando a vida é passivel de luto? Tradugao de Sérgio Lamario ¢ Arnaldo Marques ds Cunha Revisso de tradusdo de Marina Vargas Revisio técnica de Carla Rodrigues YP edigdo cvtu2aghouAsLEnRA Rio de Janeiro 2015 Coppi docs Copyrghe d di (Copy d teadanso © Chiang Beni, 2015 “ial origin Pres of Ware Wi Is Life Griablet “INDICATO NACIONAL DOSEDITORIS DELINROS. J dea Cag en 28 iets reserva pr eens taste partes dee Une ata de ic “Testo vind sexu Lingus Poetagu oe Asn Ong da Diets des aus aii pla EDITORA CIVILIZACAO BIASILEIRA, EDITORA JOSE OLYMPIO LTDA, ua Arena, 171 —~ Rake, RJ — 20921380 — ‘Tas (2h 2848-2000, Sea um eto peter (Chote eve Ateneo vend dirt 9 ‘clrecrcim.bo (21) 2585-2002 Inge mo Be 25 Nota da editora A tradugio do titulo original Frames of War como Qua- dros de guerra & uma tentativa de trazer a multiplicidade de sentidos que a palavra original frame carrega, como amplamente discutido pela autora. A preferéncia por “enquadramentos”, seguida no texto, aponta para uma ‘opciio especifica, a teoria do enquadramento formulada pelo socidlogo Erving Goffman. “Quadros” amplia a pro- posta do texto: trabalhar com molduras que restringem «a0 mesmo tempo configuram o olhar. A op¢io por nio criar neologismos foi a l6gica que acompanhou a tradugio da obra. O subtitulo When Is Life Grievable? passou a Quando a vida é passivel de luto?, de mancita a evitar a utilizagio de “enlutvel”, que a lingua inglesa permite com mais facilidade do que a portuguesa © como Judith Butler prefere no original, Da mesma forma, preferimos adaptar, e nio traduzir leralmente, conccitos como grievublelungrievable/grie- ability (passivel de luto/n3o passivel de Into/condisio de luto), precarity/precariousness (condigdo precirial precariedade), recognition/recognizablelrecognizability (ceconhecimento/reconhecivel/condigio de ser reconhe- 1 Capacidade de sobrevivéncia, vulnerabilidade, comoga0 A pressuposigio de uma precariedade generalizada que coloca em questo a ontologia do individualismo implica dcterminadas consequéncias normativas, embora nao as acarrete ditetament SSS ae OMO SNC) Porém, se essa visio a do individualism, CSTE implica uma ‘uansos oF GuEnna, | que esté fora dele. ‘Como a responsabilidade pode ser pensada com base nessa estrutura do corpo socialmente estatica? Como algo ‘que, por definigao, esta submerido a habilidade e i forga do social, 0 corpo é vulneravel. Ele nao é, contudo, uma ie na qual sio inscritos significados sociais, mas sim 0 que softe, usufrui e responde a exterioridade do mundo, uma exterioridade que define sua disposigio, mera supe sua passividade e atividade. Evidentemente que a violagio. € algo que pode ocorrer ¢ efetivamente ocorre com um corpo vulneravel (e no existem corpos invulneriveis), mas isso no quer dizer que a vulnerabilidade do corpo possa ser reduzida a possibilidade de violacio fisica. © fato de 0 corpo invariavelmente se defrontar com 0 ‘mundo exterior é um sinal do predicamento geral da pro- ximidade indesejada dos outros ¢ das citcunstancias que estio além do nosso controle. Esse “defrontar-se com” & ‘uma das modalidades que define o corpo. E, no entanto, essa alteridade invasiva com a qual o corpo se depara pode ser, e com frequéncia é, 0 que anima a reacio a esse ‘mundo, Essa reagdo pode incluir um amplo espectro de emogbes: prazer, raiva, sofrimento, esperanga, para citar apenas algumas. Essas emogdes, eu diria, tornam-se no apenas a sus- tentagio, masa prépria substancia da ideagio e da critica. CAPACIDADE DE SOBREVIVENCIA, VULNERABILIDADE, COMOGAD esse modo, um determinado ato interpretativoem alguns momentos assume implicitamente 0 controle da reagio afetiva primar. A interpretaglo nao surge como um ato spontiineo de uma mente isolada, mas como uma con- sequéncia de certo campo de inteligibilidade que ajuda a formar e a enquadrar nossa reagio a0 mundo invasivo (am mundo do qual dependemos, mas que também nos invade, exigindo uma reagio de formas complexas ¢, 8s vezes, ambivalentes). Por isso a precariedade como condigio generalizada se baseia em uma concepgio do corpo como algo fundamentalmente dependente de, € condicionado por, um mundo sustentado e sustentavel;a reagio — €, em altima instancia, a responsabilidade — se situa nas reagdes afetivas a um mundo que sustenta € {mpde. Como essas respostas afetivas sio invariavelmente ‘mediadas, elas exigem e desempenham o papel de certos enquadramentos interpretativos; podem também colocar em questo o cariter aceito como verdadeiro desses enqua- diramentos e, nesse sentido, fornecer as condigies afetivas para a critica social. Conforme jd ponderei anteriormente, a teoria moral deve se converter em critica social se quiser conhecer seu objeto e atuar sobre ele. Para compreender 0 ‘esquema que propus no contexto de guerra, Qe ssa tarefa torna-se particularmente grave no contexto da guerra. QUADROS bE cucKaa, Nio é facil se voltar para a questio da responsabil- dade, menos ainda uma vez que o termo foi usado para fins completamente opostos a0 meu op sit (GGA Cerramente ndo me oponho a responsabilidade individual, e ha situagSes em que, com certeza, todos devemds assumir a responsabilidade por 'n6s mesmos. Entretano, a luz dessa formulacio, despon- ‘am para mim algumas questdescriticas: Sou responsivel apenas por mim mesmo? Existem outros por quem sou responsivel? E como, em geral, posso determinar 0 al- cance da minha responsabilidade? Sou responsivel por todos 0s outros ou s6 por alguns, ¢ que critérios devo usar para estabelecer essa linha diviséria? Esse &, porém, apenas 0 comego das minhas dificul- dades. Confesso ter alguns problemas com os pronomes em questio. E apenas como um “eu” — isto é, como um individuo — que sou responsivel? Ou sera que quando: iy dvd paras eli 20 pcs pl ual on aon so svcnaos invade spose por rls genio ears sed psi de espns san sea lis {nd stad vem eran dere Wanna topenabide oe Schon Ndr) ni CAPACIDADE DE SOBREVIVENCIA, VULNERABILIDADE, COMOGAO assumo a responsabilidade o que fica claro é que quem “eu” sou est ligado aos outros de maneiras indissocidveis? E possivel ao menos pensar em mim sem esse mundo de ‘outros? Na verdade, pode ser que, através do processo de assumir responsabilidade, 0 “eu” se revele, pelo menos parcialmente, um “nds”? ‘Mas quem estaria, entio, incluido no “nés” que pa rego ser ou do qual parego fazer parte? E por qual “nd sou afinal responsavel? Isso equivale a perguntar a que “nds” eu pertengo? Se identifico uma comunidade de per~ tencimento com base em nagio, territoro, linguagem ou cultura, € se, entdo, baseio meu senso de responsabilidade nessa comunidade, estou implicitamente defendendo a visio de que sou responsivel somente por aqueles que, de alguma forma, se assemelham reconhecidamente a mim. Mas quais enquadramentos implicitos da condigio de ser reconhecido estdo em jogo quando “reconhego” alguém ‘como “parecido” comigo? Que ordem politica implicita produz e regula a semelhanga nesses casos? Qual é nossa responsabil em relagio Aqueles que parecem testar nosso senso de pertencimento ou desafiar normas disponiveis de seme- Ihanga? Talvez pertengamos a eles de uma forma diferente, «nossa responsabilidade para com eles nao resida, de fo, na apreensio de similitudes pré-fabricadas. Talvez essa responsabilidade $6 possa comesar a ser internalizada por meio de uma reflexio critica a respeito das normas jade em relagao Aqueles que nio conhecemos, excludentes de acordo com as quais sio constituidos os campos da possibilidade do reconhecimento, campos que ‘auaonos oe cuenea so implicitamente invocados quando, por um reflexo cultural, lamentamos a perda de determinadas vidas € reagimos com frieza diante da morte de outras. Antes de sugerir uma maneira de pensar acerca da responsabilidade global nesses tempos de guerra, quero me distanciar de algumas formas equivocadas de abordar ‘© problema. Aqueles, por exemplo, que fazem guerra em ‘nome do bem comum, aqueles que matam em nome da democracia ou da seguranga, aqueles que invadem tei rios soberanos de outros paises em nome da soberania — todos eles consideram que esto “atuando globalmente” ‘caté mesmo exercendo certa “responsabilidade global”. Nos dilimos anos, temos ouvido nos Estados Unidos um diseusso sobre “levar a democracia” para paises onde, aparentemente, ela nio existiria; ouvimos também falar dda necessidade de “instaurar a democracia”, Nesses mo- rmentos, temos de perguntar 0 significado dessa demo cracia que nio esta baseada na decisio popular nem nas decises da maioria, Sera que um poder pode “levar” ou “instaurar” a democracia para um povo em relagio a0 qual no possui nenhuma jurisdigd0? Se uma forma de poder € imposta a um povo que nio a escolhen, isso constitui, por definigio, um processo no democritico, Sea forma de poder imposta for chamada de “«emocra- ia", entio teremos um problema ainda maior: podemos chamar de “democracia” uma forma de poder politico imposto antidemocraticamente? A democracia tem que ccaracterizar os meios pelos quais 6 poder politico € al- ccangado, bem como 0 resultado desse processo. Isso cria CAPACIOADE OE SOBNEVIVENCIA, VULNERABILIDADE, COMOCAO. uma espécie de dilema, jf que a maioria pode perfeita- ‘mente votar em uma forma ndo demoerética de poder (conforme fizeram os alemaes em 1933, quando elegeram Hitler), mas os poderes militares também podem procu- ‘ar “instaurar” a democracia anulando ou suspendendo as eleigSes e outras expresses da vontade popular, por micios que so patentemente antidemocraticos, Nesses dois casos, a democracia fracassa, De que modo essas breves ponderagies sobre os riscos dda democracia afetam nossa maneira de pensar sobre a responsabilidade global em tempos de guerra? Primeiro, devemos desconfiar de invocagdes de “responsabilidade slobal” que pressupdem que um pais tenha a responsa- bilidade especifica de levar a democracia a outros paises. Teno certeza de que ha casos em que a intervengao € importante — para impedir um genocidio, por exemplo. Seria um erro, porém, associar essa intervengao a uma ‘missio global ou, ainda, a uma politica arrogante por ‘cio da qual sio implantadas pela forga formas de gover- ‘no que representam os interesses politics eeconsmicos do poder militar responsével por essa mesma implementagio. Nesses ca808, é provavel que queiramos dizer — ou, pelo ‘menos, eu quero dizer — que essa forma de responsabi- Iidade global é irresponsével, se ndo ostensivamente con- traditéria, Poderiamos dizer que, nesses casos, a palavra “cesponsabilidade” é simplesmente mal-empregada ou usada de forma abusiva, Tenderia a concordar, Mas isso pode ndo ser suficiente, jf queas circunstancias histéricas «exigem que demos novos significados & nogio de “respon- ‘QuapOS oF GUERRA sabilidade”. Com efeito, temos diante de nds 0 desafio de repensare reformular uma concepcio da responsabilidade slobal que fasa frente a essa apropriaglo imperialista € sua politica de imposicio. Por essa razdo, quero retornar 3 questio do “nds” € pensar primeiramente sobre 0 que acontece a esse “nds” fem tempos de guerra, Que vidas sio consideradas vidas {que merecem ser salvas e defendidas, ¢ que vidas nio 0 so? Em segundo lugar, gostaria de perguntar como po- deriamos repensar 0 “n6s” em termos globais de forma a fazer frente a politica de imposigdo. Finalmente, ¢ nos ccapitulos que se seguem, quero refletir sobre por que a ‘oposigio a tortura é obrigatdria € como podemos extrait tum importante sentido da responsabilidade global de ‘uma politica que se oponha a0 uso da tortura em todas as suas formas.” Portantoffna boa maneira de formular a questio de quem somos “nds” nesses tempos de guerra & per- jguntando quais vidas sio consideradas valiosas, quis vidas so enlutadas, e quais vidas sio consideradas nao passiveis de luto. Podemos pensar a guerra como algo que divide as populacdes entre aquelas pessoas por {quem lamentamos ¢ aquelas por quem no lamentamos. Uma vida nao passivel de luro € aquela cuja perda nio é lamentada porque ela nunca foi vivida, isto é, nunca contou de verdade como vida. Podemos ver a divisio do mundo em vidas passiveis ou nio passiveis de luto da perspectiva daqueles que fazem a guerra com 0 propo sito de defender as vidas de certas comunidades ¢ para o VIVENCIA, VULNERABI ADE, coMOGAO signifique eliminar estas Gltimg§QDepois dos atentados de 11 de Setembro, os meios de comunicagio divulgaram as imagens daqueles que morreram, com seus nomes, suas hist6rias pessoais, as reagdes de suas familias. O {to piblico encarregou-se de transformar essas imagens em icones para a nagio, o que significou, é claro, que luco publi imen. defendé-las das vidas de outras mesmo que isso pelos nao americanos foi consideravelmen- te menor € que nao houve absoluramente nenhum luto ‘§: pelos trabalhadores ilegais distribuigdo desigual do luz pablico é uma questio politica de imensa importinciTem sido assim desde, pelo menos, a época de Antigona, quando ela decidiu chorar publicamente pela morte de unde seus irmios, cron faecal qe omer 1s procuram com tanta frequéncia regular e coggeolar Primeiros anos da epidemia da aids nos Estados Unidos, 25 vigiias pablicas € o Names Project (Projeto dos No- ‘mes conseguiram superar a vergonha pablica associada 4 morte por complicagées decorrentes da aids, uma vergonha associada algumas vezes & homossexualidade, «especialmente ao sexo anal, e outras vezes s drogas 4 promiscuidade. Era importante declarar e mostear nnomes, reunir alguns resquicios de uma vida, exibir € confessar publicamente as perdas. O que aconteceria se as vitimas fatais das guerras em curso fossem enlutadas assim, abertamente? Por que nao sio divulgados os no- ‘mes de todos os que foram mortos na guerra, incluindo ‘Quansos OF GUERRA aqueles que as forgas americanas mataram e de quem jamais conheceremos a imagem, 0 nome, a histéria, de cuja vida nunca teremos um fragmento testemunhal, alguma coisa para ver, tocar, conhecer? Embora nio seja possivel singularizar cada vida destrutda na guerra, certamente existem formas de registrar as populagdes atingidas e destruidas sem incorporé-las 3 fungi iconica dajmagem* luto piiblico estd estreitamente relacionado a indig- ‘nagio, e a indignagio diante da injustiga ou, na verdade, de uma perda irreparivel possui um enorme porencial li Mlatsow que bniros poets da Replica, Ele cha ‘que, se 08 cidadios assistissem a tragédias com muita Foi essa, afinal, uma das razdes que levaram frequéncia, chorariam as perdas que presenciassem,eesse lato pablicoe aberto, ao perturbar a ordem ea hierarquia dia alma, desestabilizaria também a ordem ¢ a hierarquia da autoridade politica estamos falando de luto pablo ‘ou de indignagio piblea, estamos falando de respostas afetivas que sio fortemente reguladas por regimes de forsa « algumas vezes,sujeitas & censura explie Go etiposencan go Mao i estio diretamente envolvides, no Iraque eno Afeganistio, podemos ver como a comogio € regulada para apoiar tanto o esforgo de guerra quanto, mais especificamente, owed de pertencimento nana) sn = fotos da prisio de Abu Ghraib foram divulgadas nos Estados Unidos, os anaistas das redes de televisio con- servadoras americanas alegaram que mostr-las seria um (CAPACIDADE DE SOBREVIVENCIA, VULNERABILIDADE, COMOGAO comportamento antiamericano, Nao seria aconselhivel ‘eicular provas detathadas dos atos de tortura pratica- dios pelos militares americanos. Nio seria conveniente «que soubéssemos que os Estados Unidos haviam violado direitos hamanos internacionalmente reconhecidos. Era antiamericano mostrar aquelas fotos e virar conclusdes a partir delas sobre como a guerra estava sendo conduzida, © comentarista politico conservador Bill O'Reilly ponde- rou que as fotos criariam uma imagem negativa do pais que rinhamos a obrigagio de preservar uma imagem positiva.* Donald Rumsfeld disse algo parecido, sugerin- clo que seria antiamericano exibir as foos."E lao que rnenhum deles levou em conta que o pablico americano everia ter 0 direito de conhecer as atividades de seus militares, ou que 0 direito do pablico de julgar a guerra com base em todas as provas documentais faz parte da tradigdo demoeritica de participagio e deliberagio, O gue, entio, estava realmente sendo dito? Parece-me que aqueles que procuravam limitar 0 poder da imagem nesse ‘caso também procuravam limitar 0 poder da comogio, da indignagao, perfeitamente conscientes de que isso poderia, como de fato ocorreu, colocar a opiniaio publi ugrra que estava sendo travada no Iraque. pergunta sobre quais vidas devem ser consideradas ‘como merecedoras de luto e de protecdo, pertencentes a contraa sujeitos com direitos que devem ser garantidos, nos leva de volta & questo de como a comogio é regulada e de qual é a nossa intengio ao regular a comogaRecen- emente, 0 antropélogo Talal Asad escreveu um livro ‘uaoKos be GuRea sobre atentados suicidas no qual a primeira pergunta que apresenta é a seguinte: Por que sentimos horror € repulsa moral diante do atentado suicida e nem sempre sentimos a mesma coisa diante da violéneia promovida pelo Estado?” Ele faz essa pergunta ndo para dizer que essas formas de violincia se equivalem ou que deveriamos sentir a mesma indignago moral com relagio a ambas, Mas ele acha curioso, ¢ 0 acompanho nisso, que as nos- sas reagies morais — reagées que primeiro assumem a forma de comogio — sejam tacitamente reguladas por certs tipos de enquadramento interpretativo. Sua tese é ue sentimos mais horror e repulsa moral por vidas hu- ‘manas perdidas em determinadas circunstancias do que cm outras. Se, por exemplo, alguém mata ou € morto na guerra, € a guerra € patrocinada pelo Estado, investido por nés de legitimidade, entio, consideramos a morte passivel de luto, triste, desafortunada, mas nao radical- fo entanto, se a violéncia for perpetrada ‘mente injusta. por grupos insurgentes considerados ilegitimos, nossa comosio invariavelmente muda, ou pelo menos é isso {que Asad supde. Embora Asad nos convide a refletr sobre os atentados suicidas, algo que no vou fazer agora, também fica evi- dente que ele esté dizendo algo importante sobre a politica da capacidade de reag3o moral; em outras palaveas, que © {que sentimos é parcialmente condicionado pela maneira como interpretamos © mundo que nos cerca, que a forma de interpretar 0 que sentimos pode alterar, e na verdade altera, o proprio sentimento. Se accitarmos que a comogio CAPACIDADE DE SoaREVIVENCrA, VuLA 1LIOA0E, COMOGA ¢ estruturada por esquemas interpretativos que nio com- preendemos inteiramente, isso pode nos ajudar a entender or que sentimos horror diante de certas perdase indiferen- ‘62 04 mesmo justeza diante de outras? Nas circunstincias contemporiineas de guerra e de nacionalismo exacerbado, imaginamos que nossas existéncia estejam ligadas a outras ‘com as quais podemos encontrar afinidades nacionais que seriam reconheciveis para n6s e que estariam em confor- smidade com certas nogdes culturalmente especificas sobre © que € culturalmente reconhecivel como humano. Esse ‘enguadramento interpretative funciona diferenciando tacitamente populagdes das quais minha vida e minha cexisténcia dependem e populagdes que representam uma ameaga direta a minha vida ¢4 minha existéncia. Quando ‘uma populagdo parece constituir uma ameaga direta @ ‘minha vida, seus integrantes nao aparecem como “vidas”, ‘mas como uma ameaga a vida (uma representagio viva ‘que representa a ameaga a vida). Consideremos como isso se agrava naquelas situagdes em que o Isla é visto como bsisbaro ou pré-moderno, como algo que ainda no se sjustou as normas que tornam 0 humano reconhecivel Aqueles que matamos ndo sio completamente humanos, no esto de todo vivos, 0 que significa que nio sentimos ‘© mesmo horror e a mesma indignagio diante da perda de suas vidas que sentimos com a perda das outras vidas ‘que guardam uma semelhanga nacional ou religiosa com 4 nossa propria. ‘Asad se pergunta se os modos de lidar com a morte sio apreendidos de forma diferente, se desaprovamos ‘QuaoROS oF cuesea com mais veeméncia ¢ nos sentimos moralmente mais indignados com as mortes causadas por atentados sui- cidas do que com as mortes causadas, por exemplo, por um bombardeio aéreo. Mas aqui pergunto se nio ha também um modo diferente de considerar as populagdes, de modo que algumas so consideradas desde o princi- pio muito vivas, enquanto outras so encaradas como questionavelmente vivas, talvez até mesmo socialmente mortas (expresso cunhada por Orlando Patterson para descrever 0 estatuto de um escravo), ou como represen- tages vivas da ameaca A vida." Entretanto, se a guerra, ‘ou melhor, se as guerras atuais reafirmam e perpetuam uma maneira de dividir as vidas entre aquelas que me- recem ser defendidas, valorizadas ¢ enlutadas quando io perdidas, e aquelas que nao sio propriamente vidas nem propriamente valiosas, reconheciveis ow passiveis de serem enlutadas, entdo a perda de vidas que nao sto cenlutadas certamente causaré uma enorme indignagao Aqueles que entendem que sua vida nao € considerada vvida em nenhum sentido pleno e significativo. Portanto, embora a logica da autodefesa molde essas populagdes, como “ameagas” a vida tal como a conhecemos, elas sio populagdes vivas com as quais coabitamos, 0 que pressupde certa interdependéncia entre nés. Como essa interdependéncia é reconhecida (ou nao) ¢ instituida (ow indo) tem implicages concretas para quem sobrevive, ‘quem prospera, quem mal consegue se manter vivo, € ‘para quem é eliminado ou deixado 4 morte. Quero insis- tir nessa interdependéncia precisamente porque, quando (APACIDADE DE SOBREVIVENCIA, VULNERABILIDADE, COMOGAO nnagdes como os Estados Unidos e Israel argumentam que sua sobrevivéncia depende da guerra, um erro sistematico esta sendo cometido. Isso acontece porque a guerra procura negar as formas intefutaveis continuas de que todos estamos submeti dos uns a0s outros, vulneriveis & destruigio pelo outeo « necessitados de protecio mediante acordos globais ¢ ‘multilaterais baseados no reconhecimento de uma preca- riedade compartithada. Acredito que esse é, claramente, uum argumento hegeliano, e convém reiteré-lo aqui. A razio pela qual nio sou livee para destruir 0 outro — € por que as nagdes nio so, defintivamente livres para destruitem umas is outras — nio € somente 0 fato de que isso acarretard outras consequéncias destrutivas. O que é, sem divida, verda ro. Mas o que pode ser, no fim das ccontas, ainda mais verdadeiro & que o sujeito que sou esta ligado ao sujeito que nao sou, que cada um de nés tem 0 poder de desteuir e de ser destruido, e que estamos unis uuns aos outros nesse poder e nessa precariedade. Nesse sentido, somos todos vidas precirias. Depois do 11 de Setembro, vimos 0 desenvolvimento da perspectiva segundo a qual a “permeabilidade da fronteira” representa uma ameaca nacional, ou mesmo uma ameaga a identidade como tal. A identidade, con- tudo, no é concebivel sem uma fronteira permesvel, ow sem a possibilidade de se renunciar a uma fronteira. No primeiro caso, temem-se a invasio, a intrusio e a apro- priagao indevida, e faz-se uma reivindicagao territorial em nome da autodefesa. No outro caso, porém, deixa-se de lado ou se ultrapassa uma fronteira precisamente com ‘0 intuito de se estabelecer certa relagdo que v4 além das reivindicagies territoriais. O temor da capacidade de sobrevivéncia pode acompanhar os dois gestos,e, se isso ‘ocorrer, 0 que isso nos ensina sobre como nosso sentido de sobrevivencia esta inevitavelmente ligado aqueles que nao conhecemos, que podem muito bem ndo ser plena- mente reconheciveis segundo nossas préprias normas nacionais ou limitadas? De acordo com Melanie Klein, desenvolvemos res- postas morais em reagio a questdes relacionadas & ca- pacidade de sobrevivéncia.” Arrisco dizer que Klein esta ccerta a esse respeito, mesmo quando frustra sua propria argumentacio ao insistir que, no final das contas, €a ca pacidade de sobrev gue 0 eu? Afinal, se minha capacidade de sobrevivéncia depende da relagio com 0s outros — com um “voce” ‘ou com um conjunto de “vocés” sem os quais no posso cia do eu que esti em questi. Por cexistir —, entio minha existéncia no é apenas minha pode ser encontrada fora de mim, nesse conjunto de relagbes que precedem excedem as fronteiras de quem sou, Se tenho alguma fronteira, ou se alguma fronteira pode ser atribuida a mim, € somente porque me separei dos outeos, ¢ & somente por causa dessa separagao que pposso me relacionar com eles. Assim, a fronteira é uma fungio da relagio, uma gestio da diferenga, uma nego- ciagio na qual estou ligado a vocé na medida da minha separagio. Se procuro preservar sua vida, ndo é apenas porque procuro preservar a minha propria, mas também n CAPACIDADE DE SOBREVIVENCIA, VULNERABILIDADE, COMOGAO Porque quem “eu” sou nio é nada sem a sua vida, ¢ a propria vida deve ser repensada como esse conjunto de relagdes — complexas, apaixonadas, antagnicas e necessarias — com os outros. Posso perder esse “voce” «© muitos outros vocés especificos, ¢ posso perfeitamente sobreviver a essas perdas. Mas isso s6 pode acontecer se eu nndo perder a possibi seja. Se sobrevivo, é exatamente porque minha vida no dade de pelo menos um “vocé” que nada sem a vida que me excede, que se refere a algum “vocé” indexado sem o qual eu no posso ser. © uso que fago aqui de Klein € decididamente nio klciniano. Na verdade, acredito que ela fornega uma analise que nos impele a seguir em uma diregio que ela propria jamais seguiria ou poderia seguit. Permitam-me ‘considerar, por um momento, o que acredito ser correto a respeito da visio de Klein, mesmo que tenha de discordar ‘dela em sua avaliagio dos impulsos e da autopreservagio « procurar desenvolver uma ontologia social baseada em sua anilis, algo que ela certamente eee Sea culpa éassociada a temores relatives & capacidade de sobrevivéncia, entio isso sugere que, como resposta ‘moral, a culpa se refere a um conjunto pré-moral de me- dos e impulsos ligados & capacidade de desteuigo e as suas consequéncias. Se a culpa propde uma questio a0 sujeito humano, cla no serd, em primeiro lugar, sobre se levamos uma vida boa, mas sim sobre se a vida é de todo vivivel. Quer seja concebida como uma emogio ou ‘como um sentimento, a culpa nos revela algo a respeito de como ocorre o processo de moralizacao e de como ‘QuADROS OF GUERRA ele desvia da crise de capacidade de sobrevivencia, Se alguém se sente culpado diante da perspectiva de destruir © objetolo outro a quem esta ligado, 0 objeto de amor © apego, isso pode se dever a um instinto de autopre- servagio, Se destruo 0 outro, estou destruindo aqucle dde quem dependo para sobreviver e, portanto, ameago minha propria sobrevivéncia com meu ato destrutivo, Se Klein estiver certa, ento o mais provavel € que no re importe muito com a outra pessoa como tal; ela nio seria encarada por mim como um outro, separado de ‘mim, que “merece” viver e cuja vida depende da minha capacidade de controlar meu proprio poder de destrugio. Para Klcin, a questo da sobrevivencia precede a question da moralidade. Na verdade, pareceria que a culpa nio estabelece uma relagio moral com 0 otto, mas sim um desejo desenfreado de autopreservagio. Na opiniio de Klein, s6 quero que o outro sobreviva para que eu possa sobreviver. O outro é instrumental para minha prépria sobrevivéncia, e a culpa ¢ até mesmo a moralidade sio simplesmente as consequéncias instrumentais desse desejo de autopreservagio, que é ameagado, principalmente, pela ‘minha prépria capacidade destrutiva. ‘culpa pareceria, entio, caracterizar uma capacidade humana particular de assumir a responsabilidade por determinadas agdes. Sou culpado porque procurei des- tuir um elo de que necessito para viver. A culpa parece ser um impulso de autopreservagao primario, que pode estar estreitamente ligado a0 eu, embora, como sabemos, a propria Klein nio scja uma psicdloga do eu. Podemos, CAPACIDADE DE SOUREVIVENCIA, VULNERABILIDADE, COMOGAO enarar esse impeto pela autopreservagio como um de- sejo de preservar-se como ser humano; porém, como é minha sobrevivéncia que esta ameagada por meu poten- cial desteutivo, parece que a culpa se refere menos a uma 4ualidade humana do que a vida e, na verdade, & capa- cidade de sobrevivéncia. Assim, cada um de nés s6 sente culpa como um animal que pode viver e morrer; apenas para alguém cuja vida esta estreitamente relacionada a coutras vidas e que deve negociar o seu poder de violar, dle matar ou de preservar a vida, & que a culpa se torna uma questo, Paradoxalmente, a culpa — que com tanta frequéncia é vista como uma emogio paradigmaticamente humana, em geral entendida como algo que requer po- dletes autorreflexivos, e que, portanto, estabelece uma diferenga entre vida humana e vida animal — é movida menos por uma reflexo racional do que pelo medo da morte. pela vontade de viver. A culpa, portanto, contesta ‘© antropocentrismo que com tanta frequéncia endossa consideragdes sobre os sentimentos morais, instituindo, «em vez disso, o anthropos como um animal em busca da sobrevivéncia, mas cuja capacidade de sobrevivéncia se da «em fungdo de uma sociabilidade frigil e negociada. A vida € sustentada no por um impulso de autopreservagio, concebido como um impulso interno do organismo, mas por uma condigéo de dependéncia sem a qual a sobre- vivencia ndo € possivel, mas que também pode colocar 4 sobrevivéncia em perigo, dependendo da forma que a dependéncia assume. ‘QuADROS oF GUERRA Se aceitissemos a argumentaio de Klein de que a ca- pacidade de destruigio é0 problema do sujeito humano, pareceria que é ela também que conecta © humano a0 rndo humano. 1ss0 se mostra mais profundamente ver- dadeiro em tempos de guerra, quando a vida sensivel de todos os tipos éexposta a um risco elevado, e me parece extremamente verdadeiro para aqueles que tém poder de desencadear uma guerra, isto é, de se converter em sujcitos cuja capacidade de destruigio ameaca popula- Ges e ambientes inteiros. Assim, se neste capitulo fago tuma critica primeiro-mundista do impulso desteutivo, € precisamente porque sou cidada de um pais que site maticamente idealiza sua propria capacidade de matar. ‘Acho que foi no filme Hora do Rush 3 que, quando os personagens principais entram em um taxi em Paris, © taxista, a0 perceber que se trata de norte-americanos, manifesta seu entusiéstico interesse pela pr6xima aven- tura americana." Durante 0 trajeto, ele revela uma profunda percepsio etnogrifica: “Os americanos”, diz, “eles matam pessoas sem nenhum motivo!” E claro que 0 {governo americano oferece todos 0s tipos de ustifcativa para suas matangas, embora se negue, a0 mesmo tempo, a classificar essas matangas de “matangas”. Se levo a fundo a questio da capacidade de destruigio, porém, «€ se volto minha atengio para a questio da precariedade € da vulnerabilidade, é precisamente porque acredito que seja necessério certo deslocamento de perspectiva para repensar a politica global. A nogio de sujeito produzida pelas guerras ecentes conduzidas pelos Estados Unidos, CAPACIOADE OF SOBREVIVENCIA, YULNERABILIDADE, COMOCAD incluindo suas operagdes de tortura, é uma nogio.em que © sujeito Estados Unidos busca se mostrar impermedvel, definie-se como permanentemente protegido contra inva- sbes ¢ radicalmente invulneravel a ataques. O naciona- lismo funciona, em parte, produzindo e mantendo uma determinada versio do sujeito, Podemos chamé-lo de imaginério, se assim desejarmos, mas temos de lembrar que ele € produzido e mantido por meio de poderosas formas de midia, e que aquilo que confere poder a sua versio do sujeito é exatamente a forma pela qual elas sio capazes de transformar a prépria capacidade de destruigio do sujeito em algo justo, e sua propria destra- tibilidade em algo impensével. A questio a respeito de como essas relagdes ou inter- dependéncias sio coneebidas est relacionada, portanto, a se € como podemos expandir nosso senso de dependéncia « obrigagio politicas para uma arena global além da na- ‘sao. O nacionalismo nos Estados Unidos tem aumentado, é claro, desde os atentados de 11 de Setembro, mas nio ccusta lembrar que este é um pais que estende sua jurisdigio para além de suas proprias fronteicas, que suspende suas obrigagdes constitucionais dentro dessas fronteiras e que se considera acima de muitos acordos internacionais. Pre- servam zelosamente seu direito 4 auroprotegZo soberana 20 "mesmo tempo em que fazem incursdes autojustficadas em ‘outras soberanias ou, no caso da Palestina, recusam-se a honrar quaisquer principios de soberania. Queto salientar {que 0 movimento de assegurar a dependéncia e o compro- imisso fora do Estado-Nagio tem de ser diferenciado das ‘auaonos be GUERRA formas de imperialismo que insistem em reivindicages de soberania fora das fronteiras do Estado-Nagio, Essa distingio nao é algo fcil de se fazer ou de se assegurar, ras reio que coloca um desafiocontemporineo ¢ urgente para 0 nosso tempo. ‘Quando me refro a uma cisio que esteutua (e deses- ‘rutura) 0 sujeito nacional, estou me referindo aqueles smodos de defesa edeslocamento — tomando emprestada ‘uma categoria psicanalitica — que nos levam, em nome da soberania, a defender uma fronteira em uma deter- minada situagdo € a violé-la com total impunidade em foutra, O apelo & interdependéneia é, portanto, também tum apelo para superarmos essa cisio e nos movermos na diregio do reconhecimento de uma condigio generalizada de precariedade. O outro nao pode ser destrut sou, ¢ vice-versa. A vida, concebida como vida preciriay uma condigio generalizada, ¢ sob certas condigdes po Iiticas se torna radicalmente exacerbada ou radicalmente repudiada. Essa é uma cisio em que 0 sujeito declara justa sua propria capacidade de destruigdo ao mesmo tempo em Ja de sua pr6- movida pelo «que procuraimunizar-se contra a conse pria precariedade. Faz parte de uma politi horror diante da ideia da destrutibilidade da nagio ou de seus aliados. Consttui uma espécie de fissuraieracional na esséncia do nacionalismo. io se trata de se opor & capacidade de destruigio per se, de contrapor esse sujeto cindido do nacionalismo norte-americano a um sujeito cuja psique quer Sempre © tunicamente a paz. Admito que a ageessio faga parte da CAPACIOADE OF SOBREVIVENCIA, VULNERABILIDAD! yaoe, COMOGAD vida e, consequentemente, também da politiea. A agres- so, porém, pode e deve estar separada da violéncia (sendo a violéncia uma das formas que a agressio assume), € cxistem maneiras de dar forma 4 agressio que atuam a servigo da vida demoeritica, incluindo o “antagonismo” © 0 conflto discursivo, as greves, a desobediéncia civil e mesmo a revolugao. Tanto Hegel quanto Freud compre- endiam que a repressio da destruigd0 s6 pode ocorrer realocando a destruigio na agio de repressio, 0 que nos leva a concluir que todo paeifismo baseado na repressio teré apenas encontrado outro espago para a capacidade de destruigio, e de forma alguma tera obtido sucesso em sua eliminagio. Pode-se concluir, ademais, que a nica alternativa € encontrar meios de elaborar ¢ controlar a capacidade de destruigi0, dando-Ihe uma forma vivi- vel, o que seria uma mancira de afirmar sua existéncia permanente e assumir a responsabilidade pelas formas sociais e politicas por meio das quais ela se manifesta, Isso seria uma tarefa diferente tanto da repressio quanto «da expressio descontrolada e “liberada”. Se fago um apelo para a superagio de certa cisio no sajeito nacional, ndo € com o objetivo de reabilitar um sux icito unificado e coerente. © sujito esta sempre fora de si mesmo, distinto de si mesmo, ja que sua relagio com o ‘outro € essencial aquilo que ele é (de forma clara, nesse ponto, continuo perversamente hegeliana). Surge, assim, 4 seguinte pergunta: como entendemos 0 que significa ses um sujeito que esta constituido em ou conforme suas ‘uaoKos oF GuERAA, relagies e cuja capacidade de sobrevivéncia é uma fungio € um efeito dos seus modos de se relacionae? Com essas considerages em mente, voltemos 8 questio que nos foi colocada por Asad sobre a capacidade de res- posta moral. Se a violencia justa ou justificada ¢ praticada pelos Estados, ¢ se a violéncia injustifcada € praicada por atores nio estatais ou por atores que se opdem 20s Estados existentes, encontramos entio uma maneira de cexplicar por que reagimos com horror a determinadas formas de violencia e com uma espécie de aceitagio, possivelmente até mesmo com justia e triunfalismo, a outras. As respostas emocionais parecem ser primérias, sem necessidade de explicago, como se fossem anterio- res a0 trabalho de compreensio e interpretagio. Somos, por assim dizer, contra a interpretagio, nos momentos fem que reagimos com horror moral diante da violencia. Mas enquanto permanecermos contrrios & interpreta: ‘gio nesses momentos, nao seremos capazes de apontar 4 razio pela qual a sensagio de horror € experimentada de formas diferenciadas. Nio apenas procederemos com base nessa no razo, mas a tomaremos como sinal de ‘n0ss0 louvavel sentimento moral inato, talvez até mesmo de nossa “humanidade fundamental”. Paradoxalmente, a cisio irracional em nossa capaci- lade de resposta torna impossivelreagir com o mesmo horror diante da violéncia cometida contea todos os tipos de populagio. Dessa maneira, quando tomamos nosso horror moral como um sinal de nossa humanidade, no, notamos que a humanidade em questio esta, na verdade, ~ CAPACIDADE DE SOBREVIVENCIA, VULNERABILIDADE, CO : ADE, comoGAO implicitamente dividida entre aqueles por quem sentimos tum apego urgente e irracional e aqueles euja vida e morte simplesmente nao nos afetam, ou que nao consideramos vidas. Como devemos compreender 0 poder regulat6rio ‘que cia esse diferencial no nivel da resposta afetiva e moral? Talver seja importante lembrar que a responsa- | bilidade exige capacidade de resposta, e que esta nao € tum estado meramente subjetivo, mas sim uma maneira de responder aquilo que esté diante de nds com os re- ‘cursos 4 nossa disposigio. Nés somos seres sociais, que trabatham em meio a interpretagdes sociais elaboradas, tanto quando sentimos horror como quando nao o senti- mos. Nossa comogio nunca é somente nossa: a comogio 6, desde © comego, transmitida de outro lugar. Ela nos predispoe a perceber 0 mundo de determinada maneira, a acolher certas dimensoes do mundo resistic a outras. Fntretanto, se uma resposta € sempre uma resposta a um) estado pereebido do mando, 0 que faz com que determi nado aspecto do mundo se torne perceptive € outro, ni Como abordar de novo a questio da resposta afetiva e «la valoragéo moral considerando 0s enquadramentos ii em operagio de acordo com os quais certas vidas si vistas como dignas de protegio, enquanto outras nio, precisamente porque nio Sio completamente “vidas” de acordo com as normas predominantes da condigio de ser reconhecido? A comogio depende de apoios sociais para o sentir: $6 conseguimos sentir alguma coisa em relago a uma perda perceptivel, que depende de estru- tras sociais de percepedo, e s6 podemos sentir comogio

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