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HIsTORIA E HISTORIOGRAFIA DO TRABALHADOR ESCRAVIZADO NO RIO GRANDE DO SUL Mario Maestri* maestri@via-rs.net ResuMo: O artigo analisa a minimizagio ¢ a exclusio dos cativos nas representagies historiograficas no Império e na Repablica, apesar da sua importancia no pasado sulino. Discute a restauragao historiografica e seu sentido, de 1930 até hoje, do papel do africano e do afrodescendente cativo no Sul,a partir dos principais ensaios sobre o tema em portugués. Patavaas-ciiave: historiografia, escravidio, historia do Rio Grande do Sul. O TRABALHADOR NEGRO: HISTORIA E REPRESENTAGOES No Palacio Piratini, sede do governo do Rio Grande do Sul, encon- tra-se um painel das etnias formadoras sulinas, pintado, nos anos 1950, pelo artista italiano Aldo Locatelli, a partir da visio historiogréfica dominante sobre o passado sulino. No alto do painel, & esquerda, um oficial lusitano domina montado conjunte, assim como dominou historicamente aqueles territérios. No centro superior, com as ruinas das Miss6es como fundo, destaca-se o nativo guarani, de langa a mao, em repouso. Ainda no alto, no canto direito, bandeirantes paulistas ¢ lagunenses penetram 0 Sul desconhecido. No canto inferior direito, sustentando 0 conjunto, colonos-camponeses labutam o solo, enquanto uma imigrante amamenta o filho nascido na nova terra, A alegoria de Locatelli nao deixa diividas sobre o senhor da terra. O gaticho aparece quatro vezes ¢ ocupa 0 centro da composigao na figura do domador, a domesticar o animal que simboliza a terra selvagem. Aldo Locatelli (1915-1962) pintou sua alegoria poucos anos apés chegar da Itélia, em 1948. Ele retratou a visio erudita dominante da historia entra- nhada no imaginério sulino, onde nao hé lugar para 0 negro escravizado, 7 Professor da Universidade de Passo Fundo. Recebido em 6 de setembro de 2006 Aprovado em 17 de outubro de 2006, m2 Dossié visio alimentada ¢ ampliada pela historiografia tradicional. A contri- buicdo dos diversos grupos étnicos para a formacao do Rio Grande do Sul é um fendmeno histérico objetivo. Ao contrario, a identidade étnica sulina constitui uma apreciagao subjetiva das diversas comunidades formadoras. A maioria dos rio-grandenses acredita que 0 estado seja produto do esforco do homem livre, luso-brasileiro e, sobretudo, italo- germanico. A visio mitica desqualifica e ignora a contribuigao dos afri- canos e dos afrodescendentes formacao social sulina. Nos séculos XVIII e XIX, no Sul, as rogas de subsisténcia, as plan- tages, os criatérios, as charqueadas, as olarias, o transporte aquitico, as aglomeragées, a produgio artesanal-manufatureira € outras atividades. empregaram cativos. Hoje ha consenso sobre a importancia da escravidao na antiga formagao social rio-grandense, Em 1780, apés a reconquista do Rio Grande, ao iniciar-se a produg&o charqueadora de porte que poten- ciou a criago do gado vacum, o “Mapa do Tenente Cérdova? anotava que os cativos eram quase 30% da populagio. Praticamente até a Aboligao, © Rio Grande do Sul encontrou-se entre as principais provincias escra- vistas. Apés a interrupgio do tréfico, a populagao cativa teria crescido em niimeros absolutos até 1874 (Matstx, 2006; Conran, 1975), Historia e meméria Nao foi idéntico 0 processo de insergao dos diferentes grupos étni- cos na sociedade sulina. Alguns grupos chegaram ao Sul como coloni- zadores e dominadores, outros foram colonizados e escravizados. No pice da piramide social colonial, localizavam-se os grandes proprietirios de terras e de cativos, habitualmente brancos € nao raro portugueses natos, No sopé, encontravam-se os cativos crioulos e africanos. Entre os dois pdlos, o branco, racialmente “excelente’, e 0 negro, etnicamente “degra- dante’, conhecia-se uma rica graduagio policrmica. O escravismo domi- nante desqualificava etnicamente o africano ¢ 0 afrodescendente e valori- zava 0 europeu. A hierarquizacao étnica escravista colonial explica a origem, a difusio e a funcionalidade do racismo antinegro. O racismo gerado pelo escravismo e sua posterior recuperagao pelo capitalismo nao explicam 0 sentido e 0 processo de desconhecimento/minimizagéo da contribuicao do africano e do afrodescendente cativos no Sul. As classes dominantes de outras regides de raizes escravistas integraram a participagio do negro- africano em interpretagdes regionais mitificadas e classistas. Histérfa Revista, Goiania, v. 11, n. 2, p. 224-250, jul./dez. 2006 Sobretudo durante o século XIX, os fazendeiros mantiveram a hege- monia regional, elaborando as representagdes originais sobre a formacao regional. Nesse periodo, o Sul foi identificado, em forma apologética, ao meio, aos homens e aos processos relacionados ao pastoreio latifundidrio. Devido a pobreza relativa da economia regional, 4 depressao politico- ideoldgica das classes pastoris apés a derrota na Guerra Farroupitha e a outros fatores, as representagdes regionais tardaram a ser sistematizadas. As primeiras obras historiogrificas surgiram no final da escravidao, quando se fortaleciam as idéias cientificistas, positivistas, prd-capitalistas ¢ de determinacdo da sociedade pelo meio e pela raca, O CATIVO E A PRIMEIRA HISTORIOGRAFIA SULINA Os primeiros trabalhos historiogréficos dos fins do século XIX dis- punham sobretudo de trés ensaios de interpretagio sistematica sobre 0 Sul: os Anais da Provincia de Sao Pedro, de José Feliciano Fernandes Pinheiro, de 1819; as Memérias ecénomo-politicas sobre a administracéo publica do Brasil, de Antonio José Gongalves Chaves, de 1822, e a Noticia descritiva da Provincia do Rio Grande de Sao Pedro do Sul, de Nicolau Dreys, de 1839 (PinHEIRO, 1978; CHaves, 1978; Dreys, 1990). O diario da viagem do naturalista francés Auguste de Saint-Hilaire no Rio Grande do Sul, em 1820-1821, apesar de nao ter influenciado esses primeiros tratados, devido & sua tardia edi¢do na Franga, em 1887, ¢ um rico registro das visdes eruditas da época sobre o cativo no Sul (Saint-Hiraire, 1974) Os Anais de José Feliciano Pinheiro Propée-se que a historiografia sulina tenha nascido com os Anais de José Feliciano Fernandes Pinheiro (1774-1847). Essa obra constitui a primeira historia do Rio Grande do Sul, extremo-sul da América portu- guesa, escrita sob a ética do Estado lusitano. Nao se trata propriamente de uma historiografia brasileira ou sulina, mas de um trabalho sobre a Regido Sul do Brasil. O aditamento e a adaptagio as sensibilidades dos rio-grandenses, cidadaos do império brasileiro, vinte anos apés a edigao original, facilitaram o desconhecimento dessa sua caracteristica. José Feliciano nasceu em Santos, em 1774, filho de portugues e de paulista abastados. Em 1792, partiu para Coimbra, formando-se em Direito Candnico. Com as finangas familiares abaladas, estabeleceu-se em Lisboa, trabalhando como tradutor. Em 1800, partiu para 0 extremo- Mario Maestri: Historia e historiografia do trabalhador escravizado. 23 224 Dossié sul da colénia lusitana, para fundar e ser juiz da alfandega das capitanias de Sao Pedro e Santa Catarina, sinecura que manteve até 1837 (Prvieiro, 1978, p. 17-34). Os Anais nasceram da primeira relacio de Feliciano com 0 sul da colénia. A obra, escrita em um perfodo em que 0 autor era burocrata do império lusitano, foi editada trés anos antes de 1822. Em 1821, Feliciano foi eleito por Sao Paulo e pelo Rio Grande do Sul deputado & Constituinte portuguesa, tendo sido o tinico deputado brasileiro a jurar a Constituicéo lusitana. Ao voltar para o Brasil, apés 1822, alinhou-se ao principe portugués. Deputado a primeira Constituinte pelo Sul, apoiou o golpe imperial de 1823, sendo designado presidente do Rio Grande do Sul (1824- 1826), ao arrepio dos brios liberais regionais. Sua estrela feneceu durante a Regéncia devido & adeséo a Dom Pedro. Morreu, em 1847, em Porto Alegre. Historiador racionalista José Feliciano foi historiador na acepgao da palavra, participando da fundagao do Instituto Histérico e Geogréfico Brasileiro (IHGB), em 1838. Formado sob o influxo do movimento de restauracao liberal- conservadora do império lusitano, produziu uma obra racionalista apoia- da na critica da documentagao e infensa ao providencialismo. Nos Anais, empreendeu a hist6ria politica do Rio Grande do Sul, sob o ponto de vista do Estado lusitano. Referiu-se 4 fundagao de Sacramento e¢ de Rio Grande, aos tratados e confrontos politicos. Sua periodizacao da histéria sulina teve longa vida. Na descrigio “topogrifica” do Rio Grande do Sul e em outras passa- gens, sua apologia da terra acompanha a literatura tradicional lusitana. Nao se tratava do olhar nativista de filho da terra, por nascimento ou adogdo. Os Anais apresentam o Rio Grande do Sul, sobretudo, como produto lusitano, Nao hé narrativa sobre as singularidades da regiao de seu povo. Feliciano refere-se amitide aos nativos, devido a sua oposicao a conquista, mas nao destaca a producao pastoril, a fazenda, o fazendeiro, © gaticho etc Na primeira edigo, ha uma répida referéncia aos “habitantes” livres do Sul, definidos como “inertes e varios, ¢ de natural ferino’ e uma afir- magio de que o interior cra dominado pelos “roubos, mortes ¢ aten- tados’, devido aos “poucos progressos” da “moral”, das “leis” e do “espfrito de sociedade’”, nascidos do “ruim fermento” da populagao original, forma- Histéria Revista, Goldnia, v. 11, 0. 2, p. 221-250, jul./dez. 2006 da, segundo ele, pelo “enxurro da naga”, Os poucos “casais” agorianos teriam “emigrado”, por descumprimento das promessas publicas. Em rao da “inércia” da estancia, seu habitante conheceria a “moleza, a ociosidade e a devassidac’, motivo de “misérias” ¢ baixa “multiplicagao da espécie humana’, Feliciano anatematiza 0 churrasco ao acusar o “estancieiro” ¢ 0 “charqueador” de “insensibilidade” para com o “espeticulo da dor e da morte’, motivada pelo habito de “despedacar” a “cada passo uma 18s", Os “devoradores de vianda em geral” seriam “mais cruéis e ferozes que os outros homens”, A auséncia de referéncias ao cativo nio surpreende. Os Anais eram uma obra clissica dedicada aos grandes feitos e aos processos politicos. Goncalves Chaves: primeiro economista sulino Anténio José Goncalves Chaves nasceu em Portugal, indo trabalhar jovem na colénia como caixeiro (Cxaves, 1978, p. 216-217). Ao escrever as ‘Memiérias, morava havia dezesseis anos no Brasil e era rico charqueador, em Pelotas. Homem de sélida cultura, participou do primeiro Conselho Geral da Provincia (1828), da primeira Camara Municipal de Pelotas, da primeira Assembléia Legislativa sulina (1834). Morreu afogado, em 1837, na baia de Montevideu, onde estabelecera sua charqueada (Franco, 1978, p.15-18). As memérias econdmico-politicas sobre a administracao publica do Brasil so constituidas por textos emblematicos escritos em 1817-1822 publicados em 1822-1823 ~ “Sobre a necessidade de abolir os capitaes- gerais’; “Sobre as municipalidades, compreendendo a uniéo do Bra com Portugal”; “Sobre a escravatura”; “Sobre a distribuigio de terras incultas” e “Sobre a Provincia do Rio Grande de Sao Pedro em particular’. Liberal exaltado, Chaves espinafra 0 despotismo, elogiando o constitu- cionalismo popular e 0 direito de eleigao do presidente da provincia, grande causa das rebelides regionais de 1817 a 1845 (Cxaves, 1978, p. 42- 43.€29), O grande destaque do trabalho de Chaves é a critica & escravidéo, na terceira meméria, apoiada nos avancos da “economia politica” bur- guesa, permitidos pelo dominio do trabalho livre na manufatura européia. O fato de administrar trabalhadores escravizados Ihe teria facilitado desenvolver uma critica radical ¢ precoce da economia politica da escra- vidao colonial. Chaves empreende, sobretudo, sua critica no plano da Mario Maestri: Histéria e historiografia do trabalhador escravizado.. 25 226 Dossié “economia politica moderna’, apresentando a “escravido” americana como “sistema” socioprodutivo, semelhante ao “feudalismo” e ao “capita lismo”, “reanimado” pelas nagdes européias na América. Assinala a mesma determinagao tendencial do comportamento dos negreiros americanos, fossem quais fossem suas nagdes, pelas “circunstancias” postas pela escra- vido (Cuaves, 1978, p. 59, 60, 58,71). Chaves apresenta a escravidao como “sistema” econdmico-social que submetia, pela coagdo, 0 produtor direto a condigdes despéticas. Desqualificando-o intelectual e moralmente, retirava-lhe 0 incentivo ao trabalho, comprometendo, assim, o avango tecnoligico. Assinala a desacu- mulagao tendencial ensejada pelo trafico; a necessidade de altos gastos improdutivos de vigilancia dos cativos; a limitagao demografica e a ameaca social da escravidao etc. Associa a liberdade politica nacional 8 liberdade civil da populagio. Propée o fim rapido do trafico e a aboligio imediata e, se nao fosse realizada, medidas emancipacionistas. Apresenta 0 africano € 0 afrodescendente como trabalhadores iguais a quaisquer outros, quan- do livres. Apesar de acenar as qualidades da imigragao européia, destaca a incapacidade de progresso sociointelectual sob a escravidao, integrando 0s afrodescendentes ao seu projeto de nacdo (Cuaves, 1978, p. 59-72). Na iiltima memoria, realiza uma descrigéo sobretudo econdmica do Rio Grande do Sul, em que se refere as cidades, populagao, atividades econdmicas etc., apresentando mapas estatisticos. Anota o ingresso, em 1816-1822, de 6.157 cativos. Assinala a existéncia de 2.098 trabalhadores escravizados nas “charqueadas e povoagao” de Pelotas, com valores supetiores as casas da aglomeracao. Refere-se as exagdes sesmeiras, a0s impostos, aos passos, & produgio agricola, a erva-mate, 3 criagao animal etc. Conclui, tratando do “carater, usos e costumes” e “inclinagées” dos povos da “provincia?, ou seja, os homens livres ricos e pobres, que seriam “naturalmente generosos, francos ¢ obsequiadores’, Referindo-se, sobre- tudo, aos gatichos, afirma serem dtimos cavaleiros, em combate, e deser- tores, sobretudo quando estavam as “tropas em inagio” (Caves, 1978, p. 211). Saint-Hilaire: raga, meio e cultura © francés Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) foi naturalista ¢ cientista de destaque. Iniciou em 1816 uma longa viagem cientifica através do Brasil, Retornou a Franca em 1822, publicando, desde 1830, seus diarios O livro sobre a viagem ao Rio Grande do Sul e ao Uruguai, de 1820-1821, Histéria Revista, Goldnia, v. 11, n. 2, p. 221-250, jul./dez. 2006 foi publicado em 1887. Saint-Hilaire era simpético & restauragao e com- partia as visdes da hierarquia das ragas e determinacao dos povos ¢ costu- mes pelo meio. A visio da hierarquizagao racial nasceu da racionalizagao da explo- ragao colonial, que, sobretudo a partir do século XIX, procurou apoiar-se na ciéncia, Saint-Hilaire ensaia uma explicagio fisiolégica para a infe- rioridade do indio. Para ele, os “negros, raca tao distante da nossa tam- bém’, seriam “entretanto superiores aos indios,’ O naturalista abona os preconceitos nascidos da producao ¢ do tréfico negreiro sobre a hierar- quizagao das ragas africanas: “[..] negros-mina, tribo bem superior a todas as outras [...]” (Sarwr-Hitame, 1974, p. 164€ 26). O racismo cientifico abominava a miscigenagao. Saint-Hilaire expli- ca ingratidao de dois acompanhantes por serem mesticos. Comparando possivelmente as provincias de populago macigamente negra, com a importante comunidade acoriana do Rio Grande do Sul, assinalou que a “maior vantagem” do Sul era sua “populago sem mescia”, patriménio que deveria ser mantido. © mestico incorporaria as qualidades inferiores das racas dos progenitores: “[...] essas misturas farao a Capitania do Rio Grande perder a sua maior vantagem - a de possuir uma populagio sem mescla” (StsT-Hialne, 1974, p. 199 e 109) A visio de Saint-Hilaire do trabalhador negro era pré-moderna. O francés explicava as reagGes do trabalhador escravizado como decorrentes da raga; Chaves apontava-as como causadas pela escravidao: “Os negros so naturalmente pouco ativos; quando livres sé trabalham o suficiente para nio morrerem de fome (...)”, Relacionando certamente as condigdes de existéncia dos cativos pastoris com os das plantagées agricolas, afirma que nao havia “lugar onde os escravos” fossem “mais felizes” do que no Sul, onde os “senhores” trabalhariam “tanto quanto os escravos’, manteriam-se “préximos deles” e os tratariam “com menos desprezo”. O “escravo” comeria “carne & vontade’, ndo andaria “a pé” ¢ sua ocupacio seria “galopar pelos campos’, cousa mais “sadia que fatigante” (Saint Huane, 1974, p. 8047). Saint-Hilaire corrigiu a avaliagao positiva da escravidao sulina ao conhecer as charqueadas, onde os cativos eram “tratados com rudeza’, o que se deveria, segundo ele, ao fato de serem “em grande némero e cheios de vicios”. Ele viajou pelo Sul, em 1820-1821, no final de seu longo périplo pelo Brasil, Suas apreciagdes sobre a provincia foram mediadas pelo que vira, ouvita e avaliara em outras regies onde, nio raro, a escravidio colonial era bem mais abundante. Desde Napoledo, a escravidao fora Nario Maestri: Historia e historiografia do trabalhador escravizado... 27 228 Dossié restabelecida nas colénias francesas. Suas avaliagées apoiavam-se nos pressupostos colonialistas franceses e escravistas luso-brasileiros (SaiNT- Hiratre, 1974, p.73). Nicolau Dreys Nicolau Dreys nasceu em 1781, na Franga, Militar e funcionério bonapartista, viajou ao Brasil apés 1815, dedicou-se ao comércio, conheceu diversas provincias, viveu no Sul de 1817 a 1827. Dreys publicou sua Noticia descritiva da Provincia do Rio Grande de Sao Pedro do Sul, em 1839, no Rio de Janeiro, onde faleceu, em 1843. Sua obra constitui um relatério abrangente do meio geografico, dos centros urbanos, da populagio, dos costumes e da economia provin- cial. B uma narrativa focada na economia e sociedade, sem concessio & retérica e 20 maravilhoso. Sobre as “minas’, lembra que, apés grandes “esperangas’, viu-se que se tratava de ouro de “baixo toque, ¢ de mina tao superficial” que logo “ficou exaurida’” Lembra que 0 ouro da regio era o pastoreio (Daevs, 1990, p. 5). Fornece informacao sintética sobre a conformagao da populagao, formada por “duas seccdes”: “livre” e “escrava’. A segunda era formada por “africanos” e “seus descendentes”; a primeira tinha uma “subdivisio” em “individuos em que circula sangue europeu” e os “indigenas”. Disserta sobre o terceiro grupo dos “gatichos’, “formados originalmente do contato com a raga branca com os indigenas’. Nega a crenga do resto do Brasil de que a “populagéo negra” sulina fosse “moralmente péssima” e que “péssima” também fosse “a condigao [de existéncia] dos escravos". Visio oposta a do cativeiro privilegiado, dos escravistas sulinos, de Saint-Hilaire e, mais tarde, da historiografia regional (Dreys, 1990, p. 109 ¢ 122). Afirma que jamais tinha visto no Sul “os escravos nem mais vicio- 80s, nem mais maltratados”, Afirma que o cativo tinha pouco o que fazer nas estancias e que, nas charqueadas, 0 trabalho, “mais exigente”, nfo era “pesado”. Os “negros” seriam bem alimentados, bem vestidos e bem tratados, obrigados apenas a “um servico usual” e ao “bom compor- tamento” Defende que a escravidio era necessiria para que © negro nao se entregasse as “misérias ¢ aos vicios” e que o cativo submetia-se sem problemas a escraviddo na Aftica, mas se rebelava “em todas as mais partes do mundo”. Destaca que ser “soldado” “talvez” fosse a “tinica profissio” para a qual o “negro” seria “naturalmente proprio”. Refere-se as tentativas ¢ aos perigos de revoltas servis (Dréys, 1990, p. 129). Histéria Revista, Goignia, v. 11, n. 2, p. 221-250, jul./dez. 2006 Dreys retoma temas da apologia escravista luso-brasileira, como a vantagem da escravidao para o africano e de sua submissio ao cativeito, ja na Africa. Apesar do carater ideoldgico, a informagdo que fornece enfatiza a contribuigao do nativo, do gaticho e do cativo a sociedade sulina, Como era normal no Império, considerava como “tio-grandenses” apenas os homens livres A GeRACAO DE 1880: 0 HOMEM, O MEIO E A RACA Em 1868, em Porto Alegre, intelectuais republicanos, liberais abolicionistas fundaram a Sociedade Partenon Literario. Em 1869, lancaram a revista hom6nima, com contos, poesias, pegas teatrais, comu- mente de género romantico-pastoril. Essa produgao contribuiu para a consolidagéo de movimento ideolégico pastoril-regionalista e nio com- portou trabalhos historiograficos (Maniante, 1979). ‘Trés trabalhos, de Alcides Lima, Assis Brasil e Joao Cezimbra Jac- ques, assinalam, nos anos 1880, 0 surgimento de narrativa historiografica orginica sobre a formagio social sulina, apresentada, sobretudo, nos dois primeiros ensaios, como caso tinico no Brasil, nascido das particu- Iaridades de meio, raga e organizacao socioeconmica singulares. Os auto- tes sofriam a influéncia do determinismo geografico e do racismo cien- tifico. Em inicios dos anos 1880, estudantes rio-grandenses da Faculdade de Direito de $io Paulo fundaram 0 Clube 20 de Setembro para celebrar 0 republicanismo sulino. Sob encomenda do Clube, em 1882, Alcides de Mendonca Lima publicou Histéria popular do Rio Grande do Sul e Joaquim Francisco de Assis Brasil, Historia da reptiblica rio-grandense, Os trabalhos associavam as visées tradicionais sobre a sociedade pastoril com 0 programa autonomista republicano sulino. Alcides Lima nasceu em Bagé, em 1859, filho de portugués e brasileira. Abolicionista e republicano, participou da fundagao do Partido Republicano Rio-Grandense, no qual militou ativamente nos primeiros tempos. Foi promotor ptiblico ¢ juiz de Comarca. No livro aborda a histéria politica sulina, da fundagio de Sacramento a independéncia do ‘Uruguai, obedecendo em geral a periodizacao e muita idéias da obra de José Feliciano, O livro destinava-se a ser “introdugdo necessaria” ao trabalho de Assis Brasil, dedicado 4 Guerra Farroupilha. Nativos da Campanha, os dois jovens influenciados pelo cientificismo republicano participariam, Mario Maestri: Histéria e historiografia do trabathador escravizado... 29 230 Dossié décadas mais tarde, da oposigio liberal-pastoril & hegemonia do Partido Republicano Rio-Grandense que haviam fundado. Alcides Lima descre- veu, de forma ufanista, 0 meio ¢ os recursos naturais e propds que o Sul transbordasse “de animais’, pondo “a alimentagao carnivora ao alcance de todos”. Registra a génese sulina de “populagio, rica, culta e inde- pendente” “baluarte contra a tirania” Na época, o determinismo geografico e racial era tido como dado cientifico. Alcides Lima participa da desqualificacao de Saint-Hilaire do mestigo de europeu e nativo ¢ defende que essa miscigenacao ocorrera no Sul em “doses minimas” (Lima, 1935, p. 30 e 41-50). Para ele, a constituigéo do povo rio-grandense seria determinada pelo portugués, pelo agoriano, caracterizado pelo “amor ao trabalho’, pelo paulista, pelo mineizo e por imigrantes alemaes, “morigerados ¢ laboriosos", No Sul, 0 imigrante teria encontrado 0 “clima” que lhe era “mais prépric’, idéia habitual nas décadas seguintes. Quando da colonizacao, o “indio” jd se encontraria em “reduzido numero”. No Sul, teria ocorrido a “coincidéncia feliz da raga povoadora com as qualidades fisicas do local. A “vida facil e folgaz dos campos” e os “exercicios constantes de destreza fisica e de independéncia moral” teriam ensejado que o “aparecimento das estincias” constituisse o “primeiro passo da democracia rio-grandense’”, sentida como necessidade pelos “estancieiros livres”. Refere-se, elogiosa e ambiguamente, ao “gaticho”, que nao se confunde com o fazendeiro (Lima, 1935, p. 97-99, 103-104, 125). Joaquim Francisco de Assis Brasil Assis Brasil nasceu em S40 Gabriel, filho de ricos estancieiros descendentes de acorianos. Em 1876-1882, cursou a Faculdade de Direito de Sao Paulo, foi membro do Clube 20 de Setembro, escreveu Histéria da Repiiblica Rio-Grandense. Participou da pregagao republicana, da funda~ 40 do Partido Republicano Rio-Grandense, foi deputado provincial ¢ constituinte. Opds-se & orientacdo de Jtlio de Castilhos 20 Partido Repu- blicano Rio-Grandense. Integrou a diplomacia brasileira. Liderou o lati- fiindio sulino, como candidato & presidente do Estado (1922) e chefe politico da Revolugao de 1923. Participou da fundagao do Partido Liber- tador em 1929, apoiou a Revolucio de 1930 ¢ morreu em 1938. Assis Brasil abre seu trabalho com uma introdu¢éo apoiada no determinismo racial e geogréfico, na qual defende que todos os “caracte- risticos peculiares do povo, todos os seus habitos e o préprio tipo de Historia Revista, Gi ia, v. 14, m. 2, p. 224-250, jul./dez, 2006 constituigao fisica” teriam “rigorosa correlatividade com as circunstancias patticulares do meio”. © clima frio imprimiria “tom especial a fibra do habitante” sulino (Assis Brasit, s.d., p. 34). Seu ufanismo € extremado: no relativo ao “solo”, o Rio Grande do Sul seria, no Brasil, “um mundo 4 parte’, A provincia teria veios preciosos de ouro, de prata, de “todos os minerais de mais fecunda utilidade’, em “prodigiosa abundancia’. Radi- caliza a énfase de Alcides Lima sobre singularidade étnica sulina, plasmada pelo “meio césmico” tinico, Dedica amplo espago as etnias fundadoras ~ 0 “acoriana’, o “portugués”, o “paulista’, o “mineiro’, algum “espanhol’, poucos africanos ¢ ainda menos nativos (Assis Brasit, s.d., p. 11, 19, 21). Reconhece que, nos anos 1830, “o sangue etidpico” ja penetrara na “massa da populagéo”, porém, sem “quantidade eficiente que acentuasse” “influéncia decisiva’. Nessa época, os americanos jé haviam prati- uma camente desaparecido, subsistindo apenas “caboclos puros na sua quase totalidade”, Na “populacao rio-grandense’, 0 “elementos afticano e autéc- tone’ teriam exercido “ago quase nula’. Os “atributos fisicos” e “morais” superiores do rio-grandense em relacao ao “nortista” e ao “caipira” paulista seriam produto da acio direta e indireta do meio ~ clima singular, ali- mentagao a base da carne etc. (Assis Brasit, s.d., p. 26, 29, 31 € 40). ‘Também para Assis Brasil a carne do gado abundante alimentaria 0 “rico” e 0 “pobre”. A fazenda pastoril, de “facil aquisicao’, nivelaria em geral “as condigées de fortuna’, ensejado o trabalho tido pelo “gaiicho” como “divertimento”, A “lida” pastoril, “barbara e fogosa’, seria compa- rdvel aos “asperos trabalhos da guerra’, Sua conclusao sobre o Sul é peremptéria: “[...] nao hé provincia tao diversa do resto do pais ~ [...] que rigorosamente nio tem com qualquer das suas irmas exato ponto de coincidéncia geogréfica ou etnografica” (Assis Brasit, s.d., p. 37, 42, 48). O primeiro tradicionalista Joo Cezimbra Jacques nasceu em Santa Maria, em 1849, de familia de raizes rio-grandenses, catarinenses ¢ baianas. Ingressou jovem na carreira militar; participou da guerra contra o Paraguai; cursou e integrou © quadro de instrutores das academias militares do Rio Grande do Sul. Era positivista fundador do Partido Republicano Rio-Grandense, Orga- nizou o Grémio Gaticho, em Porto Alegre, em 1898, para cultuar 0 cam- peirismo, Para o positivismo comtiano havia racas diferentes, € nao supe- riores e inferiores, devido as diversas dominancias da inteligéncia, afeti- vidade e atividade, Os “negros” seriam superiores aos “brancos” no senti- Mario Maestri: Histéria e historiografia do trabalhador escravizado... a 232 Dossié mento ¢ inferiores na inteligéncia. Os “amarclos” seriam superiores a ambos naatividade e inferiores na inteligencia eafetividade (Jacques, 1979, p-78-79). Indigenista e protetor dos nativos, Cezimbra Jacques possuiria tracos indidticos. Falava francés, guarani e um pouco o caingangue. Em seu livro Costumes do Rio Grande do Sul: precedido de uma ligeira descric&éo fisica e de uma nogao histérica, publicado em 1883, a apresentagao geografica limita-se as referencias laudatérias tradicionais. © destaque dado a importancia dos “primeiros habitantes” para a formagao da sociedade rural e urbana sulina contrapde-se a leitura de Alcides Lima e Assis Brasil. Cezimbra Jacques empreende sobretudo uma apresentacio das principais “povoagées”, mais proxima do projeto de Chaves e Dreys, assinalando a grande incidéncia de cativos nos levantamentos estatisticos. Descreve e analisa sobretudo a “populacio”, o “gaticho” e as “estancias” abordando os “divertimentos”, as “dangas’, a “poesia”, o “vocabulario” ete. (Maniante, 1979, p. 9-11). Origem pura Ao apresentar informagoes estatisticas, assinala a importancia da populacao escravizada. Mas propée que “|...] os negros africanos, que 0 egoismo [...] impeliu aos traficantes a abusarem’da natural inferioridade moral dessa raca para introduzi-los nio sé nesta provincia em pequeno mimero, como em maior, nas outras partes do Brasil e de toda a América [..)" Jacques, 1979, p. 15, 20, 38), Desqualifica numericamente a introdugio no Sul do africano, em relagio ao resto do Brasil, e sua qualidade racial, e propée que ele “muito pouco” teria se “combinado com os brancos, devido uma natural repugnancia na aproximacio dos sexos [...]” (JAcQuEs, 1979, p-45). Concordando parcialmente com o racismo cientifico, propoe que os “rio-grandenses herdaram” os dotes raciais hereditarios excelentes dos “paulistas’, “mineitos’ “agorianos’, “lagunenses’, “espanhéis” ¢ “indios tapes e minuanos” e nao tiveram sua qualidade racial rebaixada pela influéncia africana. Assinala que os “biologistas” definiam como “heredi- tariedade” a “lei natural” que determinava que as “espécies animais herdam todas as qualidades morais e fisicas” de seus “progenitores”. As determinagées raciais ajunta as influéncias do meio, clima e alimentagao. A alimentacao baseada no “leite de vaca, na carne do gado vacum” e as priticas pastoris teriam contribuido para a forca e nobreza do sulino (Jacquss, 1979, p. 47). Histéria Revista, Goidnia, v. 11, n. 2, p. 221-250, jul./dez. 2006 Apoiando-se em Dreys, disserta sobre o gaticho, habitante da cam- panha, descendente sobretudo de “tapes e minuianos’, comumente misci- genados com o portugues, integrando-o ao mito fundador da sociedade sulina, Reafirma que a carne farta livrava a populagdo da necessidade ‘econdmica e empreende valiosa descrigéo das préticas pastoris, vistas romanticamente como tarefas duras e litdicas, das quais nao aliena a contribuigéo do cativo campeiro. Nao desenvolve, como Alcides Maia e, sobretudo, Assis Brasil, a defesa da singularidade ¢ exceléncia das condi- goes de vida sulina devidas 4 democracia pastoril (Jacques, 1979, p. 66, 47, 63€65). HistORIA £ MITO! DEMOCRACIA PASTORIL E PUREZA ETNICA NO RiO GRANDE DO SUL Na primeira metade do século XX, quando o novo bloco politico- social republicano estabelecera sua hegemonia sobre o Sul, dois inte- lectuais, um de orientacio castilhista, © outro de raizes liberal-pastoris, apresentaram interpretacdes socioldgicas organicamente consolidadas que defendiam a singularidade da formagao social sulina, apoiados nos mitos da democracia pastoril, da producio sem trabalho, da qualidade étnica regional, da alienagio do afro-sulino e da formasao sulina, Rubens de Barcellos nasceu em 1896, em Porto Alegre, onde se formou em Direito, Filho de comerciante de posses, dedicou-se aos estudos histéricos, sociolégicos e literérios. Morren em 1951. Mansueto Bernardi ¢ Moysés Vellinho editaram uma coletanea de seus trabalhos (Bacrtos, 1955). © “esbogo da formagio social do Rio Grande do Sul” (p. 20-38) integra pioneiramente, em forma organica, os grandes movimentos socio- produtivos sulinos, segundo 0 receituério republicano-positivista. Sua interpretago apia-se claramente na obra Facundo, de Domingo Faus- tino Sarmiento. Barcellos assinala a génese do Sul lusitano em torno das primeiras fazendas de criagdo, nascidas apés a fundagio de Sacramento, em 1680. Destaca a chegada, 0 estabelecimento e a contribuigio dos colonos agoria nos, figis, trabalhadores e ordeiros, de sangue puro e “indene” a “mescla’ racial, que originaram no Sul uma sociedade disciplinada e hierarquizada, em torno dos burgos militares, referéncias do poder real lusitano. Em antagonismo com essa povoagao do Leste, teria surgido na Campanha uma “classe numerosa de aventureiros que, abandonando a existéncia afanosa da labuta agricola, entregava-se ao nomadismo sedutor da preia de gado nas linhas da fronteira’’ Mario Maestri: Histérla e historiografia do trabalhador escravizado... 233 24 Dossié A interiorizagao se fortaleceria, desde 1780, com a fundagao das charqueadas. A populacao rural de origem lusitana, militares e alguns “castelhanos” teriam originado a classe dos senhores de “extensas fazen- das’, exploradas por “agregados” e “pedes’. Essas “massas rurais, afastadas da disciplina’, localistas, centrifugas, encarnavam “o espirito territorial’, oposto ao centralismo “reinol”. Com a crise da producao triticola, o mun- do pastoril dominara o Sul. Barcellos radicaliza as referéncias laudatérias, apresentando os trabalhos pastoris como “diversio’, destacando que parte da sociedade nao conheceria diferencas de classe. Fontes eruditas Barcellos propée que entre as “causas igualmente poderosas” da fraternizacao pastoril encontrava-se a “quase auséncia da escravidao” no pastoreio. Escuda-se em Sarmiento para propor que a produ¢ao pastoril “nao tem o caréter regular, obrigatério ¢ necessério, do trabalho da lavoura ou da fabrica’, jf que os “pastores” apoiariam-se nao na escravidéo dos homens, mas na “escravidao do gado’, para livrarem-se do trabalho. A fazenda pastoril aproximaria fazendeiros e pedes. “Fora dos momentos de atividade intensa do desporto guerreiro dos rodeios, 0 pastor rio-grandense é um ocioso” A oposi¢ao entre a populaco ordeira fiel da cidade e o mundo rural centrifugo seria superada, desde 1824, com © ingresso por uma nova “raca” de “germanos louros, persistentes ¢ labo- riosos’, seguidos por outros europeus, que retomariam o arado abando- nado pelo agoriano. O impulso agricola europeu se faria sentir na industria e comércio. A massa de imigrantes estaria “se amalgamando, lentamente, de geracao em geragdo, no nosso corpo social’, difundindo “a propria civilizacao ocidental’: Sob o dominio econémico e demogréfico da producio colonial- camponesa, a Campanha se subsumiria ao “industrialismo contem- poraneo’, transformando-se em “estabelecimentos meramente indus- triais”. Barcellos integra a narrativa tradicional latifundidrio-pastoril da formacao social sulina singular & nova leitura do Sul, como sociedade de trabalhadores, industriosos e ordeiros, de origem européia, com crescente destaque para os imigrantes que realizariam o destino industrial sulino, prognosticado pela sociologia republicano-positivista. O cativo é expur- gado do cenario social e histérico, como o faria, logo, a sintese pictérica de Aldo Locatelli (Bancettos, 1955, p. 20-38). Histéria Revista, Goiania, v. 11, n. 2, p. 221-250, jul./dez. 2006 O elogio de Salis Goulart Desde meados do século XIX, idedlogos do “racismo cientifico” e do “darwinismo social” impugnavam as possibilidades de progresso do Brasil, em razio de sua populacio mestica e negra, Na Primeira Republica, intelectuais de destaque defenderam a superaciio do handicap étnico do Brasil através do branqueamento promovido pela imigracéo. A partir de 1889, a conquista pelo Partido Republicano Rio-Grandense da hegemonia sobre o Rio Grande do Sul dera-se em parte devido ao apoio da regiio serrana, Na Revolucdo de 1923, o Partido Republicano Rio-Grandense obfeve sua definitiva vitéria sobre a oposicio liberal-pastoril. José Salis Goulart nasceu em Bagé, em 1899, e faleceu em Pelotas, em 1934. Escreveu ensaios de poesia, ficeéo, politica e sociologia. Em 1927, langou A formasao do Rio Grande do Sul, uma apologia sociolégica do passado sulino, visto como produto singular das determinagées do “meio” de “raga” e “sociais’, O livro retomou os mites da demacracia e producao pastoril sem trabalho, aos quais agregou a proposta do carater benigno da escravidao e do destino excelente do Sul devido a “pureza étnica” (Goutarr, 1978, p. 199). Goulart reconhece o retrocesso pastoril diante da propriedade colo- nial, Alfinetando o borgismo vitorioso em 1923, afirma que a “democracia € a liberdade” seriam “necessidades vitais do gaiicho’, jé identificado ao fazendeiro. O desaparecimento inicial da pequena propriedade agricola teria levado o homem pobre a incorporar-se a fazenda, em torno de um “chefe” que manteria “ligages amistosas” e trabalharia ao lado do subordinado. O “povo” sulino desconheceria a “atitude humilde” das “populagoes centrais” pobres, A “abundancia” de “carne” impedia que 0 Sul conhecesse os “bandos de gente faminta, a procurar trabalho” por qualquer sustento, ensejando que o “trabalhador do campo” servisse “es- pontaneamente” o patrao, “seu amigo e, por assim dizer, seu igual” (Gouanr, 1978, p.27-29, 3541). A fazenda organizaria radicalmente a sociedade. Aqueles que nao “possuiam latifiindios” conheciam comumentea “separagao ea dissolugaa” das “familias”. Dominadas pelo campo, as cidades nio conseguiam formar classes que “ofuscassem a populacio rural”. A vida na fazenda era uma “festa continua’, e a vida do gaticho, roméntica e bucélica. © autor supera retoricamente 0 paradoxo da convivéncia da escravidao e da democracia Pastoril a0 propor que o “espirito democritico” campestre formara-se antes da “grande introduco do elemento negro” (Gouaxr, 1978, p. 31, 35, 48, 83). Nério Maest i: Hist6ria e historiografia do trabathador escravizado... 235 236 Dossié Clima e raga O cardter benigno da escravidao sulina se devia também ao fato de que o clima sulino, favordvel ao europeu, garantia & “raga dominante” “superioridade de cultura ¢ de aptiddes” sobre as “outras”. No Sul, os “dominantes” nao necessitavam “tiranizar os dominados’, pois a “sua superioridade era natural, harmoniosa em tudo”. Profundamente “generoso, o rio-grandense soube tratar os escravos [...] com muito maior brandura do que em outros pontos do Brasil”. Goulart escreve um capitulo especifico sobre 0 “problema das racas” no Sul, onde a a hierarquia racial era um dado cientifico, ¢ a “mesti¢agem” representava um “papel importante na génese dos acontecimentos sociais’, ao produzir um ser biolégico “inferior a qualquer dos seus genitores” Retomando de Oliveira Vianna a proposta de que, no Sul, o “elemento branco teria predominado de modo notivel’ defende que esse “contingente de raga branca, fundido com menor coeficiente de sangue indigena e africano’, garantiria o destino sulino (Goutarr, 1978, p. 107). ‘Ao empreender uma limpeza étnica no passado sulino, Goulart reconhece a importante contribuicéo do nativo a populacdo inicial e sugere que a “grande mortandade” dos natives seria decorrente da “vida irregular que levavam’. A “sifilis’, 0 “alcool” ea “variola” teriam-nos dizimado, per- mitindo a “predominancia incontestavel” do “sangue branco” As estancias trabalhavam com poucos bragos, ¢ as “zonas de intensa agricultura” e os “centros de fabricagdo de charque” exigiam “escravaria numerosa’. O “sangue negro” teria desaparecido “bem depressa’, no Sul, “confundindo- se no sangue branco”, A populagio sulina seria em 85% “ariana” (Goutarr, 1978, p. 179-180). Convinha, pois, saudar a “vantagem” do “Sul” por ter tido, sempre, “coeficiente branco maior do que o negro ou indio”, o que Ihe assegurara a “fisionomia” “européia, cheia de humanismo, de generosidade, de probidade’, As qualidades dos “elementos superiores” garantiam-lIhes a capacidade de “guiar para 0 bem os inferiores [sic], evitando que estes se desmandassem, enquadrando-os dentro de objetivos perfeitamente so- ciais’. O futuro ridente do Sul estaria garantido. Com “afluxo sempre maior e cada vez mais crescente do sangue europeu’, os “mesticos” ten- deriam a “retornar, pelo fenémeno de regressio atavica, ao tipo branco” “A grande massa branca que possuimos guiard para destinos superiores © povo gaticho, elevando-o a uma alta posicao no seio da comunidade brasileira” (Goutanr, 1978, p. 107, 170, 188). Histéria Revista, Gotdnia, v. 11, n. 2, p. 21-250, jul./dez. 2006 Pelos caminhos tracados De 1937 a 1945, a ditadura do Estado Novo impés um profundo consenso cultural nacional-conservador sobre 0 Brasil. No Sul, 0 novo regime nao causou rupturas estruturais no que se refere & intelligenzia rio-grandense, pois, em boa patte, apenas nacionalizou a ordem casti- Ihista-borgista regional, que inspirara a propria génese do Estado nacio- nal autoritario. Nas décadas seguintes, ensaistas sulinos - Moisés Velli- nho, Manoelito de Ornelas, Amyr Borges Fortes, Riograndino da Costa eSilva, Souza Docca, Arthur Ferreira Filho e outros ~ apresentaram, meto- dicamente, o Sul como produto quase exclusivo do trabalho livre, sobre- tudo de origem lusitana, divergindo quanto a presenga do cativo e do nativo. A excegao de alguns renitentes como Moysés Vellinho, abandonou- se 0 argumento racista explicito, devido a derrota do Eixo, pela negacao da contribuigao do africano, do afrodescendente e do nativo a construcko do Sul (Genrz, 2005, p. 128 et seq.).. ‘A RESTAURACAO HISTORIOGRAFICA DO CATIVO SULINO Nos anos 30, eram fortes no Brasil as teorias deterministas geogré- ficas e racistas, fortalecidas pelas vitdrias do fascismo na Europa. Desde meados do século XIX, pensadores nacionais e internacionais hipotecavam © futuro do Brasil devido a conformagao racial “inferior” de seu povo, afiancando 0 monopélio da gestio republicana pelas elites brancas. O ingresso das classes populares na arena mundial e nacional questionava essas narrativas, Gilberto Freyre resolveu essa impugnacao racial com a interpretagao apresentada em Casa-grande & senzala e Sobrados e mu- camibos, que justificava a mestigagem como necessaria fundacdo de uma civilizagio ocidental nos trépicos. Sua narrativa adocicava a escraviddo ¢ hierarquizava racialmente o mundo luso-afro-brasileiro. Sobretudo Casa- grande & senzala tornou-se uma interpretago oficiosa da histéria e das relacdes raciais no Brasil. De certo modo, Freyre despertou a intelligenzia da época para as raizes escravistas e africanas do Brasil. Sob a influéncia de Freyre, o advogado Dante de Laytano empreen- deu a primeira investigago multifacetada sobre o negro no Rio Grande do Sul. Laytano nasceu em 1908, em Porto Alegre, filho de imigrantes italianos. Formou-se em Direito, foi professor de Filosofia, Literatura e Histéria em instituigoes secundarias e universitarias, diretor do Departamento de Historia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Museu Julio de Castilhos, membro do Instituto Histérico e Mario Maestri: Histéria e historiografia do trabalhador escravizado... 237 238 Dossié Geografico do Rio Grande do Sul. Nos anos 1930, simpatizava com 0 fascismo e colaborou com 0 Estado Novo. Faleceu, em Porto Alegre, em 2000. Laytano publicou uma vasta produgio literéria, lingiiistica, histé- rica, etnografica, folclérica, de cunho eclético, Em 1936, publicou um artigo sobre o negro no Rio Grande do Sul, “Os afticanismo no dialeto gaticho”, no n, 62 da Revista do Instituto Histérico e Geogrdfico do Rio Grande do Sul e,em 1937, “O negro e 0 espirito guerreiro nas origens do Rio Grande do Sul’, nos Anais do II Congresso de Estudos Afro-Brasileiros de Salvador. ‘Trés anos mais tarde, apresentou a comunicagao “Como viu Saint-Hilaire © negro no Rio Grande do Sul’, no II Congresso de Histéria e Geografia Sul-Rio-Grandense. Em 1942, publicou o capitulo “Alguns aspectos da histéria do negro no Rio Grande do Sul”, no livro Imagem da terra gaticha, da Editora Globo. No artigo de 1937, registra sua aproximagao confusa e eclética & histéria do Rio Grande do Sul, a parcial consciéncia da importancia do cativo, devido aos dados estatisticos e a aceitagio das teses da democracia pastoril. Sua comunicagao de 1957 constituiu 0 estudo mais acabado da &poca sobre a importincia do negro no Sul, sempre apoiado em dados estatisticos. O estudo analisa também 72 casas de cultos afro-brasileiros da capital, submetidas totalmente & “forca espiritual da mitologia suda- nesa”, Laytano destaca o trabalho cativo na triticultura, na charqueada, secundariamente na fazenda, e sua auséncia na colénia alema, Refere-se a libertagao de cativos “do pastoreio” para lutarem na “cavalaria’, e “agri- colas’, na “infantaria’, na Guerra Farrapa, Destaca 0 espirito libertério dos farroupilhas e o fato de o Império ter libertado os negros que desertaram. Serve-se das observagées de Saint-Hilaire e, sumariamente, de Dreys e de Arsene Isabelle, para registrar o trabalho cativo no comércio, nas fazendas, nas plantagdes, nas residéncias, nas tropas, nas charqueadas, Assinala as referencias de Saint-Hilaire e Dreys a0 bom tratamento e desanca a énfase de Isabelle sobre os maus-tratos do cativo no Sul, sem abonar a tese da “escravidao feliz’. Aborda as lendas, causos, tradigGes € registros literérios sulinos sobre 0 cativo. O trabalho registra sua concordancia com a visio de Freyre sobre a capacidade fisica e afetiva do “negro”, sua superioridade ao “indigena” e sua inferioridade a0 “branco” Comprova a importancia do cativo no Rio Grande do Sul e estabelece um roteiro de investigagéo para importantes aspectos da escravidao sulina, Historia Revista, Goiania, v. 11, n. 2, p. 221-250, jul.fdez. 2006 Fernando Henrique Cardoso Os estudos de Laytano nao fizeram escola. Foi a partir do projeto de investigagao das relagées raciais no Brasil, desenvolvido pela Escola Paulista de Sociologia, que Cardoso publicou, em 1962, sua tese de douto- rado pela Difel, de Sio Paulo - Capitalismo e escraviddo no Brasil meri- dional: 0 negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sui. Baseado em fontes primarias impressas, o trabalho constituiu a primeira leitura cien- tifica geral da escravidao sulina. O livro destaca a importancia da escra- yidao no Rio Grande do Sul; critica a “democracia pastoril” e a “escravidao benign’; centra seu enfoque na produgio charqueadora, j4 que procurava discutir, sobretudo, os empecilhos postos pela escravidio ~ “capitalismo incompleto” - ao desenvolvimento da economia moderna, dificuldade que 0 autor explica como produto da incapacidade dos charqueadores de abandonarem a mentalidade escravocrata, A fusao do marxismo, do webe- rianismo ¢ do funcionalismo levaram-no a ignorar 0 cativo como prota- gonista do passado sulino e a fazer uma referéncia telegrifica das suas formas de resisténcia. Apés Cardoso, abriu-se novo hiato nos estudos sobre o escravismo sulino, em parte devido ao golpe de 1964. Em 1976, quando da celebragao oficial do Biénio da Colonizagao e Imigragao ftalo-Tedesca no Rio Grande do Sul, 0 major Cléudio Moreira Bento realizou uma recompilacao geral dos passos do cativo no Rio Grande do Sul, em sentido integracionista, sem preocupacées conceituais - O negro e descendentes na sociedade do Rio Grande do Sul. Nos seis capitulos, sao abordados “aspectos da presenga do negro no Brasil’, o “negro no Rio Grande do Sul”, nos diversos momentos da histéria sulina ~ 1635-1735; 1737-1822; da Independencia & Guerra Farroupilha; de 1851-1870; “do abolicionismo & atualidade”, Em 1977, Nestor Bricksen publicou, junto com o trabalho sobre a imprensa, sua conferéncia de ingresso no Instituto Histérico e Geografico do Rio Grande do Sul - “O negro no Rio Grande’. Ver6nica Aparecida Monti defendeu, em 1978, na Pontificia Universidade Catélica do Rio Grande do Sul, a dissertacao O abolicio- nismo: sua hora decisiva no Rio Grande do Sul - 1884, publicada em 1985. Dedicado 4 libertacao de 1884, 0 trabalho destaca a evolugao do ideal emancipacionista, de cunho humanitério, como razio do movimento, nao se constituindo em estudo sobre a escravidio propriamente dita. 0 trabalho abre-se com uma breve discussao sobre a introdugao e resisténcia do cativo e sobre a génese do sentimento abolicionista no Brasil. No segun- Mario Maestri: Histérla © historiogratia do trabalhador escravizado. 29 240 Dossié do capitulo, “Negro no Rio Grande do Sul", Monti aborda a entrada, a quantidade, a qualidade ea origem do cativo no Brasil e no Sul, registrando a presenca precoce do cativo na triticultura, na charqueada, nas cidades sulinas. Propoe a presenga e reafirma a pouca importancia do cativo na fazenda pastoril. O terceiro capitulo aborda o objeto da pesquisa: a aboligao da escravatura sulina em 1884, Refere-se aos precursores individuais e cole- tivos do movimento e 4 “Paz de Ponche Verde” dos farroupilhas libertarios. Dedica o quarto capitulo & “expansao da idéia” abolicionista, com destaque para o Partenon Literério, imprensa ¢ literatos. No capftulo “A marcha e a repercussio do movimento’, discute a “distribuicdo do elemento negro” no Rio Grande do Sul; a “irradiago popular do movimento” no Brasil, em Porto Alegre e no interior da provincia, apés a Fala do Trono de maio de 1884; os “clubes abolicionistas” e 0s “partidos politicos diante da aboli¢ao”. Conclui com a discussio dos “efeitos do movimento de 1884” No trabalho, é forte a influéncia do estudo de Laytano de 1957. Monti aborda 0 movimento de 1884 como produto de sentimento humanitério que conquistara os proprietarios sulinos apés 0 pronun- ciamento de Dom Pedro, sob o ministério liberal. Realiza quase uma transcricdo textual das narrativas dos jornais provinciais, principal fonte do trabalho, sem registrar a obrigagao de prestagao de trabalho gratuito dos libertados. Na longa abordagem, nao hé registro da luta abolicionista e de seu reflexo entre os cativos. O trabalho utiliza a bibliografia tradi- cional, dos anos 1930-1950, sem referéncias & nova historiografia sobre a escravidao a aboligao. Sobre o Rio Grande do Sul, serve-se sobretudo do trabalho de Nestor Ericksen e nao utiliza o de Cardoso, Abolicao e positivismo Em 1982, Margareth Bakos apresentou, na Pontificia Universidade Catélica, uma dissertagao sobre a aboligao da no Sul, apoiada sobretudo nos jornais do Império, publicada sob o titulo Rio Grande do Sul: escra- vismio e aboli¢do. © liveo possui cinco capitulos ~ “O escravo na formacio social sulina’, “O Rio Grande do Sul no contexto sécio-econdmico do II Império”, “O processo de aboli¢ao e os partidos politicos’, “O processo de abolicio e os republicanos positivistas’, “O processo da aboligéo ¢ a imprensa’, Bakos visita a nova historiografia da escravidao. Favorece seu trabalho a edicao, em 1975, do clissico de Robert Conrad - Os tiltimos anos da escravatura no Brasil. Histéria Revista, Goianta, v. 11, n. 2, p. 221-250, jul./dez. 2006 Apresenta uma bibliografia mais rica sobre 0 Rio Grande do Sul que a de Monti, permitindo a superacao de narrativas ideolégicas, como © abolicionismo farroupilha ¢ a abolic’o de 1884. Bakos praticamente nao se refere ao estudo de Monti e registra que aquele movimento condicionou a emancipacio do cativo a prestagio gratuita de servigos. A redemocratizagao do pais, 0 novo ativismo sindical ¢ os novos enfoques materialistas da escravidao refletem-se na pesquisa, que se serve, sobre- tudo formalmente, de categorias como “formagao social” e “modo de produgio” Bakos estabelece um paradoxo em seu trabalho. Por um lado, registra que “quatro anos antes da aboligio’, o Rio Grande do Sul encon- trava-se “entre as provincias de maior populagéo escrava no Brasil”; que na provincia havia uma “resist¢ncia socialmente determinada a abolir a escravatura local”; que a divisio dos republicanos sobre o abolicionismo devia-se a causas econdmicas. Por outro, defende a pouca importancia econémico-social da escravidao, na ultima década da instituigao, afir- mando que a disputa abolicionista tratava-se sobretudo de questo parti- darista. Essa contradigéo contribui para que seu trabalho, como o de Monti, desenvolva-se sobretudo no plano da anilise da vida politico- partidaria e superestrutural, sem inserir 0 cativo como sujeito ¢ objeto da disputa. Nos fatos, seu objeto é elucidar a agao de liberais, conservadores ¢ republicanos sulinos no abolicionismo (Bakos, 1982, p. 10-19). O cativo como protagonista Em fins dos anos 1970, o Brasil ingressa em momento histérico singular, com importante influéncia nas ciéncias sociais. No contexto da crise geral do capitalismo de 1970, 0 renascimento da luta sindical influ- enciou a mobilizagéo pela democratizacdo do pais. A fundacio do PT (1980) e da CUT (1982), em sentido classista, registrou a centralidade que 0 mundo do trabalho ocupou no processo. Nesses anos, como parte da superagao da vulgata stalinista e do renascimento da reflexdéo marxista, desenvolveram-se reflexdes sobre os muiltiplos modos de produgio. Fla- marion Cardoso publicou artigos sobre o “modo de produgio: em 1973, escravista colonial’, e, em 1978, Jacob Gorender publicou uma reflexao apresentada, sob forma de critica categorial-sistematica, intitulada O escravismo colonial, que alcangou grande sucesso. Em 1980, Mario Maestri, nascido em Porto Alegre, em 1948, que vivera afastado do Brasil por sete anos, apresentou sua tese de douto- Mario Maestrt: Historia © historiogeafia do trabalhador escravizado... 241 242, Dossié ramento O escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a génese do escravismo gaticho, na UCL, Bélgica, onde se graduara em Historia. O trabalho foi publicado, sob o mesmo titulo, na sua quase integralidade, em 1984, pela EST, de Porto Alegre. Ele procurava apoiar-se epistemolo- gicamente no marxismo e objetivava colocar 0 cativo como eixo interpre- tativo da histéria sulina. Seus grandes objetivos eram: comprovar a contribuigao do cativo na formagao sulina; assinalar a centralidade da produgéo charqueadora no proceso; ¢ investigar a resisténcia escrava sulina, uma realidade entao ignorada. Em 1984, propostas da investigacao foram apresentadas em O escravo gaticho: resistencia e trabalho, da Brasiliense (na Colegio Tudo é Histéria). Em 1983, Berenice Corsetti defendeu na Universidade Federal Fluminense, sob a orientagio de Flamarion Cardoso, a dissertagao de mestrado Estudo da charqueada escravista gaticha no século XIX, uma inter- pretacéo de cunho materialista, de alta qualidade analitica ¢ documental, que, lamentavelmente, nao foi publicada. Nesses anos, historiadores sulinos abordaram aspectos do escravismo rio-grandense - Moacyt Flores, Rafael Copstein, Sérgio da Costa Franco, Paulo Xavier, Riopardense de Macedo ¢ outros. Em 1979, Spencer Leitman publicou em portugués sua tese de doutoramento, na qual enfatizou o carater nao-abolicionista dos farrapos e o sentido do massacre dos soldados negros em Porongos. As vastas celebragdes do I Centenario da Abolicao, em 1988, deram- se no contexto da institucionalizacao do pais, em 1985, e do dinamismo do mundo do trabalho, que contribuiram para 0 desenvolvimento do interesse pela historia da escravidao. Devido a falta de um pélo univer- sitério de pesquisa sobre o tema e a visio da escravidio como fendmeno marginal, no Rio Grande do Sul, os atos comemorativos nao tiveram a dimensio nacional, constituindo mais um ponto de partida do que um momento de aceleragao das investigacées sobre o tema. Foram realizados levantamentos de fontes da escravidao regional ~ Aboligao e reptiblica: Acervo do Arquivo Histérico do Rio Grande do Sul (Porto Alegre: EST) - e, em 1987, da legislacao sobre a escravidéo - O processo legislative e a escravidao negra na provincia de Sao Pedro do Rio Grande do Sul: fontes (Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul). O ntimero 125 da Revista do Instituto Histérico e Geografico do Rio Grande do Sul publicou artigos sobre a escravidao de Arthur Rebuske, Dante de Laytano, Earle Macarthy Moreira, Riopardense de Macedo, Moacyr Flores, Raphael Copstein, Ruben Neis, Sérgio da Costa Franco. Histéria Revista, Golanta, v. 11, n. 2, p. 221-250, jul./dez. 2006 Nicleo de Historia Social da Escravidao Desde 1989, Maestri introduziu, como professor do Mestrado em Histéria da PUC-Rio Grande do Sul, uma linha de pesquisa sobre a escra- vido, a partir de Nucleo de Histéria Social da Escravidao (NHSE), que materializou o novo interesse sobre o tema. Como parte desse movimento, foram defendidas dissertagdes de mestrado ¢ teses de doutoramento referentes 4 escravidao, sobretudo sulina, centradas na contribuigéo do trabalhador escravizado e seu descendente na formagao sulina. Em dezembro de 1992, Agostinho Mario Dalla Vecchia defendeu a dissertagao de mestrado Os filhos da escravidao: memdéria dos descendentes de eseravos da regido meridional do Rio Grande do Sul, publicada, em 1993, pela EdiUFPel. O trabalho, pioneiro no registro da memoria afro-sulina, apoiou-se em 32 depoimentos de antigos domésticos, pedes, agregados, “filhos de criagdo”, negros pelotenses. Como a maioria dos depoentes declarou serem “filhos de criagao”, Dalla Vecchia empreendeu, também na PUC, sua tese de doutoramento sobre esse fendmeno, comum as familias afrodescendentes na pés-aboligao. Na tese As noifes e os dias: elementos para ume economia politica da forma de produgao fithos de criagao (1997), publicada, em 2001, pela EdiUFPel, ele apresenta os elementos essenciais de economia politica dessa forma de exploragio. Em maio de 1993, a arquiteta Ester Judite Bendjoya Gutierrez defendeu a dissertacdo Negros, charqueadas e olarias: um estudo sobre a evolucdo do micleo charqueador pelotense (1780-1888), publicada em 1993, pela EdiUFPel. No trabalho, ela define a tipologia espacial, construtiva e funcional das unidades charqueadoras escravistas, sua mao-de-obra, 0 entorno produtivo ¢ habitacional, comprovando que muitas charqueadas possufam olarias, onde os cativos trabalhavam na entressafra. O provavel uso intensive do cativo na construgao civil ensejou que desenvolvesse € concluisse, também na PUC, em 1999, sua tese de dontoramento sobre 0 tema, que abordou, entre outros aspectos, as tipologias da arquitetura urbana erudita e a mao-de-obra utilizada nos canteiros da cidade, com destaque para os cativos, ocupados nos trabalhos mais duros ¢ sujos. As condigdes de existéncia e satide da populacdo cativa foram abordadas no trabalho, publicado, em 2004, pela EdiUFPel, Barro e sangue: mdo-de-obra, arquitetura e urbanismo em Pelotas (1777-1888). Em 1991, também preocupado com a contribuicdo do cativo & construcao civil no Sul, o historiador e arquiteto Gunter Weimer empreen- deu um vasto levantamento nos antincios de jornais sobre cativos de Mario Maestri: Histéria e historiografia do trabalhador escravizade. 243 244 Dossié Porto Alegre. Ainda que a fonte escolhida tivesse sido avara sobre os dados procurados, a investigacéo - O trabalho escravo no Rio Grande do Sul (Porto Alegre: Sagra/EdiUFRGS) ~ fornecen uma preciosa informagio sobre a populacao cativa, com destaque para o cativo fujao. Escravidao urbana Na PUC do Rio Grande do Sul e no Niicleo de Estudos Histéricos e Lingiiisticos (NEHL), foram concluidos quatro trabalhos sobre a escravidao urbana no Rio Grande do Sul. Em junho de 1993, Ana Simao Folkembach defendeu a dissertagéo Resisténcia e acomodagéo: aspectos da vida servil na cidade de Pelotas, na primeira metade do século XIX, publi- cada na Colegio Malungo, da Editora de Passo Fundo, em 2002. O trabalho abordou as manumissées, a familia escravizada, as resisténcias, a sexuali- dade, a satide dos cativos, bem como as relagées entre livres, forros e escravizados. Em junho de 1993, Rita Gattiboni defendeu o trabalho Escraviddo urbana na cidade de Rio Grande, em que, a partir sobretudo das cartas de alforria (1874-1879 e 1884-1885), dos relatorios dos presi- dentes da provincia e antincios de jornais, discutiu as condigdes de exis- téncia dos cativos em Rio Grande. Em abril de 1994, Valéria Regina Zanetti Almeida defendeu a disser- tagao Calabougo urbano: escravos e libertos em Porto Alegre (1840-1860), publicada, em 2002, na Colecio Malungo. O trabalho reafirmou a impor- tncia do cativo na capital, como artesio, doméstico, cativo de aluguel, ganhador etc. Valéria enfatizou o cotidiano da populacio liberta e escra- vizada ~ condigées de trabalho, existéncia de relagdes interpessoais, Em maio de 1994, Carmen Liicia Santos Castro apresentou a dissertagao Ferro de brasa, tacho de cobre, puxados timidos: cotidiano das mulheres escravizadas em Porto Alegre: século XIX, sobre o duro cotidiano da mulher cativa, na capital sulina, nas moradias, ruas, quartos de aluguel, como amas-de-leite, lavadeiras, cozinheiras. Em setembro de 1994, o economista Solimar Oliveira Lima desen- volveu, na PUC-RS/NHSE, a dissertacao Resisténcia e punigdo de escravos em fontes judiciais no Rio Grande do Sul: 1818-1883, editada pela PUC-IEL, em 1998, ¢ reeditada na Colegio Malungo, em 2006, Esse trabalho se apdia no estudo dos processos de 131 cativos, julgados por uma junta criminal de Porto Alegre, sendo condenados a trabalho forcado, degredos, galés perpétuas e enforcamentos, bem como a mais de 40 mil acoites, O trabalho traga um fino quadro dos rigores e das condigées de vida na escravidio Historia Revista, Goiania, v.11, n. 2, p. 221-250, jul./dez. 2006

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