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Crer « Observar € RC Sproul * Michael Horton * John MacArthur John Armstrong * Jonathan Gerstner * Joel Beeke * Ray Lanning Organizado por Don Kistler Crer e observar Sproul, R.C. Crer e Observar © 2009 Editora Cultura Crista. Publicado originalmente nos Estados Unidos com o titulo Trust and Obey © 1996 by Soli Deo Gloria Publications, a division of Ligonier Ministries. Traduzido com permissio. Todos os direitos sto reservados. 1* edigdo ~ 2009 — 3.000 exemplares Consetho Editorial ‘Ageu Cirilo de Magalhaes, Jr. Alderi Souza de Matos André Luis Ramos Cliudio Marra (Presidente) Fernando Hamilton Costa Francisco Solano Portela Neto Mauro Fernando Meister | Produgdo Editorial ‘Tarcizio José Freitas de Carvalho | Traducdo Valdeci da Silva Santos | Helofsa Cavallari Ribeiro Martins Revisdo Elvira Castanon Edna Guimaraes Wilton de Lima Editoragaio Carlos Roberto de Oliveira Capa Lela Design Sproul, RC Sp87c — Crer e observar/R.C. Sproul; traduzido por Heloisa Cavallari. Sao Paulo: Cultura Crista, 2009. 144 p.; 16x23 cm, ‘Tradugao de Trust and obey ISBN 978-85-7622-245-3 1, Vida crista 2. Santidade I. Titulo 248.4 CDD €DITORA CULTURA CRISTA R, Miguel Teles Jr, 394 ~ Cambuci - SP 8040-040 — Caixa Postal 15,196 Fone (011) 3207-7088 — Fax (011) 3278-1255 wuweditoraculturecrista.com.br Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Cliudio Anténio Batista Marra Sumario Prefacio Bruce Bickel Oh! Como amo a tua lei! R.C. Sproul Trapos sujos (da imundicia) ou perfeita justiga? Michael Horton Obediéncia: amor ou legalismo? John MacArthur Obediéncia por fé John Armstrong Legalismo e antinomianismo: duas rotas mortais fora do caminho estreito Jonathan Gerstner Alegre obediéncia: o terceiro uso da lei Joel Beeke e Ray Lanning Posfacio Don Kistler Notas 11 21 39 107 133 137 tem ite Cy Prefacio ‘ivemos numa era pragmatica. Nao perguntamos mais: isso ¢ verdadeira? Ao contrario, perguntamos: isso funciona? A énfa- se num experimentalismo pragmatico promoveu uma confusao que se infiltrou na igreja, manifestada ao colocarmos o interesse pessoal: 0 que eu recebo com isso? a frente da pergunta mais escrituristica que seria: 0 que devo fazer a esse respeito? Os artigos deste livro nao tratam do que o homem ganha, mas sim quem é Deus e 0 que ele fez, faz e fara para colocar o individuo numa posi¢ao em que ele glorificara e desfruta- ra Deus para sempre. Nesse caso, a pergunta critica se torna: o que farei com aquilo que Deus tem feito? A questio é obediéncia. O amor a Deus, implantado no corag&o do pecador pela regenera- go, é possuido por todo aquele que € nascido do alto e esta justificado (Ez 36.26,27). Deus faz por nds, em nossa pecaminosidade, o que nao poderiamos fazer em nossa justiga — ele nos da o principio e o poder para obedecer. O amor a Deus se torna o grande principio e a fonte de toda obediéncia aceitdvel, e o Espirito é o poder sempre presente para nos ajudar a cumprir a obediéncia que as Escrituras tio expressamente exigem para que alcancemos o deleite de Deus. “Se me amais, guar- dareis os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e ele vos dara outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco, 0 Espirito da ver- 8 Crer e Observar dade” (Jo 14.15-17a), Essas palavras de Jesus afirmam explicitamente que tanto a santidade de corag4o (amor) quanto a santidade de conduta (obediéncia) so absolutamente necessdrias para evidenciar nossa con- fissdio de fé. A esséncia da obediéncia se encontra num amor sincero e cordial que impele a agéo e nao a ago em si mesma. A questo nao é tanto 0 que estamos fazendo ou dizendo, mas 0 que 0 nosso coragaio esta compreendendo e pretendendo — embora 0 que 0 nosso coragao esta compreendendo e pretendendo seja normalmente visto naquilo que estamos fazendo ou dizendo. Pela obediéncia aos mandamentos de Deus damos evidéncia de nossa santa convers&o. Por isso, nossa fé é declara- da genuina diante do mundo. Quem quer que pretenda crer em Jesus e nao seja habitualmente zeloso em ser obediente, sua fé, sendo manifes- tada por falta de obras, é estéril, inutil, morta. Ao andar nos caminhos do dever, expressamos nossa gratidao a Deus por seus graciosos beneficios, e também glorificamos seu santo nome, que € 0 grande objetivo de toda obediéncia (Mt 5.16). Enecessério afirmar que nem nossa obediéncia externa, nem nossa santidade interna constituem uma porgdo de justica pela qual possamos ser justificados (declarados justos diante de Deus). Nem sao, ambas, a causa ou a condig&o de sermos aceitos por Deus. A justiga pela qual somos justificados deve ser absolutamente perfeita (ver nosso livro Jus- tification by Faith ALONE!). Assim, Paulo, 0 grande mestre dos gentios, ao considerar que estaria em pé diante do tribunal de Deus, declarou sua esperanga de que pudesse “ser achado nele, nao tendo justi¢a prépria, que procede de lei, sendo a que é mediante a fé em Cristo, a justica que procede de Deus, baseada na fé” (Fp 3.9). Essa justiga, tendo sido forjada antes do nosso nascimento, é o unico fundamento por intermé- dio do qual nosso Juiz supremo pode absolver (desonerar) nossa culpa. Se alguém perguntasse: como poderei me colocar diante de Deus e ser considerado justo? A resposta seria: confie na obediéncia de Cristo. Se a pergunta fosse: como posso expressar minha gratidéio a Deus por sua graciosa misericérdia para comigo?, a resposta seria: obedega aos man- damentos de Cristo ¢ viva em conformidade com sua vontade revelada. E nossa intengao, como editores deste trabalho, relembrar a igreja a adequacdo ¢ a propriedade das boas obras. Como afirmado previamen- Prefacio 9 te, embora nossas obras de obediéncia nado sejam levadas em considera- ¢do para conseguirmos justificagao ou para obtermos uma qualificagao para a vida eterna, elas sio de suma importancia para contrabalangar aqueles dois extremos opostos e fatais: legalismo e antinomianismo. O primeiro comete delito contra a gloria da graga, exalta o eu e fere a nossa paz. O segundo transforma a graca de Deus em licenciosidade, endurece a nossa consciéncia e nos torna piores que os descrentes. Os ilustres autores deste trabalho se uniram a nds na exortagdo ao rebanho do Senhor para distinguirmos com seriedade os fundamentos de nossa aceitagao diante de Deus (justificag&o) da superestrutura da santidade pratica (santificagao). O arguto puritano John Owen, alguns séculos atras, escreveu a respeito de Salmos 130: “Nosso fundamento no trato com Deus é uni- camente Cristo, simples graga e perdiio nele. Nossa edificagao se faz em e por meio da santidade e obediéncia, como frutos daquela fé pela qual recebemos a reconciliagdo”. O principio que sustenta este livro é que o amor ¢ o fundamento da obediéncia, e que a obediéncia é 0 resultado e a conseqiiéncia verda- dcira do amor. Nenhuma pessoa pode assentar outro fundamento, que nao seja Jesus Cristo, para confiar e obedecer. Soli Deo Gloria! Dr. Bruce Bickel Presidente da Junta Soli Deo Gloria John Bishop Millersville, Maryland Peter Neumeier Atlanta, Gedrgia Rev. Don Kistler Pittsburgh, Pensilvania Rev. Lance Quinn Little Rock, Arkansas Oh! Como amo a tua lei! uando pensamos nas bem-aventurangas, imediatamente pensa- mos também no Sermao do Monte. Em termos de cendrio histé- rico da redengdo pensamos, sem divida, no Novo Testamento. As bei-aventurangas est&o relacionadas ao ensino de Jesus, e a forma usada por Jesus para comunica-las foi uma reverso ao Israel do Antigo Testamento — a adaptagao de um modo profético de comunicag&o que usava, como mcio, o oraculo. Nas religides pagiis, 0 ordculo era visto como uma forma de co- municacao vinda de Deus, como era 0 caso do oraculo de Delfos. Era um anincio divino, um pronunciamento que poderia ser positivo ou ne- gativo. Sendo positivo, poderia proclamar prosperidade a uma pessoa ou nacio; sendo negativo, era um anuncio do julgamento divino que proclamava uma destruigao iminente e completa — como aquela que é declarada no livro do Apocalipse, no qual se 1é que um anjo apareceu nos ultimos tempos gritando no meio do céu: “Ai! Ai! Ai”. Esse é um oraculo de julgamento. E 0 tipo de oraculo que Jesus pronunciou sobre os fariseus de seus dias. Mas o ordculo de felicidade, 0 antncio divino de béngao, a declaragao de Deus da felicidade, eram expressos em ora- culos de béngaos. A palavra “béngdo” tem sido quase totalmente esvaziada de seu 12 Crer e Observar sentido biblico. Depreciamos a expressdo quando nos referimos a ela simplesmente como uma experiéncia de felicidade. Ser abengoado, na mentalidade hebraica, significa ter a alma cheia da capacidade de expe- rimentar o encanto, a exceléncia e a docura do préprio Deus. A palavra “felicidade” expressa menos do que isso. Até mesmo “completude”, ou plena satisfagao, nao alcanga o objetivo. Certamente, ela envolve um preenchimento, uma plenitude, uma abundancia de alegria, paz e esta- bilidade. O judeu anelava pelo dia em que ouviria Deus pronunciando sua béngao. O povo se agitou quando ouviu o seu Messias declarar a eles: “Bem-aventurados os humildes de espirito... Bem-aventurados os que choram, porque sero consolados. Bem-aventurados os mansos... Bem-aventurados os que tém fome e sede de justig¢a, porque sero fartos ... Bem-aventurados os pacificadores, porque serao chamados filhos de Deus” (M 5.3-9). Tendemos a restringir nossa compreensao das bem-aventurangas ao Novo Testamento quando, de certo, o conceito de bem-aventuranga, de uma experiéncia beatifica, est4 enraizado e fundamentado no Antigo Testamento. As vezes, cantamos uma das mais ricas bem-aventurancas de toda a Escritura: aquela que introduz o Saltério. Esse primeiro poema é uma bem-aventuranga, uma béncdo. Nao é uma béngao final no sentido de uma mensagem que é dada no final do culto, mas manifesta o sentido original da “béng&o” — uma boa palavra, um anuncio divino de beatitu- de, de felicidade. Em Salmos 1.1 se 1é: “Bem-aventurado o homem que néo anda no conselho dos impios, ndo se detém no caminho dos pecado- res, nem se assenta na roda dos escarnecedores”. O salmo usa a forma poética do paralelismo para criar um apogeu. A primeira coisa que é dita sobre essa pessoa abengoada é que ela nao anda no conselho dos impios. Ela é surda aos conselhos dos pagdos, que nos induzem a participar dos caprichos deste mundo. No primeiro capitulo de Romanos, Paulo exprime o grau de de- pravagao em que o mundo havia caido, o mergulho de cabeca da hu- manidade em pecado abominavel que é marcado pela recusa de honrar a Deus e ser agradecido. O apéstolo, entdo, continua para registrar os pecados familiares ao coragao e a raga humanos. Oh! Como amo a tua lei! 13 Paulo escreve: “E, por haverem desprezado 0 conhecimento de Deus, o proprio Deus os entregou a uma disposigao mental reprovavel, para praticarem coisas inconvenientes, cheios de toda injustiga, mali- cia, avareza e maldade; possuidos de inveja, homicidio, contenda, dolo e malignidade; sendo difamadores, caluniadores, aborrecidos de Deus, insolentes, soberbos, presungosos, inventores de males, desobedientes aos pais, insensatos, pérfidos, sem afeigdo natural e sem misericérdia” (Rm 1.28-31). Essa pequena lista de caracteristicas dos impios alcanga seu dpice no versiculo 32: “Ora, conhecendo eles a sentenga de Deus, de que sio passiveis de morte os que tais coisas praticam, nado somente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem”. Paulo diz que nossas inclinagdes pecaminosas so tio intensas que nao apenas fazemos as coisas que Deus proibiu, mas também enco- rajamos outras pessoas a fazé-las conosco. De alguma forma imaginamos que nossos pecados nao serao vis- tos como pecados, se pudermos reunir um bom numero de pessoas para participar deles conosco. Mas bem-aventurado é 0 homem que nao anda de acordo com esse tipo de conselho, que nao anda no conselho dos im- pios, que nio se detém no caminho dos pecadores. Isso ndo quer dizer que uma pessoa é abengoada quando se coloca diante dos pecadores, impedindo-os de se movimentarem, Nao é esse 0 sentido de “nao se detém no caminho dos”. Esse é um linguajar arcaico. Significa a pessoa que n&o permanece no caminho dos pecadores, que no participa da im- piedade dos impios, Bem-aventurada a pessoa que nao se assenta com os escarnecedores. A forma mais rasteira de reconhecimento intelectual que uma pessoa, que nao tem profundidade em sua andlise intelectual, pode apresentar, o modo mais rapido e vil para alcangar uma respeitabilida- de intelectual enganosa, é 0 cinismo. Qualquer um pode ser cinico. E nao ha nenhum tipo pior de cinismo do que aquele que se compraz em zombar da busca do ser humano por santidade. O salmista nos diz que bem-aventurado é 0 homem que no se assenta nessa roda. O oposto é concluido por meio de uma elipse: “Maldito o homem que age assim”. Mas observe que até esse ponto o salmo esté descrevendo a pessoa em 14 Crer e Observar termos negativos, isto é, a bem-aventuranga pertence 4 pessoa que nao faz as coisas mencionadas. O que ela faz? O que caracteriza uma pessoa abengoada? “Antes, 0 seu prazer esté na lei do SENHoR, e na sua lei medita de dia e de noite” (SI 1.2). Nao é apenas uma questao de “bem-aventurado aquele que nio faz essas coisas”, mas “bem-aventurado aquele cujo prazer esta na lei do Senhor”. Estou me alongando sobre isso porque se ha uma coisa que ndo caracteriza a igreja contempordnea, uma coisa que ndo capta o espirito do assim chamado “evangelicalismo” do século 20, é 0 prazer difundido penetrante na lei de Deus. Sei que ha pessoas lendo o que escrevi ¢ retrucando: “Vocé esta louco? Por onde tem andado? Vocé nao sabe que vivemos deste lado da cruz? A lei foi colocada de lado. Nés somos cris- téos. Nao ficamos sentados nos deliciando com a lei de Deus”. Se vocé é um cristo, vocé tem prazer. E se vocé ndo tem prazer na lei de Deus, nado engane a si mesmo pensando que é uma pessoa re- generada. Nao pense que o evangelho que o liberta da maldigao da lei é uma licenga para vocé desprezar e ignorar a lei. Esse pronunciamento de bem-aventuranga é aplicavel hoje assim como quando foi escrito. Sei que nao falamos dessa maneira, contudo, ele é verdadeiro. Salmos 119 € uma das mais magnificas pegas literarias do Antigo Testamento. 5 um elogio sem paralelo a dogura da lei de Deus. E segue o alfabeto hebraico em métrica poética. Chamo sua atencdo para o versi- culo 97, em que lemos as seguintes palavras: “Quanto amo a tua lei!”. Vocé percebe o que o salmista esta dizendo? A pessoa que es- creveu essas palavras faz parte da comunhao dos santos. A pessoa que escreveu essas palavras faz parte da familia de Deus. A pessoa que escreveu essas palavras é um santo do Antigo Testamento. A pessoa que escreveu essas palavras fez isso sob a inspiragao de Deus, o Espirito Santo. E temos aqui um derramamento de afeigdo religiosa, uma ex- plosao no contida de emog4o. O Espirito Santo, assim nos diz 0 Novo Testamento, algumas vezes nos leva a gemer. Posso imaginar o salmista gemendo enquanto escrevia essas palavras. “Oh! Como amo a tua lei!” Quando foi a tiltima vez que vocé ouviu um cristao derramar seu cora- ¢4o em afeic&o pela lei de Deus? Como isso é estranho para nds! O que o salmista ama e por qué? Do que estaria ele falando quan- Oh! Como amo a tua lei! 15 do menciona essa lei a qual ama tio desesperadamente e qual ¢ a razao desse amor? No Antigo Testamento, assim como no Novo, as Escrituras com freqiiéncia fazem uma distingdo entre lei e evangelho e entre lei e profe- tas. Ha vezes em que a palavra “lei” é usada num sentido geral e inclusi- vo. Outras vezes, quando 0 termo é contrastado com outros aspectos, as- sume um sentido mais restrito e especifico. Algumas vezes, lei se refere exclusivamente aos mandamentos entregues por Moisés ou ao cédigo de santidade. Mas um dos usos mais significativos do conceito de “lei” no Antigo Testamento é 0 sentido genérico da lei de Deus, referindo-se in- discriminadamente a Palavra de Deus, porque a Lei de Deus é a Palavra de Deus e a Palavra de Deus é a Lei de Deus. O evangelho € a Palavra de Deus e essa Palavra nao pode ser quebrada. Quando sao pronunciadas por Deus, mesmo as palavras de promessa carregam a forga de lei. Na versao de Hollywood do filme O rei e eu, 0 rei do Siéo muitas vezes repetia a afirmagao: “Que seja escrito; que seja cumprido”. Todos no Sido aceitavam a palavra do rei como lei (exceto Ana). Mas a pessoa piedosa se maravilha com cada palavra que sai da boca de Deus. Jesus a considerava como sua comida e bebida. E, para resistir a Satands e as ptoprias forgas do inferno, ele disse: “Esta escrito: Nao sé de pio vivera o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus”. Jesus afirmou que as Escrituras nao podem ser infringidas. “Bem-aventurado 0 homem que nao anda no conselho dos impios .. Antes, o seu prazer esta na lei do Senor, e na sua lei medita de dia e de noite” (S1 1.1,2). Sera que é isso que acontece? Nao. Seria: “Bem-aventurado 0 homem que, conscientemente, aplica a lei a sua vida durante cinco minutos por dia?” Nao. O homem abengoado ¢é aquele que medita na Lei do Senhor de dia e de noite. Torno a fazer a pergunta: “Por que ele a ama?” Observe Salmos 119.89-91: “Para sempre, 6 SENHOR, esté firmada a tua palavra no céu. A tua fidelidade estende-se de geragdo em geracao; fundaste a terra, e ela permanece. Conforme os teus juizos, assim tudo se mantém até hoje; porque ao teu dispor estao todas as coisas”. A moral, os costumes e tabus de todas as culturas humanas mu- 16 Crer e Observar dam de gerag4o em gerag&o. Em 1950, nado chegava a 1% a porcenta- gem da populag&o dos Estados Unidos que aprovaria o aborto. Ele era considerado um pecado da pior espécie. Hoje vivemos do lado de ca da revolugado moral dos anos de 1960 na qual vicio e virtude trocaram de lugar, mas o salmista amava a lei de Deus e amava a Palavra de Deus porque a Palavra dele esta firmada. Com freqiiéncia menciono minha reagao a frase repetida constan- temente: “Deus disse. Eu creio. Est4 estabelecido”. Esse sentimento bei- ra a blasfémia. Para ser uma afirmacao realmente crista, devemos dizer: “Deus disse, esté estabelecido”. Nao importa se cremos ou nao. Foi isso que o salmista compreendeu e disse que [a palavra] esta estabelecida no céu desde a eternidade. Converso com crist&os que se afligem com o estado de sua alma, que nao esto certos de sua salvagaio, e lhes digo: “A prioridade das Es- crituras é que tenhamos certeza de nossa eleig&o. Resolvam isso”. Ajo assim porque nossa consisténcia como cristaos esta ligada 4 firmeza de nossa fé. A pessoa irresoluta é alguém com duas mentes, uma pessoa instavel em todos os seus caminhos e levada por todo vento de doutrina. Nao é isso que o salmista deseja. O salmista deseja uma Ancora para a alma e ama aquilo que firma essa Ancora para ele. “Oh! Como amo a tua lei porque esta firmada no céu e estende-se de geragio em geracio”. Como Maria expressou isso? Ela se regozijou na tradigdo que transmitia as promessas de Deus de uma geragao para a seguinte. Uma promessa feita em primeiro lugar a Adao e Eva, uma promessa renovada com Abraao, Isaque e Jacé, sobre aquele que deveria vir e esmagar a cabega da serpente. Ele redimiria seu povo. Milénios se passaram e, finalmente, numa aldeia camponesa, sem nenhum aviso, um visitante vindo da presenga de Deus, chamado Gabriel, apareceu a uma jovem camponesa e disse: “O Senhor ¢ conti- go” (Le 1.28b). Enquanto tomava consciéncia do anuncio, sob o impeto do Espirito Santo, ela cantou: “A minha alma engrandece ao Senhor, e 0 meu espirito se alegrou em Deus, meu Salvador, porque contemplou na humildade da sua serva. Pois, desde agora, todas as geragdes me consi- derarado bem-aventurada” (Le 1.46-48). E continuou dizendo: “... a fim de lembrar-se da sua misericérdia a favor de Abraao” (vs. 54,55). Oh! Como amo a tua lei! 17 No passado, os sabios costumavam pensar que, quando estavam estudando ciéncia, estavam, seguramente, estudando a mao invisivel da Providéncia. Isaac Newton acreditava que pensava os pensamentos de Deus. As leis da natureza eram consideradas como evidéncias da obra dele. Hoje, em nossa arrogancia humana, pesquisamos as leis sem um Legislador e menosprezamos a lei de Deus. O salmista diz: “Nao fosse a tua lei ter sido o meu prazer, ha muito ja teria perecido na minha an- gustia”. Salmos 119,105 afirma: “Lampada para os meus pés é a tua pala- vra e luz, para os meus caminhos”. Quando eu era menino, minha tarefa era ir até um armazém buscar © pao, pegar a encomenda que minha mae havia feito, ou ir 4 farmacia, a noite, buscar os medicamentos para a familia. Eu gostava muito de ir 4 farmacia a noite e fazer hora no balcdo onde eram servidas bebidas gasosas, mas depois que o sol se punha, sempre sentia medo e tremor porque, para chegar até o armazém, eu precisava atravessar 0 pomar dos Green. Para um garoto, aquele era um dos lugares mais assustadores do oeste da Pensilvania. Havia um caminho estreito que atravessava 0 pomar coberto de arvores, uma das quais era um enorme carvalho. No auge do inverno, quando seus galhos varavam a noite estrelada, parecia que tinha bragos enormes que ele poderia baixar e agarrar qualquer ga- rotinho que corresse pelo pomar. Eu ficava apavorado quando precisava ir buscar alguma coisa a noite. Fiz isso mil vezes, mas toda vez que me aproximava do pomar era como passasse por um cemitério. O que eu desejava era uma lua cheia, uma lanterna, uma lampada para os meus pés, uma luz para o meu caminho, A 4rvore nunca me machucou e nunca me agarrou. Mas tenho passado por outras experiéncias como aquela no mundo e ainda preciso de uma lampada, ainda preciso de uma luz. “Oh! Como amo a tua lei!”, porque a lei de Deus é um espelho e um reflexo de sua santidade e de sua exceléncia. Joao Calvino compreendeu claramente sua importancia para 0 cristéio do Novo Testamento quando discutiu seu terceiro uso da lei, o carater de revelac&o — de que a lei de Deus revela para nés 0 que ¢ agradavel aos olhos do Pai. Quando um cristao diz: “Nao tenho de pres- tar nenhuma atencao a lei”, cu pergunto imediatamente: “Vocé tem de 18 Crer e Observar prestar atengao em como viver uma vida que agrade a Deus?” Certa vez, fiz uma conferéncia em Nova York sobre “A Santidade de Deus”. Concordei em ir 4 casa de um dos presentes, apés 0 culto da noite, para um momento de ora¢ao com outras vinte pessoas. Apés os refrescos, eles disseram: “Agora vamos ao nosso momento de oracao”. Apagaram as luzes e repentinamente comegaram a orar aos parentes mortos. Eu interrompi: “Esperem um minuto! O que significa isso?” Aresposta foi: “Essa é uma oragdo dirigida pelo Espirito e o Espi- rito nos possibilitou fazer contato...”. Eu indaguei: “Vocés sabem o que a Biblia diz a esse respeito? Vocés nado sabem que no Antigo Testamento isso era uma ofensa capital? Deus descreve esse tipo de comportamento como uma abominagao pela qual, se nao for punido, ele amaldigoara uma nagao inteira”. Eles responderam: “Sim, nés sabemos disso. Mas isso é Antigo Testamento, Nao fique preso a lei, Sproul”. Eu retruquei: “O que aconteceu na histéria da redengdo que se apropria de uma pratica que era totalmente repugnante para Deus, no Antigo Testamento, e agora se transformou em algo que o agrada? Uma leitura superficial do Antigo Testamento e uma compreensdo também superficial da lei de Deus poderia té-los informado, imediatamente, de que isso é algo que Deus odeia”. Nés, crist&os, devemos consultar até mesmo a lei do Antigo Testamento para saber 0 que agrada a Deus. O salmista amava a lei de Deus. Leia novamente 0 que ele escre- veu: “Oh! Como amo a lei!”. E assim que esta escrito? O que eu mudei? O salmista diz: a “tua” lei. N4o podemos passar do pessoal para o im- pessoal, para uma lista de leis e regulamentos abstratos. Ninguém, em Israel, estava morrendo de amores por leis. O salmista diz: “Oh! Como amo a tua lei!” Amavam a lei porque eles compreendiam que a lei revelava 0 Se- nhor a quem ela pertencia. Se nds 0 amamos, entio obviamente deseja- mos viver uma vida que o agrade. Desejamos compreender que aquilo que ele diz é virtuoso, Amamos a lei porque é a sua lei, porque amamos 0 Legislador. Como é possivel amar a Deus e odiar a sua lei? E exatamente isso que Jesus disse: “Se me amais, guardareis os meus mandamentos”. Oh! Como amo a tua lei! 19 Salmos 119.140 diz: “Purissima é a tua palavra; por isso, o teu servo a estima”. “Oh! Como amo a tua lei!” Nao ha nenhuma impureza nela; néo ha nenhum erro nela. Ela é pura e imaculada. Tudo o mais, todas as de- liberagdes, todas as introspecgées, todas as opinides dos homens que eu jd examinei sao faliveis, Nao existe nelas aquela qualidade de pureza, da pureza essencial, mas “A tua palavra é pura, por isso eu a amo”. “Pureza” é uma palavra que praticamente desapareceu de nos- sa lingua. Onde esto os puritanos de hoje que desejam um evangelho puro, a pura verdade, a vida pura de obediéncia? Onde esto aqueles que buscam 0 favor de Deus acima de todas as outras consideragdes? Finalmente, em Salmos 119.142 lemos: “A tua justiga é justiga eterna, e a tua lei é a propria verdade”. Cristo permanecia em pé diante de Péncio Pilatos que estava ali para julga-lo, “Entendo que tem se dito que vocé é um rei. B isso mesmo? Vocé é um rei?” Jesus respondeu a Pilatos: ““O meu reino nao é deste mundo. Se... fosse... os meus ministros se empenhariam por mim... Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz” (Jo 18.36,37). Quando estava em julgamento, Jesus, nas palavras mais claras que poderia usar para definir sua missao, a razdo para vir ao mundo, esco- Iheu descrevé-la da seguinte forma: “Eu vim para dar testemunho da verdade”. Hoje vivemos numa igreja que se incomoda menos com a ver- dade que com qualquer artigo. O amor a verdade nao é nem mesmo uma virtude; 6 um defeito, porque a verdade divide as pessoas. A verdade causa controvérsia. A verdade causa debate. A verdade causa transtorno aos relacionamentos. A verdade crucifica pessoas. Jesus afirmou: “Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz” (Jo 18.37). “Oh! Como amo a tua lei!”, porque “tua palavra ¢ a verdade”, O homem que escreveu essas palavras era como a arvore plantada junto ao ribeiro de Agua viva cujos frutos ndo murcham e que da frutos no devido tempo. Mas “os impios nao so assim, séo como a palha que o vento dispersa”. Os capitulos deste livro procuram mostrar 0 que significa, para os cristaos, amar a lei de Deus. Amar a lei de Deus é amar a Deus. Todo 20 Crer e Observar verdadeiro cristéo deve amar a Deus. E, uma vez que amar a Deus é guardar (e amar) seus mandamentos, entio, todo verdadeiro cristo deve dizer como 0 salmista: “Oh! Como amo a tua lei!” Werte mata coll) Trapos sujos (da imundicia) ou perfeita justiga? ros, advogados e alfaiates pela freqtiéncia das analogias e me- t4foras que usavam ao descrever a obra salvadora de Deus. Os cristaos tém “crédito” com justiga e obediéncia de Cristo, assim como os “débitos” de Ado foram “langados” em sua conta. Ou, no espirito do advogado, as Escrituras trabalham em ambos os testamentos para firmar a idéia de que o pecado é uma transgressdo legal que requer perfeita justiga e que o sacrificio propiciatério de Cristo responde a esse dilema, Os crentes so, portanto, “declarados justos” em um forum. Mas é uma terceira imagem (a do alfaiate) que oferece o rico mun- do de metaforas para a tarefa deste capitulo. A Iguém poderia pensar que os escritores biblicos eram banquei- Vestindo roupas alheias A metéafora do vestuario aparece nas primeiras paginas da Biblia, Em sua inocéncia, certamente, Adio e Eva estavam bastante satisfeitos com sua constitui¢ao natural. Afinal, Deus os havia considerado “bons” e isso se referia no meramente 4 exceléncia moral, mas também a beleza fisica. Dificilmente considerado como objeto de vergonha e desgraca, 0 22 Crer e Observar corpo humano era mais esplendoroso que 0 templo de Salomao. Entdo veio a revolta infame. Apés descobrirem que, em vez de iluminados, es- tavam nus e envergonhados, eles se voltaram para os proprios recursos. “Abriram-se, entdo, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira e fizeram cintas para si” (Gn 3.7). Conscientes da condig4o perdida, nossos primeiros pais ndo fa- ziam idéia de como reparar a situag&o. Tudo o que podiam ver eram as coisas externas, sintomas da crise; dai as folhas de figueira. A criagao dessa protegao caseira, entretanto, nao resolveu seu conflito interior, en- tao Adao e Eva fugiram para a floresta, saindo da presenga daquele cuja proximidade, antes, havia sido um deleite. Deus encontrou Adao e Eva e os colocou face a face com o problema real. Nao era apenas o fato de que estavam nus nem de que estavam envergonhados. As pessoas podem se sentir envergonhadas sem serem culpadas, mas aquilo era di- ferente. Ent&o Deus prosseguiu seu julgamento. Com a leitura dos autos e pronunciamento da sentenga, a lei entrou em cena. Se essa fosse a tinica palavra contida no pronunciamento de Deus, ela poderia terminar em destruig&o total da raga humana; e Deus nao era obrigado a dizer nenhuma palavra. Nao obstante, ele livremente es- colheu prosseguir o julgamento com a justificac&o, a sentenca com a salvacio. Em meio a essas terriveis maldigdes esta 0 proto-evangelho, 0 primeiro antncio do evangelho: “Porei inimizade entre ti e a mulher”, diz Deus a serpente, “entre a tua descendéncia e o seu descendente. Este te ferird a cabega, e tu lhe ferirds o calcanhar” (Gn 3.15). Enquanto as folhas de figueira haviam simbolizado a autojustifi- cagao, esse amuncio evangélico é seguido de novas roupas: “Fez o Sr- nHorR Deus vestimenta de peles para Addo e sua mulher e os vestiu” (v. 21). E de eterno significado que o que justificou Adao e Eva (cobriu os efeitos devastadores dos seus pecados) n&o foi algo que Deus fez com eles, mas 0 que fez por eles, 0 que pés sobre eles. Quando Deus fez seu pacto com Abrado, o patriarca creu e foi justificado (Gn 15.6). A despeito da infidelidade de Abrado, e da infide- lidade de seus filhos, o pacto de graga de Deus segue seu curso. Deus € 0 tinico herdi dessas histérias. Apés a estranha luta de Jacé com a manifestagao do Senhor, ele finalmente encetou seu retorno vitorioso a ‘Trapos sujos (da imundicia) ou perfeita justi¢a? 23 Betel, onde Deus lhe aparecera em sonho, prometendo salvar Jacé, em conformidade com seu juramento incondicional. E a resposta de Jacé, agora como crente e nao como conspirador, foi comandar toda a sua fa- milia, dizendo: “Langai fora os deuses estranhos que ha no vosso meio, purificai-vos e mudai as vossas vestes” (Gn 35.2b). Entdo eles se foram com ele até 0 altar em Betel e, ali, adoraram a Deus com um sacrificio de substituigao. Exatamente como Deus havia substituido as folhas de figueira de nossos primeiros pais por vestes reais de um animal sacrifica- do, assim o Israel revestido sé poderia entrar em seguranga na presenga de Deus vestido de perfeita justiga. Por todo o Antigo Testamento 0 ato de Deus revestir seu povo pecador em sua justiga é um tema recorrente. J6 clama: “Eu me cobria de justiga, e¢ esta me servia de veste” (J6 29.14). O salmista se alegra: “Converteste 0 meu pranto em folguedos; tiraste o meu pano de saco e me cingiste de alegria” (SI 30.11). “Regozijar-me-ei muito no SENHOR”, exulta Isaias, “a minha alma se alegra no meu Deus; porque me cobriu de vestes de salvagio e me envolveu com o manto de justiga, como noivo que se adorna de turbante, como noiva que se enfeita com as suas joias” (Is 61.10). Sem essa vestimenta real, a situagéio do pecador é de- sesperadora: “Mas todos nés somos como o imundo, e todas as nossas justi¢as, como trapo da imundicia” (Is 64.6a). Observe que nao sao ape- nas nossos atos de desobediéncia, mas nossos atos de justiga também sao descritos assim. Uma cena particularmente marcante é encontrada em Zacarias 3.1-5: Deus me mostrou o sumo sacerdote Josué, o qual estava diante do Anjo do Senuor, ¢ Satands estava 4 mao direita dele, para se lhe opor. Mas o SENHoR disse a Satands: O SENHoR te repreende, 6 Satands; sim, o SeNHor, que escolheu a Jerusalém, te repreende; nao é este um tig&o tirado do fogo? Ora, Josué, trajado de vestes sujas, estava diante do Anjo. Tomou este a palavra e disse aos que estavam diante dele: Tirai-lhe as vestes sujas. A Josué disse: Eis que tenho feito que passe de tia tua 24 Crer e Observar inigiiidade e te vestirei de finos trajes. E disse eu: ponham-lhe um turbante limpo sobre a cabega. Puseram- lhe, pois, sobre a cabega um turbante limpo e 0 vestiram com trajes proprias; e 0 Anjo do Sennor estava ali, Dadas as freqtientes aparig¢des do “anjo do SENHOR” em contextos em que é dificil imaginar que ele seja meramente um dos mensageiros celestiais, pode-se concluir seguramente tratar-se aqui de uma referén- cia ao Filho pré-encarnado. Isso também faz sentido a luz da revelagao posterior, que o juri celestial consiste do Juiz, do advogado de acusagao (Satanas) e do advogado de defesa (Jesus). E 0 Anjo do SeNHoR quem dirige os servos a despirem Josué de seus trajes sujos e vesti-lo de per- feita justiga. Somente assim seus pecados podem ser cobertos. Lembre- mo-nos de que Josué era o sumo sacerdote de Israel, 0 unico homem que tinha permissdo de entrar anualmente no Santo dos Santos com o sacrificio pelo povo. Entretanto, cle estava vestido de “trapos sujos”, até que foi vestido com vestes de salvacao. Mas essas imagens s&0 conduzidas até seu cumprimento no Novo Testamento. Ficamos admirados pela graciosidade do pai recebendo o filho prédigo, que havia desperdigado sua heranga com prostitutas, em um pais distante. Desejando retornar como servo e nao mais como filho a casa de scu pai, o filho, entretanto, foi recebido com pura misericérdia. Embora o prédigo confessasse sua indignidade de ser chamado filho, o pai pede a seus servos: “Trazei depressa a melhor roupa, vesti-o, ponde- lhe um anel no dedo e sandalias nos pés; trazei também e matai 0 no- vilho cevado. Comamos e regozijemo-nos” (Le 15.22,23). Na parabola das bodas, Jesus compara sua obra 4 de um rei que enviou seus servos as ruas para convidar participantes para a recepgdo festiva. “Entrando, porém, 0 rei para ver os que estavam a mesa, notou ali um homem que nao trazia veste nupcial.” Como Deus perguntando a Ad4o como soube que estava nu, o rei pede ao cavalheiro: “Amigo, como entraste aqui sem a veste nupcial?” Mudo, o homem é lancado fora, nas trevas (Mt 22.1-14). Nas epistolas de Paulo, essa imagem é especialmente enfatizada. “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo” (Rm 13.14). “Pois todos vés sois ‘Trapos sujos (da imundicia) ou perfeita justica? 25 filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus; porque todos quantos fos- tes batizados em Cristo de Cristo vos revestistes” (G1 3.26,27). Assim como a Biblia comega com essas ricas imagens, ela também termina com os santos vestidos de vestiduras brancas e trajados na vitéria de Cristo (Ap 3.18; 6.11). A maior evidéncia de nossa natureza pecaminosa talvez nao seja encontrada em horriveis atos de imoralidade, violéncia ou ambicdo egoista, mas no fato de que, mesmo quando Deus nos oferece os tra- jes nupciais de justica perfeita, nds persistimos em nossa justificagao. Quaisquer que sejam as folhas de figueira, sejam elas feitas de terapia da auto-estima ou de enérgico moralismo, nds nos recusamos a ver que nossos trapos sujos so insuficientes para nos colocar na presenga de um Deus santo, Como disse um grande puritano antigo: “Tentamos cobrir sujeira com sujeira”. Mas a maioria dos leitores deste volume nao estar entre 0 vasto corpo de homens e mulheres que hoje recusam o evangelho da graga li- vre. A doutrina da justificagao nao sera problema para a maioria dos lei- tores de um livro como este; mas 0 usufruto dele, na vida crist&, é outra coisa. Um livro sobre a relagao da fé com a obediéncia provavelmente nao é capaz de nos estimular a uma fidelidade maior; ele podera levar al- guns ao desespero total. Mas esse é 0 efeito que tais pensamentos devem ter em todos nds. Precisamos nao apenas ouvir os apelos 4 fidelidade, repetidas vezes, porque somos lentos para ouvir e obedecer; precisamos ouvi-los como uma sentenga divina até sobre as nossas melhores obras como cristios! Augustus Toplady estava bem certo ao lamentar que mesmo as melhores coisas que fez em sua vida mereciam condenagao. Ouvimos chamados sérios para confiar ¢ obedecer mas, antes de anelarmos (pecadores que ainda somos), nds comegamos a pensar que nossa fé e dedicagio sao perfeitas (“‘perfeita submissao”, “entrega abso- luta”, “vitéria”, etc.) ou a fazer uma avaliagao mais acurada que nos leva a duvidar de nossa salvagdo por causa das fraquezas de nossa fé e arre- pendimento. E justamente nesses momentos que ficamos espantados por um renovado senso de nossa depravagao que nos prendeu de inicio, e é esse senso que nos leva, uma vez mais, ao nosso perfeito Salvador, cuja imbativel justiga nos recobre. Nossa pobre fé e a corrup¢ao agarrada as 26 Crer e Observar nossas melhores obras néo podem condenar, porque a forga de nossa fé ea pureza de nossas agdes nado podem salvar. Mesmo a fé ndo pode sal- var, ela pode apenas estender as maos vazias para receber a obediéncia € o mérito de um perfeito Salvador. Esse é um ponto importante, pois, mesmo onde muitos evangé- licos tém resistido as ébvias distorgdes e desvios, ha uma tendéncia de incorporar uma sutil forma de justiga de obras ao conceito da fé em si mesma. E essencial que nao vejamos a fé como algo derivando de nés, que de alguma forma possui uma qualidade que substitui outras obras, talvez mais dificeis. A fé em si mesma nao é de nenhum modo uma vir- tude. Ela é, em questao de justificagao, um instrumento de recebimento, endo um instrumento de doagdo. Enquanto essa fé produz boas obras, ela nao é em si mesma uma boa obra que serve de base para uma posigao correta. E apenas Cristo quem salva, somente pela graga, somente pela fé. Cristo é a base da salvagao; a graga 6 o motivo; a fé é o instrumento. Devemos resistir 4 tendéncia de ver a fé como a base de nossa justifica- gao em vez de justica de Cristo. Mas tal ensino néo vai a santidade? Uma das mais notaveis ironias da historia da igreja é que os pe- riodos especialmente marcados pelo temor de enfatizar 0 carater obje- tivo, livre, soberano e completamente gracioso da salvagao sao tam- bém os periodos mais impios. O moralismo de Peldgio pode ter visto 0 agostinismo como uma rejeigao pérfida da instrugao moral de Cristo; mas 0 pelagianismo falhou em produzir piedade em qualquer geracao. Como se nao bastasse estar ele sob 0 anatema divino por pregar outro evangelho — que nao é evangelho nenhum — essa religido naturalista e moralista nunca procurou alcangar os resultados desejados, “tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder” (2Tm 3.5). Pois o poder da piedade 6 0 mesmo que o poder de Deus para a salvacao: o evangelho da livre justificagado pela imputagao de uma justificagao alheia (Rm 1.16). Muitos “testemunhos” que um individuo ouve para se tornar cris- ‘Trapos sujos (da imundicia) ou perfeita justica? 27 téo, atualmente, podem ser dados por mérmons ou outros cujo estilo de vida tem melhorado grandemente; mas onde estd 0 evangelho? As boas-novas no sao o que acontece dentro de mim, mas 0 que aconte- ceu ha dois mil anos por mim! O que realmente importa é 0 relato de testemunhas oculares daquele evento, se é que somos pessoas centradas no evangelho. Embora 0 evangelicalismo moderno foque seu alcance no testemunho de “vidas transformadas”, em vez da vida, morte e res- surrei¢ao do Deus-homem por nds, parece haver uma caréncia de vidas transformadas. Perdemos o poder da espiritualidade, porque colocamos de lado 0 poder de Deus para a salvacao. Ao nos voltarmos do evangelho para abordagens mais “praticas”, nds, além de deixarmos de honrar 0 evangelho, sabotamos a tnica possibilidade de conversao genuina e de crescimento em santidade. Em nossos dias, a doutrina da justificagao é mal conhecida — uma derrota resultante da ignorancia religiosa de nossa era. Mas ¢ mais do que isso. Sempre que a igreja esquece qualquer coisa que seja, é isto 0 que ela esquece: que Deus a poupou nao por causa da bondade dela, mas pela bondade dele (Dt 9.1-6). Na medida em que setores terapéu- ticos e administrativos ameagam banir as categorias biblicas do pecado e da graga, assistimos a tendéncia do corag&o humano a agao. Todos desejamos uma divindade controlavel, afavel, facil de lidar, e isso tem sido verdade desde a Queda. Com certeza, todos cometemos erros, mas se tivermos apenas bons exemplos para imitar e instrugdes praticas para seguir, evidentemente nos adaptaremos! Recuperagao, nao redengao, éa necessidade mais sentida no momento atual. Tanto em minha vida quanto em meu ministério pastoral, a impor- tincia da condigao de termos essas verdades arraigadas no coragao tem se comprovado repetidas vezes. Por um lado, ainda somos pecadores, a despeito de quanto tempo somos crentes. “Simultaneamente justificados e pecadores”, essa é a condi¢do em que se encontra o crente ao longo de todos os seus dias, até que a santificagao surja, jubilosa, em perfeita conformidade com a santa vontade de Deus na celestial Terra Prometida. Como esta no Catecismo de Heidelberg: “Mesmo 0 melhor que fagamos nesta vida é imperfeito e manchado de pecado” (pergunta 62). Mas essa perspectiva esta se esvaindo em muitos circulos cristdos, em razio de 28 Crer e Observar uma estranha combinagao de antinomianismo mistico e perfeccionismo (especialmente em relag&o as influéncias da sorrateira “Vida Superior”). O professor de semindrio batista E. Glenn Hinson adverte quanto a “um imperialismo da teologia paulina” no ensino reformado classico. O problema com os que defendem essa perspectiva ¢ que eles “ainda se apegam ao conceito juridico de Lutero” e ignoram “a posi¢ao tradi- cional catélica de que a justificagdo envolve a transformagéo do peca- dor”, O perigo desse “conceito reformado” é que ele adota “uma visio estreita da graga, considerando-a como algo dado, e néo como o Deus vivo tomando nossa vida e transformando-nos”.' De modo semelhante, o professor Russell P. Spittler, do Seminario Fuller, pergunta: “Mas sera que pode ser verdade — santo e pecador simultaneamente? Eu gostaria que assim fosse... E espero que seja verdade! Simplesmente temo que nao seja”? O professor Laurence W. Wood, do Seminario Asbury, acres- centa que “justificagdo é libertagdo dos atos do pecado”, “uma infusao do amor divino”. “Por conseguinte”, ele argumenta, “no final seremos justificados se, por meio da fé e da obediéncia, tivermos assim conduzi- do a nossa vida”> O que encontramos repetidamente dentro dos circulos evangéli- cos dominantes é a crescente aceitac¢4o de conceitos que, na melhor das hipéteses, sao reavivamentos dos erros de Roma e, na pior, represen- tam nogdes explicitamente pelagianas. A citago do professor Wood é um sério exemplo do primeiro caso. Exemplos do segundo caso podem ser encontrados em Clark Pinnock e seus colaboradores, que trabalham, agora, num projeto de eliminagao radical de vestigios nao sd da teologia protestante classica, mas também do agostinismo.* Mas isso esté acontecendo no nivel académico. Muitos dos cris- tios, atualmente, de maneira semelhante aos Ieigos medievais, sao sim- plesmente deixados na ignorancia, enquanto sermées sobre auto-estima, estresse e sucesso aprofundam o narcisismo da “gera¢4o eu’. Oitenta e quatro por cento dos evangélicos confessos sustentam que “Deus aju- da aqueles que se ajudam”, coisa que faz sentido quando se sabe que 77% acreditam que os seres humanos sao basicamente bons. Na teologia evangélica, quaisquer que sejam as revisdes detalhadas que possam ser necessarias nos seminarios, parece que a dieta de pregagao, evangeliza-

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