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ON TTem Toe! Chocolate a Chuva Con, Onaas ow Atsce Vien TRosa, Mivin tak Rosa, Prémio de Literatura tft «Ano Inter. facional da Crianga>, 19% edo, 2006 » Lorn 12, 2° Fanca, 15. tio, 2006 * Ciocoiamt A CHWWA, 13° edi, 2007 + A EsPaDa oo Thur Arosso, 11. edigto, 2001 * Este Ret Que Bu Pscoun, Prémio Galogste Gulbenkian de Literati sligio. 2001 + ‘Ganon v Discancas ba Con tr Bien Taboo, 18° edigio, 2007 houas om Venn, ego, 2008 + Fuot pe Min. 8° igo, 2008 + Vinain A Roa oo Meu Nowe, 10° digo, 2006» PAULINA 40 PASO. 3 eaigao, 1999» As Daz a Poca Prev, 6° edigh, 2000 © A Lin ho Bora A Vanna, 9° aligdo, 2006 * Urata, « Maton. 7° edgbo, Dra? * Ox Outen oe Ans Mls, 52 eigho, 2004 + Lexsioko, RE 08 Henin 6 edigho, 2004+ Prenacnrono Ba Lu. 52 eigbo, 2006 * ‘Canons Ast 4 lg, 2005» Se PokounTataw Yor Mis Daas ‘a Vows edge, 2008 * USB pe Fuso nos Covras oo Max, 2° ‘to, 2001 » Tsavet Pats A Car, 8 eg, 2007» Vie Cen ‘Sears, 2 eligho, 2004 + O Css Ox Mans Mas 205, Con, Hasromias Twnconss Powrucu sss ‘Conn, Cone Canaciite, 2° ego, 2000 © Ust Lanes Draaino 0 {Case 1991» Pra, Pac» Esra, 1991 + A Amos po Ria 1991 * eavo po Cairo # Rato 0% Cina, 192 Praag e Peas. 1992 = Manin pas Shas, 1992 + Drsawon Caco, 1992 * As Ths Fuasoewas, 1098'* A Bina Meuna, 1993 * 0 Corio BRAvoun £6 Foams Rano, 1996+ O Passo Veaue, 1994 + Os Ants 90 Dian {008 * © Grassin sas Tals ns, 1998 © Masons Paraastns, OVS Casranss, 2003» As Mornas we Ouno oe Peto Post, 2003 Cox. Masromias Taaoicsonsss Pontus. Nove sexi “A Macross tx Mesa Tota 0 Cowbko DOvRABO, 2006 © Karo ‘no Cound # Rao 0% Conoe t JOK0 GkAO 14 Miao, 2006, Ovrmas omnas isa Late, 1993 + Bu Best Vi Nascan 0 Sot; 6 ego, 2008 © Puan: fe Porat, 1997 # Contos & Las i Maca 2002 * 2 Hisromins fe Natal 2002 * Rot, Mii Hk Ross, ego comemoraiva do 25° niversao da primeir edi, 2004» Doss Cases Tenanoo w4 AdUA, 2007 \ Bibliot: pe, Reaien@ Alice Vieira Chocolate 4 Chuva 15 edigto (CHOCOLATE ACHUVA Livro impreso em papel ofc standard Capitulo 1 Fizemos malas, desfizemos malas, vamos embora, nao vamos embora, tira o mapa da gaveta, volta a por ‘© mapa na gaveta, cuidado nao te entales, contimos 0 dinheiro pela 146." vez, a Rosa tolinha de todo a aumen- tar ainda mais a confusio agarrada as nossas pernas a gritar «eu tenho cinco réis como a Carochinha», e © meu Pai com aquele ar de quem nao esta para achar graca nem 4 filha mais nova, quanto mais. ‘Nao hd diivida: férias sao rica invengio, sim senhora. Gasta-se mais dinheiro do que nos outros dias (diz 0 meu pai), cansamo-nos mais do que a trabalhar (diz a minha mie), deixamos a casa fechada © sozinha o que é um Perigo (diz a minha av6), nao vou dormir na minha caminha e com a minha almofada (diz a minha irma), ‘zangamo-nos todos & partida, & chegada, e quando nao se encontra 0 lugar para arrumar o carro (digo eu), mas nao ‘hd nada melhor neste mundo, 6 gentes! Admirarmos os rigs, os riachos, os montes, os vales, ¢ © meu pai acaba Sempre por dizer «ha la coisa mais linda que o Largo 5 de Outubro», que foi onde ele nasceu em Vila Flor, as trés ¢ meia da tarde, ¢ a minha mae pronto, amua até dali a ‘um quarto de hora que é quanto duram os amuos dela Durante esse quarto de hora, 0 meu pai aproveita para gabar, pela 486.* vez, as maravilhas do seu largo, da sua terra, da gua das suas fontes, da cor dos ovos, do sabor das couves, © do. som dos sinos. Depois encavalita a Rosa num dos jocthos e pergunta — Rosinha, 0 que € que acontecew no 5 de Outubro? E a minha irma, muito bem mandada, responde: — A Repiblica. ‘Mas engasga-se pelo meio da palavra, que é grande de mais para 0 trés anos dela, e pée «rr» onde eles nao existem, e tira 0 «1» donde ele devia estar, e fica assim uma repiblica um bocado as trés pancadas, mas o sufi- ciente para o meu pai estalar de contente: — Rica menina! Comeca logo a assobiar o hino nacional, depois passa Para o da restauragio, e ai a minha mie decide acabar ‘© amuo, antes que venha também o da Maria da Fonte, que nisto de hinos patriéticos ninguém leva a palma ao meu pai. Mas como eu ia dizendo, no ha nada melhor que as férias. O ano passado tinhamos decidido ir até Espanha, Mais propriamente Sevilha e Granada. ‘© meu pai foi buscar 0 atlas e mais o mapa que tem Sempre no carro, e logo ali comecamos a viajar com os dedos — 0 que, diga-se de passagem, é bastante mais ‘econémico © menos cansative. E com um bocadinho de imaginacao, sempre se vai conhecendo alguma coisa. Sé ‘nao se mandam bilhetes-postais aos amigos. — Estas a ver, a gente pode sair de casa cedinho. (Cedinho ¢ palavra que ele usa quando nos quer fazer Jevantar da cama 3s quatro da manba.) — ... vai direito a Vila Real de Santo Antonio, atra- vessa a fronteira em Ayamonte, segue por Huelva ¢ num instantinho esta em Sevilha. Otha aqui. famos seguindo o mapa onde, em duas piginas segui- das, se estendia a Peninsula Thérica. Ali realmente era tudo um instantinho. Da fronteira a Sevilha era so uma distancia igual a metade do meu indicador. ‘O meu pai, depois de breve paragem, metia de novo a primeira e arrancava, agora para Granada $ — Depois davamos ainda um salto a Cordova, viamos 4 mesquita, ouviamos as historias do guia sobre 0 Manolete. (Aqui eu interrompi para perguntar quem era 0 Mano- lete, ele explicou-me que tinha sido um grande toureiro ‘morto em plena praca pelo touro, ¢ tornou a embalar.) — ... divamos por lé uma volta e num instantinho estivamos em Granada, Mania que as pessoas tém do «instantinho». Quando no sabem medir 0 tempo ¢ se querem convencer de que tudo é facil e & medida dos seus desejos, Ia thes rebenta {da boca 0 instantinho. Lembro-me que, no dia em que a Rosa nasceu, toda a gente me jurou que ela ia crescer ‘num instantinho. Mas com instantinho ou sem ele, a ideia parecia ter pegado. Logo ai comecei a tentar aprender algumas pala- ‘vras de espanhol, apesar de toda a gente dizer que 1 € lingua que todo 0 portugués ji nasce a saber . © pior so as dificuldades que surgem quando ‘mesmo preciso falar. Por isso, como pessoa previdente ‘que sou (ah! ah!) arranjei logo um daqueles livros de ‘aprender linguas a pressa, © passado uma semana estava ‘pronta a dizer inimeras coisas dteis para a minha viagem, a saber: — 0 chineses sio amarelos; meg; © “tide da minha amiga é mais comprido que © canivete do meu avé é de boa marca; — 08 cavalos dormem de pé; — desculpe, mas nao acredito em fantasmas; © seu nariz tem uma verruga; = prefiro tinto, obrigada. E outras frases ‘mais ou menos neste estilo. O que, com uns bons . (© meu pai é um adepto fervoroso do campismo. Se pudesse levar com ele 0 colchio de molas, a casa de banho com banheira, esquentador, dguas frias e quentes, © sofa do escrtério, a estante dos livros, o telefone e & televisio, acho mesimo que podia perfeitamente i acam- par a Sevilha, Ou até viver sempre num parque de €ampismo. Assim, nao tem outra solucio sendo gabar as vvirtudes de tio salutar pritica, enterrado no sofia fazer 488 palavras cruzadas, ¢ a fumar o seu cachimbo. Pelo sim pelo nao (0 progresso caminha tio depressa que nao tarda 4 ser possivel levar tudo isso para debaixo de uma tenda.. ‘onieu pai é sécio de um clube, em as quotas em dia, e rece- be pelo correio o boletim, que evidentemente nunca Ie "Também nio sou assim tao azelhal Se a gente seguir as instrugses, nio vai ser nada do outro mundo por a tenda de pé. ” — Claro que nio vai, mas garanto-te que ainda leva 0 Seu tempo. Uma vez uns colegas meus foram acampar Para Franca com tenda emprestada. Era assim uma tenda lultramoderna, insuflavel, nem era preciso os tubos. de ‘armacéo nem nada, uma maravilha, diziam. Quando che- ‘garam ao primeiro parque, jé era noite, tiraram tudo para fora do carro ¢ s6 entio ¢ que repararam que niio tinham. Jevado a bomba de encher. Ninguém tinha nenhuma ‘aqueles sitios, as lojas estavam todas fechadas, tiveram outra solugao senio tomar a meter tudo dentro do Carro marchar para um hotel. Levaram o resto dos dias de loja em loja a procura da bomba que néo havia em Parte nenhuma. Ou eram grandes de mais, ou cram Pequenas de mais. E a viagem que era para durar um més, em: Franga, acabou por durar uma semana s6 em Espanha, que em hotéis se tinha gasto entretanto o dinhei- 10 todo. lao hi diivida que me estés a dar grande forca € animacao! Esta descansada que a tenda da Claudia ¢ berm antiga, arma-se como todas as outras e no precisa de ‘bomba nenhuma. E ela esti mais que habituada a acam- ar, sabe bem como ela se monta. De resto, até foi dela ue partiu a ideia. Ficimos logo todas a berrar de conten- tes, menos a Susana, claro, que nao sabe se a mie a deixa . Estis a ver a Susana toda de caracéis e vestidos finos a andar em tendas de campismo? Acho que ela daria tudo Para ir conosco, sujar-se, arranhar as pernas, amolgar os Joclhos, sei 1a, mas com aquela mie... Olho para a minha mie. Faco-Ihe uma festa, ¢ vou Para o meu quarto comecar a arranjar as coisas que preciso de levar para o acampamento deste fim de ano lectivo. E acho que ela tem razio: vio fazer-me falta as ‘suas mos a entalar-me, a noite, a roupa da cama. Mas que ninguém sonhe! unde A professora chamou-nos de parte, ja mew ‘tinha entrado para a camioneta. : moots v0 a8 duss no banco, 20 pé da Maria do e eu queria pedir-Ihes um favor. lela Oe or socks ode gor Con ce ‘andado um adoentada, nada de importante, mas enjoa muito ‘anda de automével ¢ de camioneta. Eu bem sei daqui a Almomos a viagem ndo € grande, mas se ‘@ animassem, durante 0 caminho, talvez ela conse ‘no vomitar. ‘Na camioneta estava jé tudo a postos para a partida. dizer: todos encavalitados uns mos outros, o Ricardo ‘avidezinhos de papel cabeca da Margarida, Sofia a fazer bolinhas com 0 miolo do pao que ainda 9 nijo acabara de comer, disparando-as depois com toda 4 pontaria que Ihe era possivel para 0 cabelo do Zé Pedro, enquanto a Teresa, mesmo a0 lado dela, berrava em voz esganicada © olho matreito =Josezito, ja te tenho dito / que nio € bonito / andares-me a enganar» — Isso € comigo? Perguntava 0 Zé Pedro, — Nao. E com 0 leio do Marqués de Pombal! Respondia ela, enquanto a Sofia mandava mais uma bolimha para, dentro da cabeleira do Zé. A Mara do Céu ‘se mexia, para ver, com certeza, se aguentava 0 caminho sem azar de maior. ‘Nem a deiximos respirar. Mal a camioneta arrancou comegamos logo a animagao, lembrada eu da pratica adquirida nestes dltimos anos’ com a Rosa, para quem também é preciso inventar milhentos jogos de automével Para a distraimos do vémito que, senso, chega inevi- tivel — Comecamos por adivinhas ow jogos de cabesa? Pergunto a0 ouvido da Cliudia — Jogos de cabeca € capaz de nao ser bom. Ela ppSe-se a pensar muito e entio & que vem mesmo 0 enjoo. Nao ouviste 0 que disse a «setora- ha bocado? O que € preciso & animé-ta. ‘Arrisco, , tenho a certeza. Nos & que ja viamos tudo a andar a roda. Era como se de repente as adivinhas se misturassem “com 0s provérbios e com os movimentos da camioneta "com a buzina nas curvas, tantas curvas aquela estrada tinha, ‘Santo Ambrésio!, e a galinha da minha vizinha andasse por “ali entre as nossas pemas a procura de alfinetes e de cartas, “que levavam dentro nao sei quem, ¢ um francés levantado ‘meia-noite comecasse a perguntar a todas em que més vamos, © sempre a buzina em todas as curvas, ¢. — «Setéra>, peca ai ao senhor que pare a camioneta instantinho! Gemeu a Cléudia, © nds todos com ela ‘Saimos com a cabeca tonta ¢ 0 estémago, subita- emte, a0 pé da boca. “Muito direita, a olhar para a frente, no seu banco, “Maria do Céu’ continuay: | =... alfinetes, avelis, agulhas, alcatruzes, amoras. ‘Othando-nos, sorridente e fresca, pelo vidro da jancla, 2B a Capitulo 5 ‘Pela 648.* ver a Claudia gritava: ‘Vi li, leiam isso como deve ser seno nunca mais daqui “«Daqui> era a meia diizia de metros que nos cabiam ‘no parque para colocarmos a tenda, © que tantas vezes apanhado com os tubos metilicos em “que jé comecavam a fazer buraquinhos como de formigas. TA gente ja te leu isto centenas de vezes! Aqui tudo, $6 no explica 0 que se hi-de fazer contra jeito! Wa a Isabel que, desde que o acampamento ‘na escola, sempre duvidara dos conhe- ‘campistas da Claudia. 2s E acrescentava, para a irritar ainda mais: — Afinal, tanta coisa, tanta coisa, e vai-se a ver sabes tanto disto como qualquer de nés! — O meu pai € que costumava armar a tenda ¢ eu ajudava-o. Parecia-me tio fécil quando olhava para ele 4 encaixar esta tubaria todal Mas agora. — Agora — digo eu — também nio hi-de ser assim tio dificil, Santo Ambrésio! Este parque esti cheio de barracas. —Barracas & 0 que a gente esti aqui a dar! Gritou a Isabel, saindo de ao pé de nds para se livrar (por uma unha negra) do tubo de pomada contra as formigas que era o que de mais & mio a Claudia encontra- +a para the atirar & cabeca. Para animar ainda mais este ji assaz brithante panorama, a Maria do Céu, fresca que nem uma alface (que nunca mais ninguém me falasse em animé-la!) © que ficava com mais duas numa tenda Pequena ao lado da nossa, achou por bem vir meter 0 hariz € fazer a pergunta sacramental: — Entio a tenda ainda aio est armada? AA isto chamo eu perguntas oportunas. Como quando centro em casa, depois da escola, € a minha avé Elisa diz sempre, sempre, em 13 anos que eu levo desta vida, «ji chegaste? ‘Antes que a Cléudia deitasse mio de novo ao tubo da pomada das formigas, respondi: — Esta, claro que esta armada. Mas como nio tinha- ‘mos nada que fazer, decidimos desmanchar tudo outra ‘vez para nos entretermos. Que é que pensas, somos capaz de ficar assim, monta-desmonta, monta-desmonta, 0 fim- sde-semana todo. E divertido que nem imaginas! — Pronto, pronto, nao se iritem, $6 vinha saber se pre- cisavam de ajuda! Como montimos a nossa tao depressa —Pudera! A vossa é uma canadianazita miserivel, conde nem sei como vio caber as trés deitadas! Esta ¢ um aldcio! — Para meu gosto falta-Ihe 0 salio de baile, os fogies de sala, ¢ os azulejos do século.xvit, mas mesmo assim nao esti mal, no senhoral E a Maria do Céu desandou a rir dali para fora. Acalmada a Cléudia, recomegamos trabalho. Vi, enfia la esse tubo com jeitinho, como diz aqui no papel. Nada de forcas. Muito jeito & que € preciso, Vf... Isso... Roda mais para a direita... Agora mais para ‘a esquerda, re Depois de virias tentativas, depois de virias vezes termos entalado 0s dedos ¢ gritado entéo as habituais bbonitas palavras que nestas alturas sempre se gritam, a ‘estrutura metilica ficou armada. S6 faltava, realmente, 0 “salio de baile, os fogdes e os azulejos. Que é como quem diz: 6 faltava por a lona por cima. A lona era azul- “sescura, muito resistente, e, como vinha nas instrugdes “(que eu ja sabia de cor, de trés para a frente e de frente “para tris) com tecto duplo para proteger da chuva. Quase Jinconscientemente olho para o céu. Era s6 0 que faltava ‘agora viesse uma carga de gua. Mas, como os livros “Ge Hivcin costumam dcr quando fal dos das das lugdes (vitoriosas, é Sbvio), nem uma nuvem toldava éu. Respirei um pouco mais’aliviada. Ao menos isso, Ambrosio! ae Pegémos na lona e atirimo-la por cima dos tubos jé (finalmente) encaixados uns nos outros. Ou porque ‘forca fosse de mais, ou porque o jeito fosse de menos, -verdade € que de repente, sem a gente ter tempo de (© que estava a acontecer, fomos atacadas por um monstro de muitos tubos que se desencaixavam e vam ¢ batiam nas nossas cabecas e nas nossas 5, € & gente queria sair dali para fora mas quanto esbracejivamos mais a lona se enrodilhava nos ‘bragos e volta do nosso corpo como aqueles sigantescos que a gente vé nos filmes, s6 que aqui hhavia o super-homem, nem a supermuiher, nem 0 a ee: ‘Sempre bois ide in berra «larga-me os go entio, para maior ‘em cima o pano esbranqui- ado do duplo tecto (convenhamos que se fosse de est. ue tinha sido bem pior), e uma pasta esquisita, com 4 petrdleo misturado com acicar queimado, come ‘sa a espalhar-se pelos nossos dedos, pelos nossos bragos, «ai que li se. vai a minha pomada contra as formigas!: ‘geme « Cliudia, ea gente nio sabe se hi-de comegar a rir Ou a chorar, o calor é muito e abafa-se dentro daquilo tudo, até que ouvimos a voz da professora de Trabalhos dizer, do lado de lé daquela montana de lonas ¢ aqui o Sr. Ernesto que vos vai dar uma ajudinhal Desgrenhadas, besuntadas, encaloradas, baixo do nosso esplendoroso palicio em ruinas. Foi entio aimos de- ue jurei, cé para mim, que 0 meu primeiro filho hi se chamar Ernesto, de i Vida, vida! Esquece muito a quem nio sabe! 1d ia martelando, enroscando, dando nés, alisando es ce cto poor cee or tal capegss Sle re shear: tudo dali a dois ‘nem me atrevia a abrir a boca, Era verdade que dormir quatro ou cinco ali dentro, mas se a tenda ‘em ver de ser este palicio fosse uma das tas — Pobre © mal agradecida — havia certamente de dizer a minha avé Elisa se aqui estivesse ¢ ouvisse as alavras que eu disse s6 para mim. Ri-me de pensar nisso. Eno que diriam todos 1a em casa se me vissem Inestes assados. E como iriam os planos da viagem « Espanha. Bom, mas o importante era estar tudo resolvido: nao famos dormir ao relento, e de certeza que, depois da agilidade das maos do Sr. Ernesto («Ai vida, vida, ‘esquece muito a quem nao sabe!-), nem com a maior das tempestades a tenda iria cair. 434 quase & noite chegou a Susana. Cheia de caracéi (devia ter saido hi pouco das mios do cabeleireiro), € ‘com aquele ar triste que ela as vezes tem, um ar de quem gostaria de ser outra pessoa. Ha gente assim. Olha-se para clas e vé-se logo que clas gostariam de estar dentro doutra pele, ver as coisas por outros olhos, mexer nas coisas por outros dedos. Parece que estoiram na pele que é a sua. Ou que mirram dentro dela, 0 que, no fundo, € quase o mesmo. Tirou um malio enorme de dentro do carro, «se aquilo vai para dentro da nossa tenda, € menos uma que 1 cabe>, pensei, mas logo me arrependi porque eu gosto muito da Susana ¢ sei que, por vontade dela, teria vindo ‘connosco logo de manhazinha, com toda a sua bagagem dentro de um saco ow de uma mochila. ‘A mie ¢ © pai sairam de dentro do automével e estive- ‘am tempos sem fim a bichanar com a professora de Traba- thos Manuais, olhando em redor com ar vagamente desconfia- do. A professora s6 dizia que sim ou que niio com a cabesa, ¢ devia estar a pensar noutras coisas pelo sew ar ligeiramente divertido. Por fim, meteram-se no carro e foram-se embora —nio sem terem chamado a Susana de part, ¢ igualmen- te bichanado com ela um bom quarto de hora. ‘A mala da Susana estava jé na nossa tenda, ali especada no meio, cheia de autocolantes coloridos de hhotéis instalados em lugares que eu s6 conhecia do atlas. 30 —Podemos nao ter salo de baile nem fogies de sala, mas pelo menos jarrao chinés jé Disse, a rir, a Cliudia, apontando para a mala tio despropesitada no meio dagucle chao cobert de mochias meio desfeitas, onde os casacos de malha se misturavam “com tubos de’ pasta para os dentes, chocolates, sacos- “cama, sandélias, toalhas de banho, embalagens de leite latas de conservas. A Susana nio disse nada. Pegou na mala ¢ arrastou-a aié um canto da tends. © — Pronto, fica ai, de pouco me hé-de servir. Trago ‘de coisas initeis, e nada do que € preciso. — Mas nao foste tu que a arranjaste? — Eu? Nem pensar! Ou melhor, tentei ser, mas a coisa que et metiaIé dentro a minha mie dia ‘ideial», e puxava cé para fora. De maneira que por desist. Mas acho que, trando a escova de uma muda de roupa, no vou precisar de nada do i vem. = Isso é que vais! — De qué? — Para ja, vais precisar do fato de banho e da toalha, 4 piscina’ amanha de manhazinha vai saber mesmo ! ‘A Susana sorriu e abanow a « P — Ves? Vés como tenho razio? E claro que isso é das coisas que cv nio trago naquela malorra. © —0 qué? Nao trazes fato de banho? — Nao. A minha mic acha que, primeiro: a dgua das tuma porearia e mesmo as que estio desinfecta- estio tao desinfectadas como ela gosta; segun- fontem 0 cabeleireio ¢ estes Lindos caracolinhos és tém que durar até terca-feira que é 0 dia de ‘minha tia Amélia; ¢ terceiro, a minha mie tem ;medo que eu prolongue de mais o tempo do banho anginas, Pronto, ai tens o romance todo. i sem saber o que dizer. A minha vontade foi 31 disparatar contra aquela louca familia dela, emprestar-the (© meu fato de banho, ¢ dizer-Ihe que nio fizesse caso de tais ordens. Mas se a Susana parecia aceitar tudo aquilo sem uma queixa, qual era afinal o meu papel? De repente parecia ouvir a vor da minha avé Elisa nagueles dias em que Ihe di para desfiar as tio nobres qualidades da gente do seu tempo: — O mundo esti todo as avessas! Jé 0s filhos no ‘Qbedecem aos pais, ja nao ha respeito, jé nio hé nada! E claro que se essa gente nio andasse ai por cima a mexer nna Lua, nas estrelas ¢ sei liiem que mais, isto nio andava assim como anda! Parecia mesmo ouvi-la. Apesar de tudo 0 que a mit mie Ihe tenta explicar, apesar das coisas que eu também The vou dizendo («meu Deus, se alguma vez a gente falava assim com os nossos pais ou com os nossos avés!») ela nao hi-de mudar nunca. No fundo até é engracado. A gente ouve-a, dé-the um beijinho, acaba por dizer que sim senhora, este mundo realmente Povoado de monstros sem sentimentos, e cada um vai a sua vida. Segundo ouvi hi dias no telejornal, parece que se chama a isto coexisténcia pacifica. (Pergunta oportuna. Mais uma, Das tais. «J chegas- Ye: a av6 Elisa ld em casa.) ‘Nao! Estou a dormir, nao vés? E tu estis a falar ‘0 fantasma da minha ‘risav6, que morreu ha 142 com uma navalha espetada nas costas pelo Assassi onzelas Melancélicas! munguei mais qualquer coisa e tomei a enrolar-me saco-cama, Mas a Susana nao desarmava is Podiamos conversar um bocadinho. Conversar? Mas tu queres conversar a uma hora 33 destas? E assim tio urgente, nio pode ficar para aman quer dizer, para daqui a bocado, que isto & quase manhi ‘A Susana voltou-se para 0 outro lado, a cabeca escondida nos bragos. — Agora até parecias a minha mie. Quando quero falar com ela, pergunta logo se é urgente, se nio pode ficar para outra altura Nesse momento, confesso que comecei por dar razio a senhora. Ser acordada as trés ou quatro da manba para Cconversar nao era coisa muito do meu agrado, que sempre fui bicho de muito dormir. Mas jé que estava acordada, também nao fazia mal nenhum tentar dar uma ajuda as ins6nias da Susana. Sentei-me, esfreguei os olhos. Ela Ccontinuava com a cabega escondida nos bragos, sem se mexer. Amaciei a vor — Vi, diz li 0 que & que tw queres __ Mas a Susana parecia ter perdido subitamente 0 dese- jo de conversar. Cheguei a pensar que tivesse finalmente adormecido, — Se queres conversar, conversa, Eu hi bocado esta- va a brinear, desculpa ‘Ouvi um suspiro mais fundo da Susana, © logo a seguir, mas sempre sem tirar a cabeca dos bragos ‘Vocés gostam de_mim? — Nos? Nés, quem? (Santo Ambrésio, as perguntas parvas que a gente faz quando é apanhada desprevenida!) — Ora quem hé-de ser... Vocés. Tu. A Cliudia, a Isabel, a Sofia, a Margarida, a Maria do Céu, 0s rapazes, A turma toda. Vocés. — Claro que a gente gosta de ti. Mas 0 que é que te deu a uma hora destas? ‘A Susana virou-se finalmente para mim, encolheu os ombros, — Sei la. As vezes penso coisas. As vezes tenho vergonha. Ey — Vergonha de qué? "A Susana estava ja sentada, as pernas cruzadas sobre ‘0 saco-cama de flores verdes e amarelas. Nao olhava para ‘mim, e brincava com a pulseira de ouro com o seu nome ‘gravado, que nunca tirava nem sequer para dormi bbocado, por exemplo, quando chepuci. i vergonha. Com aquela gente toda atris de mi festa mala. E tantas recomendagées a professora. Vocés para ai aos pinotes e eu ali especada a olhar = Mas foi muito bom teres vindo. A gente nio te TA Susana sorriu e deu mais uma volta & pulseira — E. Eles fazem sempre assim, quando ev quero ‘uma coisa. No dia em que cheguei a casa com papel em que se perguntava se @ gente podia ir a0 to da tuirma, fizeram logo cara feia. Dispara- ‘onde € que ja se viu uma menina vir por ai, sozi- durante um fim-de-semana. «Mas eu nao vou sozi disse eu, «vou com mais 20 colegas € uma profes- -«E a mesma coisa-, disse a minha mie. E desatou tar milhentas historias horrendas acontecidas a ‘conhecidas de conhecidas de amigas dela, sabes 'é. Hoje, ao fim da manha, com aquele ar condes- ‘de quem esti sempre espera que alguém the ‘mio, chamou-me a0 quarto. «A menina quer ir 40 nto?» Ai, confesso, tive vontade nem sei de €u sou muito bem-educada, no €? Sou um ‘boa educacio. Nunca levanto a vor, nunca rninguém. Acho que disse apenas que jé no ‘que vocés ja tinham partido todos de manhizi- |Gamioneta, jé deviam até ter chegado. Mas ela -niio ter ouvido nem uma das palavras que the “seu pai levi-la no automével, ‘se quiser. E depois vamos la buscé-la, Mas ‘ver sem exemplo. Para a outra ja sabe que ide pedir, que a essas coisas © seu pai nao gosta 3s que @ menina vi.» Ouvi tudo, acho que respirei fundo para ter coragem de abrir a boca e dizer «nao vou, no quero ir, vocés nao entendem nada de nada, deixem-me fem paz». Mas s6 consegui dizer «esta bem». Acho até que ainda agradeci. Quis animar a Susana, que tinha 0 choro mesmo a beirinha dos olhos, até na escuridio da tenda se notava, — Deixa li. © que importa é estares aqui — Nao digas isso! Tens ainda 0 sibado © 0 domingo inteirinhos para te divertires connosco sem pensates neles — Estragaram tudo, Mariana! Eles estragam sempre tudo! Por que 0 que eu queria mesmo era ter vindo logo de manha com vocés, rir junto com vocés, aborrecer-me junto com vocés, armar as tendas com vocés, © nio ter ‘assim este ar de Visita de ceriménia que é recebida por favor, a quem se da dormida durante dois dias até que a venham buscar para a sua jaula, — Mas pelo menos agora, enquanto estiveres a0 pé de mim, nio pensas nos domadores, esti bem? Consegui que a Susana risse, — Esse é que é 0 mal. E que estou sempre a pensar neles. Acho que, mil anos que eu viva, nunca me hei-de libertar deles. Mesmo que a jaula se abrisse, esta leoa que aqui vés ficava muito quietinha a um canto, e nio fugia, Olha, sabes, as vezes sinto-me assim como aqueles ro- bots que a gente vé nos filmes, sozinhos mas sempre ‘comandados a distancia. ‘Uma espécie de grunhido saiu, de repente, de um dos ccantos da tenda: e tio difiil dizer «gosto 'No fundo é s6 questao de uma palavra, uma simples de trés letras que se poe ou se tira, ‘Susana! Que é? 4 Jeoa que estenda uma das patas através das ‘da jaula. de mios dadas. ” Capitulo 8 -precisamente a lancar-me no meu 793.° mergulho tiver muita dificuldade em ler este nimero assim pode ler «mergulho n.° 793» que eu nao me quando me lembrei da Susana, ali vestida dos ‘sem poder experimentar as delicias daquela azulinha. Eu trazia outro fato de banho na podia emprestar-Iho. Mas: "$e 0s caracéis se estragassem? ‘la tivesse mesmo anginas? ela apanhasse um tifo? ela morresse afogada’ ‘ento por culpa minha. De resto, ela havia “que fazer. Nao podiam ser sempre 0s outros por ela, Bem bastava li em casa. Estendi-me na » toalha, a0 sol. Gostava de estar assim, sem fazer nada, ‘a apanhar o calor do sol no corpo, ¢ a pensar em coisas. Coisas que apareciam ¢ desapareciam na minha cabeca, ‘Como de manha, quando acordava. — Nao entendo por que & que esta rapariga pée ‘© despertador para tao cedo! Costuma dizer a minha mae, todas as manhis. Jé Ihe ‘expliquei, mas acho que ela nao entendeu muito bem. Por ‘muito inteligentes que sejam as nossas maes, também nao podemos exigir que entendam logo a primeira aquilo que 2 gente Ihes explica, — Preciso de meia hora de repouso antes de me Jevantar, mae! "— De repouso? Mas o que estiveste tu a fazer durante ‘a noite toda? A dancar a valsa? — Durante a noite estive a dormir, nesta meia hora estou a repousar, sio coisas muito diferentes. Diferentes assim: acordar e ficar quieta, dentro da ‘cama, a pensar em pessoas, em coisas, em lugares, @ inventar historias, a pensar mo que aconteceria se, ‘a imaginar-me pessoa importante a sair de casa de éculos ‘escuros para nao ser reconhecida pelos milhares de admi- adores sempre a minha porta, «D. Mariana, um autégra- fol», , 1 sujar-se, sem direito a aprender as coisas por ia, sem direito a ser como nds todas, a partir a 4 arranhar os joethos, a ter birras e amuos, nem ‘de um quarto de hora como os da minha mie. 0 Dou por mim a rir sozinha. Acho que é a isto que a mae da Rita chama «uma crianga muito bem-educada~ E nio posso deixar de pensar n0 que aconteceria se 0s filhos também falassem dos pais como bem ou mal -educados. Estou aqui a ouvir o que diria a Susana: ‘Tenho os pais mais bem-educados do mundo. Nunca Jevantam a voz, batem-me as vezes mas é claro que € para meu bem, dio-me vestidos novos todos os meses, Ievam-me ao cabeleireiro uma vez por semana, escolhem or mim os amigos, os livros, as horas da refeicio e de deitar, ensinam-me’as palavras certas e tiram do meu rio as outras todas para eu nunca ser tentada as, convidam dezenas de pessoas importantes para 0 dia dos meus anos, mesmo que eu nao as conhega, mas eles € que sabem por que € que elas sio importantes € 0 que fazem em nossa casa olhando-me, dando-me para- bbéns © prendas caras; encharcando-me_a cara de beijos ccuspidos por amabilidade, que a amizade ficou lé fora no bengaleiro, pendurada com os abafos, as carteiras, os chapéus.» F , — Estis muito pensatival — disse a Susana, sentan- do-se a0 meu lado. — Tu também nao pareces lé muito euférica! — digo eu, que coloco a ¢ seus derivados entre as minhas palavras preferidas. Verdade se diga que ~euféri- ‘ca» j ndo é tio bonita, rima com «fantasmagérica>, que no € la grande coisa, mas adiante. lio, estis enganada. Até me sinto muito bem. S6 tenho € pena de isto estar a acabar. Um fim-de-semana & bem pouco tempo. — Melhor que nada. ‘A Susana sacudiu a cabeca (ai os caracéis, Santo Ambrésio!) e deu uma risadinha: — A facilidade com que tu te contentas com as coisas que tens! Eu ca estou sempre a querer mais do que tenho. Pelo menos é 0 que diz 0 meu pai e por isso me castiga 0 — Nao é nada disso! — refilo eu. — Hé muitas coisas com que eu no me contento. Olha, se tivesse que ‘obedecer assim a ordens como as que te dio, de certeza que nao ficava tio quietinha como tu, nio! —E que queres tu que eu faca? Que grite, que fesperneie, que nio almoce nem jante? — Ora. Ha muitas maneiras de fazer as pessoas en- tenderem 0 que a gente quer. Fala com eles. Para que é “que tens boca? ‘Uma gargalhada da Susana: — Falar com eles? Tens cada uma! Hii sempre coisas ito mais importantes do que eu, ¢ eles tém 0 tempo tomado. Acho que a tnica vez que eu consegui falar ‘com a minha mae foi no dia em que fiz a prova de liacio da 4.* classe. E ainda agora nio sei como gui coragem para isso. —E que coisa dificil tinhas tu para the dizeres? — Que nao queria mais explicadores. Mais nenhum, ‘estava farta deles. Até aqui. Que me apetecia mati- a todos. Rimos as duas, com a ideia dos nao sei quantos s da Susana alinhadinhos junto de uma parede do pelotio de fuzilamento, pum! pum! — Tu sabes li o que é a gente nao ter um minuto livre ‘que chega da escola! Vinha um e era uma hora de de textos para ver se eu melhorava a caligrafia ‘aquilo era uma vergonha. Logo a seguir vinha outro € ‘outra hora de tabuada e contas, na lengalenga do -yezes-um-cinco, cinco-vezes-dois-dez e por ai fora, (dizia ele) eu ainda sou dos que acreditam nos antigos de ensinar aritmética e no me venham ‘com modernices-. E vinha mais outro ¢ eram os € 0s montes ¢ as criptogimicas e as fanerogimi- ‘coisa que a gente na aula nunca deu «mas saber mais € preciso nunca fez mal a ninguém>, dizia ele as aulas de ballet, € mais as ligoes de’ piano com st 4@ D. Joaquina que adormecia a meio dos exercicios, fe mais as aulas de Inglés, que a minha mae era de opinio ‘que eu nao devia ir para o ciclo sem saber jé mais do que (05 outros. Sabes li 0 que é passar os dias sempre a olhar ppara o relégio, sempre i espera que a campainha da porta batesse € eles chegassem. — Mas nao chegaste a mati-los, pois nao? A Susana riu, agora a comecar a entrar de verdade na pele que era sua e nela a sentir-se bem. — A minha mae teve uma grande conversa com 0 meu pai no escritério (que eles nunca falam de coisas importantes i minha frente, & minha frente s6 dis- ccutem...) € depois li me veio dizer que tinham decidido {que eu ficasse 36 com o professor de Inglés © as aulas de ballet e de piano. Bem preferia ir para a natacio em vez de ir para 0 ballet, mas estis & ver a minha mie quando ppensa em piscinas, crédo, t'arrenego, abreniincio! Mesmo assim jé me sinto bem mais livre, podes crer! © Sol tinha quase desaparecido. E nés as duas ali, a 4querermos aproveitar todos os minutos, todos os segun- ddos de qualquer coisa que talvez.ndo voltasse a acontecer tao cedo. Porque nao era s6 0 acampamento, a brincadei- ra, as férias a chegar, as tolices boas que se gritam na correria, a piscina, os gelados, @ sol, 0s espides. Era estarmos alias duas juntas. Com palavras que talvez nao dissessemos a mais ninguém, vindas cé de dentro, muito cé de dentro, donde a gente nem sequer sonha que existam palavras Era sermos amigas, assim. tanto, Era a estranha sensacao de quase nos ouvirmos, uma 8 outra, a crescer. Capitulo 11 _ A professora tinha dito: de manhizinhe quero tudo @ para a partida De manhazinha. Sorrio a pensar no meu pai, ¢ espero toda a forga do meu pequenino coragio que ninguem ‘va arrancar do saco-cama is quatro da manha para nos dentro da camioneta, desta vez — 6 gentes, 1 — sem a obrigacio de animar a Maria do Ceui ito para dar mais uma voltinha antes de chegar € fazer as minhas arrumages. Como sempre a ‘continuava muito atarefada em qualquer espinhosa ‘que nenhuma de nds, olhando para ela, ainda | sido capaz de deslindar. Entrava ¢ saia,tirava um da mala, voltava a por o livro na mala, desaparecia ‘momentos. A gente olhava, sorta, e achava 3 ue o melhor era deid-a sossegaa. A Isabel is vores estas coisa. ‘Tinhamos n6s acabado de meter tudo (aguele nosso ue se chamava tudo) nas mochilas, tina a Susana emexido a mala de alto a baixo para dar impressio de ter usado aquelas coisas todas, quando chega a Isabel, finalmente de obra concluida: um enorme carta de eartio ‘com letras garrafais desenhadas com feltros de virias cores. Era assim uma coisa bem folelérica, palavra que fra, € por meio de alfinetes, cordas e cordinhas, la 0 PPendurow & entrada da nossa’ tenda ‘Com ar feliz sentou-se a0 0880 lado. — Promto, ja est © qué, a gente nio fazia ideia nenhuma, Sabiamos apenas que, 0 que quer que fosse, pronto, ja estava A Claudia, a prepararse para se enfiar no saco-cama, desatou a rir: — Agora que a gente se vai embora é que te deu para embelezar © palicio? Seri, por exemplo, algum daqueles dizeres de azulejo de fino gosto, «bemevindo seja quem vier por bem, «semeia e cra, tris alegria» ou qualquer outro assim no género? ‘A Isabel pareceu ofendida. Ela com tanto trabalhinbo para aquilo. Encolheu os ombros. — Vai i fora ver. Era 0 que faltava! Vou é jé para a minha rica caminha que amanha a alvorada promete ser cedo. — Eu vou li ver — disse a Susana, para no desani- mar a Isabel, que ja se considerava a ptssoa mais infeliz do mundo e'de Almomos. Mas logo woltou, caracsis a abanar. — Desculpa li mas nio percebo mada. ‘Ai a minha curiosidade agucou-se. Dei um pulo até fora da tenda, Um grande caraz, i prota, dizi 3MOH 0d .2301923 ‘A Isabel tinha vindo comigo, feliz com a sua obra, E repet — Pronto, jé esti 5 Assim como alguém que tivesse livrado o mundo de a catistrofe iminente. Nao me conti — Mas pronto jest 0 que? — Entio nio vés 0 que ai esté escrito? f um aviso. im como as vezes se vé no cinema (A Isabel via filmes de mais, televisio de mais.) __—... eles assim olham para aqui, e percebem que 4 08 topou, Deste lado é para 0s que sabem ler a Tingua propria; para os que néo souberem, vola-se 0 do outro lado. Ficava: ESPIOES, GO HOME A Isabel continuava, feliz: — Foi num filme que eu vi. Ou na televisio, no me . Acho que era qualquer coisa contra os america- ‘0u contra 0s ingleses, nao sei bem, e 0 meu pai sme que aquilo era assim uma espécie de férmula ‘contra 0 mau-olhado. Acho mesmo que é a deles para «vai daqui para foral», «t'arrenego >, € outras coisas assim que a minha avé costuma Realmente a imaginacéo da Isabel no tinha limites. ‘Aquilo até parecia daquelas historias que a Rosa costuma inventar, que fazem 0 St. Guerreiro, nosso vizinho, fabanar a cabeca e dizer

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