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FOUCAULTEONASCIMENTO DAS CIENCIAS HUMANAS José Ternes* Resumo Para Michel Foucault, as ciéncias Aumanas so um acontecimento recente na histéria do pensamento ocidental. Antes, diz cle, 0 homem ndo existia. Sua possibitidade somente aparece na virada para o séeulo XIX, A obra do filésofo, na verdade, mostra mais de uma face dessa histéria. Em Les mors et Jes choses, 0 homem, como objeto de saber, somente emerge como fim da dade da Representacd0,¢ ndo isoladamente. Trata-se de um objeto sui generis, dado que sua existéncia configura uma reduplicago de outros saberes: as cidncias empiricas, a filosofia critica € as mateméticas. Além disso, seu modo de ser é, extemporaneamente, representagiio, Jé em outros textos, como Histoire de ta Jolie, Naissance de ta clinique ©, mais tarde, Surveiller et punir, os saberes estranhamente chamados ciéncias humanas encontram-se estreitamente relacionados com as ciéncias da vida e o nascimento das instituigdes disciplinares modems, fortemente investides do poder normalizador. Palavras-chave: Pensamento, modemidade, episteme, ciéneias-humanas, historia, De que valeria a obstinac&o do saber se ele assegurasse apenas a aquisigéo dos conhecimentos e no, de certa mancira, ¢ tanto quanto possfvel, o deseaminho daquele que conhece? (Foucaurr, 1984, p. 13) * Doutor em Filosofia, Professor do Deparaménto de Filosofia da UCG E-mail: joseternes @hotmsil.com Histria Revista, 9 (2) : 191-204, jul./dez. 2004 Recebido em 4 de agosto de 2004 Accito em IT de novembrade 2004 Michel Foucault tomou-se notvel, justamente, por professar um estilo de filosofia diferente. Mais do que isto, por desenvolver o que se poderia chamar um pensamento da diferenca. A tradicao nos legou um modelo de fildsofo cioso de suas idéias, de sua fidelidade a um sistema coerente, Kant nos ensinara como construir um monumento tal que, se retirado um tijolo, o edificio todo desceria em rafnas. Um século e meio antes da Critica da Razdo Pura (1781), Descartes escrevera as Regulae ad directionem ingenii (1628), um instrumento que, segundo ele, se aplicado corretamente, permitiria ao espirito prosscguir, de mancira segura, cm sua tarefa de estabelecimento da verdade. Quando aparece alguém gue suspeita dos métodos infaliveis ¢ das obras acabadas, e, como principio, defende “o descaminho daquele que conhece”, o conhecer como um esforgo de separagiio de si mesmo, a academia toda fica perplexa. Vive o mal-estar de quem vé minadas as suas mais sagradas certezas, daquele que se encontra, de uma hora para outra, privado de suas tradicionais muletas. Mas a aventura de Foucault nio significa o fim do mundo filoséfico. Ele mesmo nao se considera absolutamente original. Ao contrario, coloca-se numa certa vertente jé bastante conhecida no mundo ocidental: a perspectiva inaugurada por Nietzsche, por Marx, por Freud, e seguida por outros: Heidegger, Blanchot, Bataille, Deleuze etc.’ Uma perspectiva em que nao ha mais lugar para a metafisica, em que o fir da metafisica ¢ ponto de partida, © que isto significa? Certamente, nio © fim da filosofia, Uma nova maneira, no entanto, de ver a atividade filosdfica. Desde o fim do século XIX, vemos constituir-se um novo perfil de intelectual: “nao mais cantor da eternidade, mas estrategista da vida e da morte” (Foucautr, 1979, p. 11). Talvez se possa levar a sério esta idéia de filosofia como estratégia do pensamento. A prdpria nogdo de estratégia sugere diversidade. Nao ha uma s6. Ela nasce da ocasiao, do momento oportuno, Trata-se de “introduzir na raiz mesina do pensamento, 0 acaso, a descontinuidade, a materialidade” (Foucav.r, 1971, p. 61). B valida enquanto fienciona, enquanto exerce uma forga. No que concerne as ciéncias humanas (0 grifo é importante), Foucault adotou mais do que uma tinica estratégia, Primeiramente, nfo hd, em toda a sua obra, um texto separado, dedicado exclusivamente a questo.” Além disso, e isto 60 mais interessante, quando fala de ciéncias humanas, sua abordagem 192 Tuanes, José. Foucault ¢ 9 nascimento das ciéncias iumanas se dé do interior de outra abordagem. Quer dizcr, a tematizagao desses saberes € realizada a partir de uma problematizagdo anterior e principal Em Histoire de la Folie, a referéncia a possibilidade das ciéncias humanas € bastante vaga. No capitulo 10, intitulado “O Grande Medo’, lemos: “Nesta reflexdo sobre a loucura,¢ nesta elaboragdo ainda obscura do conceito de meio, o século XVIII antecipa estranhamente o que haveria de constituir, na época seguinte, os temas diretores da reflexio sobre 0 homem” (Foucautr, 1972b, p. 397). E quando trata do século seguinte, em especial do nascimento do asilo ¢ da consolidagao da Psiquiatria, niio ha nada objetivo sobre aquela temdtica. Mas algo se insinna: a relago do médico com o doente (mental) agora é outra, Ela ¢ mais proxima, mais direta. Humaniza-se. B, nessa humanizagéio, abrem-se instincias de apoio a seu trabalho, os servigos para-médicos: enfermeiros, mas também psicélogos, religiosos, juristas, assistentes sociais etc. Qual, no entanto, 0 estatuto epistemalégico-politico dessas figuras? Foucault se cala a respeito. Em Naissance de ta Clinique, por seu turno, reserva um espago maior 3s ciéncias do homem, num contexto de reflexio, porém, diferente. Tudo gira em tomo do cixo normal-patoldgico. Correndo 0 risco do eansago, transcrevo um trecho bastante longo: A medicina do século XIX regula-se mais, em compensagio, pela normalidade do que pela sade; 6 em relagio a um tipo de funcionamento ou de estrutura organica que cla forma seus conceitos © prescreve suas intervengdes; ¢ 0 conhecimento fisiol6gico, outrora saber marginal para o médico, ¢ puramente teérico, vai se instalar (Claude Bernard € testemunba) no amago de toda reflexéo médica. Mais ainda: o prestigio das ciéncias da vida, no séeulo XIX, o papel de modelo que descmpenharam, sobretudo nas cigncias do homem, esté ligado originariamente, ndo ao caréter compreensivo ¢ transferivel dos conceitos biolé- gicos, mas ao fato de que estes conceitos estavam dispostos em uum espago cuja estrutura profunda respondia & oposicdo entre 0 sadio ¢ 0 mérbido. Quando se falar da vida dos grupos e das sociedades, da vida da raga, ou mesmo da vida psicolégica, no se pensaré apenas na estrutura interna do ser organizado, mas na bipolaridade médica do normal e do patolégico. A cons- ciéncia vive, na medida em que pode ser alterada, amputada, Histéria Revista, 9 (2) = 191-204, jul idee, 2004 193, afastada de seu curso, paralisada; as sociedades vivem, na medida em que existem algumas, doentes, que se estiolam, e outras, sadias, em plena expansio, a raga € um ser vivo que degenera; como também as civilizagdes, de que tantas vezes se pode ‘constatar a morte. Se as ciéncias do homem apareceram no prolongamento das ciéncias da vida, é talvez porque estavam biologicamente fundadas, mas é também porque estavam ‘medicamente; sem ddvida por transferéncia, importagdo e, muitas vyezes, metafora, as ciéncias do homem utilizaram conceitos formados pelos bidlogos; mas o abjeto que eles se davam (0 homem, suas condutas, suas realizayOes individuais ¢ sociais) constituia, portanto, um campo dividido segundo o prinefpio do normal ¢ do patolégico. Daf 0 carter singular das ciéncias do homem, impossiveis de separar da negatividade em que apareceram, mas também ligadas a positividade que situam, implicitamente, como norma. (Foucatn, 1972a, p. 35-36) Naissance de la clinique, na verdade, tem por objeto o saber, 0 oihar médico, No entanto, como Jemos acima, do interior desse saber a referéncia ao homem € imperiosa. Mas néo é af, nese momento, que 0 filsofo leva adiante a discussfio acerca do conhecimento do homem. Assinala um espago que o tora possivel: 0 da norma. Surveiller et punir, obra dedicada a hist6ria da violéncia nas prisdes, descreve a reorganizagao do poder modemo, Segundo Foucault, 08 historiadores da filosofia e da cultura deram-nos uma imagem, se néo falsa, pelo menos incompleta do homem modemo. Transmitiram-nos a imagem cartesiana de homem, © homem-maquina, sob o viés anétomo- metafisico. Haveria, no entanto, um outro registro desse mecanicismo: 0 técnico-politico. Neste fantéstico livro ele analisa esse segundo registro da nossa historia ocidental. Busca verificar, em um nivel aquém do projeto iluminista de uma sociedade democratica, livre e igualitéria, a redistribuigaio microfisica das forgas politicas. 0 que se constata af? Uma configuracio sui generis do poder. Foucault the da um nome: poder disciplinar. E no interior dessa forma de poder (ou poderes), dessa maquindria complexa produtora de corpos déceis, ao arrepio da disposigio juridica oficial, que podemos ver a proliferago de saberes estranhos & tradi¢io do Ocidente. Nao so saberes que emergem do esforgo de objetividade. Trata-se de conhecimentos que se constituem no interior das instituigdes, 194 Tennss, José, Foucault € 0 nascimento das ciéncias hnmanas umbilicalmente relacionados com o fazer, com téenicas de produgao, Ao contrério do que ocorrera com as empiricidades classicas, que, mesmo tributdrias de um procedimento eminentemente politico, o inguérito, alcangaram um grau elevado de autonomia epistemoldgica, esses saberes emergentes desde 0 ocaso do século XVIII assumem, sem pudores, as aliangas impostas pelo seu procedimento regular: 0 exame. Saberes- poderes, diz Foucault. De um lado, extraem, do seu objeto, uma sabedoria, De outro, tal aprendizagem permite redobrar 0 cuidado, 0 controle do sujeito envolvido no processo, O nome dessas ciéncias? Mais do que uma identidade epistémica, talvez se deva apomar-lhes 0 lugar institucional, um espago politico: o quartel, 0 hospital, a prisdo, a familia, a escola, Foi através do estudo dessas instituigées, no como aparelhos de um Estado distante, o que jé nos dd, de antemio, a resposta, mas, sim, como redes localizadas de poder, que Foucault nos apresenta ‘uma nova leitura da exist®ncia de saberes tais como: pedagogia, assisténcia social, psicologia etc. Ciéncias humanas? Uma expresso, pelo menos, tio estranha quanto esta outra: humanismo moderno.* Apesar do interesse que essas abordagens representam, Foucault niio Ihes deu um tratamento mais rigoroso, Como ja assinalei, todas elas se dao no interior de outras anélises. Valeria a pena levar tais estudos adiante. N&o conhego, entre os estudiosos da obra de Foucault, uma pesquisa mais completa desse assunto, Resta-nos aceitar esta primeira parte de minha exposicao como simples indicagio de perspectivas. Esquegamos, por um instante, tudo o que falei ¢ voltemos ao comeco da trajetdria da produgéo foucaultiana, Ai, em 1966, encontramos uma obra muito especial: Les mots et les choses em que se interrogam as ciéncias humanas. Também nessa obra, apesar do titulo, de maneira marginal. De maneira, no entanto, totalmente diferente. Ai, no conta, antes de tudo, 0 poder. As ciéncias humanas séo tematizadas a partir do interior da hist6ria do pensamento moderno, como um de seus mais enigméticos acontecimentos. Les mois et les choses, como atesta explicitamente o seu subtitulo, quer ser uma arqueologia das ciéneias humanas, Para Foucault, a existéncia do homem na cultura ocidental s6 se tomaré possivel na modetnidade, quando se delineia um a priori histérico capaz de servir como solo adequado & sua emergéncia. E esse solo, ou a priori, na andlise de Foucault, diz respeito, de um lado, ’s eiéncias empiricas e, de Histéria Revista, 9 (2) : 191-204, julidez. 200 195 outro, & filosofia transcendental. Assim, fazer a histéria das ciéncias humanas significa, antes do mais, fazer a histria do que as constitui Mas as ciéncias empiricas ¢ a filosofia kantiana, também elas, no se justificam por si mesmas no limiar da modernidade. Seu aparecimento somente se toma possivel porum acontecimento decisive: o fim da idade da representagio, 0 esfacelamento da episteme classica. Daf, serd preciso, em primeiro lugar, interrogar a idade cléssica a partir do conjunto dos saberes, quer empiticos, quer tedricos: Gramatica Geral, Histéria Natural e Andlise das Riquezas de um lado, Analitica das Idéias (Ideologia), de outro. ‘A Arqueologia, convém lembrar, distancia-se radicalmente das histérias que conhecemos na cultura ocidental.' Nao se ocupa com fatos. Também nfo se identifica com as histérias das idéias, caracte- risticas do pensamento francés deste século. A Arqucologia do Saber descreve epistemes. ‘Ocupar-se com a descrigdo das epistemes, assinala G. Cangui- Ihem, nfo faz de Foucault um epistemdlogo. Seu objeto, com efeito, nao é a ciéncia, nem qualquer outro saber em particular. Trata-se de interrogar o solo a partir do qual determinadas coisas podem ser ditas, certos discursos podem aflorar, ¢ outros, nfo.. Trata-se, enfim, de se situar nessa regiao mais fundamental, nesse humus, lembrando novamente Canguilhem, que alimenta o modo de pensar de uma cultura numa determinada época. De acordo com 0 Preficio de Les mots et les choses, todo discurso obedece a uma ordem. “O embarago que faz rit quando se I Borges € por certo aparentado ao profundo mal-estar daqueles cuja linguagem estd arruinada: ter perdido 0 comum do lugar e do nome” (Foucautr, 1966, p. 10). A Enciclopédia cChinesa, a que alude Borges, se enraiza em outro espago a partir do qual se torna possivel “nomear, falar, pensar” (Foucavtt, 1966, p. 11) e que, para nés, modernos, se reverte, simplesmente, no impensdvel “a impossibilidade patente de pensar isso” (Foucautr, 1966, p. 7). Os estudos arquealdgicas de Foucault privilegiam dois recortes nna cultura européia ocidentall: a episteme classica (século XVIF-XVII) e a episteme moderna (século XIX-XX), a qual ainda pertencemos.* Esses dois recortes separam, insisto, duas maneiras de pensar, Diferengas, portanto, epistémicas, Trata-se entdo de verificar que tipo de questées, de conceitos, de saberes perdem sentido, e que formas de pensar tomam 196 Tuenes, José. Foucault ¢ 6 nascimento das cifneias humanas seu lugar. Nao se pode ir da idade classica 4 modernidade em linha reta. Esta, a modernidade, nao se constitui no aperfeigoamento daquela, A Giferenga, diria A. Koyté, nfo é de grau, mas de natureza. Af, certamente, se pode perceber um dos tracos fundaimentais das histérias construidas por Foucault. Les mots et les choses, em particular, nos oferece, em linhas bastante amplas, o quadro geral da idade clissica. Aborda o universo da ordem ¢ da representagao, o universo infinito.* Uma época em que as palavras ¢ as coisas se distanciam. Em que estas, as coisas, nao mais falam, néo mais guardam uma verdade secular. O mundo deixa de ser texto indefinidamente interpretavel. A verdade se da na transparéncia do Discurso. Vale a pena assinalar bem este acontecimento, a passagem do TEXTO para o DISCURSO. Um texto esté nossa disposigao para ser lido, Deve ser interpretado, J4 0 discurso se basta a si mesmo. E trans- parente. Funciona por uma espécie de mecanismo préprio. Desdobra- se ao infinito, Nao cabe interpreté-lo, pois se caracteriza pela simplicidade ¢ evidéncia. Resta-nos acompanhar o seu desenrolar. Assim, & hermentutica renescemtista se contrapde, com os clissicos, a necessi- dade de uma analitica. Os renascentistas interpretam, Os classics analisam, B isto tem um sentido duplo: analisa-se a linguagem, em primeiro lugar, a distribuigao linear, sucessiva, dos signos. B, por outro lado, analisa- se, também, o pensamento, A nogdio cléssica de signo incorpora a idéia ¢ aprépria nocao de idéia (ou a idéia da idéia), Linguageme pensamento, de alguma forma, se sobrepdem. Foucault afirma, mesmo, que a linguagem se destrdi, desaparece. O Cogito, radicalizado, dispensaria a Tinguagem. Contentar-se-ia com a idéia “como imagem do mundo”.? Esse contentar-se com idéias, com a realidade reduzida a tragos geomeétricos, onde, segundo Koyré (1973, p. 58), “no experimentamos nenhuma alegria perante a variedade das coisas”, essa maneira de conhecer fandada na medida e na ordem recebe o nome de idade dar representacdo.* Uma época que, para Foucault, € bastante longa, estendendo-se do inicio do século XVI até a aurora do século XIX. A partir do comego do século XIX, a episteme ocidental se reorganiza, configurando-se uma disposigao do saber radicalmente nova. J4 no nos contentamos com analisar representagdes. A verdade nao mais habita o universo transparente das idéias. Precisamos arrancé-la espessura das coisas. Da-se no interior da histéria. Hist6ria Revista, 9 (2) 191-204, jubdez. 2004 197 Os esforgos de alguns filésofos, como Husserl, para encontrar um novo caminho seguro para a Razio fracassam inexoravelmente. Na verdade, eles nao perceberam que nao é mais possivel voltar a Descartes. Todo © solo que sustenta nossa maneira de pensar é outro. A nova disposigao cpistémica incorpora a historicidade, 0 condicionado, afinitude. Ou seja, desde o fim do século XVM, perdemos a ilusdo do fundamento absoluto do conhecimento. Foucault vai além: mostra a auséncia de todo fundamento. Quando os modernos fundam o saber no finito, despertam de um longo sono dogmatico. Ao se situarem na historicidade de seus objetos, engajam-se numa tarefa marcada pelo tempo, pela dispersiio, pela destruigao, pela morte nesse terreno, o da historicidade e da finitude, que vemos nascer novos discursos. E nesse contexto cpistemolégico que emergem figuras antes impossiveis de imaginar: a produgo, a vida, a linguagem so novos objetos proprios da modernidade. Os classicos nao tinham nada disso. No faziam economia politica, mas analisavam riquezas. Nao faziam biologia, mas histéria natural. Nao faziam filologia, ou gramdtica comparada, mas se ocupavam com algo muito estranho para ns, hoje, gramdtica filosdfica (ou geral). De modo contemporaneo & essas empiricidades, o final do século XVIII viu nascer uma outra maneira de fazer filosofia. J4 no se trata mais unicamente de interrogar 0 desenrolar das representagdes. A nova filosofia ousa interrogar a possibilidade mesma da representacio. A figura mais ilustre dessa episteme € Kant, uma filosofia transcendental, A anilise de Foucault nao para af. A modernidade nio se exaure nessa dualidade inicial. Ciéneias empiricas ¢ filosofia transcendental constituem um espago epistemoldgico tal que, de seu proprio interior, se impde uma terceira figura: o homem. Seu advento, no limiar de nossa época, nao € fruto do acaso. Ele é requerido pela prépria contextura do saber moderno. Isto nao quer dizer que hoje sejamos mais humanos do que nos séculos anteriores. Nao esta em questo o ressurgimento do humanismo, A questo é outra: 0s modernos nao conseguem mais pensar sem uma referéncia, ainda que velada, ao homem, Trata-se, pois, de uma época inapelavelmente antropoldgica. O lugar do rei, apenas indicagdo no sugestivo quadro de Velésquez. analisado no comego de Les mots et les choses, € agora preenchido. Resta a pergunta: como se realiza tal preenchimento? Qual o estatuto dessa figura nova no interior 198 ‘Tenwrs, José. Foucault ¢ 0 nascimento das ciéncias humanas da estrutura do pensamento moderno? Como se deve entender sua existéncia nessa nova disposigao epistemolégica, ja que, segundo Foucault, cla néo existia na Idade Classica? Ha um nivel de existéncia, ja acima enunciado, que Foucault denomina empirico-transcendental: de um lado, as andlises empiricas nos apresentam um homem que vive, através da Biologia, que produz, através da Economia, ¢ que fala, através da Filologia; de outro, a filosofia transcendental se desdobra na tarefa de investigacdo das condigdes de possibilidade de todo conhecimento. Também ai, observamos a presenca do homem, agora como lugar da verdade. De um modo ou de outro, 0 homem tornado objeto. Objeto das ciéncias empiricas, objeto da filosofia. No outro extremo Foucault assinala uma outra existéncia de homem, agora, produto da imaginacao, Um nove dogmatismo, que tem um nome: antropologismo. E esse tipo de filosofia, “essas formas de reflexdio canhestras e distorcidas”, que merecem “um riso filoséfico”? Foucault, 8 maneira de Kant, quer um novo fim da meiafisica: “em nossos dias nio se pode mais pensar senfio no vazio do homem desaparecido” (Foucautr, 1966, p. 353) Nos dois casos, no entanto, 0 do pensamento empirico- transcendental e o do dogmatismo merecedor da ira de Foucault, nfo estamos falando de ciéncias humanas. Esta expresso, bastante estranha, no acothe em seu significado nem as novas empiricidades, nom a filosofia moderna (Kantianae pos-Kantiana) e, muito menos ainda, as diversas merafisicas. Na verdade, Les mots et les choses fala de trés saberes que poderiam receber a denominagio ciéncias humanas: sociologia, psicologiac anélise da literatura ¢ dos mitos. A denominagio parece estranha, principalmente porque seu objeto, paradoxalmente, nao é o homem. O capitulo X de Les mots et les choses faz estremecer as maneiras vigentes de se conceber a existéncia das cigncias humanas na cultura ocidental. O que dizem os historiadores, normalmente? Em que consiste a critica foucaultiana as histérias tadicionais? Devolvamos a palavra ao proprio autor: a primeira coisa a constatar é que as ciéncias humanas nao receberam por heranga um certo domfnio jé delineado, dimen- sionado talvez em seu conjunto, mas nlio-desbravado, e que elas Histéria Revista, 9 (2) : 191-204, jul./dez, 2004 199 teriam por tarefa elaborar conceitos enfim cientfficos e métodos positivos; 0 século XVII nao lhes transmitiu, sob o nome de homem ou de natureza humana, um espaco circunserito exteriormente mas ainda vazio, que elas tivessem, em seguida, a tarefa de cobrire analisar. O campo epistemol6gico que percorrem as cincias humanas nfo foi prescrito de antemio: nenhuma filosofia, nenhuma pedo politica ou moral, nenhuma ciéncia empfrica, qualquer que fosse, nenhuma observacdo do corpo homano, nenhuma andlise da sensagio, da imaginagtio ou das paixées, jamais encontrou, nos séculos XVIe XVIII, alguma coisa como o homem; pois o homem nao existia (assim comoa vida, a linguagem e o trabalho); e as ciéncias humanas no apareceram quando, sob o efeito de algum racionalismo premente, de algum problema cientifico ndo-resolvida, de algum interesse prético, decidiu-se fazer passar 0 homem (por bem ou por mal, e com maior ou menor &xito) para o campo dos objetos cientfficos... (Foucauit, 1966, p. 354-355) Temos af, nas palavras de Foucault, uma forma de desclassi- ficar, de uma maneira bastante corrente, a explicagao da origem das ciénetas humanas. Nessa perspectiva elas jd se encontrariam, de alguma forma, como promessa, como possibilidade, na aurora de nossa civilizagao. O objeto ja estaria ld, desde tempos imemoriais, carecendo, talvez, de instrumentos cientificos para sua explicagdo (por exemplo, uma formalizagao adequada), ou de circunsténcias favoraveis. Mais ainda, ‘em épocas passadas, tal objeto jé teria merecido, de alguma maneira, a atengo dos homens. So essas histérias estranhas que concebem 0 conhecimento humano como um proceso continuo, simples actimulo de informagées a respeito de uma realidade pré-existente. Esses historiadores nao percebem que ha uma histéria do pensamento e que as diferengas so, fundamentalmente, diferengas de pensamento. Concebem a histéria como um progresso e, com isso, afirmam que 2 Fisica progrediu de Arquimedes para Ariststeles, deste para Galileu ¢ ‘Newton, culminando com os atuais avangos de nds bastante conhecidos. De igual mancira, a verdade sobre o homem: desde Platao, Sécraies, Aristételes, os medievais, pasando pelos clissicos do século XVIIe XVI, a humanidade viria acumulando conhecimentos e experiéncias sobre a realidade humana. Finalmente, no século XIX, ter-se-ia encontrado 0 200 Teens, Jose. Foucault ¢ 0 nascimento das eléncias humanas caminko certo, quer pela genialidade de alguns herdis, quer pela forga da fortuna, Sabemos do pavor de Foucault perante esse tipo de leitara histérica. Mas qual, em sintese, a solugdo por ele encontrada’? ‘Voltemos 20 capitulo X. O primeito pardgrafo situa-nos no ceme do problema: © modo de ser do homem, tal como se constituiu no pensamento modero, permite-Ihe desempenhar dois papéis: esta, ao mesmo tempo no fundamento de todas as positividades, e presente, de uma forma que ndio se pode sequer dizer privilegiada, no clemento das coisas empiricas. Esse fato, e ndio se trata af da esséncia em geral do homem, mas pura. simplesmente desse a priori histérico que, desde o século XIX serve de solo quase evidente ao nosso pensamento, esse fato é, sem divida, decisivo para o estatuto a ser dado &s ciéncias humanas, a esse carpo de conhecimentos (mas mesmo esta palavra ¢ talvez demasiado forte: digamos para sermos mais neutros ainda, a esse conjunto de discursos) que toma por objeto o homem no que ele tem de empirico, (Foucaur, 1966, p.355) Bis af colocado de maneira bastante cristalina o problema no seu devido lugar. Les mots et les choses trabalha a questio das ciéncias ‘humanas como “um acontecimento na ordem do saber” (Foucautr, 1966, p. 56). Nesse nivel, hé um a priori hist6rico decisivo: fora preciso que, primeiro, se desmantelasse o modo de ser clissico do pensamento ocidental, que a representago perdesse a sua soberania epistemolgica, ¢, nessa abertura para a histéria e a finitude, se constituisse aquele par empirico-transcendental hé pouco anunciado, Entéio, segundo Foucault “os seres vivos alojaram-se na profundeza especifica da vida, as riquezas no surto progressivo das formas da produgio, as palavras no devir das linguagens” (Foucautt, 1966, p. 356) , por seu turno, abria-se 0 espaco, por muito tempo impensavel, da pergunta sobre a possibilidade mesma “de todo conhecimento do homem" (Foucat7, 1966, p. 356). Tanto as cigncias empiticas, quanto a filosofia cuidam do homem, Nao sio, porém, ciéncias humanas. Sio, no maximo, 0 que nao é pouco, condigio de sua possibilidade. Como entender isso? Penso que nfo devemos entender com aquela afirmagiio que 0 par empirico-transcendental seja uma espécie de casa das ciéncias humanas. Muito menos poderia ser o seu embrido, Hisiéria Revisia, 9 @) : 191-204, jul /de2. 2008 201 seu estagio menos elaborado. “Seria err6neo, diz, Foucault, fazer das ciéncias humanas o prolongamento interiorizado na espécie humana, no seu organismo complexo, na sua conduta e na sua consciéneia, dos mecanismos biolégicos; néo menos erténeo colocar, no interior das ciéncias humanas, a ciéncia da economia ¢ da linguagem” (Foucautn, 1966, p. 365). E estarfamos errados, também, se fizéssemos delas uma espécie de filosofia debilitada, Seu estatuto ¢ outro. E isto é, aqui, deci- sivo. As ciéncias humanas, desde os comecos do século XTX, identificam- se com aqueles discursos que se elaboram a partir de um espago vazio configurado pelas fronteiras das positividades empiticns ¢ da filosofia critica, Digo vazio, porque, cfetivamente, clas nao tém, como se € levado a pensar, © homem como seu objeto. Ocupam-se, nZo com 0 que o homem 6, positivamente, mas com as representagdes que os homens constroem a respeito do que so, “E por isso que © especifico das ciéncias humanas nfo € 0 direcionamento a certo contetido (esse objeto singular que é 0 ser humano); é muito mais um caréter puramente formal: o simples fato de estarem, em relagao as ciéncias em que o ser humano é dado como objeto (exclusivo para a economia ¢ a filologia, ou parcial para a biologia), numa posigao de reduplicagao” (Foucauts, 1966, p. 365). Na verdade, para Foucault, as ciéncias humanas ocupam, na trama epistemolégica do século XIX, uma posicao estranhissima, Numa idade em que, supor-se-ia, a representagdo deveria ter perdido todo 0 seu prestigio, cis-nos, novamente, 3s voltas com cla, numa transgressio patente das disposigdes fundamentais da episteme moderna. FOUCAULTAND THE BIRTH OF HUMAN SCIENCES Abstract For Miche] Foucault, the human sciences are a recently event in the history of occidental thought. Before, he said, the man had no existence, His possibility appeared only in the century XIX. The production ofthe philosopher, in fact, shows more than one face of this history. In Les mots et les choses, the man, as an object of the knowledge, only emerges in the end of the Age of Representation, but not separately. It treats about an object sui generis, fond of his existence represent a reduplication from ther knowledges: the empiric 202 ‘Tenss, José. Foncault € 0 noscimento das cléneias humanes sciences, criticism philosoph and the mathematics. Beyond his manner of being, it is inopportune representation. In other texts likes Historie de ia folie, Naissance de ta clinique and, later, Surveitier et punir, the knowledges strangely called human sciences are found in a narrow way related with the sciences of life and the origin of modern disciplined institutions, invested strongly by the notmalizator power. Key words: Thougth, modemity, episteme, human sciences, history. Notas 1. NaLegon inaugurate au Colldge de France (2/12/1970), Foucault confessa sua divida: “Tous ceux qui, de point en point dans notre histoire, ont essayé de contoumner cette volonté de vérité et la remettre en question contre la ‘V6rité, a justement ot la vérité entreprend de justifier interdit et de définir lafolic, tous ceux-la, de Nietszche, & Artaud et & Bataille, doivent maintenant nous servir de signes, hautains sans doute, pour le travail de tous les jours" Foucaurr, 1971, p. 22-23). 2 Les mots et les choses, dado 0 seu subtitulo, pareceria ocupar-se com as ciéncias humanas. Scu cixo principal, no entanto, se ocupa com outra coisa, 3. Sabemos o quanto Foucault foi critico em relag2o ao humanismo. Em Surveilter e punirtal critica no é menos cruel. Que humanismo € esse que produz um homem, ao mesmo tempo, economicamente eficiente ¢ politicamnte submisso? 4, Recomendaria, a esse respeito, a leitura do excelente texto de Paul Veyne, Foucault revoluciona a histéria, publicado, no Brasil, pela Editora da UnB. 5, Rigorosamente, para Foucault, a expresso pGs-madernidade nao tem sentido. 6. Para Foucault, simplesmente, idade da representacfio. Mas o infinito,a meu ver, ainda que nao tematizado explicitamente, parece consiantemente aflorar como questo constitutiva dessa idade. Indecisdo, a meu ver, estreitamente ligada escolha teérica da leitura de Foucault: as Regulae ad Directionem Ingenii, de Descartes. 7. Anogao cartesiana de idéia “como imagem do mundo” pode ser encontrada na Terceira Meditagao. 8 Heidegger, num texto da coleténca Holzwege, falaem “época daimagem do mundo” Fica a pergunta se a redugo do modo de pensar do século XVI e XVIII a forma generalizada da representag%o ¢ absoluta. Temos exemplos, Histéria Revista, 9 (2) : 191-204, jul /dez, 2004 203 mesmo de dentro dessa €poca, que parecem transgredir a ordem descrita por Foucault. Refiro-me a Espinosa e Pascal 9 "Unsire philosophique” (Foucautr, 1966, p. 354). Referéncias Poucautr,M. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966. __ Lorde du discourse. Paris: Gallimard, 1971 _- Histoire de ta folie. Patis: Gallimard, 1972. . Naissance de la clinique. Paris: Galien, 1972b. ___- Surveilter et punir. Paris: Gallimard, 1975. __- Microfisica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. . Historia da sexuatidade I1: 0 uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984, . Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994, Kove, A. Etudes d’histoire de la pensée scientifique. Paris: Gallimard, 1973. ‘Teanes, J. Michel Foucault e a idade do homem. Goisnia: Ed, UPG/UCG, 1998 204 ‘Teases, José. Foucault ¢ 0 nasctmento das ciéncias iumanas

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