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A arte travesti é a unica estética pos-apocaliptica possivel? Pedagogias antiCIStemicas da pandemia Dodi Leal “Em vez de produzir ficcao, eu pretiro produzir friccao.” (Linn da Quebrada) * Nos dias 04 e 05 de abril de 2020, nas primeiras semanas em que a pandemia se instaurou no Brasil, um grupo de pessoas trans realizou um festival online com debates, shows, exposicdes visuais, etc. chamado MARSHA! Entra na Sala. Na ocasiao, a cantora dup do Bairro, que participou acompanhando as eS musicais de outras artistas trans, fez o comentario que suscitou o titulo deste texto: “a arte travesti @ a unica estética pos-apocaliptica possivel”. © tom profético de Jup pode parecer reducionista para a hegemonia branca cisgénera da sociedade brasileira. No entanto, vemos nesta analise mais do que 0 determinismo do que aconteceré depois do coronavirus e mais a derrocada estética e politica que ele esta promovendo. Me explico. 0 CIStema social esta posto em xeque pela pandemia. 0 que vemos é o ruir dos principios capitalistas cisgéneros e brancos que regem a deméniocracia brasileira. Outro aspecto que o coronavirus nos faz ver é a derrocada da estética estética verde-amarela. Entéo, a pandemia tem um carater pedagégico fundamental. Pedagogia indisciplinar e insurgente. N&o A toa, a propria Jup, quando ocasionalmente se refere ao apocalipse, chama-o de apds~Calypso, como uma provocacaéo estética a urg&ncia da arte travesti. E certamente estamos falando, ela e eu, de um modo de fazer e de apreciar a arte que rompa com a industria cultural e seus ditames. Se a amazénica Banda Calypso se rendeu a estrutura de industria cultural brasileira, a arte travesti apés-Calypso sé ser possivel se for anticistémica. Mas como a arte travesti atua na luta contra o 1 Linn aa Quebrada om Berlin. Disponivel em: netpa://wws-youtube.com/ watch?v=nsé2fLTZr_w, acesso em 31/5/2020 4s 12h01, Porto Seguro - Brasil. capitalismo e como a pandemia passa a deixar este processo cada vez mais evidente e inevitavel? Antes, duas outras perguntas: e se Karl Marz fosse preta? E se Marx fosse travesti? Se Marx fosse uma travesti preta, Marx seria Marsha. Marsha P. Johnson é a precursora da revolucao anticIstémica e ndo apenas contra o capitalismo, mas contra o capitalicISmo. Marsha foi uma ativista norte-americana pelos direitos relacionados as dissidéncias sexuais e desobediéncias de género. Uma das lideres da revolta de Stonewall em 1969, presa diversas vezes ¢ assassinada em 1992. E eis que em 2020 Marsha retorna como a convidada emblematica para entrar na sala do Brasil pandémico, num contexto em que a arte tenta sobreviver na digitalidade das novas grandes corporacées das redes (Youtube, Instagram e Facebook). © que vemos na pandemia, entéo, € a arte travesti revitalizando Marx, reinventando modos de cooperacgao e modos de indisciplina ao Estado. © Manifesto Comunista guarda, inclusive, muitas relacées com o Manifesto Transpof4gico de Renata Carvalho. A principal diferenca, no entanto, talvez seja que o primeiro tenha se concentrado mais no estudo das forcas produtivas. Jé a arte travesti, assim como o coronavirus, nos aproxima do polo oposto: o estudo do improdutivismo. Afinal de contas, para que serve uma travesti? Para que serve a arte? Para nada. A que serve o produtivismo definitério da cisnormatividade e a que serve o improdutivismo das transgeneridades? Ro contraério do que perspectivas conservadoras afligem com recorréncia, agir contra uma ordem estabelecida nfo 6 sinénimo de barbarie. Pelo contrario, desobedecer pode ser muitas vezes um ato civil de grande importancia. Nao hé cabime aferir que os mecanismos de resisténcia as opressées sociais, ao buscarem oportunidades de transformacdo a partir de atos discursivos ¢ expressivos indisciplinares, tenham o caos como objetivo ou como sabor. Pelo contrario: arquitetar narrativas desobedientes e cometer performances insurgentes, como acontece com a arte travesti, so marcos fundamentais no sentido de redimensionar estruturas sociais que se sustentam na desigualdade. ora, a insurreicdo de género, neste sentido, nada mais é do que uma poética que desnuda mecanismos disciplinares do cIStema na construcdo social e subjetiva do corpo e do pertencimento psicossocial. Entéo, a indisciplina ndo é um dispositivo simbélico da Justica que regula o género, mas 6 um expediente justo resultante de uma inversdo sensivel de paradigma sobre género. “Gigantesca tolice é simbolizar a Justica por uma mulher de olhos vendados quando ela deveria ter os olhos bem abertos para tudo ver e pesar” (BOAL, 2009, p.73). Se na sociedade brasileira o parametro fundamental para o respeito a processos performativos de género foi até aqui © da cisnormatividade, a disciplina decorrente do vexatério ndo reconhecimento institucional de pessoas transgéneras s6 pode configurar uma forma de injustica social. Ora, diante de uma injustica baseada na disciplinaridade, nas transgeneridades aventamos o paradigma de indisciplinaridades justas. De acordo com o Comité Invisivel (2016), a insurreicdo é destituicdo de privilégios sociais. vamos analisar qual a equacdo que associa a cisgeneridade A disciplina e a transgeneridade A indisciplina, e como a indisciplinaridade torna-se uma pedagogia fundamental em tempos de pandemia. © banimento de pessoas trans no servico militar dos Estados Unidos 6 exemplar para esta questdo: “Trump sé move para proibir a maioria de pessoas transgéneras de servir nas forcas armadas’”?. 2 Tradugdo livre de: “Trump moves to ban nost transgender people from gerving in military”. Disponivel em: hetp://thehill.com/homenews/ administration/3800S0—trump-bans-most-transgender-americans-fron— serving-in-the-military, acesso em 31/5/2020 4s 12h40, Porte Seguro - Braeil. HA instituicdo mais portadora da disciplina de género (ou qualquer forma de disciplina) que o Exército? “A Casa Branca emitiu um memorando sobre as politicas determinadas pelo secretario de Defesa Jim Mattis, afirmando que as pessoas transgéneras sdo ‘desqualificadas para o servico militar, exceto sob circunstancias limitadas’.”? Colocar explicitamente em questo a capacidade, © preparo ou qualquer outro quesito referente & condicdo de pessoas trans de fazer parte de um organismo legitimado de forca € nomear A sociedade: transgeneridade 6 uma aberracdo e nao deve pertencer aos espacos de ordem, ndo deve ter poder. A referida matéria jornalistica apresenta, ainda, dados sobre a quantidade de pessoas trans nas forcas armadas dos EVA: “Embora o nimero exato de individuos transgéneros no servigo ativo seja desconhecido, um estudo de 2016 da Rand Corporation encomendado pelo Pentagono estimou que o numero é de 1.320 a 6.630, com 830 a 4.160 outros servindo nas reservas.”* A participacdo na ordem disciplinar em circunstancias limitadas é apenas uma forma de suavizar a abjecdo que recai sobre o corpo trans. A transgeneridade & explicitamente perigosa para a ordem mundial capitalista. Historicamente, e ainda mais evidente neste momento de pandemia, quem reincide no erro de atribuir a existéncia de pessoas trans A indisciplinaridade é a propria cisnormatividade. Aqui precisamos reforcar a 3 Tradugdo livre de: “The White House issued 2 menorandum on policies determined by Defense Secretary Jim Mattie, stating that transgender people are ‘disqualified from military service except under limited circumstances’.” Disponivel em: http: //thehill.con/homenews/ administration/380050-trunp_bans-most-transgender-americans-fzom- serving-in-the-militery, acesso em 31/5/2020 as 12n40, Porto Seguro - Brasil. 4 Tzadugdo livze dei “While the exect number of transgender individuals in active duty service is unknoyn, 2 2016 Rand Corporation study commissioned by the Pentagon estimated the number to be anyvhere from 4,320 and 5,630, vith 930 to 4,160 others serving in the re Disponivel em: http://thehill .com/homeneys/administration/380050- ‘rump-bans-most-transgender-americans-from-serving-in-the-nilitary, accesso em: acceso en 91/6/2020 as 12h40, Porto Seguzo - Brasil. notagdo: 0 corpo 6 o campo de batalha da guerra da cisgeneridade contra a transgeneridade. & exatamente a disciplina de controle do corpo trans herdada da cisnormatividade (a transexualidade € seus expedientes de modificacdo corporal) que € 0 alvo explicito da tentativa de banimento de pessoas transgneras das forgas armadas estadunidenses norte-americanas. Vemos, em outro trecho do memorando emitido pelo presidente dos EUA, Donald Trump, a referéncia direta aos expedientes de modificacdo corporal como justificativa para desqualificar pessoas trans impedir sua inclusdo na ordem disciplinar de género em que se assentam as forcas armadas: “pessoas transgéneras com histérico ou diagnéstico de disforia de género — individuos que as politicas estabelecem poder exigir tratamento édico substancial, incluindo medicamentos e cirurgia’’. Pandemia e transgeneridades: fissuras e interrupgées temporais no CIStema Para elucidar aspectos em que desobediéncias de género séo interpostas pelas transgeneridades A cisnormatividade, observemos aspectos de temporalidade subjetiva e social presentes nos processes performativos de corporalidade e narratividade do género. No que se refere a participacdo dos processes corporais na matéria temporal de estética das transgeneridades, podemos aferir que se a disciplina se liga ao apressamento com o qual se deve negligenciar as potencialidades performativas de g8nero, a tnica maneira de inverter este quadro 6 a promoc4o da pausa e da interrupcéo como méecanismos indisciplinares de oposicdo a estrutura psicossocial cisnormativa § Traducéo livre de: “transgender persons with a history or diagnosis of gender dysphoria — individuals vho the policies atate may require substantial medical treatment, including medications and surgery”. Disponivel em: http://thehill.com/homenevs/administration/380050- erump-bans-most~transgendes-amezicans-from-serving-in-the-military, acesso em 31/5/2020 as 12h40, Porto Seguro - Bras de género (LEAL, 2018). A propésito, a fissura ea interrupedo sdo artificios vorazes que o coronavirus tem impingido atualmente ao CiStema. Perguntamos: como se desenham as corporalidades das performances de género no tempo social e no tempo da subjetividade pandémica? Como as nogées de justicga e de injustica se interpdem no espaco das disciplinaridades de género? £ possivel reconhecer na atividade indisciplinar um paradigma poético para a notagdo da autonomia narrativa e da autonomia corporal da constru¢do psicossocial de género apés a pandemia? De que forma a atividade de elaboracdo estética do género pela desobediéncia corresponde aos processos de interrupcdo temporal que o coronavirus promove no produtivismo do capital? Lepecki (2017) faz um acurado apanhado critico de como a politica do movimento do corpo estigmatizou tudo que se entende por danca no mundo ocidental Neste sentido, o estatuto do corpo problematizado nesta linguagem artistica acabou por corresponder e formar a propria nocdo de temporalidade relacionada ao corpo na sociedade industrial e pos-industrial disciplinares: a exaustdo como mecanismo de produtividade. Ora, segundo o autor, a coreografia, por exemplo, foi “uma invencgdo peculiar da modernidade, como uma tecnologia que ceria um corpo disciplinado para se mover de acordo com os comandos da escrita” (LEPECKI, Idem, p.30). Quanto a percep¢do hegeménica do ato de exaurir o movimento como forma redutora de apreender o corpo na feitura artistica e no cotidiano, temos: Na medida em que o projeto cinético da modernidade se torna a sua propria ontologia (sua inescapavel realidade, sua verdade fundamental), também o projeto da danca ocidental alinha-se mais ¢ mais A produgao e A exibicao de um corpo e de uma subjetividade adequados a representar essa motilidade desenfreada. (Lepecki, Idem, p.23) Aqui avaliaremos como esmaecimentos improdutivos da gestualidade e da fala sao propostas inescapaveis para fazer face ao projeto capitalista de mundo, posto em xeque na pandemia. No que se refere aos processos de género, a vertiginosa interrup¢ao do capitalismo A guisa da indisciplinaridade 56 pode se dar por propositividades corporais e narrativas que, ao mesmo tempo em que furam as hegemonias, procuram também perceber as dimensSes temporais desses furos. Obstrugées A cisnormatividade do capitalismo, desobediéncias de g&nero contra o capitalicismo. A arte travesti apdés—Calypso é uma pedagogia anticistémica da pandemia. ora, © que seria o capitalicismo sendo a maquina globalizada de produzir género a partir do érg4o genital? 0 modo apressado ¢ inconsequente com que © corpo humano se insere neste CIStema visa amparar mecanismos sofisticados e orquestrados de saber e de poder que se sustentam no género disciplinado. © conceito de permanéncia, trabalhado por Silveira (2017), indica que a pausa é lugar de acontecimento e que s6 hd continuidade quando a mudanga pode fruir. 0 tempo entendido pela permanéncia pode apresentar contrapontos 4 disciplina transexualizadora que exige um tempo linear de modificacdo corporal para se atingir determinado objetivo. 0 apressamento inscrito na produgao do corpo trans a obediéncia do processo transexualizador, em nivel médico-juridico, atropela processos que poderiam se substancializar a partir da experiéncia subjetiva e social, em jogo com as formas de recepcdo de género. Vejamos com mais detalhe como que, praticar a insisténcia, articulada a partir do pensamento da danca, pode nos apoiar a compreender a matéria de tratativa temporal da experiéncia de género e dos processos de modificacdo corporal: Encharcar-se, nesta pesquisa, tem a ver com vivenciar a insisténcia no osso, na carne, na pele, no suor. Encharcar— sé apresenta-se como um entendimento, mesmo qué ainda iniciante, de que desacelerar pode ser uma possibilidade de aprofundamento na questéo de origem. Encharcar-se talvez possa ser o resultado de um corpo que escolheu permanecer sentindo as singelas gotas. Um corpo que sente o molhar-se € ndo tem a intencdo de nada mais a nao ser molhar-se. Molhar- se de referéncias, de perguntas, de questées. Molhar-se apenas. Quanto tempo va para que um corpo se encharque na garoa? (SILVEIRA Idem, p.128). A ideia do mover insistente nos aproxima justamente do esgarcamento temporal operado por travestis, vistas como abjetas por n4o constituirmos uma transgeneridade hegeménica, por sermos indisciplinares. Desobedecemos a cronologia de tempo da transexualizacdo desorganizando sequéncias ou protocolos de modificagdo corporal em fungdo da transi¢do de género. A temporalidade travesti € desobediente aos padrées e expectativas nos quais se assenta o projeto totalizante de género da cisnormatividade institucional. No A toa, da mesma forma como trabalhos artisticos que ndo tém pressa de acontecer sdo vistos como improdutivos, e da mesma forma como 0 governo Bolsonaro se incomoda com a improdutividade associada ao isolamento social no periodo de pandemia, os corpos que ousam desconhecer-se, desconhecer a logica que os faz conhecidos dentro de paraémetros que ndo lhes dizem respeito, sdo tidos como corpos inlteis. A indisciplinaridade travesti tem correspondéncia com as indisciplinaridades que s&o inerentes aos processos corporais. & indispensavel perguntarmos sempre: qual o lugar e o tempo requerido dos corpos trans na sociedade? Simuitaneamente com seu caréter corpéreo, subjetivo, o trabalho significa a insercdo obrigatoria do sujeito no sistema de relacdes econémicas e sociais. Ble é um emprego, néo sé como fonte salarial, mas também como lugar na hierarquia de uma sociedade feita de classes e de grupos de status (BOSI, 1994, p.471). Ora, se hé uma exigéncia cada vez mais sofisticada no capitalismo ocidental de que os corpos deven servir a uma produtividade, perguntamos: como se dé © delineamento informacional de género dos corpos apés a pandemia? Os corpos trans, improdutivos as conformidades palataveis e genitalizantes da cisnormatividade, s&0 vistos como excessivos. Aqui avaliamos o fator econémico de improdutividade, subjacente ao inflacionamento gestual-discursivo das transgeneridades. Ndo & toa, pessoas trans somos vistas pela cisnormatividade como demasiadas, desproporcionais. Dai depreendemos que a dinamica entre a oferta ¢ a demanda de informacdo de género tem uma tensao na qual os expedientes de recepgdo cis proferem desconfortos com os excessos de contetido da performance trans. Tal estatuto de sobrecarga de informacdo, que Ribeiro (2017) define como infobesidade, € 0 aspecto que salta aos olhos da cisgeneridade normativa sobre as transgeneridades: pessoas trans sdo lidas a partir de uma nogéo de infobesidade de género. Percebemos aqui uma relacdo direta da opressdo que recai sobre pessoas trans por conta do “excesso” de informacées improdutivas ao CIStema com a opress&o que recai sobre pessoas gordas por conta do “excesso” de peso improdutivo a sociedade magroc&ntrica. A estética travesti e o trafico de informacdes: a faléncia da disciplina cis-colonial © prefixo TRANS ndo cai bem com algumas palavras, sobretudo as tipicas da cisnormatividade. Disciplina talvez seja o exemplo mais voraz desta condicdo. A compartimentalizagéo dos saberes, um dos desdobramentos do racionalismo cientifico iluminista, ganha na industrializacdo da sociedade um assentamento inconteste: a especializacdo, 0 foco e a produtividade do conhecimento. Por conseguinte, a faléncia da caracterizacio monodisciplinar do conhecimento foi sendo posta em evidéncia ao longo de todo o século Xx. 0 género e a corporalidade, que haviam se tornado alvo de disciplinarizacdo no trabalho industrial, foram ganhando no século passado perspectivas que eruzavam diferentes areas do saber. No entanto, pelo fato de todas as 4reas do saber legitimado guardarem como heranga a disciplinarizacdo ndustrial produtivista de género, um olhar para o que escapa desta ordem hegeménica ndo poderia se bastar a cruzar diferentes Areas (multi, inter, trans) e manter a disciplina. Numa visdo critica contemporanea percebemos que, para efetivar o eruzamento de diferentes Areas, é necessario dizemos com todas as palavras: romper com a perspectiva disciplinar do conhecimento. A faléncia da monodisciplina se apresenta ha décadas em diferentes areas do conhecimenta. Com o corpo, a situacgdo se repete, mas exigindo, para além de uma multi, inter ou transdisciplinaridade, uma indisciplinaridade que permita ao/a pesquisador/a (ou ao/a artista ou a quem quer que se empenhe na discussdo sobre 0 corpo) explorar com malicia, audacia e argicia as secretas gavetas que acondicionam conhecimentos ou argumentos até entdéo de acesso reservado aos/as especialistas. (OLIVEIRA, 2017a, p.20). # preciso retomar uma pergunta que fizemos antes: Mas para que serve uma travesti? Para que serve a arte? Para nada. A inutilidade das transgeneridades para o projeto cis-colonial nos faz perceber que o atravessamentc dos processos psicossociais de construcgdo de género entre diferentes areas legitimadas do saber visa instaurar a critica sobre os préprios processos de legitimacgado dos saberes. 0 esgarcamento arborescente dos modos de produzir saber travesti @ um perigo declarado As doutrinas legitimadas de saber que disputaram historicamente a exclusividade sobre os estudos do corpo trans. © corpo humano, compulsoriamente cisgenerificado ao nascer, chega a ser quase que refém das prospec¢ées em que as epistemologias produtivas o enquadram em seus processos de género. Como tirar a reserva de mercado das 4reas que se favorecem da apropriacdo do corpo e do género e da privatizacdo destes saberes? Ora, Greiner e Katz (2005, p.126) sumarizam com precisdo no termo corpomidia o modo indisciplinar do corpo a partir dos saberes que ihe s&o proprios: Para tratar do corpo, n&o basta o esforco de colar conhecimentos baseados em disciplinas aqui ¢ ali. Nem trans nem interdisciplinaridade se mostram estratégias competentes para a tarefa. Por isso, a proposta de abolic&o da moldura da disciplina em favor da indisciplina que caracteriza o corpo Como podemos apreender as formas de inutilidade de género na sociedade pos-coronavirus? Ha teatralidade possivel para desobedecer ao género durante a pandemia? Oliveira (2017b) e Paiva (1990) articulam como a divisdo social do trabalho ceria e sedimenta lugares e papéis de género que promovem garantias econémicas e produtivas ao mundo ocidental. Neste contexto, 6 inevitaével que modos de producdo artistica que denunciam sistemas hegeménicos tenham inutilidade social semelhante ds estéticas performativas e receptivas de género que ndo se assentam na dicISplinaridade. A evanescéncia das artes cénicas e a intangibilidade do corpo trans aos olhos da cisnormatividade tornam ambas as categorias estruturalmente neomerciaveis: Uma vez que o ‘setor’ cultural fica cada vez mais submetido a lei da comerciabilidade ¢ rentabilidade, cabe notar uma desvantagem adicional do teatro, representada pelo fato de que ele ndo cria um produto téo palpavel e consequentemente tao facil de circular e comercializar quanto um video, um filme, um disco ou mesmo um livro. (LEHMANN, 2007, p.18) Enquanto o aparato de género dramAtico do Estado procura garantir as condi¢ées de controle da temporalidade dos corpos a partir do paradigma social e subjetivo da cisnormatividade, ha impedimentos palpaveis e politicos para a circulacdo de informagSes dissidentes e diasporicas, as quais so caracteristicas préprias da poética épica. “E jd que eu estava proibida de falar, eu tive que produzir trafico. 0 trafico de informagdo. E eu faco isso através da minha misica”*. Neste sentido, o pensamento travesti @ sempre um trdfico de informacdo. Os modos narrativos de vivéncias perturbadoras a ordem disciplinar do mundo académico cIstémico so incapturaveis pelos modos dominantes de produzir corpo, de produzir saber, de produzir corpo- género, de produzir saber-género. Neste sentido, o € Linn da Quebrada em Berlin, video que registra o discurso de Linn 20 teceber prémio com relaglo eo filme Bina Travesty. Disponivel em: hetps: //wnw. youtube. com/watch?v=ns62fLTZr w, acesso em 31/5/2020 as 42h01, Porto Securo - Brasil. expediente invasivo das transgeneridades no quadro das institucionalidades hegeménicas de género se baseia ndo em suas ficcdes dram4ticas, mas produz friccées épicas, tais quais Linn da Quebrada enuncia, citada na epigrafe do texto: “Em vez de produzir ficgéo, eu prefiro produzir friccao”. Mais sobre o apds-Calypso travesti A construg&o poética do saber travesti é carregada de narratividade de resisténcia. Ao aventar o tempo da insurrei¢do do apds-calypso pandémico, a arte travesti desestabiliza a estrutura de normatizacdo de movimento e de produtividade na qual se inscreve o género na institucionalidade atual do CIStema. Os choques desobedientes aqui expressos no avesso do avesso das palavras se opéem a industrialidade mecatrénica disciplinar na qual se inscreve o género produtivo; o género improdutivo é, entdo, metacrénica indisciplinar travesti. & possivel friccionar disciplinas de género sem por em risco narrativamente o projeto colonizador eapitalicista? A insurg&ncia de pronunciar o instante do corpo travesti ameacado pela pandemia do coronavirus € um ato crénico que se aproveita do fluxo do produtivismo para promover-lhe devires improdutivos. A teatralidade negativa da poética épica tem na indisciplina de g&nero uma temporalidade de corpo que desvela os modos de violagdo de direitos pelo Estado. A teatralidade positiva da poética dramatica, por sua vez, se sustenta na ficcdo ilusionista contornada de comogao @ convencimento. Esta é a biopolitica de género que tem seu proprio contraponto dramatico necropolitico: a gestao de vidas que devem ser vividas se dé pela comodo e pelo convencimento em paralelo a gestdo das mortes que devem ser morridas. Dado que o Estado brasileiro é fAlico (neca) e machista, vivemos aqui n&o somente a necropolitica, mas a necapolitica. Referéncias BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido - reflexdes errantes sobre o pensamento do ponto de vista estético ¢ nao cienti. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. BOSI, Ecléa. Meméria e sociedade: lembrancas de velhos. 3ed. S&o Paulo: Cia das Letras, 1994. COMITE INVISIVEL. Aos nossos amigos: crise e insurreicéo. S40 Paulo: n-1 edicées, 2016. GREINER, Christine. KATZ, Helena. Por uma teoria do corpomidia. In: Greiner, Christine. 0 corpo: pistas para estudos indisciplinares. Sao Paulo: Annablume, 2005. LEAL, Dodi. LUZVESTI: iluminagdo cénica, corpomidia e desobediéncias de género. Salvador: Devires, 2018. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pés-Dramdtico. 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Dissertacdo (Mestrado em Artes cénicas). S40 Paulo: Escola de Comunicagoes e artes da Universidade de Sao Paulo, 2017. Dodi Leal é travesti educadora e pesquisadora em Artes Cénicas. Professora Adjunta do Centro de Formagdo em Artes (CFA) da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Doutora em Psicologia Social (IP-USP) e Licenciada em Artes Cénicas (ECA-USP). Dedica-se aos estudos da performance e visualidades da cena e do corpo, perpassando por agées de critica teatral, curadoria e pedagogia das artes.

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