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Fronteira da fé — Alguns sistemas de sentido, crengas e religides no Brasil de hoje CARLOS RODRIGUES BRANDAO Dentro de nés ha também um Universo Daqui nasceu nos povos o louvivel costume De cada um chamar Deus, mesmo o seu Deus, A tudo aquilo que de melhor ele em si conhece E deixar aos seus cuidados o céu ea terra ‘Ter-Ihe temor e, talvez até mesmo ~ amor J. W. Goethe Proémio Algumas trilhas no campo do sagrado UFRO RETORNAR por um momento a uma celebragzo havida no Rio de Janeiro, em julho de 1992, quando autoridades de todo © mundo mais um nimero expressivo de pessoas ¢ de pequenas e grandes ON ram MMhir-se no Rio de Janeiro para a grande Conféréncia Mundial sobre o Meio Ambiente, a Eco-92. Muito menos oficial do que outros, o evento que quero apresentar aqui foi um grande encontro religioso em torno ao sentido da Vida e ao destino do Planeta Terra. vie ‘Com 0 olhar voltado para o céu e dangando ao ritmo de cinticos espirituais, uns 3000 fidis de 25 religides ¢ eredos t20 diversos como o catolicismo, 0 hinduismo, o juda feira como a chegada de “um novo dia para a mo e o candomblé, esperaram o amanhecer desta Si terra”. Foi desta maneira que a ediga0 de Terra Viva, o jornal alternativo do Férum Global celebrado durante a Eo-92, anunciou o que acabara de ser a “celebraga0 inter-religiosa: wa novo dia para a Terra”, Eram muitas as pessoas presentes ¢ havia gente de varios credos ¢ religioes. Mas nao todas. E as razoes de suas au- séncias devem ser assunto das paginas que nos esperam adiante. Por que motivo estavam ali presentes lideres ¢ seguidores de uma religido oriental chamada Brahma Kumaris, desconhecida de 98 entre cada cem brasileiros, quando, até onde se saiba, nao se fizeram representar os pastores e““obreiros” das principais confissdes, evangélicas pentecostais, cuja presenga é a cada dia mais visivel em todo o Pais? Porque tantas outras “autoridades religiosas” nao teriam sido convidadas, enquan- to outras preferiram nao aderir a uma ceriménia miltipla de ritos e preces desti- nados, segundo os organizadores do evento, a “mudar © curso materialista da ESTUDOS AVANCADOS 18 (62), 2004 261 sociedade a que se atribui o caos ambiental, ¢ lutar pela causa de um renascer es- piritual que tome © nosso planeta um lugar habitivel”. [As autoridades religiosas fizeram alternar (depoimentos) de pastores protes tantes, rabinos judeus, tedlogos iskimicos, mamos indigenas guaranis, sacer- dotes do bramanismo hindu e do budismo japonés,espiitas, irmaos do Santo Daime amazénico! O croques que © Instituto de Estudos da Religito publicou a respeito do que ele mesmo chamou de: “aldeia sagrada”, montada para uma semana de ou- tros acontecimentos menores, no Aterro do Flamengo, ilustra de uma maneira muito simples este raro ajuntamento de pessoas e de grupos entre a religiao conhecida ¢ a unidade esotérica recém-inaugurada, que repartiram por sete dias os espacos € cenarios dados a todas e a cada comunidade de crenga € culto. Dificilmente teria sido possivel colocar em uma grande praga publica, en- tre a montanha ¢ o mar do Rio de Janeiro, uma imagem melhor do que esta acontecendo no multiforme universo dos sistemas religiosos de sentido no Brasil de hoje, do que o desenho que retratou a distribuigao dos espagos na tarde ¢ noite de um dia de julho durante a Eco-92. Muito embora ele nem de longe re- trate os nomes e desenhe as presengas de todas as religides, os credos ¢ os outros sistemas espirituais de sentido que constituem ou que atravessam em alguma latitude o mapa do campo religioso brasileiro de agora. B possivel que este detalhe coreogrifico nao seja um espelho fiel do cena. rio de escolhas e de espagos da experiéncia religiosa no Brasil. Alguém poderia argumentar, e com bons motivos, que ademais de varias confissOes de crengas evangélicas e, mais do que tudo, pentecostais, cuja atividade e cuja crescente relevincia na formagio de culcuras no Brasil é inegavel, no estavam representa- das no grande do Aterro do Flamengo. O mesmo teri por certo acontecido com religides ¢ igrejas mais ortodoxas, mais “fechadas” e, portanto, menos sensiveis a tais tipos de representagio em piblico. De outra parte, muito provavelmente a imprensa e os turistas de evento terio dado mais importincia ao que interpretam com os olhos do desejo do exético, do que com um critério de avaliagio mais compreensivo. Uma festiva danga dos Hare Krisna, ou uma tenda de adeptos do Candomblé, assim como a inesperada presenga de alguns xamas indigenas thes poder’ haver chamado a atengao mais do que papel reservado as comunidades eclesinis de base, seguidoras de uma Teologia da Libertagio. Ao lado dos pequenos ¢ grandes encontros uniconfessionais, como um, Congresso Ecuménico catolico ou uma das grandes concentragdes dos Testemu- has de Jeord em um estidio de futebol; ao lado de alguns mais raros encontros de vocagio ecuménica ¢ inter-eclesial, comega a ser um costume de tendéncia crescente, © convite 3 participagio de pessoas ¢ equipes de sistemas de sentidos as mais diversas, as mais originalmente distantes, pelo menos até entio. Algo como se uma vocagao ecuménica de partilha ritual de momentos devotados a. um sagrado gencrosamente polissémico, fosse alargada ao maximo de suas frontei 262 ESTUDOS AVANGADOS 18 (52), ras. Alargado até onde elas fossem estendidas até limites onde 0 religioso- confessional por um instante compartilhasse um mesmo cenirio de festa ¢ rito com espiritualidades nao-confessionais (embora francamente confessantes); com grupos nativos cujos rituais até hoje sto vistos pela ortodoxia crista menos tole- rante como “cultos de feitigaria”; com pessoas ¢ pequenas comunidades autodefinidas como esotéricas ou praticantes de uma das vertentes do de simbolos ¢ de gestos, aqui ¢ ali associados Nova Era. Tudo se passa ~ e é justamente isto o que rorna tio fecundo € atraente 0 mundo das invengdes culturais do sagrado — como se afinal lograssem estar préxi- ‘mos, quase irmanados os campos de vocacio antes ¢ até hoje #0 conflitados. Censrios de crenca e pratica dos mistérios de alguma forma de fé, onde se congre- gam usutios ou seguidores na, através da ou ao redor da religiao: o profeta cxi- tico do estabelecido e enunciador da emergéncia do novo, do heterodoxo e, n3o raro, do neosectirio; o sncerdote consagrador do sistema religioso estabelecido como uma igreja; ¢ 0 feiticeiro, profanador da pureza pretendida da religiao. E como se estes atores do sagrado legitimo, emergente ou impuro, sempre em luta uns contra os outros, segundo Max Weber, pelos direitos de posse ¢ uso do capi- tal-de-sentido com valor-de-fé, recomesassem a estabelecer, pelo menos em re- cantos menos ortodoxos da praga social das crengas, um estranho acordo de paz. Pelo menos “ali” ¢ pelo menos “por agora”. E, como tantas outras pessoas 3 minha volta, quando eu salto de um cens- tio de multidoes e de um raro evento ocorrido hi alguns anos atris, para o que me acostumo a assistir acontecer e mudar 4 minha volta, no circulo mais préxi- mo de quem sou e desde onde convivo com as pessoas mais intimas, o que tenho para dizer nao é muito diferente. Antes de chegar a uma reflexdo mais detalhada a respeito do que parece estar configurando e do que parece estar acontecendo entre os sistemas culturais, de sentido, romando como um exemplo o universo religioso brasileiro, que 0 leitor me permita desenhar 3 sua frente um mapa bastante sumario, mas suficien- te, espero, do que seria agora um campo de composigio das alternativas religio- sas mais visiveis no Brasil ferso O mundo das religides no Brasil de hoje ‘Ao desenhar com algumas palavras ¢ muitos exemplos um mapa sumério das religiées no Brasil de agora, pareceu-me sugestivo comesar por uma lista simples ¢ nada completa de nomes de livros de € artigos sobre religides no Pais. Escolhi-os a0 acaso ¢ varios deles si0 trabalhos de antropélogos ¢ socidlogos meus amigos. Vejamos: Os errantes do novo século; Milagre em Juazeiros A comu- nidade eclética espiritualista universal; O vale do amanhecer, A margindlia sa- grada; O carnaval devoto; Os cavaleiros do bom Jesus; A morte branca do feiticeiro negro; Vovd Nag, pnpai branco; O mundo invisivel; Os deuses do povo; Os deuses canibais; A Terra sem males; Rezadores, pajés e pucangas; Religioso por naturesa; ESTUDOS AVANCADOS 18 (62), 2004 263 A obra ca mensagem; A experiéncia da Salvacao; Dentro de um ponto riseado; O refilgio das massns; Fazendo estilo, Criando género; Guerra de Oris; Os escolhidos de Dens; Comunidade eclesial, comunidade politica; Tempo de Génesis; Religiao e dominacao de classe; Os santos némades e 0 Deus estabelecido, Eles poderiam ser muitos outros, mas por enquanto esta lista nos serve ‘Temos af uma intrigamte colegio de nomes de estudos sobre religides indigenas, de origem afro- brasileira, sobre o espititismo, as virias confissies evangélicas, 0 catolicismo, os movimentos messiinicos do passado € novas religides que dificil mente poderiam se enquadrar no mesmo setor do campo de qualquer uma das outras jé existentes. Tomado no seu todo e na multiplicidade de suas diferencas, existem muito mais alternativas de afiliag3o religiosa. Afora as religides, confis- s0es ¢ igrejas tradicionais e mais visiveis, como o Cristianismo Catélico e o Evan- gélico (ndo-pentecostal e Pentecostal), 0 Judaismo, o Espiritismo Kardecista e outras, é a cada dia mais viva a presenga de antigas religides orientais revisitadas, € recém-estabelecidas no Brasil (0 Budismo em suas diferentes variagOes seria 0 melhor exemplo) ao lado de neoreligides de tradigao oriental , em menor né- mero, ocidental. Como seria possivel descrever este universo rico € diferenciado, no tanto pela quantidade de semethangas, mas pela qualidade das diferengas?? Para comecarmos a compreender primeiro a estrutura ¢ depois a dinamica do campo religioso no Brasil, proponho que imaginemos o espago em branco de uma folha de papel deitada na horizontal. Coloquemos no extremo 3 esquerda as religioes dos primeiros povoadores do que veio a ser, depois, o Brasil: os povos e as nagdes indigenas. Aprendemos na escola que os muitos grupos tribais ao tempo da chegada dos europeus tinham uma vaga espécie finica de religiio, com um misterioso deus supremo: Tupa e uma perigosa tradig2o de fazer mata- rem ¢ comerem os seus prisioneiros. Nada mais falso, antes ¢ agora. Subsistem hoje em dia pessoas ¢ tribos em um niimero muito pequeno, face a0 que houve antes. Eles no si0 mais do que algo entre 170 ¢ duzentos mil. Mas, a0 contririo do que muitos imaginam, estes remanescentes de quase cinco séculos de geno- cidios € agressoes, distribuem-se em diferentes etnias ¢ algumas nagdes indigs nas; distribuem-se por praticamente todo o Pais em virias tribos com culturas, prOprias e, em seu interior, com sistemas religiosos peculiares, alguns deles de tuma bela rara complexidade. ‘Mesmo depois de muitos anos de trabalho catequético e conversionista, catélico e protestante, muitas culturas indigenas preservam ainda as suas religioes, mesmo nos casos em que virios de seus membros ji se converteram a alguma confissao crista. Algumas destas religides possuem um profundo sentido profét co, como € 0 caso dos Guarani. Na histéria recente do Brasil houve mesmo al- guns surtos indigenas de tipo messiinico. Coloquemos no extremo oposto, a0 lado direito de nosso mapa, outras religides de grupos étnicos ou de grupos culturais minoritérios. Mas ao contri- tio dos nossos povos indigenas, essas pessoas, sas unidades culturais ¢ as suas 264 ESTUDOS AVANGADOS 18 (52), religides vieram da Europa e também da Asia e aportaram no Brasil isolados ou. em levas de migrantes, entre meados do século XIX ¢ os tiltimos anos do século passado. Pensemos nos judeus ¢ sua religiao, nos diversos migrantes mugulma- nos, arabes ou nao. Lembremos 0 Cristianismo Ortodoxo dos libaneses e de ‘europeus mais a Leste da Austria. Nao esquesamos o Budismo, o Xintoismo ¢ 0 Confuucionismo ¢ outras confissdes trazidas ao Brasil como os migrantes japone ses ¢ de outros povos vindos da Asia ha muito tempo, ou em anos recentes, como 0s coreanos.. ‘Urbanas em sua imensa maioria, essas religides, majoritirias ou ativamente presentes na cultura de seus paises de origem, possuem em comum com as dos povos indigenas, aqui no Brasil, o fato de que quase sempre esto restritas ao Ambito de suas prprias comunidades étnicas ¢ culturais. Algumas arcaicas ou recentes tradigdes religiosas em geral classificadas como “orientais” poderiam estar sendo agora uma excegao. Assim, existem entre nés alguns budistas nao- orientais e nem descendentes de orientais. Eles serio ainda demograficamente muito poucos, mas a qualidade do que eles € outros, vizinhos ou proximos, inauguram nas culturas religiosas no Pais é de um valor bastante grande. A um primeiro olhar, nao confundamos estas religiées muito antigas ¢ de minorias culturais entre n6s, como o Budismo ou o Xintofsmo, com outras religides che- gadas a pouco “de fora” e que, a0 contritio das pr vida cotidiana e fazem intimeros convertidos, como a Seicho-no-Ié & a Igreja Messidénica. Blas nos esperam adiante. Voltemos por um momento 4 nossa margem esquerda. Bem ao lado de uma linha imaginaria, vizinha ao territ6rio cultural das intimeras religides indi- genas, seria oportuno colocarmos alguns tipos e variages de cultos ¢ de priticas que nem sempre chegam a constituir religides formais. No entanto, sobretudo m toda a Amazénia, a presenga deles é bastante considersvel. Exemplos: a Page~ langa Amazénica © os Cultos de Jurema. Ao lado deste novo espago, coloquemos algumas religides de uma visibili- dade cultural muito maior. Elas constituem hoje as variedades e transformagdes de culturas e sociedades que foram um dia também tribais nos seus cendrios de origem: a Africa. Algumas chegaram a graus de complexidade e diferenciagio muito pouco reconhecidos pelos conquistadores, que por séculos aprisionaram os seus homens e as suas mulheres, ¢ os roubaram de suas tribos e terras para virem a ser escravos nas Américas. Com os negros escravizados vieram tradigdes culturais, ainda autéctones ou jé mescladas, de cultos tribais que, mesmo perse- guidos com intensidade até poucos anos atras, sobrevieram ¢ souberam difundi se por todo o territério do Pais. Elas se associaram de diferentes maneiras, aqui ¢ ali, com outras tradigdes de crenga € culto, estendendo-se para além das frontei- ras étnicas € conquistando um nimero crescente de adeptos brancos em todas as camadas sociais. O exemplo mais conhecido dentro e fora do Brasil € 0 do Can- domblé. Mas existem outros, como € 0 caso da Casa de Minas, do Maranhao, 0 imeiras, mesclam-se com a ESTUDOS AVANCADOS 18 (62), 2004 265 Xangé do Nordeste e, como uma derivagao posterior e ji inventada criada no Brasil, mais ou menos a partir dos anos de 1920, a Umbanda’ © que existe em comum entre todas elas? Talvez.o principio da comunica- Gio entre deuses € homens e entre vivos e mortos através de meios mais diretos € em situagdes mais freqiientes do que em outras religides. Todas elas, cada uma a seu modo e com base em seus mitos e teologias, aceitam e possessio como o modo mais adequado por meio do qual uma divindade, o espirito de mortos ou outros tipos de seres, entram em comunicag3o com os humanos vivos, incorpo- rando-se ao seu ser, falando através de seu corpo, induzindo-os a tipos peculiares de comportamentos, dentro de ceriménias rituais ou fora delas. Muito mais do que nas religides indigenas e mesmo mais do que em religioes como 0 Judafsmo, 0 Budismo ou Islamismo remanescente no Pais, existe no Candomblée maisainda, na Umbanda, uma abertura no hierarquicamente con trolada de inovagio, diferenga e divergéncia, Um paralelo semelhante existiré apenas, agora, no Pentecostalismo Evangélico. Assim, a propria Umbanda 6, vimos, uma mescla aberta e dinimica de combinagdes articuladas de “elemen tos” dos cultos afro, do Espiritismo Kardecista e do Catolicismo. A possibilidade de combinagées e a oferta diferenciada de tipos ¢ de alternativas corre por conta da iniciativa de agentes de culto e uma hierarquia sacerdotal para além de cada “centro” ou “terreiro” é bastante friggil Em seguida, devemos convocar a nosso mapa outras religides onde © mesmo principio da possessio € essencial ao sistema de crengas e & l6gica dos cultos. Seu representante mais visivel € 0 Espiritismo Kardecisra, Ble chega a0 Brasil muito depois das religides africanas, entre fins do século XIX e os comegos do XX. Vem da Europa ea sua origem esta na “codificago” de uma nova doutri- na feita na segunda metade do século XIX por Allan Kardec, em uma assumida, comunicagio com espiritos superiores. Mais do que em qualquer outro pais do mundo, no Brasil, 0 espiritismo difundiu-se como uma religiio francamente confessional, ainda que muito moderadamente conversionista Este “espiritismo de mesa branca”, muito diferente do “espiritismo de ter- reiro”, em geral associado sem rigor 4 Umbanda em suas varias formas, resiste a ser pensado como uma religito até mesmo vizinha dela e, mais ainda, de qual- quer uma das religides de origem e simbologia “afro”, Quase todos os seus adeptos negam qualquer aproximagio entre o Espiritismo e todas as outras reli gides de possessio, Alguns afirmam até que o mesmo que Ihes é comum: a posse da pessoa humana por espiritos, Ihes traga a diferenga. Os espiritas recebem sem- pre 0 espfrito de pessoas, para serem ajudadas em seu camino de aprimoramen to espiritual, ou para ajudarem os vivos, como no caso dos espiritos superiores, “espiritos de luz”. Enquanto isso, nos outros culos “baixam” apenas espiritos inferiores, no raros travestidos de deuses, de deidades, de “orixés”. Claro, agen tes e praticantes dos cultos dos orixs negam esta qualificaglo negativa em todo o seu aleance. 266 ESTUDOS AVANGADOS 18 (52), Quando mais adiante eu estiver falando em religioes erudisas e em religioes populares (um outro jogo de opostos nem sempre feliz) ser importante lembrar 0s termos, ditos de um lado e do outro dos cultos de possessio, que estabelecem as diferengas ¢ justificam, entre opostos proximos, uma ativa divergéncia de iden- tidades religiosas, O Eppiritismo Kardecista,a Umbanda e 0 Candomblé sto as trés religides meditinicas ¢ de possessio mais difundidas ¢ melhor conhecidas no Brasil. Da primeira & terceira, elas fazem imperfeitamente trajero do mais “erudito” a0 mais a0 mais “popular”, do mais escrito ao mais oral, do mais eticamente branco 0 mais negro, da maior autoproclamada proximidade intima do Cristianismo a0 muis distanciado, pelo menos do ponto de vista de uma doutrina confessional explicita. Mas elas no sio as tinicas. Sabemos que desde diferentes origens afii- canas ¢ desde o periodo histérico da escravidao na Colénia e, depois, no Império do Brasil, recriam-se em todas as regides geogrificas diversos sistemas de tradi- $0 afro-brasileira. Tal como acontece entre as tradigoes de confissio crista, elas reclamam o direito as suas identidades peculiares. De outra parte, um interesse primeiro académico ¢, depois, pessoal pelos sistemas religiosos affo-brasileiros de parte de um néimero crescente de estudiosos brasileiros ¢ estrangeiros, aca- bou por atribuir a essas religioes uma aura de respeitabilidade antes inexistente. Deve ser acrescido a isto 0 fato de que, sobretudo © Candombté tem sido associa do de maneira crescente aos diferentes movimentos sociais de etnia negra no Brasil. Prossigamos. Coloquemos ao lado das religides de possessio mais difundi- das, outras ainda. Elas sto mais recentes e menos conhecidas e algumas surgiram de fato e se disseminaram hi muito poucos anos. Entre as mais conhecidas ou, pelo menos, as mais estudadas, aqui estio: A Fraternidade Eclétien Espirituatista Universal, O Vale do Amanbecer, ea Legito da Boa Vontade, que recentemente teve 0 seu nome mudado para Religiao de Deus. Se as coloco ao lado dircito das religides tradicionais de possessio, deixando 0 Espiritismo Kardecista cm sua nha de fronteira, ¢ porque todas clas evocam os dois tragos constitutivos dos sistemas confessionais anteriores: a possessao ¢ a mediunidade. Isto é, a evidén- ia do poder da relagao sagrada na incorporagao de espiritos de outros humanos ou de seres divinizados em agentes e/ou adeptos do grupo religioso; a necessi- dade da qualificagio de agentes religiosos, realizada através de um “desenvolvi- mento de mediunidade” para a adequada ¢ eficiente relagdo de possessio. Que este simples sumério de um mapa de sistemas religiosos de sentido sirva 4 lembranga de que, a nao ser em tipos de culturas muito simples ou muito fechadas, onde havia antes uma certa unidade ¢ uma estabilidade consolidada, nao raro a forga, existe agora uma franca diversidade no interior de algumas € entre as religides. Ao lado de “formas puras” € “de origem”, existem derivagoes, divergéncias, novas experiéncias pessoais ¢ coletivas de tornar uma experiéncia de sentido, tornada uma fé partilhada como uma crenga, na religiao em que elas acabam se configurando culturalmente. Ao mesmo lar com 0 sagrado € emu ESTUDOS AVANCADOS 18 (62), 2004 267 tempo isto acontece, tal como costuma ocorrer em toda a histéria das relagoes sociais através da religi2o, todo este processo de surgimentos ¢ inovagoes é acom- panhado de esforgos dirigidos 4 conquista de legitimidade. Em um universo de relagdes ainda francamente classista, a adesto de agentes e de prosélitos de “clas- ses mais altas” e culturalmente mais complexas e eruditas, desempenha aqui um, papel da maior importincia. Vimos isto acontecer com 0 Candomélé. Veremos, adiante, acontecer com 0 Santo Daime © a Unido do Vegetal. Se 0 desenho imaginirio que estou propondo até aqui ests claro, sugiro que entre os espacos ja ocupados A direita e 4 esquerda de nossa folha imaginiria, sejam colocadas outras tradigdes religiosas bastante conhecidas em toda a Amé- rica Latina, Eis o lugar onde cabem as religides mais abertas e mais oficialmente identificadas como eristas: 0 Catolicismo (e seus varios modos diferentes de “ser catdlico”); as denominagoes protestantes on evangélicas. suas derivadas, com uma énfase sobre as que se autodefinem como pentecostaise, finalmente, um pequeno conjunto de outras religides onde uma idéia de classificagao é mais dificil. Por- que sendo todas elas confessionalmente cristas, nao se identificam nem com o Catolicismo © nem com as confissdes evangélicas. Seus exemplos: As Testemu- bas de Jeovs., os Mérmons, os Adventistas do Sétimo Dia © mesmo os Batisias, que apenas com muita dificuldade aceitam uma origem comum com os protes- tantes. Sabemos que, juntas, essas religides envolvem a imensa maioria das pessoas que afirmam possuirem uma religito. Seriam quantos? 90%, 95%? Um pouco menos ou um pouco mais? © Catolicismo ea sua Igreja Catélica Apostética e Romana sto considera- dos até hoje como o sistema religioso e a instituiga0 confessional demografi- camente majoritérios e culturalmente hegembnicos. Conhecemos todos uma divi- sto entre um catolicismo erudito ou oficial ¢ um catolicismo popular, que alguns estudiosos preferem chamar: catolicismo de folk. Convivemos na atualidade com Varios estilos culturais de “ser catélico”. Mesmo no interior de um catolicismo mais candnico, praticado em linha direta de relagio com o corpo sacerdotal, subsistem modalidades de tendéncias nao raro de dificil integragio no corpus de doutrina, gestos ¢ ritos de uma mesma religido ¢ de uma mesma igreja. Olhado de perto, isto a que damos 0 nome de eatolicismo popular possui tantos matizes quantas sao as culturas em que vivem as suas pessoas reais: no campo ou na cida- de, na Amazénia ou em Minas Gerais, em areas de uma marcada influéncia de tradigdes negras, como a Bahia, ou de migrantes italianos, como em Sao Paulo, Umma de suas caracteristicas comuns, no entanto, esti em que este catolicis- mo ancestralmente laico ¢ rural, quase chega a constituir um para-sistema religio- so setorialmente auténomo frente a uma igreja de que ele sempre se reconhece parte. Ali estio tanto as crengas populares ¢ alg sistemas sociais de trocas de atos, de simbolos ¢ de significados que, no seu todo, recobrem quase tudo o que uma pessoa necesita para sentir-se de uma religiao ¢ ns costumes patrimoniais, como 268 ESTUDOS AVANGADOS 18 (52), servir-se de seus bens ¢ servigos. Mas, 4 diferenga do que acontece no campo evangélico, mesmo nos surtos messiinicos histéricos do catolicismo camponés, sempre os seus agentes se reconhecerio subordinados as autoridades da igreja oficial e sempre se levari em conta que alguns rituais de importincia essencial somente podem ser ofertados pelos sacerdotes eruditos. Certa feita, um tedlogo de confissio evangélica disse em uma de nossas reunides que o Catolicismo fizia gerar e preservava a sua diversidade, nao se di- vidindo, enquanto o Protestantismo garantia a sua unidade, dividindo-se. Ele queria sugerir algo que parece ser comum no Brasil e, convenhamos, em toda a América Latina, Sabemos que apesar de todas as diferencas culturais e divergén- cias de imaginérios ~ na teologia, na pastoral, na doutrina social, na definicio do sentido de presenga e compromisso do cristo — 0 Catolicismo mantém-se como uma religizo tinica de uma sé igreja. A Gnica cist0 conhecida foi, no comeso do século, a que deu origem 4 Igreja Catélica Brasileira, cuja presenga no mundo religioso do Pais € quase invisivel. De sua parte, as igrejas evangélicas chegaram a0 Brasil em momentos diferentes, estabeleceram-se através de projetos de pre senga ¢ missio muito desiguais, ¢ seguem hoje trajetorias de afiliagao confessional € de consolidagao de seu lugar confessional também diversos No espago que nos resta em nossa folha imaginéria, ao lado do Catolicis- 1as variantes internas, podemos colocar o ramo mais antigo dos evangéli- cos no pais. Nas classificacdes mais conhecidas eles sio lembrados como prozes- tantes de imigracao, Vieram com os europeus do Norte a partir dos fins do século XIX. Os luteranos ¢ os episcopais si0 os mais conhecidos. Logo abaixo, escrevamos os nomes das igrejas ¢ denominagdes também do Protestantismo Hist6rico ou tradicional (ligadas de origem as reformas protestantes de Lutero e Calvino), varias delas identificadas também como igrejas protestantes de miso Ha uma diferenga muito importante entre estes dois ramos de evangélicos entre nés. Os primeiros, concentrados mais no Sul do Brasil, estao situacionalmente proximos das religides de minorias étnicas. Eles nao se preocupam muito com ‘um trabalho de converses para fora das fronteiras de seus grupos étnicos (ale aes, ingleses etc. e descendentes) e, em varios casos, o circulo cultural da reli- gido confunde-se com o da comunidade énico-cultural. Ao contritio, os primeiros evangélicos “de missi0” vindos da Europa e dos EUA chegaram ao Brasil para instaurarem uma presenca religiosa ativa e francamente proselitista dirigida a um trabalho evangélico de conversio entre “os brasileiros”, em um pais ent2o considerado como “terra de missio”. Entre cles esto, entre outros, os Presbiterianos, os Congregacionais ¢ os Metodistas moe Irmamente préximos dos anteriores, ¢ ainda mais ativos no trabalho proselitista, um lugar no mesmo espaco evangélico de nosso mapa deve ser reser- vado aos ramos originais do protestantismo de conversao. Eles se originam de ci- soes protestantes ¢ de divisdes tardias, em boa medida jé nos EUA. Os mais conhecidos sio aqueles que, tomados em conjunto, costumamos associat ao Pro- ESTUDOS AVANCADOS 18 (62), 2004 269 restantismo Pentecostal. Em 1910, quando eles comegam a chegar ao Pais, através, de missionarios que ira0 criar a Asembiéia de Deus e a Congregagao Crista no Brasil, havia apenas dois templos pentecostais, contra cerca de 1.100 das deno- minagoes evangélicas anteriores. Em 1970, contavam eles j com cerca de 1.100 templos, contra 1.400 dos evangélicos nao-pentecostais. Em 1999, com certeza jd havera bastante mais templos, mais tipos de igrejas, mais agentes religiosos € ais figis convertidos entre os pentecostais do que em todas as igrejas antecedk tes do Protestantismo no Brasil. Em algum sentido nao seria errado pensi-los como sistemas religiosos tam- bém de possessio, embora qualquer aproximagio com tudo 0 que esteja 3 sua esquerda, em nosso mapa imaginsrio, cause aos seus dirigentes algo entre a es- tranheza indignada ea firia sagrada. Dificil estabelecer normas de compreensio, das vertentes pentecostais, tomadas em seu todo. Sobretudo nos iiltimos vinte anos 0 cenrio pentecostal do universo cristo na América Latina tomou a forma de um aglomerado muito variado. Um multiforme cenitio de criagao e recriaga0, continua de igrejas, de ministérios, de grupos ¢ de congregagdes emergentes, quase sempre através de cismas de pequena escala Uma presenga ativa do Espirito Santo na vida e na pessoa do “erente”, da pessoa integralmente convertida e “entregue” ao Deus de Jesus Cristo, através da afiliagio irrestrita a uma de suas pequenas igrejas, aproxima os pentecostais, mesmo entre confissdes € igrejas em relagdes de conflito aberto entre elas, em alguma coisa comum que qualifica 0 “crente”, separa-o dos outros “irmaos evan- gélicos” ¢ o afasta dos catélicos, constituindo-os ainda como rivais militantes de todas as religioes de possessio meditinica’ Para um bom exercfcio de compreensio dos ritos e dos jogos que presidem as aliangas, as proximidades, os distanciamentos, ou mesmo as relagdes de contli to aberto no interior dos tecidos e das teias de trocas de servigos e de sentidos através da religiio, nada melhor do que considerar a maneira como os pentecostais, evangélicos estabelecem graus € gradagdes entre a legitimidade ¢ a ilegitimidade religiosa, dentro ¢ fora dos espacos proclamados por eles como cristios ¢ nio- cristios, em um campo religioso que o imaginério coletivo do “crente” a0 me mo tempo constitui e consagra. Vejamos como. Ha um centro da experiéncia universal do sagrado legitimo. Um primeiro niicleo de exceléncia religiosa situado no exato interior do “ministério da minha igreja”, Ble se estendea um eixo de eleigdo divina que coloca esta “minha igreja” (com 6s seus outros eventuais ministérios) em um segundo circulo de verdade confessional. A seguir, no quase limite da restrita vocagio ecuménica, ele dese- nha o circulo que acolhe os pentecostais de modo geral, em suas inémeras alter- nativas de afiliagio, como sendo a miiltipla religito verdadeira e a tradutora tni- ca, em nossos dias, da vontade de Deus e da ortodoxia fiel do Cristianismo. Um circulo seguinte, na divisa entre a experiéncia religiosa acreditada ¢ a falsa, habi tado ainda por parentes de fé, mas ja distanciados demais, credita aos outros 270 EsTuDOs AVANGADOS 18 (52), evangélicos, os nao-pentecostais, 0 atributo de praticantes da verdadeira reli- giao. Mas, fora do dominio pentecostal, 0 protestantismo “extracrente” obede- ce a escolhas confessionais racionalmente corretas ¢, entanto, destituidas do po- der do Espirito Santo e enfraquecidas em sua capacidade de traduzirem com fidelidade absoluta “3 vontade de Deus”. Logo, de estabelecerem uma separagio indispensivel radical entre © mundo da fé e a falsa f€ no mundo. Por isto mes- ‘mo, porque mesmo sendo ainda a fragao limite da verdadcira religiao, os protestan- tes-nao-pentecostais cederam ao Mundo ¢, entre ouras conseqiiéncias, perde- ram 0 “poder do Espirito Santo” de converterem ¢ afiliarem, com sucesso, levas de novos “irmaos” arrancados do mal do Mundo para a éinica salvagao possivel: a submissao plena aos mandatos do Cristianismo em sua versdo pentecostal. Considerada ainda uma religiao, o Catolicismo lhes aparece como um des- vio do sentido cristao da fé ¢ da vida da Graga: uma“falsa religiao”, portanto. Se © Catolicismo traga a fronteira simbélica entre a religito verdadeira (o Cristianis- mo) desviada de sua verdade essencial (o Catolicismo), as outras grandes religioes universais si0 consideradas como desvios essenciais de crenga. A simples ndo- adesio definitiva 4 pessoa em um deus Jesus Cristo, tinico e suficiente “Salvador do Mundo”, torna todas as outras, “falsas religides”. Alguns pregadores mais ra- dicais tragardo entre elas a divisa entre a religiao (sempre ligada a um deus, mes- mo quando perdida dele) ¢ os sistemas enganadores de sentido: a feitigaria, a ‘magia, a bruxaria, a macumba, nao raro tidas como uma criagdo das préprias pes- soas € forgas demoniacas. Assim, todos os outros estilos de tradicao religiosa mais propriamente popu- lares, ¢ associados seja as culturas afro-brasileiras, seja 4s de uma real ou suposta origem indigena (Santo Daime, Uniao do Vegetal), a0 lado do Espiritismo Kardecistn e, mais do que todas, da Umbanda, todos eles ocupam 0 circulo ja francamente exterior do universo religioso. Sao formas demoniacas de perversio do sagrado. Sao criagdes fraudulentas do proprio Satands, onde a ilusio do poder benéfico dos deuses, na verdade apenas encobre ¢ disfarga a agio do Deménio € de seus sequazes. Mais do que qualquer outro dominio confessional do universo religioso no Brasil, o Pentecostalismo ¢ bom para se pensar a trama complexa de alterna- tivas, assim como de inovagoes e transformagoes. Nem mesmo o mundo profano dos negécios é tao capaz de transitar com tanta criatividade entre as alternativas de um franco e aberto mercado de bens simbélicos. Nenhum outro é tio capaz de atualizar e trazer de um plano de relagdes para outro as préprias “leis do mer- cado moderno”. Um mercado de compra ¢ vendo de tudo, a qualquer custo, cu- ja logica “mundana” os pentecostais justamente configuram como sendo uma das evidéncias da presenga dos seres do sagrado satanizado entre nds. Novas agéncias de tipo pentecostal, dotadas de um poder nunea visto antes, de converses em massa, como a I[greja Universal do Reino de Deus, adotam pa- droes de expansio dignos das mais moderas empresas de oferta de servigos ESTUDOS AVANCADOS 18 (62), 2004 21 profanos. E, ao lado de outras, mais moderadas na geometria de sua espantosa expansio, é ela quem propde um tipo de pregacio salvacionista que separa o sujeito “entregue e salvo” de um mundo de ambigio satinica, regido pelas leis e misérias da economia de mercado e pela ética perversa de tudo esta para além dos limites do Pentecostalismo. Mas, condenada de perto pelas igrejas pentecostais, mais antigas, é a mesma Igreja Universal do Reino a que no momento obtém ais sucesso no esquecer os rigores da vida do “crente” € no substituir, pouco a pouco, os desafios contidos nas promessas de salvagio eterna mediante a adesio rrestrita a uma rigorosa “lei-do-crente”, por uma oferta generosa de sucesso imediato nesta vida terrena, em troca de uma prestagdo pessoal de servigos pes- soais e financeiros a igreja, que em muito pouco difere dos padroes éticos da logica capitalista aparentemente condenada. Fora 0s casos raros ¢ atuais, entre pessoas, grupos ¢ igrejas, os Pentecostais resistem, mais do que os Batistas e os praticantes de outras denominagoes tradi- cionais, a qualquer tipo de aproximacao ecuménica. Estranho que isto possa parecer, este principio de separagiio radical vale até mesmo dentro de seu universo. Hé uma auséncia quase absolura de relaciona- mentos entre a Assembléia de Deus e a Congregagao Crist no Brasil. Hii mesmo tuma frouxa alianga ¢ h4 minimas trocas entre os trés ministérios da Assembléia de Deus. Nisto eles copiam em tudo a tradicio de confissbes protestantes tradicio- nais onde h4 uma quase nenhuma relaglo entre “igrejas” de uma mesma deno- minagao. Estamos proximos agora de nossa margem direira, onde haviamos deixado desde o comego do desenho deste mapa, as religides de minorias étnicas e cultu- rais, Ki-nos diante de um titimo espago deixado ainda em branco, Que 0 leitor recorde em stia porgo mais a esquerda o lugar reservado a novas tradigdes religio- sas surgidas, quase todas entre o Centro-Oeste do Pais, especialmente em Brasilia, € a Amazdnia, Recordemos alguns de seus nomes: Samzo Daime, Unido do Vege~ zal (UDV, para os intimos), Vale do Amanhecer, Fravernidade Eclética Expiri- rualista Universal. Quase todas possuem nomes oficiais bastante mais longos € sugestivos de uma afiliagao crista e espirita. Emprego aqui os nomes pelas quais, si0 conhecidas em todo o pais. Sobre as duas primeiras seria oportuno tecer alguns comentirios. Trata-se de uma forma religiosa original e uma outra, derivada. Mas, sobretudo na Ama- zOnia, so jf virias as novas ramas saida do tronco inicial. O Sanzo Daime foi criado no Acre, depois que um seringueiro vindo do Nordeste do Brasil sentiu- se convocado a instaurar um novo estilo de vida religiosa, fundado, em boa me- dida, em cultos de ingestio ritual da Ayuasca. Dela derivaram, depois, algumas outras formas variantes, ¢ pelo menos as duas citadas aqui, 0 Daime e o Vegetal difundiram-se por Virias regides na AmazOnia e por todo o Centro Sul do Brasil Sio casos, nao raros no cenério da vida espiritual brasileira, em que uma neotra- digao de vida religiosa surgida no campo ou na floresta e criada através da inicia- 27 EsTuDOs AVANGADOS 18 (52), tiva de agentes francamente populares, ou de pequena classe média (como ¢ 0 exemplo da Fraternidade Espiritualista e da Vale do Amanbecer) migra para a cidade e conquista adeptos de vocagao cultural bastante mais erudita, nao raro, universitatia. Reconhegamos entre as novas criag6es religiosas brasileiras pelo menos duas vertentes. Na primeira, o grupo ou a rede de agentes e de adeptos segue uma orien- tagao mais Espirita e reencarnacionista, abolindo de suas crengas qualquer imagi- nGrio voltado ao messianismo ou a qualquer tipo de milenarismo, correntes em. outras tradigdes populares do passado e mesmo atuais. Ele tende a multiplicar- se, a sair fora dos seus cendrios de origem e a, eventualmente, atravessar degraus de classe social e fronteiras de cultura, Nunca to ativamente proselitista quanto os evangélicos “de missio” do passado proximo e quanto os pentecostais de agora, essas novas comunidades religiosas so, em principio, avessas a grandes rebanhos unificados e, principalmente, a cultos de multiddes. Ao contriio, devo- tadas a seu modo a difusto de crengas onde uma lenta trajetéria de “desenvolvi- mento espiritual” e medidinico (em vérias delas as duas qualidades se identifi- cam), tendem a tomar a forma de pequenas agéncias de servigos semanais, a0 estilo dos centras espiritas, ou adotam o estilo das comunidades semi-isoladas, em geral na periferia distantes de uma cidade, como Brasilia, por exemplo, ou em algum local bastante ermo, nos sertdes 4ridos ou timidos do Nordeste ou da Amazénia. O que as diferencia das religioes da segunda vertente, assim como dos pentecostais evangélicos, ¢ 0 fato de que tais agéncias ou comunidades de f& destocam um final dos tempos de valor hist6rico ou cosmicizante para uma traje- t6ria de evolugao pessoal de valor individualmente purificador. Aqui, as guerras travadas entre o bem e o mal sio sempre duelos individuais entre forgas personi- ficadas de um lado € do outro. Voltemos a alguns nomes. Coloquemos aqui a religio do Vale do Amanbecer, Santo Dainve, a Fraternidade Eclética Espiri- twalista Universal, a Uniao do Vegetal. Tal como no caso dos pequenos surtos da bandeira verde na Amazénia, a unidade religiosa de origem resiste a dividir-se e, mais ainda, a multiplicar-se e a se expandir. Ela tender a tomar entio a forma de uma comunidade carismitica errante, em busca de um lugar sagrado e redentor, a0 estilo das tradigoes Guarani da busca da Terra-sem-Males. Ou poder’, segundo o padrio de espera de surtos milenaristas como 0 de Canudos, estabelecer o eixo do lugar sagrado no centro do lugar de vida da comunidade original, destinando todos ou quase todos os outros a uma destruigi0 com data prevista Que um Giltimo espago em nosso mapa das crengas seja reservado ao lugar de algumas religides de uma marcada vocacio urbana, trazidas quase todas de fora do Pais em anos mais ou menos recentes. Tanto pelos seus adeptos quanto pelas outras pessoas, elas costumam ser sempre consideradas como “religides orientais”. Na verdade, no coragao de alguns seguidores, é justamente este ser ESTUDOS AVANCADOS 18 (62), 2004 273 “oriental” o que Ihes dé a sua qualidade de um sistema que supera a tradigao das, religides ocidentais, tomadas em seu conjunto. Esta poders ser uma raz2o a mais, para a associagzo sempre presente entre sistemas de sentido de real ou suposta origem oriental ¢ algumas vertentes de vocagio ambientalista, de tipo Ecolagia Profunda, Hipétese Gaia e outras, semelhantes. Ao contririo do que ocorre em no caso de religides populares de tradigao recente no Pais, os scus agentes © seguidores so, em maioria, pessoas de camadas médias, muitos deles jovens ¢ adultos urbanos das grandes cidades. Algumas dessas religides neo-orientais, prove- nientes em de paises do Oriente, em um inicio faziam sentar nos bancos de seus templos uma quase totalidade de adeptos entre orientais © seus descendentes: coreanos e japoneses quase sempre. Seus exemplos: a Seicho-No-lé,a Perfect Liberty, a Igreja Messidnica, Hoje em dia, as suas congregagdes de fé, aumentadas sobre- tudo nas grandes cidades através de um conversionismo moderado, estao pre- sentes por toda a parte, principalmente nas regides Sudeste e Sul do Brasil Aooutra metade deste tiltimo territério de nosso mapa, devem ser convocadas ainda outras religides de origem oriental, chegadas ao Brasil por via direta, ow através dos Estados Unidos da América, Entre clas as mais conhecidas serao: a Fé Babai, a Hare Krishna, o Sufismo, a Ananda Marga ¢ a Brabma Kumaris. Que dicador de uma pequena fecunda pluralidade de neotradigdes que, ao contririo das suas vizinha no mapa dos cren tes € dos buscadores da fé, preferem adeptos jovens e bastante mais intelec- tualizados. Digamos que hi muito mais comerciantes de pequena monta e pe- quenos funcionsrios piblicos na Seicho-no-Ié, contra um néimero bastante maior de jovens, nao raro universitérios, entre os Hare Krishna, Nao esquegamos tam- bém que, no grande encontro espiritual durante a Eco-92, eram muito mais os adeptos de grupos desta altima categoria do que os da primeira, aqueles que se dispuseram a vir juntar-se a figis indigenas, negros ou brancos cat6licos das co- munidades de base’. Temos afinal completo o quadro de um mapa sempre incompleto. Consi deremo-lo, no entanto, por agora, um esboso accitivel ¢ oportuno, para nos ajudar a percorrer com menos sustos os territérios das crengas religiosas e de espiritualidades que importam aqui Ao revisité-lo agora, concluido, lembro que deixei no seu centro imagins- rio as religioes cristas de um suposto maior peso cultural e, conseqiientemente, um maior valor simbélico na determinagio de orientagoes de destino de pessoas e de grupos sociais. Esta é, na pritica, a motivada oposigao que coloca ao lado de um outro mapa dos crentes, as religides ideologicamente voltadas aos direitos humanos, as lutas pela terra ¢ pelo emprego em nome dos “exclufdos ¢ margina- lizados pelo sistema capitalista”, a dificil conquista da cidadania em um pais nao muito distanciado de anos de ditadura, ¢ a um apelo a paz mundial a ser realizada através da justiga, da liberdade e de uma fraterna igualdade entre todos, pessoas, etnias, povos e nagdes. E coloca, do outro lado, as religi estes poucos nomes nos sirvam como um. es mais voltadas a uma 274 EsTuDOs AVANGADOS 18 (52), individualizagao de valores humanos, com 0 suposto de que os ideais de paz internacional, de justica e de igualdade somente serio instaurados e consolida- dos através de um crescimento espiritual realizado através da religito no espirito € no coragao de cada pessoa. Para nfo sairmos de um mesmo quadrante do universo confessional no Brasil, tomemos o Catolicismo como um bom exemplo, Mas estejamos atentos, a0 fato de que 0 que se passa agora em seu interior (€ que apenas atualiza divi sbes € tendéncias antecedentes de alguns ou de muitos anos) acontece também dentro de ¢ entre outras tradigdes religiosas, de vocagio ecuménica ou nio. Em meio aos jornalistas, mas também, de maneira mais discreta, entre os proprios bispos catdlicos,*€ costume o classificar prelados e sacerdotes, assim como figs leigos e “linhas da Igreja”, com estes nomes: “conservador”, “mode- rado” e “progressista”. Como em toda a boa politica, conservadores e progres- sistas polemizam e os moderados decidem, Em uma igreja nacional que ora se alga ¢ ora se espanta de reconhecer-se um dos lugares universais de nascedouro das idéias teolbgicas ¢ das experiéncias de pritica crista mais avangadas, segundo 0 juizo de aliados ¢ de inimigos da Teologia da Libertagio, das Comunidades Eclesiais de Base, da Teologia da Inculturagao, ¢ de uma vocagao crescentemente pan-ccuménica, tudo sugere que uma outra velha ¢ nova série de indicadores de diferengas parece haver se ¢s- tabelecido. Um breve exame de suas diferengas podera ser itil para compreen- dermos alguma coisa a mais sobre a légica dos imaginarios ¢ dos relacionamen- tos dentro ¢ fora de um mesmo territério confessional. (Os agentes (“padres carisméticos” e, em segundo plano, religiosas) € os adeptos mais fervorosos da Renovacto Carismatica Catélica tendem a seguir um padrio de limite das fronteiras do sagrado cristo legitimo, proximo ao estilo pentecostal evangélico®. Claro, dificilmente serio tio restritivamente nio- ecuménicos quanto uma Congregacao Crisea no Brasilou uma Igreja do Evange- tho Quadrangular. Nao esquecer que mesmo entre os pentecostais evangélicos, algumas antigas igrejas antes extremamente fechadas até mesmo a outros minis- rérios da mesma denominacio, hoje ensaiam um esboco timido de ecumenismo cristio. No interior mesmo do circulo dos catélicos, adeptos e dirigentes fervoro- sos da RCC limitam o seu diilogo com “irmaos de f” de outras “linhas”. Com bastante menos énfise € maior tolerincia do que os pentecostais evangélicos, eles se reconhecem, no entanto, como uma frente profética, carismética e defini- tivamente renovadora de toda a catolicidade. Eles retomam e reacendem na Igreja © “fogo € as luzes do poder do Espirito Santo”. Eles se reconhecem como a nica alternativa catélica frente a0 poder proselitista das unidades evangélicas pentecostais, ¢ criticam as outras “linhas de Igreja” pelo descuido da dimensio propriamente religiosa na vida do fiel. Criticam, mais ainda, uma aberta “intro- misao na politica” e a adesio a posigdes teol6gicas e sociais mundanas e, por isto ESTUDOS AVANCADOS 18 (62), 2004 275 mesmo, indevidas. Nesta mesma direc2o, voltados bastante mais para o interior de sua propria modalidade carismitica do “ser catélico”, voltados mais para o interior de sua Igreja Catélica e para o interior de sua religiao, 0 Catolicismo, os pentecostais catélicos sentem-se muito pouco atraidos para qualquer apelo de tipo ecuménico, mesmo entre crist2os ¢ com outras confissdes pentecostais. No extremo oposto estio os bispos, sacerdotes ¢ leigos originalmente as- sociados 4 Agito Catélica dos anos de 1950 ¢ 1960, a0s movimentos populares religiosos, as comunidades eclesiais de base € as reologias de fronteira, como a “da libertacio” e a “da inculturagao”. Considerados os seus agentes e fiéis mais extremos, a questo religiosa dei- xa de ser confessional e passa a ser confessante. Ou seja, a Vocagio e 0 dilema da fe, crist@ ou nao, deixam de ser um atributo exterior ao sujeito e interior as institu ses religiosas, e passam a ser um direito livre de pessoas, de grupos culturais — onde a face étnica tem sempre um valor muito forte —e de comunidades sociais Uma crescente vocagio ecuménica inaugurada nos anos de 1950 ¢ 1960 salta os seus proprios primeiros limites cristaos ¢ se abre a todas as religioes. Na verdade, cla se volta de mios abertas a todos os sistemas de sentido orientados a um ideal de construgio de direitos ¢ de valores humanos em sua plenitude, in clusive 0s nao-religiosos. Evocando sentidos evangélicos profundos € arcaicos, 0 lugar sagrado da vida religiosa deixa de ser ase de estar mas institui confessionais € passa a construir ¢ ser construido por redes de fidis, por teias de pessoas voltadas ao amor de Deus € a0 amor de todos, através dele. Um relativismo cientifico e, no limite, humanista, que nutre concepedes da Antropologia Social, passa a ser o substrato do direito te6rico e da vocacio da pritica entre tais cristios pan-ecuménicos. A mesma realidade universal de um deus de todos ¢ de tudo se manifesta no tempo das historias € no espaco das culturas através de uma infinidade de sistemas de sentido, de espiritualidades, de misticas, de religioes. Assim sendo, uma vocagdo ecuménica deixa de ser um ato concessivo da catolicidade em diregao a outras religides“*irmas”, “separadas”, e tende a se tor nar uma obrigagdo constitutiva do proprio sentido do amor, da liberdade e da solidariedade, valores ¢ sentimentos universais, multiplamente revestidos de di- reitos a uma adesio religiosa. O verdadeiro sentido da experiéncia da fé da pes- soa e da pessoa de f, em um mundo culturalmente plural, est justamente na realidade e no direito a diferenca, 2 peculiaridade cultural, & pluralidade das ma- nifestagbes da f€ em intimeras religides convergentemente diversas. A unidade a ser buscada deve ser mais a de horizontes de sentido do destino humano, de felicidade de tudo e de todos em nome de um Deus uno, Gnico e culturalmente miiltiplo do que as de unidades forgadas (regidas sempre pelo poder da palavra ou pelo poder que torna legitima uma palavra frente a outras) entre as divergén cias de crengas e de credos. 276 EsTuDOs AVANGADOS 18 (52), ‘Tedlogos da inculturag2o, leigos € missiondrios nacionais e europeus em toda a América Latina, evocam hoje uma espécie de pritica missionitia as aves- sas. Ela parte do reconhecimento do valor pleno da tradigao religiosa de cada grupo cultural autéctone e sugere uma atitude para além da respeitosa tolerin- cia. Ela obriga a uma pritica em que 0 esforgo missionitio vai no sentido de procurar recuperar € reforgar a integridade dos valores religiosos do grupo autoc. tone, no suposto de que a plena realizagao cotidianamente humana ¢ espiritual ¢ de cada pessoa, grupo ou comunidade cultural, esta na vivéncia integra de sua propria ¢ dialogica experiéncia do sagrado. © Mosteiro da Anunciacio do Senhor, de tradicio beneditina francesa ¢ si- ruado em uma pequena cidade do Centro-Oeste do Brasil, acolhe “irmios” evan- gélicos e de cultos afro-brasileiros. Ele incorpora (““incultura”) as tradigoes cultuais de seus visitantes nao-catdlicos no coragio dos ritos difrios do Mosteiro, e publi- caum calendatio em que estio marcadas, para serem lembradas e rememoradas, as festas ciclicas de intimeras outras religioes, inclusive orientais. Assim, de um lado e de outro de pessoas que comungam a mesma héstia de po e bebem o mesmo vinho, também partilham os mesmos principios de crengas € doutrinas, existem diferengas quase radicais a respeito de questOes que estio entre as mais importantes dentro de uma religido. Assinalei linhas acima como entre os pentecostais evangélicos, onde o leque do direito & diferenga legitima é bastante menor, cresce a tendéncia a uma abertura limitadamente ecuménica em duas diresdes. Primeiro em uma dificil direga0 de didlogo, no que respeita confissoes mais tradicionais ¢ bastante mais solidamente estabelecidas no campo religioso cristio, como € 0 caso da Assembiéia de Deus. Depois, em uma diregi0 franca- mente mercantil € oportunista, como acontece segundo um padrio rotineiro entre as religides de Cura Divina ¢, em sua roupagem importada de menos tem- po, de uma “teologia do sucesso”. Ali, diante de uma platéia mais de clientes dos usos do que de figis do culto, os agentes religiosos falam ¢ pregam: “aos irmaos crentes de nossa igreja”, “aos irmaos das outras igrejas evangélicas”, “aos irmaos catdlicos”, até “aos irmaos da Umbanda ¢ do Candomblé” € mesmo “a todos os irmaos sem religito”. Uma questio que nos aguarda adiante poderia ser antecipada aqui. Prova- velmente mais agora do que no passado recente, quando 0 Catolicismo constituia a religiio de um quase absoluto poder demogrifico, politico e simbélico no Pais, a propria dinimica do ritmo, da directo e da lgica de combinagdes internas € exteriores de um mundo religioso como 0 do Brasil realizava-se através da ma- neira como cada unidade confessional de erenca (a Igreja Catdlica), cada religito miiltipla (0 Cristianismo) e, afinal, rodas elas, no seu conjunto, estabeleciam uma poética de imagindrios, uma Igica de identidades € uma ética de relagdes. Primeiro no interior de seu proprio dominio (entre catélicos de diferentes tendéncias € estilos). Depois, no ambito do circulo de seu sistema ampliado de ESTUDOS AVANCADOS 18 (62), 2004 27 crenga € de culto (os cristaos, suas confissdes, igrejas, ministérios e vertentes de opsio). Depois, ainda, no campo propriamente religioso (entre “cristaos”, “affos”, “orientais”, e todos os outros). Depois, finalmente, entre os sistemas de sentido “de religia0” e outros sistemas de sentido visiveis e levados em conta - contra ou a favor — por esta ou aquela religito. Encerremos por aqui esta geografia do sagrado, que tomou 0 caso brasilei ro como um exemplo. Procuremos daqui em diante compreender alguns fend- menos presentes na dinimica de sua geologia. Transformagoes ¢ tendéncias recentes Que me seja permitido retomar sobre alguns passos percorridos até este ponto, € propor em uma pequena seqiiéncia algo que me parece importante, quando se pensa a respeito das recentes transformagdes e tendéncias no mundo religioso no Brasil. Um olhar um pouco mais estendido poderia perguntar se algo semelhante, guardadas as proporgdes € as peculiaridades de cada cultura, nio & 0 mesmo que sucede agora em toda a América Latina 12) Muito mais do que em anos passados, até mesmo as religides tidas como tradicionais ¢ consagradas tendem a se diferenciar bastante no interior de suas ortodoxas, de modo a oferecerem, sobretudo aos leigos, uma multiplicidade de afiliagdes de significado e pritica da fé. Tornando mais acelerado e permissive algo que ja vinha ocorrendo desde pelo menos o comeso do século passado e, mais ainda, desde os tiltimos sessenta anos, religides mundiais, como o Catolicis- mo, deixam-se penetrar por visOes e verses vizinhas, diferentes e mesmo antes, muito antagénicas a uma ortodoxia tradicional. Elas envolvem novos significa- dos de crenca ¢ novas sensibilidades de fé a respeito do proprio sentido do sagra- do. A respeito da logica das relagdes entre a pessoa e os seres celestiais e, final- mente, a respeito da gramstica espiritual e pritica das regras de adesio ¢ das opcdes de destino pessoal, com sentidos e valores: ético, social ou politico, € voltadas para “o compromisso com o Mundo”. 22) sobretudo nos fitimos anos, ha uma quase explosiva polissemia religio- sa. Ora, se ousarmos pensar as outras dimensdes de criagio institucional da cul- tura, como as dos campos da politica, da arte, ou da ciéncia, nenhum outro é tio democritica to escancaradamente aberto a adesto de tudo e todos, como a religiio. Muito mais ficil é ingressar em qualquer uma religiio do que em uma academia, Muito mais depressa hoje em dia se faz um convertide do que um padeiro © muito mais longa € a carreira de um doutor do que a de um pastor, ‘Muito mais urgente ¢ radicalmente alguém “muda de vida” através da religiio do que por meio da psicanilise, enganando-se ou nao... de um lado ou do outro, Ao alcance de pessoas de qualquer categoria social e de qualquer tradigao cultural, 0 universo religioso brasileiro acelera muito agora o que vinha jé mult plicando desde antes, em termos de ofertas de tipos de agéncias de conversio, de afiliago, ou de usos de servigos de ajuda ou salvagio. Nao apenas multiplicam-se 278 EsTuDOs AVANGADOS 18 (52), unidades de crenea partilhada com contetidos de imaginSrio diversos, mas tipos, estilos e estrarégias de afiliacho, de presenga ¢ de vivéncia através de uma f€. Pode-se escolher estar em pequenas seitas emergentes € rigorosas; em igrejas estaveis, mais frouxas e melhor consagradas; em agéncias fechadas em um circulo de iniciados, ou abertas a multiddes de clientes em busca de prestagies ficeis de servigos; em difuisos sistemas comunitérios de afiliagio. Este amplo universo de eixos e fronteiras do sagrado abre-se também a uma variedade crescente de no- vas incorporagdes de sistemas de sentido confessionais, importados ou autocto- nes, Se em uma direcio isto propicia uma introdugio, ou a criago local, de novas variantes de grupos evangélicos de tipo pentecostal, trazidos dos EUA ou as unidades esotérico-ambientais inesperadas na India, em uma outra diregio crescem sempre as alternativas de criagdo de novos estilos de crenga e pritica religiosa francamente autéctones. Este é um aspecto tio importante ¢ nem sempre levado em conta entre nds. Ao lado de uma infatigével multiplicidade de escolhas de crengas tomadas, religides, ¢ diferenciadas através dos contetidos simbélicos de seu corpus de ima- ginirios, de saberes, de valores e de sentidos de afetos, ¢ importante considerar a desigualdade de maneiras e de estilos através dos quais uma religiao em nossos dias fiz variar as suas instituigdes. Faz com que elas oscilem ou se diferenciem entre alternativas de relacionamentos as vezes quase antagonicos, 32) No entanto, ha algo mais importante do que este duplo processo atual de modemizagio da oferta ¢ da composigio cultural diferenciada do universo religioso, no interior de cada uma religiao, através da flexibilizagao e da polissemia interna de alternativas de afiiagao ¢ partilha. Ou no interior do préprio campo religioso, através da multiplicagio de tipos de agéncias e de variagdes de crengas, religides e igrejas. Este “algo” esta situado em uma crescente mudanga, hoje bastante acentua- da, da propria qualidade de composigao da estrutura dos cendrios de oferta religio- sa. De uma oferta de bens espirituais e materiais, de sentidos de vida e de servigos, rituais que vao da cura do cancer a um casamento de sibado, quando eles S30 afinal pensados, experimentados e vividos como uma parte importante do cotidi- ano das pessoas de vida religiosa. Isto é, das diferentes modalidades do ser, hoje em dia, uma versio de si-proprio para si-mesmo revestida da aura do sagrado as sumido. E também das identidades sociais dadas ao circulo dos outros através, também da refigiao ¢, de uma mancira mais ativa, a sim mesmo. como um sujeito participante da vida social através do ser, também ¢, em muitos casos, essencial- ‘mente, uma pessoa religiosa: um convertido, um fiel, um devoto, um afiliado, um, fanitico, um militante, um sectétio, um suplicante, um “pecador contrito”. um. homem-de-fé, um leigo, um digcono, um sacerdote de carreira, um profeta alu- cinado ou licido., um “salvo no Senhor”, um “iluminado”, um “espirito de luz”, um emissitio de uma religiao de ets, um ambientalista-esotérico-vegetariano-anun- ciador da Nova Fra, um feiticeiro, um buscador, um santo, e, até mesmo... um. descrente ESTUDOS AVANCADOS 18 (62), 2004 279 (Ora, uma certa, relativa e sempre nao previsivel légica de mercado vivida como experiéncia cultural da busca-de-sentido-de-vida-através-da-fé, faculta a que as pessoas possam se relacionar com a religito de uma tal maneira que, a0 mesmo tempo e em a s6 momento de suas vidas, elas se reconhegam partilhando mais de um sistema religioso. Vivendo a experiéncia pessoal de dirigir a vida segundo os valores ¢ as sensibilidades de mais de uma religiao, sem se reconhece- rem necessariamente fig ida que esta possibilidade nao seja por agora a norma, ha uma tendéncia crescente a que as pessoas creditem um amplo, € generoso valor potencial do sagrado a todas as religides de seu campo visivel de escolhas. E, ao pensarem assim, optem por relacionar-se com algumas delas, de acordo com a légica pessoal de suas proprias necessidades, sentindo-se, no limi- te, Vinculadas a duas ou mesmo trés delas a um s6 tempo ou entre movimentos pendulares de adesio provis6ria. Em uma outra diresio préxima, é crescente uma tendéncia proxima 3 an- terior, onde cada pessoa, potencialmente senhora de seu proprio destino religio- so, transita ao longo de um momento da sua vida, de um a outro, entre diferen- tes sistemas de sentido, adotando, no entanto, uma Gnica opgio de sentido a cada ver. Ela realiza esta “busca” aderindo a um ea seguir, a outros sistemas reli giosos ¢/ou espirituais, em nome da avaliagio individual sobre cada um seu momento de vida, num confronto com as alternativas de sua realizagio subjet va, através do trabalho inicistico ou de aperfeigoamento que ela acredita estar produzindo sobre si mesma através de uma religido, através de uma “mistica” ou através de uma “espiritualidade”. Os dois filtimos termos, postos entre aspas, S30, palavras muito comuns e sugerem sistemas de imaginsrios nao fatalmente atrela- dos 3 religiao e, em especial, a uma (nica religiao. Desde uma ética do ator cultural, mais do que da instituig2o social, isto tem a ver com todo um proceso bastante atual de individualizasao que, com 0 atraso de varios anos chega, afinal, também 3 América Latina. Em sintese, uma divida de crenga do sujeito para com instituigdes que comegam com a sua familia € podem terminar com a sua patria, pensada e vivida através da religiao, tende a tornar-se 0 seu posto. Isto €, tende a converter-se em um direito de fé franca e crescentemente individualizado. Estamos agora diante de um processo antigo na historia das relagdes hu- manas entre deveres e direitos associados a0 pensado, 20 confessado ¢ ao vivido. Nao se trata, creio eu, de um perverso individualismo confessional, dado que na maior parte dos casos a adesio a uma religizo ¢/ou igreja sugere a partilha e a reciprocidade de sentidos, de destinos ¢ de compromissos. Sugere, nao raro, um certo sactificio pessoal tio propalado por algumas religides. Seri, antes, uma abertura da sociedade ao sujeito no que toca as opsdes legitimas de sentido-de- vida © de deve-de-crer-em-algo para se-ser- quem-€. Algo que em boa medida responde pelos novos termos em que se processa a propria dindmica da experién cia cotidiana e da cultura religiosa em um Pais que, parodiando William James, is a uma (nica. 280 ESTUDOS AVANGADOS 18 (52), através de Clifford Geertz, cré em tudo o que pode ¢ acreditaria em tudo, se pudesse, Quando, ha anos atris, Peter Fry e Gary Howe, dois antropélogos ingle- ses, fizeram uma breve, mas muito importante pesquisa sobre as escolhas religio. sas de boa parte das pessoas das classes sociais mais populares, eles se viram frente a um destes dilemas que sempre parecem espreitar quem se aventure por estes terrenos. Eles investigaram pessoas afiliadas a dois sistemas religiosos sempre tidos como antagonicos. Sistemas opostos € publicamente inimigos, do ponto de vista de aspectos centrais de suas crengas, de orientagdes éticas para a eternidade ¢ 0 cotidiano, ¢ de ceriménias cultuais. De acordo com os dois autores, a Umbanda pode ser caracterizada pela crenga fundamental na existéncia de entidades espiri- tuais miltiplas, com diferentes nomes ¢ poderes. Também por um sistema de crengas francamente eclético € pela proliferagao de grupos auténomos ¢ frouxa. mente associadtos a federagdes fracas. Por uma visio do universo terreno e sagra- do como sendo arbitririo ¢ manipulivel por meio do jogo das relagdes entre os homens € as entidades do panteao sagrado, benéfico ou malévolo. Finalmente ‘uma ética ritualistica de barganhas entre favores ¢ poderes, sem maiores obriga oes de participasao na vida religiosa do grupo ¢ sem deveres de conduta social devidos a adesio religiosa. Por seu turno, 0 Pentecostalismo caracteriza-se por uma forte crenca monotefsta em uma (inica divindade; por um sistema de creneas ia identidade do fiel aos canones de sua adesto religiosa’. Por opostas que sejam estas duas agéncias de afiliagao (0 termo € dos auto- res), elas atraem quase indiferentemente figis das mesmas classes sociais, das mesmas extragdes de cultura, das mesmas origens regionais. Nao importa aqui discutir as raz0es encontradas para explicar porque os mesmos tipos de sujeitos buscam, em estilos to antagdnicos de sistemas de sentido, de conduta e de oferta de bens religiosos dirigidos a felicidade cotidiana ou & salvagao eterna, a solugdo de suas afligdes. E nao apenas isto, convenhamos, mas 0 encontro de um. lugar de devogao e de partilha religiosa da vida. Mais ainda. Pois devemos consi- derar com cuidados especiais estas supostas diferencas. Estas supostas oposigoes, 10 a0 nosso gosto de antropélogos. proprio jogo actancial entre pessoas do bem (Deus Pai, Jesus Cristo) ¢ do mal (Sati, “o Diabo”, a mulrida0, nominada ou nao, dos demdnios) toma roda uma forma teatral nos ritos de cura divina que, em certos momentos, pouco rem a ver de diferente com que acontece em uma sessio de luta entre espfritos na Umbanda. De fato, a tal ponto a propria pessoa malévola do Diabo ¢ rio forte € to absolutamente essencial na Idgica de crengas, afetos € cultos pentecostais, que mais do que um agente do mal € um oposto absoluto A pessoa de ao poder de Jesus Cristo, ele se converte no operador central ¢ no ator principal através de quem, afinal, tudo acontece’ ESTUDOS AVANCADOS 18 (62), 2004 281

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