Capitulo 1
Que Queremos Dizer
com “Culto Cristio”?
Px se falar de modo inteligente sobre “culto cristéo”, é preciso
decidir primeiro 0 que o termo significa exatamente. Néo é uma
expressdo facil de definir. Mas enquanto no se fizer uma reflexio
sobre 0 que distingue o culto cristao auténtico, é facil confundir esse
culto com acréscimos irrelevantes de culturas atuais ou passadas em
que os cristéos celebraram culto.
Em primeiro lugar, a propria palavra “culto” ja 6 exasperadoramente
dificil de se definir. O que distingue o culto de outras atividades huma-
nas, particularmente daquelas que se caracterizam por sua freqiiente
repeticaéo? Por que o culto é uma atividade diferente das tarefas didrias
ou de qualquer ato habitual? Mais especificamente, qual é a diferenga
entre o culto e outras atividades que se repetem na propria comunidade
crista? Por exemplo, 0 que distingue o culto da educag&o crista ou de
obras de caridade?
Em segundo lugar, depois de resolver 0 que queremos dizer com
“culto”, como vamos determinar o que torna tal culto “cristéo”?
Nossa cultura esté cheia de varios outros tipos de culto. Diversas
religides orientais foram introduzidas em muitas comunidades.
Muitas praticam culto, porém obviamente ele nao é cristéo. Quais
caracteristicas distintivas tornam “crist&éo” este ou aquele culto?
Alias, sera sempre “cristéo” todo culto celebrado pela comunidade
crista?
Nenhuma dessas questées é facil de se resolver, mas elas certamente
precisam ser examinadas. E n&o séo pura e simplesmente assunto
especulativo de interesse apenas teérico. A definig&o do que caracteri-
za especificamente o culto cristéo é uma ferramenta pratica vital para
qualquer pessoa que tenha a responsabilidade de planejar, preparar ou
conduzir o culto cristéo. Em anos recentes, o aparecimento de muitas
formas novas de culto fez com que este tipo de anélise basica se tornas-
se ainda mais crucial para as pessoas encarregadas do ministério do
culto. Elas precisam constantemente participar de decisdes ao servi-
11Introdugio ao Culto Cristéo
rem & comunidade crista através da conducdo do culto. Quanto mais
pratica é a decisio, tanto mais necessaria se torna muitas vezes a
fundamentag&o teorica. Sera determinado ato, como por exemplo 0 voto
de lealdade 4 bandeira nacional, adequado dentro de um culto cristéo?
Ou estar4 fora de lugar? Deveriam outros atos, como a celebragéo da
adogiio de uma crianga, que nao temos habitualmente incluido no culto,
ter um lugar na vida cultual da igreja? Ou é algo impréprio no culto
cristéo? Somente tendo uma definicdo funcional de “culto cristéo” é que
se pode enfrentar esse tipo de problema.
Explorarei trés métodos para esclarecer 0 que queremos dizer com
“culto cristéo”. Tenho sentido cada vez mais que a abordagem mais
adequada é a fenomenolégica, a qual simplesmente relata e descreve o
que os cristéos em geral fazem ao se reunir para o culto. Embora este
possa parecer o método mais simples e direto, a observacéo cuidadosa
6 essencial se quisermos entender exatamente o que significam de fato
as estruturas ou oficios que os cristéos usam repetidas vezes para 0
culto. A maior parte deste livro se concentrara na descrigao do desenvol-
vimento, da teologia e do uso de estruturas ou oficios que est&o efetiva-
mente em pratica. Em segundo lugar convém explorar algumas defini-
g6es de maior abstrag&o, as quais uma série de pensadores cristéos
usaram para expor o que entendem ser o culto crist&io. E um terceiro
método consistiré em examinar algumas das palavras-chave que os
cristéos escolhem com maior freqiiéncia (em diversos idiomas) para
expressar 0 que experimentam como culto. Esses trés métodos deve-
riam forgar-nos a refletir sobre o que queremos dizer quando falamos
de “culto cristaéo”. E finalmente, antes de aceitarmos defini¢oes demasi-
ado simples, precisamos considerar também alguns dos fatores que
proporcionam tanto diversidade quanto constAncia ao culto cristo.
O Fenémeno do Culto Cristio
Uma das melhores maneiras de resolver 0 que queremos dizer com
culto cristéo é descrever as formas exteriores e visiveis através das
quais os cristéos praticam culto. Esta abordagem encara todo o fenéme-
no do culto cristéo como ele poderia se apresentar a um observador
desvinculado e alheio tentando entender o que é que os cristéos fazem
ao se reunir.
Isto fica mais facil pelo fato de que, apesar de ocorrer em diferentes
culturas e épocas histéricas, 0 culto cristio tem utilizado formas nota-
velmente estaveis e permanentes. Designaremos essas formas como
estruturas (como um calendario para organizar o culto ao longo de um
ano) ou oficios (como a ceia do Senhor). Apesar de constantes adapta-
12Que Queremos Dizer com “Culto Cristaéo”?
gdes, elas tém demonstrado notavel durabilidade. Uma maneira de des-
crever 0 culto cristéo 6 simplesmente alistar (como faremos agora)
essas principais estruturas e oficios. Nao precisamos entrar em gran-
des detalhes aqui, uma vez que a maior parte dos outros capitulos do
livro o farao de forma bem mais aprofundada.
Mesmo dentro do Novo Testamento vemos indicagées da existéncia
de uma estrutura semanal do tempo. Essa estrutura foi elaborada cedo,
em diversos calendarios anuais para comemorar eventos na memoria da
comunidade crist4: a morte e ressurreig&o de Cristo, por exemplo, e
atos em memoria de diversos mArtires locais. Posteriormente elabora-
ram-se horarios diarios para a orac&o publica e particular. A programa-
cao temporal diaria, semanal e anual continuam sendo componentes
importantes do culto cristao; a sua utilizagdo sera estudada no capitulo
2. Mas, tendo em vista nosso objetivo imediato, j4 podemos dizer que 0
culto cristao é um tipo de culto que se baseia fortemente na estruturagao
do tempo para cumprir seus objetivos.
Da mesma forma como julgaram necessério estruturar o tempo, os
cristéos sempre acharam conveniente organizar o espago para abrigar
e possibilitar seu culto. Embora diversas formas tenham sido experi-
mentadas ao longo dos séculos e em diferentes culturas, as exigéncias
em termos de espacgo e mobiliario também tém sido notavelmente con-
sistentes. A elas nos dedicaremos no capitulo 3.
Antigo e continuo é o uso de um pequeno numero de tipos basicos de
oficios. Em primeiro lugar estéo os oficios de oragéo publica diaria.
Eles podem tomar varias formas (como veremos no capitulo 4), mas a
fung&o de orag4o e louvor faz deles um componente caracteristico do
culto cristéo,
Outro tipo de oficio tem seu foco na leitura e pregagdo da Escritura,
sendo por isso muitas vezes denominado “liturgia da palavra”. B conhe-
cido como o culto dominical protestante habitual; também é a primeira
parte da eucaristia ou ceia do Senhor. Examinaremos as formas deste
tipo basico de oficio no capitulo 5. Ele constitui um tipo constante, que
muitos cristéos identificariam como sua experiéncia primordial do que
€ culto cristao.
Praticamente toda comunidade cristé tem meios de distinguir entre
as pessoas que fazem parte dela e as estranhas. Em termos de culto,
isto ocorre em varias cerimOnias de iniciaco crista.O batismo é o mais
amplamente conhecido desses ritos, porém a catequese, confirmag&o,
primeira comunhdo e varias formas de renovag&o, afirmagio ou
reafirmacaio do compromisso batismal também s4o partes importantes
do processo ritual. Nos ultimos anos a maioria das denominacées cris-
t&s teve que repensar sua teologia e pratica para o preparo de um
cristao, conforme veremos no capitulo 7.
13Introdugao ao Culto Cristio
Desde os tempos do Novo Testamento temos testemunho de cristéos
reunindo-se para celebrar o que Paulo chama de “ceia do Senhor” (1 Co
11.20). Para muitos cristaos esta é a forma arquetipica do culto cristao.
Somente uma pequena minoria evita celebra-la em formas exteriores.
Em muitas igrejas ela ¢ uma experiéncia semanal ou mesmo didria. O
capitulo 8 se ocuparaé das formas e do significado da ceia do Senhor.
Finalmente, existe uma variedade de ritos pastorais comuns, sob
uma ou outra forma, a quase todas as comunidades cristds cultuantes.
Alguns deles assinalam etapas na jornada da vida que podemos ou nfio
repetir: oficios de perd&o e reconciliag&o, ou oficios de cura e béngao
para os doentes e moribundos. Outros s&o ritos de passagem como
casamentos, ordenagées, profissdo religiosa ou funerais. Muitos desses
ritos pastorais so oficios ocasionais celebrados apenas quando a oca-
sido assim exige. Muitas etapas e experiéncias da vida sio comuns a
todas as pessoas, sejam elas crist&s ou nfo. Oficios ocasionais para
assinalar essas jornadas ou passagens encontraram lugar permanente
no culto cristéio. Exploraremos esses ritos pastorais no capitulo 9.
Obviamente, essas sete estruturas e oficios basicos nao cobrem todas
as possibilidades do culto cristéo, mas descrevem efetivamente a vasta
maioria de casos que esse culto ocorre. Podem-se acrescentar a elas
diversos encontros para oragdo, concertos sacros, reavivamentos, novenas
e uma ampla gama de devogées. Mas na maior parte do cristianismo
todos estes elementos so claramente subsidiérios em relagio aos sete
mencionados e s&o até certo ponto dispensdveis. Conseqiientemente,
nossa exposicéio neste livro se ocupara sobretudo das sete estruturas e
oficios basicos, mencionando ocasionalmente outras possibilidades.
Assim, nossa primeira resposta para a pergunta: “Que é culto cris-
tao?” 6 simplesmente relacionar e descrever as formas basicas que ele
assume e dizer que estas s&o as que melhor o definem. Mas precisamos
investigar também outras abordagens.
Definigées de Culto Cristao
Nossa inteng&o ao examinar as varias maneiras como diferentes
pensadores crist&os falam sobre o culto cristéo nao é fazer um estudo
comparativo, mas estimular a reflexio. A melhor maneira de se enten-
der o significado de qualquer termo é observa-lo em uso, ao invés de dar
uma simples definigaéo. Portanto, daremos uma olhada por sobre os
ombros de pensadores protestantes, ortodoxos e catélicos para ver
como usam o termo. Nenhum dos seus variados usos do termo exclui
outros. Freqiientemente eles se sobrepdem, mas cada uso acrescenta
novas percepgées e dimensées, complementando assim o resto. Este
esforco de dizer o que queremos dar a entender e de dara entender o que
14Que Queremos Dizer com “Culto Cristéio”?
dizemos é um esforgo continuo, sujeito a revisdio & medida que nossa
compreensao do culto cristéo amadurece e se aprofunda
O professor Paul W. Hoon deu uma grande contribuicéo para os
estudos liturgicos em seu importante livro The Integrity of Worship,
publicado em 1971. Escrevendo a partir da tradicgéo metodista, Hoon
preocupa-se com “discernimento teolégico bem como sensibilidade para
culturas”. Do principio ao fim ele enfatiza o centro cristologico do culto
cristao, o qual “por definic&o é cristologico, e a analise do significado
do culto também precisa ser fundamentalmente cristolégica”’. Tal culto
6 profundamente encarnacional por ser governado por todo o evento de
Jesus Cristo. O culto cristéo esta vinculado diretamente aos eventos da
historia da salvacéo. Cada evento nesse culto esta ligado diretamente
ao tempo e 4 historia enquanto cria pontes para eles e os traz para
dentro do nosso presente. O “nucleo do culto”, diz Hoon, “é¢ Deus agindo
para dar sua vida ao ser humano e para levar o ser humano a participar
dessa vida”. Por isso, tudo que fazemos como individuos ou como igreja
€ afetado pelo culto. A vida crista, afirma Hoon, é uma vida liturgica.
Hoon sustenta que “o culto cristéo é a auto-revelagio de Deus em
Jesus Cristo e a resposta do ser humano”, ou uma acdo dupla: a aco de
“Deus para com a alma humana em Jesus Cristo e a aco responsiva do
ser humano através de Jesus Cristo”. Por meio de sua palavra, Deus
“revela e comunica seu proprio ser 20 ser humano”. As palavras-chave
na compreensao de Hoon a respeito do culto cristéo parecem ser “reve-
lagéo” e “resposta”. No centro de ambas esta Jesus Cristo, que revela
Deus a nés e por meio do qual damos a nossa resposta. Trata-se de uma
relag&o reciproca: Deus toma a iniciativa dirigindo-se a nés por meio de
Jesus Cristo e nés respondemos por meio de Jesus Cristo, usando uma
variedade de emocées, palavras e agées.
O pensamento de Peter Brunner, tedlogo luterano que lecionou por
muitos anos na Universidade de Heidelberg, é paralelo ao de Hoon em
muitos aspectos, porém ele se expressa em termos bastante diferentes
em sua importante obra Worship in the Name of Jesus. Brunner desfruta
da clara vantagem de usar o termo alemdo para designar 0 culto,
Gottesdienst, que tem tanto a conotacg&o de servigo de Deus aos seres
humanos quanto a de servigo dos seres humanos a Deus. Brunner apro-
veita essa ambigiiidade e fala da “dualidade” do culto. O cerne do livro
consiste em dois capitulos intitulados “Culto como servigo de Deus 4
comunidade” e “Culto como servigo da comunidade perante Deus”. Nes-
ta dualidade vemos similaridades com os conceitos de revelagao e respos-
tade Hoon, porém mais uma vez € necess4rio cautela, uma vez que Deus
é atuante em ambas. Do inicio ao fim, é Deus sozinho que torna o culto
possivel: “A dadiva de Deus evoca a entrega humana a Deus.”*
A autodoagéo de Deus ocorre tanto em eventos histéricos passados
quanto na atual “realidade-palavra do evento” no qual até mesmo a obra
15Introdug&o ao Culto Cristao
humana da proclamagio é, a rigor, ac&éio de Deus. O mesmo se aplica aos
sacramentos, nos quais, por meio das nossas agées, 6 Deus que atua.
Brunner cita Lutero, que declara, a respeito do culto, “que nele nenhu-
ma outra coisa aconteca exceto que nosso amado Senhor ele proprio
fale a nés por meio de sua santa palavra e que nos, por outro lado,
falemos com ele por meio de oragéo e canto de louvor”. Os seres huma-
nos respondem aos atos divinos de revelac&o falando a Deus pela ora-
do e pelos hinos “como ato da nova obediéncia conferida pelo Espirito
Santo”. A oracdo, diz Brunner, “é a permissdo que Deus déa Seus filhos
de juntar suas vozes 4 discussio das Suas questées”. Assim sendo, a
dualidade do culto, para Brunner, é encoberta por um foco unico, que &
a atividade de Deus tanto em se nos autodoar quanto em instigar nossa
resposta as suas dadivas.
Como nossos outros pensadores, o professor Jean-Jacques von Allmen
afirma a base cristolégica do culto cristfio em seu importante livro O
Culto Cristéo: Teologia e Pratica. Escrevendo dentro da tradic&o refor-
mada, este ex-professor da Universidade de Neuchatel na Suiga defende
vigorosamente a compreensao do culto cristféo como a recapitulacéo
daquilo que Deus ja fez. O culto, diz ele, “resume e confirma sempre de
novo a histéria da salvag&o cujo ponto culminante se encontra na inter-
vengio encarnada do Cristo. Nesse resumo e confirmagao reiterados, o
Cristo continua sua obra salvadora por meio do Espirito Santo”. Tal
culto esta estreitamente ligado a crénica biblica dos eventos salvificos.
Ele proporciona uma sintese renovada do que Deus fez e uma antecipa-
Gao renovada do que ainda viré a ser.
A descrigéo de von Allmen acerca do culto da igreja apresenta
outros aspectos importantes. O culto é a “epifania da igreja”, a qual,
visto que resume a historia da salvagdo, capacita a igreja a “tornar-se
ela mesma, tomar consciéncia de si mesma e se confessar entidade
especifica”. A igreja ganha sua identidade no culto na medida em que
sua verdadeira natureza é tornada manifesta e ela é levada a confessar
sua propria esséncia. Poreém o mundo também é profundamente afeta-
do pelo culto cristéo. O culto é ao mesmo tempo ameaga de juizo e
promessa de esperanga para o proprio mundo, mesmo que a sociedade
secular professe indiferenca em relaciio aquilo que os cristos fazem
quando se reinem. O culto cristéo contesta a justia humana e aponta
para o dia em que todas as conquistas e fracassos serao julgados,
oferecendo, porém, esperanca e promessa pela afirmag&o de que, em
ultima analise, tudo esta nas m&os de Deus. Para von Allmen, 0 culto
cristéo tem trés dimensées-chave: recapitulacéo, epifania e juizo.
Escrevendo a partir da tradig&o anglo-catolica, Evelyn Underhill pu-
blicou seu classico estudo Worship em 1936. Ela expressou uma série
de concep¢ées de que ja tratamos, apresentando, porém, algumas per-
cepcées distintas. Seu livro principia com as palavras: “O culto, em
16Que Queremos Dizer com “Culto Cristao”?
todos os seus graus e tipos, é a resposta da criatura ao Eterno.” O ritual
pelo qual se expressa todo culto publico emerge, diz ela, “como uma
emogao religiosa estilizada”. O culto se caracteriza pela “concepcéo do
cultuante a respeito de Deus e sua relagéo com Deus”. O culto cristéo se
distingue por ser “sempre condicionado pela crenga crista; e particular-
mente pela crenga sobre a natureza e a acéo de Deus, resumida nos
grandes dogmas da trindade e da encarnagao”. Outra caracteristica do
culto cristéio 6 seu “carater profundamente social e organico”, o que
significa que ele nunca é um empreendimento solitario.
Longe de ser culto em geral, “o culto cristéo”, declara ela, “6 uma
ac&o sobrenatural, uma vida sobrenatural” implicando “uma, resposta
bem definida a uma revelagao bem definida”. O culto cristéo tem um
carater concreto, pois somente por meio do “movimento do Deus perma-
nente em dirego a sua criatura é dado o incentivo para o mais profun-
do culto do ser humano e é feito o apelo para seu amor sacrifical (...)
Oragao e (...) agéio sao maneiras pelas quais ele responde a essa mani-
festacéio da Palavra.”*
Idéias um tanto semelhantes s4o expressas a partir da perspectiva
ortodoxa pelo falecido professor Georg Florovsky: “O culto cristéio 6 a
resposta dos seres humanos ao chamado divino, aos ‘prodigios’ de
Deus, culminando no ato redentor de Cristo.”* Florovsky faz questdo de
enfatizar a natureza comunitaria desta resposta ao chamado de Deus:
“A existéncia crist& é essencialmente comunitaria; ser cristéo significa
estar na comunidade, na igreja.” E nesta comunidade que Deus atua no
culto, tanto quanto os préprios cultuadores. Como resposta & obra de
Deus tanto no passado quanto em nosso meio, “o culto cristéo é primor-
dial e essencialmente um ato de louvor e adorag&o, que também implica
grato reconhecimento pelo amor abrangente e bondade redentora de
Deus”®,
Essas idéias séo reforgadas por outro tedlogo ortodoxo, Nikos A.
Nissiotis, que enfatiza a presenga e as agdes da trindade no culto.
Declara ele: “O culto néo é primordialmente iniciativa do ser humano,
mas ato redentor de Deus em Cristo por meio do seu Espirito.”” Da
mesma forma que Brunner, Nissiotis enfatiza a “absoluta prioridade de
Deus e seu ato”, que os seres humanos somente podem reconhecer. Pelo
poder do Espirito Santo, a igreja como corpo de Cristo pode oferecer 0
culto que é agradavel como ato tanto proveniente da trindade quanto
direcionado para ela.
Em circulos catélicos romanos tem sido comum descrever 0 culto
como “a glorificagaio de Deus e a santificagaio da humanidade”. Esta
expressdo provém de um motu proprio classico de 1903 sobre musica
na igreja, de autoria do papa Pio X, no qual ele falou do culto como
sendo para “a gloria de Deus e a santificagao e edificagao dos fi¢is"*. O
papa Pio XII repetiu esta express&o em sua enciclica de 1947 sobre o
17Introdugao ao Culto Cristio
culto, intitulada Mediator Dei. A mesma definic¢fio aparece com fre-
qiiéncia na Constituigéo sobre a Sagrada Liturgia do Vaticano Il, de
1963, que “em mais de 20 passagens corrige a definigéo anterior de
liturgia e fala primeiro da santificagdo do ser humano e ent&éo da
glorificagéo de Deus”*. Esta inversao de ordem langa a insistente per-
gunta: o que tem precedéncia, a glorificagéio de Deus ou tornar santas as
pessoas? Muitos dos debates sobre 0 culto em anos recentes tém girado
em torno dessa questdo, que é particularmente pertinente para os musi-
cos de igreja.
Deveria o culto ser a oferta dos nossos melhores talentos e artes a
Deus, mesmo que em formas inusitadas ou mesmo incompreensiveis
para as pessoas? Ou deveria, antes, articular-se em linguagem e estilos
familiares de modo que o significado seja captado por todos, embora o
resultado seja artisticamente menos impressionante? Felizmente essas
alternativas sAo falsas. Glorificagao e santificag&io formam uma unida-
de. Ireneu nos diz que a gloria de Deus é um ser humano plenamente
vivo. Nada glorifica a Deus mais do que um ser humano tornado santo;
nada tem maior probabilidade de tornar santa uma pessoa do que 0
desejo de glorificar a Deus. Tanto a glorificagéo de Deus quanto a
santificagdo das pessoas caracterizam 0 culto cristéo. Tensdes aparen-
tes entre elas sio superficiais. O uso que Hoon faz dos conceitos de
revelacao e resposta langa luz sobre isto: é preciso abordar as pessoas
em termos que elas possam compreender, e elas precisam expressar
seu culto em formas que tenham integridade. Tanto a abordabilidade
quanto a autenticidade fazem parte do culto. Além disso, pessoas artis-
ticamente ingénuas muitas vezes criaram arte elevada pela sinceridade
de sua expressio.
Outra maneira de se falar sobre o culto cristao tornou-se comum em
anos recentes. Trata-se da tendéncia a descrever 0 culto cristio como “o
mistério pascal”. Boa parte da popularidade deste termo se deve aos
escritos de Odo Casel, O.S.B., monge beneditino alemao falecido em
1948. As raizes desse termo sao tao antigas quanto a igreja. O mistério
pascal é 0 Cristo ressurreto presente e ativo em nosso culto. “Mistério”
neste sentido é a auto-revelacdo divina daquilo que ultrapassa o enten-
dimento humano, a revelagéio do até entao oculto. O elemento “pascal” &
o ato redentor central de Cristo em sua vida, ministério, sofrimento,
morte, ressurreicdo e ascensio. Podemos falar do mistério pascal como
a comunidade cristé compartilhando os atos redentores de Cristo ao
celebrar culto.
Casel discorre sobre a maneira em que os cristéos vivem, por meio do
culto, “nossa propria historia sagrada”. Quando a igreja comemora os
eventos da historia da salvagao, “o proprio Cristo esté presente e age
por meio da igreja, sua ecclesia, enquanto ela age com ele”*”. Assim,
esses mesmos atos de Cristo voltam a tornar-se presentes com todo o
18Que Queremos Dizer com “Culto Cristéo”?
seu poder para salvar. O que Cristo realizou no passado volta a ser
concedido A pessoa que presta culto, para que o experimente e aproprie
no tempo atual. E uma forma de viver com o Senhor. A igreja apresenta
o que Cristo realizou por meio da nova representagdo desses eventos
pela comunidade cultuante. A pessoa participante do culto pode assim
voltar a experiencia-los para sua propria salvacdo.
Cada uma dessas diversas definigdes é apenas uma estacdo no trajeto
do/a proprio/a leitor/a rumo a uma compreensao pessoal do culto cristao.
¥ preciso ficar aberto para descobrir outras definigdes e chegar a uma
compreens&o mais profunda das mesmas, A medida que se continua a
fazer experiéncias e refletir sobre 0 que define o culto crist&o.
O Linguajar Cristo sobre o Culto
Outra maneira util de esclarecer 0 que queremos dizer com “culto
cristo” é verificar algumas palavras-chave que a comunidade crista
escolheu para falar sobre seu culto. Muitas vezes essas palavras eram
de origem secular, mas foram escolhidas como 0 meio menos inadequa-
do de expressar o que a comunidade reunida experimentava no culto.
Hé uma rica gama dessas palavras em uso no passado e na atualida-
de. Cada palavra e cada idioma acrescentam nuangas de significado que
complementam os outros. Um rapido apanhado dos termos mais ampla-
mente usados com relacdo ao culto em diversas linguas ocidentais pode
mostrar as realidades que esto sendo expressas.
Ja nos deparamos com uma palavra importante, o termo alemio
Gottesdienst. Trata-se de uma palavra da qual a lingua inglesa poderia
ter inveja. Para reproduzi-la, 6 necessério um punhado de palavras do
vernaculo: “o servigo de Deus e nosso servigo para Deus”. O equivalen-
te a “Deus” (Gott) pode-se discernir, porém menos familiar € dienst.
Pessoas viajadas a reconhecer4o como a palavra que identifica postos
de gasolina em terras germAnicas. Servigo é o equivalente mais aproxi-
mado, e é interessante que também em inglés esta palavra é usada
tanto para referirse a servigo no sentido de culto quanto a postos de
gasolina. “Servigo” significa algo feito para outros, nfo importa se
estamos falando de servico doméstico, servigo municipal de agua e
esgoto ou servigo social. Ele reflete o trabalho prestado ao publico,
mesmo que geralmente a troco de ganho particular. Em ultima andlise
ele vem do termo latino servus, um escravo que era obrigado a servir
outras pessoas. O termo oficio, do latim officium, servico ou tarefa,
também é usado para designar um servico de culto. Gottesdienst refle-
te um Deus que “esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condic¢&o de servo”
(Fp 2.7), bem como nosso servico para tal Deus.
19Introdugfo ao Culto Cristéo
E pequena a distancia entre este conceito e aquele expresso pelo
nosso termo moderno liturgia. Com demasiada freqiiéncia confundido
com elementos cerimoniais, “liturgia”, assim como “servigo”, é de ori-
gem secular. Provém do termo grego leitourgia, composto de palavras
que designam trabalho (ergon) e povo (las). Na Grécia antiga a liturgia
era um trabalho publico, algo executado em prol da cidade ou do
Estado. Seu sentido equivalia a pagar impostos, embora a liturgia pu-
desse implicar tanto servico doado quanto tributos. Paulo fala das
autoridades romanas literalmente como “liturgos [leitourgoi] de Deus”
(Rm 13.16), e de si préprio como “um liturgo fleitourgén] de Cristo
Jesus para os gentios” (Rm 15.16, tradugo literal).
Liturgia é, entéo, um trabalho executado pelas pessoas em beneficio
de outras. Em outras palavras, trata-se da quintesséncia do sacerdécio
de todos os crentes compartilhado por toda a comunidade sacerdotal
dos cristios. Denominar “liturgico” um oficio 6 indicar que ele foi
concebido de modo que todas as pessoas que participam do culto to-
mem parte ativa na oferta conjunta do seu culto. Isto poderia se aplicar
tanto a um culto quacre quanto a uma missa catélica romana, contanto
que a comunidade participasse plenamente num ou noutro. Mas nao
poderia descrever um culto no qual a comunidade fosse meramente
uma platéia passiva. Nas igrejas ortodoxas orientais, o termo “liturgia”
é usado no sentido especifico de eucaristia, porém os cristdos ociden-
tais usam a qualificagaéo “liturgico” para designar todas as formas de
culto piblico de natureza participativa.
O conceito de servigo, entao, é fundamental para entender o culto. Um
conceito um tanto diferente se apresenta por tras do termo comum ao
latim e as linguas romanicas que ¢ culto. No inglés, cult tende a sugerir
algo bizarro ou um modismo, mas em linguas como o francés e o
italiano ele tem uma funcdo respeitada. Sua origem 6 o termo latino
colere, termo agricola que significa “cultivar”. Tanto o francés le culte
quanto o italiano il culto preservam esta palavra latina como o termo
usual para designar o culto. E um termo rico, muito mais rico do que a
palavra inglesa worship, uma vez que capta 0 carater mutuo da respon-
sabilidade entre o agricultor e sua terra ou animais. Se néo dou rag&éo e
4gua para as minhas galinhas, sei que nfo haver4 ovos; a menos que eu
tire 0 inco da minha horta, nfo havera verdura. E uma relacéo de
dependéncia mitua, um engajamento vitalicio com 0 cuidado e o atendi-
mento a terra e aos animais, relagéo esta que quase se torna parte da
esséncia do agricultor, particularmente daqueles cujas familias cultiva-
ram a mesma terra geragdo apos geragéo. Tratase de uma relagaéo de
dar e receber, certamente néo em medida igual, mas pela vinculagiio
reciproca. Infelizmente a lingua inglesa nAo faz prontamente a conexio
Obvia entre “cultivar” e “culto” que encontramos nas linguas romanicas.
As vezes encontramos conteidos mais ricos nas palavras de outras
20Que Queremos Dizer com “Culto Cristéio"?
linguas, como domenica no italiano (dia do Senhor, domingo), Pasqua
(Pascoa) ou crisma, do que em seus equivalentes ingleses.
O termo inglés worship também tem raizes seculares. Ele vem do
termo do inglés antigo weorthscipe - literalmente weorth (“worthy”
“digno”}) e -scipe (“-ship” [-sufixo: “dade”)) -, significando a atribuicdo
de valor ou respeito a alguém. Ele era e continua sendo usado como
forma de tratamento para varios prefeitos de cidades importantes na
Inglaterra. O oficio matrimonial da Igreja da Inglaterra contém desde
1549 aquele maravilhoso voto: "With my body I thee worship”. O senti-
do neste ultimo caso esta em respeitar ou apreciar outro ser com o
proprio corpo. Infelizmente semelhante franqueza nos perturba, e 0
termo desapareceu dos oficios matrimoniais americanos. Outros vocaé-
bulos do inglés como revere (reverenciar), venerate (venerar) e adore
(adorar) derivam-se em Ultima an4lise de termos latinos que designam
medo, amor e oracaéo.
O Novo Testamento usa diversos termos para referirse ao culto,
sendo que a maioria deles também tem outros significados. Um dos
mais comuns é latreia, muitas vezes traduzido para o inglés por service
ou worship [ou “culto”, em portugués]. Em Rm 9.4 e Hb 9.1 e 9.6 esse
vocabulo refere-se ao culto judeu no templo, ou pode significar qualquer
obrigac&o religiosa, como em Jo 16.2. Em Rm 12.1 ele costuma ser
traduzido simplesmente por “worship”, “culto”, tendo significado seme-
Ihante em Fp 3.3.
Uma percepgao fascinante aparece no termo proskynein, que tem a
conotacao fisica explicita de se prostrar em deferéncia ou submissao.
Na narrativa da tentagéo (Mt 4.10; Le 4.8), Jesus diz a Sata: “Esta
escrito: ‘Ao Senhor teu Deus adorards [proskynéseis] e sé a ele presta-
ras culto [latreiseisf.” Numa famosa passagem (Jo 4.23), Jesus diz a
samaritana que chegou o tempo em que os verdadeiros “adoradores
adorarao o Pai em espirito e verdade”. Sob varias formas proskynein 6
usado repetidas vezes ao longo desta passagem. Numa passagem me-
nos conhecida (Ap 5.9), os 24 anciéos “se prostraram e adoraram”
(prosekynesan). Este verbo sublinha a realidade corporea do culto.
Dois termos interessantes, thysia e prosphoré, sic ambos traduzidos
por “sacrificio” ou “oferenda”. Thysia 6 um termo importante no Novo
‘Testamento e nos primeiros pais da igroja, embora, seja utilizado para
designar tanto o culto pagao, por exemplo “sacrificios a deménios” (1 Co
10.20), quanto o culto cristéo, como em “um sacrificio vivo” (Rm 12.1) ou
“sacrificio de louvor” (Hb 13.15). Prosphoré é literalmente o ato de ofere-
cer ou levar diante de. Tratase de um termo predileto em 1 Clemente,
quer referindo-se a oferta de Isaque por Abraso, quer aquelas do clero ou
de Cristo, “sumo sacerdote das nossas oferendas” (36.1). Hebreus 10.10
fala da “oferenda do corpo de Jesus Cristo, realizada uma vez por todas”.
21Introdugfo ao Culto Cristéo
Ambas as palavras desempenham um papel significativo, embora contro-
verso, no desenvolvimento da teologia eucaristica crista.
Termo bem menos proeminente na literatura neotestamentéria é
threskeia, que significa “culto” ou “oficio religioso” (como em At 26.5;
C1 2.18 e Tg 1.26). Sébein significa “prestar culto” (em Mt 15.9; Mc 7.7;
At 18.3; 19.27). Em Atos, outro uso deste verbo designa os tementes a
Deus, gentios que freqiientam o culto da sinagoga (13.50; 16.14; 17.4,17;
e 18.7). Outro termo do Novo Testamento apresenta usos importantes
na descrig&o do culto. Homologein tem uma variedade de significados,
como confessar pecados (1 Jo 1.9), “se confessarmos nossos pecados”,
declarar ou professar publicamente (Rm 10.9), “se confessares com tua
boca que Jesus é Senhor”, ou louvar a Deus (Hb 13.15), “o tributo dos
labios que reconhecem 0 seu nome”.
Esses termos de outras linguas podem expandir a imagem
unidimensional do termo “culto”. Todos merecem ser ponderados para
perceber o que outros experimentaram em diversos tempos e lugares.
Alguns termos do vernaculo ligados ao culto precisam de certa elucidagao.
Precisamos fazer uma distingdo clara entre dois tipos de culto: o
culto em comum e devogées pessoais. O aspecto mais claro do culto em
comum 6 que se trata do culto ofertado pela comunidade reunida, a
assembléia crist&. Dificilmente se pode exagerar a importancia do reu-
nirse. Por vezes 0 termo judaico “sinagoga” (reunirse) também foi
usado para referir-se 4 assembléia cristé (Tg 2.2), porém o termo princi-
pal para designar a assembléia crista 6 a igreja, a ekklesia, aqueles
chamados para fora do mundo. Este termo, com a acepcéo de “assem-
bléia”, “congregar”, “reunir”, “encontrarse” ou “ajuntarse”, é usado
repetidamente ao longo do Novo Testamento para designar a igreja
local ou universal. Um dos aspectos mais facilmente esquecidos do
culto em comum é que ele comeca com a reuniaio de cristéos alhados
em um lugar para formar a igreja em culto. Geralmente encaramos 0 ato
de reunir-se como mera necessidade mecanica, mas ele 6 em si mesmo
parte importante do culto em comum. Reunimo-nos para encontrar-nos
com Deus bem como com nossos préximos.
As devog6es pessoais, por sua vez, geralmente, mas nem sempre,
ocorrem em separado da presenga fisica do restante do corpo de
Cristo. De forma alguma isto quer dizer que nao estejam ligadas ao
culto de outros cristéos. Efetivamente, tanto as devogdes pessoais
quanto o culto em comum s&o plenamente comunitarios, uma vez que
ambos compartilham do culto da comunidade universal do corpo de
Cristo. Porém o individuo que pratica devogées pessoais pode deter.
minar seu proprio conteudo e ritmo, mesmo ao seguir uma estrutura
amplamente usada. Em contraposi¢&o a isso, para que o culto em
comum seja possivel, 6 preciso haver consenso sobre estrutura, pala-
vras e acées, caso contrario 0 caos seria a conseqiiéncia. Tais regras
22Que Queremos Dizer com “Culto Cristaéo”?
fundamentais nfo séo necessérias em devogées onde o individuo esta-
belece a disciplina. (“Devog&o” vem de um termo latino que designa
“voto”.)
A relacao entre culto em comum e devogées pessoais é importante.
Embora o tema do presente livro seja o culto em comum e pouco se diga
a respeito de devogées pessoais, deveria ficar claro que o culto em
comum e as devocgées pessoais dependem um do outro. Como nos diz
Evelyn Underhill:
culto [em comum] e 0 culto pessoal, embora na pratica um geralmente
tenda a ter precedéncia sobre o outro, deveriam se completar, reforcar e
checar mutuamente. Apenas onde isto ocorre é que efetivamente encontra-
remos a vida normal e equilibrada de devog&o crista plena em sua perfei-
¢&o (...) Nenhuma alma - nem mesmo o maior dos santos - pode compre-
ender plenamente tudo o que isto tem a nos revelar e exigir, ou alcancar
com perfeic&o essa riqueza equilibrada de resposta. Esta resposta preci-
sa ser obra da igreja inteira, dentro da qual as almas em sua infinita
variedade desempenham cada qual um papel e contribuem com esta
parte para a vida total do Corpo."
O culto em comum precisa ser complementado pela individualidade das
devogées pessoais; estas precisam ser equilibradas pelo culto em co-
mum.
Um termo amplamente usado em anos recentes 6 celebragiio. Ele 6
freqiientemente usado em contextos seculares e parece ter desenvolvido
certa vagueza que o torna um tanto sem sentido, a nfio ser que seja
utilizado com um objetivo especifico, de modo que se saiba o que esta
sendo celebrado. Ao se falar da celebrag&o da eucaristia ou celebracéo
do Natal, o conteudo pode estar claro. Desde os anos 20 o termo tem
sido associado a nogées indefinidas do tipo celebragio da vida, da
alegria, de um novo dia ou outros objetos igualmente vagos. Parece
melhor usé-lo para descrever o culto cristéio somente quando 0 objeto
esta claro, de modo que haja contetido e forma definidos. O culto cristéo
est& sujeito a normas pastorais, teologicas e histéricas; muitos tipos de
celebra¢do facilmente escapam a todas elas.
Ritual 6 um termo basico para descrever 0 culto crist&o. Tratase de
um termo traigoeiro, uma vez que significa coisas diferentes para pes-
soas diferentes. Para muitos, ele com freqiiéncia sugere vazio (dai a
expressao “ritual vazio”), uma rotina de repetigdes sem sentido. Antro-
pdlogos usam o termo de modo sofisticado para descrever atos repeti-
dos que so socialmente aprovados, como por exemplo uma ceriménia
de naturalizaco, um potlatch*, ou costumes de sepultamento. Liturgos
usam o termo para designar um livro de ritos. Para os catélicos roma-
nos o termo “ritual” se refere ao manual de oficios pastorais de batis-
mos, casamentos, funerais, etc. Na tradigaéo metodista, “ritual” tem sido
usado desde 1848 para referirse a todas as cerimOnias oficiais da
23Introdugio ao Culto Cristaio
igreja, incluindo a eucaristia e os oficios de ordenagdo, além dos pasto-
rais. Ritos sdo as palavras efetivamente pronunciadas ou cantadas num
culto, embora as vezes este termo seja usado para designar todos os
aspectos de um officio. Também pode referirse a grupos religiosos
como os catélicos de rito oriental, cujo culto segue um padrao distinto.
Os ritos diferem do cerimonial, que sic as agées executadas num culto.
O cerimonial geralmente est4 explicitado nos manuais de culto por
meio das rubricas, isto é, instrugdes para execucéo do culto. Embora
atualmente também se empreguem outras cores, as rubricas muitas
vezes sio impressas em vermelho, como o indica o nome derivado do
termo latino que designa a cor vermelha. Outro aspecto essencial ¢ a
estrutura de cada oficio, chamado ordo ou ordem (de culto). Ordem,
rito e rubricas, isto 6, a estrutura, as palavras e as instrugées sio os
componentes basicos da maioria dos manuais de culto.
Diversidade na Expressiio
do Culto Cristao
Até aqui abordamos os fatores comuns que nos permitem falar do
culto cristéo em termos genéricos. Certamente existe unidade basica
suficiente para podermos fazer muitas afirmagées gerais e esperar que
elas se apliquem a maioria senéo a todo culto de pessoas cristas. Entre-
tanto, precisamos equilibrar essas afirmac6es gerais de constancia con-
siderando a diversidade cultural e histérica que também é parte impor
tante do culto cristéo. A constancia, como ja vimos, 6 enorme; a diversida-
de é igualmente impressionante. O culto cristaéo é uma mistura fascinan-
te de constAncia e diversidade. Basicamente usamos as mesmas estrutu-
ras e oficios por dois mil anos; entretanto, pessoas do outro lado da
cidade também as praticam, mas a sua propria maneira caracteristica.
Em anos recentes nos tornamos muito mais sensiveis para a importan-
cia dos fatores culturais e étnicos na compreens&o do culto cristao.
Emergiu dai uma forte preocupagdo com a ligacdo entre culto crist&io e
justica. Em certo sentido, isto nao é nada novo para alguns cristéos. J&
desde o movimento quacre no séc. 17 tem havido uma forte consciéncia
entre os membros da Sociedade dos Amigos de que o culto nio deve
marginalizar pessoa alguma por causa de sexo, cor ou mesmo servidao.
Com efeito, a insisténcia quacre na igualdade humana deriva-se direta-
mente da sua compreensio do que acontece na comunidade cultuante.
Isto significa naturalmente que mulheres e escravos deviam falar no
culto, o que até ent&o fora prerrogativa exclusivamente masculina.
O tedlogo anglicano do séc. 19 Frederick Denison Maurice fez avangar
nosso pensamento sobre culto e justia da mesma forma como o fizeram
24Que Queremos Dizer com “Culto Cristéo”?
em nosso século Percy Dearmer, William Temple, Walter Rauschenbusch
e Virgil Michel. Porém apenas em anos recentes é que grande numero de
cristéos passou a observar o escandalo da injustica das formas de culto
que marginalizam amplos segmentos de freqiientadores do culto por
causa do género ou outras distin¢des humanas. Isto resultou em esforgos
para mudar a linguagem de textos liturgicos e hinos que tendiam a
tornar invisiveis as mulheres, refazer prédios que excluiam as pessoas
portadoras de deficiéncia e dar acesso a novas fungées aquelas pessoas
que anteriormente nao eram bem-vindas para nelas servir.
Estreitamente ligado a isto est4 o esforgo para levar a sério a diversi-
dade cultural e étnica existente na igreja em nivel mundial. Isto implica
respeito pelos dons e pela variedade de diferentes povos como expres-
sdes legitimas do culto cristéo. O termo técnico para descrever este
processo é inculturac&o; sua realidade é¢ a aceitacéo da diversidade
como uma das dadivas de Deus para a humanidade e a disposigao de
incorporar essa variedade as formas de culto. A musica muitas vezes €
um dos melhores indicadores da diversidade de expressio cultural.
QuAo limitados fomos nés ao enfatizar expressées européias de louvor
cristéo, quando o mundo inteiro canta a gloria de Deus? Novos hinarios
tendem a refletir cada vez mais a diversidade cultural, porém a maior
parte deles ainda tem um longo caminho a andar até ser um espelho da
variedade de pessoas, mesmo numa unica nacéo.
A preocupagao com 0 culto e a justiga tem assumido muitas formas,
todas com um fator comum: enfatizar o valor individual de cada cultuante.
Naqueles lugares em que alguns s&io negligenciados ou relegados a um
status inforior por causa da idade, género, deficiéncia, raga ou origem
lingiiistica, estas injusticas est&o sendo reconhecidas e atenuadas. Mas
é lento o processo de conscientizar-se de praticas discriminatérias para
entao tentar encontrar as maneiras mais eqiiitativas de reformula-las. O
resultado é que 0 culto cristéo se torna mais complexo e diversificado
na medida em que tenta refletir uma comunidade mundial. Por isso,
mesmo permanecendo valido o que dissemos a respeito da constancia,
as expressées culturais dessa constfncia estéio se tornando cada vez
mais diversificadas em nosso tempo.
Na realidade, a diversidade nfo é nada novo no culto cristao, embora
talvez seja uma importante inovacdo encaré-la de modo positivo. Mes-
mo nos primeiros textos liturgicos enxergamos maneiras diferentes de
afirmar as mesmas realidades, quer nos principios teologicos, quer nas
necessidades humanas. As diferengas sio reflexos da variedade de
povos e lugares. Os diferentes livros litargicos proporcionam rotas
paralelas para cobrir a mesma jornada. Entretanto, eles variam em
estilo e detalhes da mesma forma como pessoas diferentes em lugares
variados diferem naqueles pontos que as tornam distintas, sua lingua e
histéria, por exemplo.
25IntrodugSo ao Culto Cristo
Comparemos duas passagens com fungées idénticas de duas das
liturgias mais amplamente usadas no mundo. A primeira pertence 4 missa
catélica romana pré-Vaticano II, do prefacio comum da orag&o eucaristica:
Na verdade, é justo ¢ necessario, 6 nosso dever e salvagio darvos gracas,
sempre e em todo lugar, Senhor, Pai Santo, Deus eterno e todo-poderoso,
por Cristo, Senhor nosso.
A outra é a mesma passagem conforme consta na liturgia de Saio Joao
Criséstomo:
E justo e digno celebrar-vos, bendizer-vos, dar-vos gragas e adorar-vos em.
todos os lugares do vosso dominio. Porque vés sois um Deus inefavel,
incompreensivel, invisivel, inacessivel, subsistindo eternamente, vos e 0
vosso unigénito Filho e o vosso Espirito Santo.
Ambas dizem a mesma coisa, porém o estilo e o espirito séo bastante
diferentes. A linguagem da primeira foi comparada a retorica legal dos
tribunais romanos, a da segunda, ao esplendor da corte dos imperado-
res bizantinos. Claramente estamos lidando com dois estilos diferentes
de expresso.
Os liturgistas classificaram as varias liturgias eucaristicas antigas em
familias litargicas distintas. A semelhanga das familias humanas, elas
apresentam caracteristicas comuns. Algumas talvez pertencam 4 familia
alexandrina, denominada segundo Marcos, uma vez que colocam as
intercessGes no meio do segmento de abertura da oragdo eucaristica.
Outras, como o rito romano, usam palavras caracteristicas para introdu-
zir as palavras da instituigéo: “o qual, no dia antes de sofrer”, ao passo
que outras familias, como aquela denominada segundo Jo&o Criséstomo,
preferem a express4o “na noite em que foi entregue”. Assim como se
podem reconhecer os filhos e filhas ou irm&os e irm4s de determinada
pessoa pelas semelhangas faciais, pode-se aprender também a identificar
a familia litargica da qual provém determinado texto.
Diferentes povos e lugares em torno do mundo mediterraneo e na
Europa setentrional deram suas proprias caracteristicas lingilisticas ao
culto cristéo. Algumas caracteristicas desapareceram, muitas vezes por
causa da estereotipagfio que o processo de impressio tornou possivel no
séc. 16. Mas uma grande variedade ainda persiste. particularmente na
ortodoxia oriental, e até mesmo dentro do catolicismo romano, embora
isoladamente em lugares como Milo, na Itlia, ou Toledo, na Espanha,
ou nas igrejas catolicas de rito oriental. Nesses ritos dispares temos um.
reconhecimento franco da verdadeira catolicidade, isto é, universalidade
da igreja. Aquelas que poderiam parecer sobreviventes curiosas e singu-
lares so na verdade vozes de diferentes povos e lugares acrescentando
sua propria contribuicdo caracteristica ao louvor a Deus.
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