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Paolo D’Angelo AESTETICA | DO ROMANTISMO oIToniaL EsTaMPA INDICE | Preamsvio | Inrropucko — Cronologia e geografia da estética romantica, u ! L.A ARTE ENTRE HISTORIA E ABSOLUTO 35 «A ciéncia da arte € a sua hist6ria» 35 Antigo/modemo, ingénuo‘sentimental, cléssico/romdntico . 41 A redescoberta da Tdade Média e do Oriente 54 «Quanto mais poético mais verdadeiro» 60 Imaginagao estética e intelecto intuitvo . 66 « em relagdo a determinadas obras de arte ou determinadas situagbes tam= ‘bém na linguagem corrente; e nesta acepeA0, por forga da qual o termo «roméntico» deixa de ser uma categoria historiogréfica para passar a 12 descrever uma caracteristica «psicolégica», o acento t6nico coloce-se geralmente em certos estados de &nimo, que tém a ver com o indeter- minado, 0 obscuro, o fantéstico, o sentimental, a paixto amorosa, ete, E perante este uso corrente do termo serd bom confirmar que todos estes significados tém de facto raiz em alguns aspectos do romantismo hist6~ rico, de tal modo que € possfvel para cada caso mostrar origemde uma determinada acepeao em caracteristicas precisas do movimento roman- tico ¢ das suas teorias, embora nao possamos considerd-los capazes de ‘esgotar 0 universo de sentidos — sobretudo porque ndo se pode reduzira estética romantica a simples reivindicagZo dos lados obscuros ou iraci nais da arte, mas 6 necessério um esforgo no sentido de os compreender filosoficamente. Uma introdugio a estética do romantismo deve pres- cindir dos miltiplos sentidos que o termo «romantico» adquiriu quando comecou a ser usado para ld dos limites histéricos da época romantica, como categoria psicol6gica, muito embora capaz de contribuir para ex- plicar a sua génese reconduzindo-os a autores e teorias historicamente reconhecidos. Ainda que se renuncie a todas as dilatagdes do termo aromantismo> © se aponte para a caracterizaeao da estética romantica como fenémeno historico, € dificil indicar Timites cronol6gicos ¢ estabelecer uma periodizacdo satisfatéria em todos 0s sentidos, cuja substéncia nao pos sa ser modificada quando surgem pontos de vista diferentes. E mesmo mais dificil do que acontece vulgarmente quando est em jogo a periodizacdo de fenémenos culturais de grande aleance. Entretanto, seré preciso sublinhar sem demora qe 0 romantismo no foi apenas um fenémeno relativo & esfera da literatura, das artes, do gosto e da estética, afinal, mas uma tendéncia que abrangeu e modificou radicalmente toda a cultura curopeia. Religio, politica, céncia foram igualmente influen- ciadas pela revolugdo romantica. No campo filoséfico nao houve ape- nas uma estética romantica, mas também uma filosofia da hist6ria, uma filosofia da natureza, uma ética ¢ uma filosofia da religiao orientadas pelo romantismo, que penetrou profundamente nas disciplinas hist6ri- ‘cas nascentes, acompanhando e condicionando radicalmente 0 estudo hist6rico da linguagem, do direito, das religides ¢ das mitologias. Mas se, por um lado, em cada um destes campos o desenvolvimento a difusdo das ideias romanticas se opera segundo vias ¢ tempos diver- 13 508, por outro lado tornar-se-ia impossivel e sobretudo alienante isolar nitidamente 0 percurso do romantismo na estética relativamente & ou- tos Ambitos culturais. E no apenas pelo motivo, vélido em todas as 6pocas, da inter-relacao entre os factos da cultura, mas também por uma circunstaneia mais intrinseca, que € jé um trago espectfico da estética romantica, Na verdade, é um carécter saliente desta Gltima a tendéncia para a superacio dos limites e das separagdes entre os diversos domf- nos do saber, a destruigo dos muros que se erguem entre poesia ¢ filo- sofia, entre poesia e ciéncia, a vontade de poetizar qualquer disciplina, nio no sentido da redugao das ciéncias € da filosofia a um mero jogo, como poderii acontecer no esteticismo da segunda metade do século XIX, mas sim para fazer valer sempre as capacidades cognitivas da poe- sia, Nao é por acaso que os primeiros roménticos falario de um projecto enciclopédico, ainda que, como veremos, num sentido muito diferente do da Encyclopédie iluminista; e Friedrich Schlegel, tendo que desere- ver a situagdo cultural do seu tempo, falaré, em 1803, na revista Euro- pa por ele fundada e dirigida, de «uma universal accRo recfproca de todas as artes e ciéncias», como nenhuma outra época conheceu igual Uma dificuldade ainda maior parece provir do uso extremamente varia~ do e alargado que se faz do conceit de romantismo no ambito da historiogratia literéria, Como é sabido, quase todas as literaturas euro- peias conhecem um periodo denominado «romantico», mas os vérios ‘movimentos romanticos de cada pais desenvolvem-se em formas ¢ tem- pos muito variados, de tal modo que se torna desesperante reportar as varias denominagdes a um nicleo comum. Além disso, a progressiva irradiagdo das tendéncias romfnticas faz. com que nas éreas periféricas (Espanha, paises eslavos) uma leitura romantica se implante mesmo al- gumas décadas apés as primeiras manifestac6es de romantismo na Alema- tha ouna Inglaterra. Acrescente-se ainda que os historiadores da literatu- ra tenderam muitas vezes para uma notivel dilatagao cronol6gicado termo «roméntico», por forga da qual, embora se fale geralmente de romantismo ‘em relagao a obras literdrias entre 0s inicios do século xix e 1850 (se bem ‘que no ambito alemio, por exemplo, o ponto de chegada possa sér anteci- pado para 1830 ou mesmo 1820), nfo deixa de ser frequente o uso’ da locugio «romantismo> também para caracterizar a segunda metade do séeulo Xvi, ou as tendéncias sucessivas da parte final do século. 14 Ora, se relativamente as tendéncias «universalizantes» da estética romantica nao pudermos fazer mais do que indicar ce vez em quando os ‘momentos mais importantes nos quais a estética entra em contacto com outros fimbitos do saber, sem pretender seguir os desenvolvimentos do romantismo em todos os seus aspectos, no que diz respeito a amplitude do uso corrente do termo «roméntico» na historiografia literstia pode- mos esclarecer imediatamente que no caso da estética romantica parece legitimo indicar fronteiras cronol6gicas mais restritas e mais precisas. ‘Uma coisa é a presenca de tendéncias romanticas nas literaturas e nas artes, outra € a elaboragdo de uma relacdo filos6fica sobre a arte © a poesia. As duas podem nio seguir a par ¢ passo e, tal como em alguns pafses a presenga de uma literatura roméntica néo se faz acompanhar de uma teorizacao significativa, assim pode acontecer que se desenvolvam tendéncias roménticas na literatura (pense-se na Franca) antes do nasci- mento de um debate te6rico romantico. Uma periodizagdo relativamen- te mais segura possivel, pois, no caso da estética, porque, como vere- mos, a teoria estética romantica desenvolve-se em muitos paises europeus 2 partir do que se vird a conhecer da riquissima reflexdo estética do romantismo alemao, com uma dependéncia por vezes indirecta mas sem- pre documentivel; além disso, a estética do romantismo alemo, por sua ‘vez, representa uma fisionomia que, apesar da variedade das tendéncias e das personalidades, permite uma reconstrugao unitéria e uma escanso interna articutével com alguma preciso. Em sume, no caso da estética, nio é possivel fazer valer a conclusio céptica a que o historiador das ideias Arthur Lovejoy (1873-1962) chegava apés um exame minucioso das utilizagdes do conceito de romantismo na historiografia literdria num censaio muito discutido de 1924, no qual sustentava que «6 impossivel que [quem esteja a falar de zomantismo] saiba quais as ideias ou tendén- cias a tratar, quando & que estas ideias ou tendéncias prosperaram, ou quais as pessoas que melhor as exemplificaram. Especialmente, parece razodvel indicar o niicleo gerador das ideias rominticas no grupo de estudiosos que se reune em Jena, a patti de 1796, em tomo dos inméios August Wilhelm (1767-1845) e Friedrich Schlegel (1772-1829). E aquele que a historiografia literdria alemd, re- tomando o titulo de um ensaio do poeta Heinrich Heine escrito em 1833, ‘com intengdes polémicas, costuma denominar por «Escola Romantica» IS em sentido estrito. As personalidades dos dois irméos eram notoriamen- te distintas, Literato requintado, grande especialista de métrica, pouco inclinado para a especulacao filosofica, mas eficientissimo orador e es- ctitor, © mais velho; mente bastante mais original e especulativa, mas com uma certa tendéncia para a dispersio e, sobretudo, muito menos capaz. de tecer relagdes culturais, 0 segundo. E Friedrich, em todo 0 aso, 0 verdadeiro teérico dos dois, e a ele se atribuern muitas das ideias decisivas em toro das quais se constitui o cfrculo roméntico de Jena. Quando, no Verso de 1796, se junta ao irmo mais velho, que desde ha alguns meses detinha um cargo na universidade, tinha jé escrito, ainda que s6 venha a public4-lo no ano seguinte, um texto que contém in nuce muitas das teses caracteristicas do primeiro grupo roméntico, 0 ensaio Sobre o estudo da poesia grega. Nao obstante o titulo ¢ a perspectiva cexplicita, ainda estritamente classicista, no sentido de reconhecer & poe- sia grega um valor absoluto ¢ insuperdvel, na realidade, o ensaio carac- teriza alguns dos aspectos salientes da arte moderna, que passartio de- pois em grande parte na imagem da arte romantica. August Wilhelm, por seu lado, acumulou uma notavel experiéncia como eritico literdtio, que 6 j& patente nos primeiros ensaios sobre Dante e Shakespeare, auto- res que se revestirio de uma importincia central no cfnone estético do romantismo, Em 1797, Friedrich muda-se para Berlim e aqui faz a de com Friedrich Schleiermacher (1768-1834), te6logo e fil6sofo, e com © poeta Ludwig Tieck (1773-1853), autor de romances As peregrina- 0es de Franz Sternbald, (1798) e comédias O Gato das Botas, (1797) muito apreciados pelos roméinticos, e de um ensaio Sobre o tratamento do maravilhoso em Shakespeare (1793). Jéinos anos em que era estudante em Leipzig, F. Schlegel estabelece- ra lagos de amizade com aquele que ser o outro grande protagonista do primeiro grupo romantico, Friedrich von Hardenberg (1772-1801), mais conhecido pelo pseudénimo de Novalis: grande poeta, autor do roman- ce Heinrich von Ofterdingen, durante estes anos, Novalis empenhou-se sobretudo em estudos filos6ficos cujos resultados s6 viriam a ser publi- cados j4 no nosso século, Em Dresden, no Verdo de 1798, encontram-se todos os protagonistas do circulo romantico, entre os quai Schleiermacher, € a este grupo junta-se também 0 fildsofo Friedrich W. Schelling (1775-1854), que dentro em pouco tera ocasido de fortalecer 16 esta relagio quando comegar a ensinar em Jena. Um importante papel no grupo ser4 igualmente desenvolvido pela mulher de August Wilhelm, Carolina Michaelis, de quem se divorciaria em seguida para desposar Schelling, ¢ a companheira ¢ depois mulher de Friedrich, Dorothee Mendelssohn. Quando os irmos Schlegel decidem fundar uma revista prOpria, o Athenaeum (1798-1800), quase todos os membros do grupo colaboram na sua realizagao, ¢ os Fragmentos publicados nao sao dis- tinguidos por autor. Os que sio atribuiveis a F. Schlegel, porém, contém as primeiras, importantissimas, formulagdes da estética romantica, outro documento decisivo que o mais novo dos Schlegel entrega a revista & 0 Didlogo sobre a Poesia (1800), a primeira exposi¢do com- pleta da estética do romantismo, Muito do trabalho desenvolvido nestes ‘anos por Friedrich e por Novalis permanece, todavia, no estado de frag- ‘mentos, apontamentos, anotagdes e projectos que s6 muitos anos apos a morte dos autores se tornaram conhecidos. Este material, s6 desde hi poucos anos a esta parte disponivel em edi¢do critica, nfo contou, como € 6bvio, na difusto histrica das ideias romanticas, mas é de inestimével valor para se poder compreender a real dimensio dos pensadores do primeiro romantismo: € precisamente 0 estudo destas fontes que mais contribuiu para fazer reconhecer 0 aleance filos6fico da reflexdo 10- mintica. Nao directamente ligado ao cfrculo de Jena seniio nos tiltimos meses de vide, mas mantendo uma estreita amizade com Tieck ¢ lido certa- mente pelos outros, estava também Wilhelm H. Wackenroder (1773- -1798): as duas recothas de escritos, em que colaborou igualmente Tieck, Desabafos do Coracio de um Monge Amante de Arte (1797) & Fantasias sobre a arte (1799), constituem um documento bastante importante do nascimento da nova sensibilidade estética, sobretudo relativamente &s artes figurativas ¢ & miisica. Normalmente nfo se inclui no romantismo jenense a figura mais auténoma do poeta Friedrich Holderlin (1770- -1843), cuja reflexio te6rica, valorizada sobretudo nas tiltimas décadas, apresenta muitos pontos de contacto, mesmo nas diferencas, com a esté tica do primeiro romantismo. O nome de Hélderlin foi também aponta- do como autor de um texto datavel de 1796, mantido na forma de ma- nuscrito, com o titulo de O Mais Antigo Programa Sistemdtico do Tdealismo Alemao, que se atribui normalmente a Schelling ov a Hegel, a I7 testemunhar a proximidade que a reflexdo destes autores apresenta du- rante aqueles anos. O breve texto constitui um programa ndo apenas do idealismo, mas também do romantismo nascente, e muitas das ideias formuladas como projectos serdo desenvolvidas a seguir, especialmente por Sohelling. Finalmente, entre aqueles que no pertencem ao primeiro ciroulo roméntico, recorda-se também o poeta Jean Paul (Johann Paul Richter, 1763-1825), que em Introdugdo ao Estudo da Estética de 1804 resumiunumerosos temas da discussio do momento sobre a poesia, dando voz. alguns temas tipicamente romanticos, embora no interior de uma obra que pareceu, com toda a razo, ficar-se a meio caminho entre 0 romantismo e o classicismo, A distingo entre os membros do circulo romintico de Jena ¢ aqueles que, embora cabendo no horizonte da estética romantica, néo fizeram parte dele € evidenciada ndo apenas por obrigagdo de rigor hist6rico, ‘mas também pelo risco de se poder acreditar, caso as diferengas nlo fossem demarcadas, que a denominago de «grupo» ou «cfrculo» attibut- da aos romanticos jenenses é uma mera convengio do historiador, quan- do esta é entendida em sentido literal. Com efeito, foram os proprios romanticos de Jena, ¢ isto assinala logo uma novidade digna da maxima atengio, a sentir-se e a querer apresentar-se como um grupo ao mesmo tempo compacto no seu interior ¢ orientado polemicamente para o exte- rior: € o campo em que o grupo s¢ constituiu e desferiu a sua batalha ‘outra circunstincia decisiva ~ foi o da teoria da arte e da literatura. ‘A autoconsciéneia dos primeiros romfinticos, e sobretudo de F. Schlegel, & a este prop6sito mais caracterizante das proprias circunstincias de facto: queremos dizer que aquilo que conta nao € tanto a homogeneidade cefectiva do grupo (cujos participantes manifestam, alias, desde o infcio grandes diferencas entre si), mas 0 projecto explicito de actuar na cena Jiterétio-filosética numa comunidade de intengSes ¢ a0 encontro de uma transformacao radical do modo de pensar e de julgar a poesia ea litera- tura, Os primeiros romanticos teorizam a sinflosofia ¢ a sinpoesia, ow seja, a colaboragao de todos na producto filos6fica e postica, até chegar a impossibilidade de distinguir os contributos de cada um; concebem a revista Athenaewn como um 6rgdo de tendéncia, instrumento e ponto de apoio do grupo; sentem-se empenhados contra os adversérios ligados porum vinculo comum: todas as circunstincias que inauguram um mo- 18 delo, como se vé, que ser depois tipico do século passado e do nosso, ¢ que fazem dos roménticos jenenses 0 primeiro movimento estético-lite- rério em sentido moderno, Este projecto radical ¢ esta comtinhao de intentos baseavam-se em. condigdes externas singularissimas ¢ irrepetiveis, destinadas a mudar ‘muito em breve: em 1800, o Athenaeum cessou as publicagbes, ¢ 0 gru- oO jenense dissolveu-se jé no Verdo do ano seguinte, a partir do qual cada um dos seus membros seguiu a sua propria via. Novalis morreu em Marco de 1801 (em 1802 Friedrich Schlegel e Tieck deram & estampa. uma recolha de escritos seus em dois volumes); Schleiermacher aban- donou Berlim para aceitar o cargo de pregador numa cidadezinha de provincia, ¢ quando tegressar & capital prussiana como docente na uni- versidade recém-fundada, os seus interesses concentrar-se-do na ética, na teologia ¢ na hermenéutica, enquanto as ligies de estética que iré apresentar entre os anos de 1819 © 1832 (¢ que sero publicadas postu- mamente em 1842) 0 revelardo esquecido dos companheiros de juven- tude, com pouguissimo espago dedicado a teméticas autenticamente ro: manticas. Ao contrétio, August Wilhelm Schlegel levou a cabo uma obra importantissima de divulgacdo das novas ideias. Entre 1801 e 1804 proferiu uma série de ligées em Berlim Sobre a Bela Literatura e a Arte, ‘que representam a primeira sistematizacao das ideias do cireulo de Jena: em especial o primeiro ciclo de ligBes, intitulado Doutrina da arte, en- frenta na primeira parte os problemas da teoria, da hist6ria ¢ da critica com o propésito de mostrar a indivisibilidade deste trinémio, enquanto a segunda parte 6 constituida pela teoria de cada arte em si, vista como tum sistema ¢ analisada separadamente nos seus princfpios. Em relag&o as ideias do grupo roméntico, August actua como um divulgador e, portanto, como um simplificador: a complexidade filos6fica do immao, por exemplo, perde-se quase por completo, ao mesmo tempo que as categorias centrais do primeiro romantismo (a primeira das quais a dis- tingdo entre poesia cléssica e romfintica) adquirem alguma rigidez.e bas- tante superficialidade. Estas ligées desempenham, todavia, um papel decisivo, num duplo plano. Por um lado, inauguram uma estrutura do tratado de estética (parte te6rica geral e parte especial dedicada ao siste- ma das artes) que sera seguido por quase todos os teéricos da estética alema do século XIX, rominticos ¢ no $6, ¢ que, na sua clara diversida- 19 cde em relagio as formas anteriores de tratamento da estética (até & Cri tica da Razéo Pura de Kant, inclusive), atesta materialmente a transfor- ‘magi da estética em filosofia da arte; por outro lado, assinalam decisi- vvamente a passagem das ideias roménticas de um circulo restrito de pensadores ¢ artistas a todo o piiblico culto. E verdad que 0 texto das LigGes nao foi publicado seno apés a morte de Schlegel; mas 0 seu Exito © o impacte que causaram na sociedade berlinense foram desde ogo notérios. Ao diltimo ciclo de ligGes assistiu também Mme de Staél (Germaine Necker, 1766-1817), com quem August estabeleceu fortes Jagos intelectuais destinados a durar por mais de uma década, 0 que ‘constituit o principal canal para a internacionalizacSo das ideias da es- tética romantica. A etapa mais produtiva deste processo é representada pelo Curso de Literatura Dramética de A. W. Schlegel levado a cabo em Viena em 1808-1809. Publicado logo a seguir e imediatamente tra- duzido nas principais linguas europeias, este texto feliz representou ver- dadeiramente, como recorda o titulo da obra que um critico do nosso século, Josef Komer, Ihe dedicou, 0 Aniincio do Romantismo Aleméo na Europa: 0 Curso est na base de quase todos os desenvolvimentos das teorias somanticas fora da Alemanha, Muito diferente foi o itinerdrio de Friedrich Schlegel. Ao mudar- para Paris, funda ali uma nova revista, «Europa»; dedica-se ao reconhe- cimento das literaturas roménicas, escreve importantes ensaios sobre @ pintura italiana e sobre a arte gética e cristé em geral, estuda a lingua ¢ cultura da antiga india, consagra-lhe em 1808 o estudo pioneito Sobre a Lingua e Sabedoria dos Indianos, continua a tratar de filosofia, quer através de numerosas anotagdes, quer, nos seus tltimos anos de vida (morreré em 1828), através de obras de carécter mais amplo como a Filosofia da Vida ¢ a Filosofia da Lingua e da Palavra. O dado (nto apenas do ponto de vista biogréfico) mais relevante da maturidade de F Schlegel é representado, porém, pela sua converséo ao catolicismo, que ocasionaré a ransferéneia para Viena e a assuncao de cargos sob a alga da de Metternich: isto significou de facto, para oresto da vida de Schlegel, a ruptura de relagdes com muitos dos scus contempordneds, e, ap6s sua morte, uma tenaz desconfianga relativamente ao seu pensamento por parte de muita historiografia alema. Quando Heine, na Escola Ro- ‘méntica, redwz 0 romantismo ao renascimento da arte cristi medieval e, 20 na politica, & Reacgio antinapolesnica, tem presente sobretudo a pard- bola de F. Schlegel: mas, o que mais conta & que esta interpretacdo lan- gard uma hipoteca muito gravosa sobre as leituras de romantismo ¢, consequentemente, da estética romantica, oferecidas no século XIX pe- los historiadores liberais e, no nosso séeulo, por grande parte da historiografia marxista. A equago entre estética romantica e mero irracionalismo, ou a criagtio de uma linha que liga ao romantismo os ‘fenémenos inferiores da hist6ria alema posterior, compreendendo 0 na- zismo, nascem daqui. Seja como for, a nica obra escrita por F. Schlegel no perfodo a seguir & sua conversio ¢ com alguma circulag&o europeia foi a Histéria da Literatura Antiga e Moderna, fruto de um ciclo de ligées levado acabo em Viena em 1812, publicada em 1815, um grandioso panorama da literatura universal que aprofunda ¢ modifica muitas das concepgaes estéticas do jovem Schlegel. ‘Um contributo decisivo para a estética romantica vird, nos anos ime- diatamente a seguir A dissolucao do grupo jenense, da parte de Schelling. Este oferecera jé em 1800, com a parte conclusiva do Sistema do Idea lismo Transcendental, na qual atribui & arte a fungo de érgao geral da filosofia, uma expresséo filosoficamente muito vigorosa do significado de romantismo na estética. Imediatamente depois, primeiro em Jena e a seguir em Wiirzburg, Schelling dedicou a Filosofia da Arte uma série de cursos universitérios. O manuscrito que Schelling foi elaborando como base das suas ligSes 86 viria a ser publicado em 1856, postumamente. Mas as ideias de Schelling tiveram também grande circulagdo: foram transcritas por numerosos ouvintes (até mesmo por um inglés, Henry C. Robinson), e os apontamentos tornaram-se uma fonte de transmissio gue chegaria a muitos leitores qualificados, sem esquecer que algumas partes deram lugar a desenvolvimentos publicados autonomamente, como foi o caso das importantes Consideracdes filosoficas sobre Dante, que apateceram no Giornale Critico della Filosofia em 1803. & verdade que a Filosofiada Arte, como foi observado por muitos intérpretes, $6 parcial- riente dé expresso a ideias romanticas; mas em fermos que viremos a esclarecer, esta continua a ser um documento fundamental dos resulta dos da reflexio estética do inicio do romantismo (alias, 0 proprio Schelling atesta a sua ligacdo & Douirina da Arte de Schlegel). Algo semelhante € valido, ainda que de uma forma mais reduzida, para 2 o posterior discurso Sobre a relagéio das artes figurativas com a natu- eza pronunciado por Schelling no M6naco em assembleia solene, er 1807, um texto Titerariamente muito eficaz e que desde logo foi muito admirado e muito lido, Muitas das ideias estéticas de Schelling foram igualmente difundidas através do Sistema da Doutrina da Arte de Friedrich Ast (1778-1841), um manual sistematico de estética publica~ do em 1805, que recolhe muitos temas tipicos do primeiro romantismo, quer no que diz respeito a organizacao da matéria, quer sob o ponto de vista de cada tese em particular. ‘Como dissemos, 0 grupo romantico de Jena estava perfeitamente cons- ciente da sua propria especificidade; mas convém precisar neste ponto que este nunca se autodenominou romdntico. O termo «somantico» 6 usa- do por todos os colaboradores do Athenaeum nio como autodesignacao de escola, mas como nome de uma poesia que, por um lado, se identifica com um referente hist6rico preciso, a poesia cristi medieval-renascentista, @, por outro, € a auténtica poesia ainda por producir. Estes sentidos do termo, bem como as muitas gradagbes que ele pode revestir, serao analisa- dos com pormenor mais adiante; mas 0 que se deve observar desde jé 60 facto de na escolha do seu termo chave 0s teéricos de Jena se reportarem ‘alguns usos da palavra «roménticom que convird ter presente em varios ppontos do nosso estudo, A histéria do termo «roméntico», sobre @ qual existem hoje em dia muitos estudos espeeificos, tem inicio por volta de ‘meados do século XVit em Inglaterra, onde o adjectivo romantick tem 0 sentido de «@ maneira dos velhos romances». Mas por «romance» 6 preci- so entender, como a afinidade entre as duas palavras deixa alias intuir, aquilo que 6s ingleses chamam romance, ou seja, uma narragéo fantésti- cca, geralmente de assunto cavaleitesco, no 0 novel, ou seja, 0 romance realista que trata de acontecimentos contemporéineos ao escritor. Por isso, o sentido da palavra roméntico ir-se-4 definindo como «imaginado, inven- tado como um romance». Um tal significado, inicialmente pejorativo, vai assumindo um valor cada vez mais positivo no decorrer do século XVI, ‘como termo referido a paisagens ou edificios. Um castelo, uma ruina, um lugar selvagem ou solitario comegama ser definidos, cada vez. com mai frequéncia, como «roménticos». Romantico é, por exceléncia, o jardim inglés, aquele jardim onde so evitadas as formas artificiais e tudo deve surgit como fruto esponténeo da natureza, Nesta acepedo, «romanticon 22 equivale, na Franca ou na Itlia, a xpitoresco», mas, pelo menos na pri- meira, iguala e, por vezes, substitu’ este tltimo termo (Rousseau fala, por exemplo, do lago de Bienne como de um lago «romantico»). Na Alema- nha, na segunda metade do século XVul, estio presentes todos estes signi- ficados, mas a eles acrescenta-se um outro que desempenharé um enorme papel na explicago do emprego que os jenenses fardo da palavra. «Ro- méntico» equivale em alemfo, nesta altura, mais ou menos «romanico» e designa aquilo que diz respeito as linguas ¢ literaturas neolatinas, preci samente as dos pafses que ainda hoje chamamos «tomanicos». Assim, Friedrich Schlegel fala do portugués como de uma lingua «fruto de todas as linguas romdnticas» e diz que «quando falamos de poesia romantica de um ponto de vista histérico, entendemos a poesia daquelas nacdes que tém uma lingua derivada do latin»; no Curso de Literatura Dramatica do irmao, podemos ler: «Roménicos, romanches designaram-se 0s novos dia- lectos nascidos da fusao do latim com a lingua dos conquistadores ale- mies e so, portanto, romances as obras lterérias escritas nestes dialec- tos, de que deriva a palavra romfntico.» Esta tiltima declaracdo explica claramente que 0 termo «romantico» nao indica apenas algumas literatu- ras (a italiana, a espanhola, a provengal, a portuguesa), mas refere-se em particular as formas tipicas dessas literatures, 0 poema cavaleiresco, por exemplo, de Pulci, Boiatdo, Ariosto, ov o romance propriamente dito, de Cervantes, por exemplo. Por outro lado, ele & cada vez com maior fre~ quéncia utilizado para indicar 0 conteiido dessas obras, ¢ por essa via assume os significados de maravilhoso, fantdstico, irreal, ou mesmo de relativo a hist6rias de cavalaria ou de amor, ainda muito presentes nos nossos dias no uso corrente da palavra: por exemplo, em 1816, Coleridge escrevia que a sua poesia se dirigia a «pessoas ou caractetes sobrenati- rais, ou pelo menos romanticos». O termo «roméntico» entra na moda na Alemanha entre 0s finais do séeulo XVitt€ 0 inicio do século XIX. Tieck publicou em 1799 uma reco- tha intitulada Poesias Rom@nticas, mas dois anos depois também Schiller (que no pertencia efectivamente ao grupo romantico) dave a uma sua tragédia o subtitulo «Uma histéria romantica». Assim, era fatal que essa designagdo acabasse por se virar contra aqueles que mais a utilizavam, Eo que acontece no primeino decénio do século XIX, por obra do poeta Johann H. Voss e dos seus seguidores, os quais comegaram a designar 23 polemicamente os seus adversirios com o termo «roménticos». O alvo, porém, nfo eram jé 0s te6ricos da dissolvida escola de Jena, mas um novo grupo de estudiosos e poetas actuante na cidade de Heidelberg. Aqui, a partir de 1804, ensina o filélogo Friedrich Creuzer (1771-1858), 0 qual se retine dois anos depois Josef Gérres (1776-1848); com eles esto em contacto os irmaos Jakob (1785-1863) ¢ Wilhelm Grimm (1786- -1859),¢ a assist as ligdes de Creuzer estava 0 poeta Clemens Brentano (1778-1842), amigo por sua vez de Achim von Amim (1781-1831) — este Gltimo publica em 1808 uma revista, a Zeitung fir Einsiedler (Jor- nal para Bremitas), no qual escrevem nao apenas os amigos de Heidelberg ‘mas também F, Schlegel e Tieck. A locugo «grupo de Heidelberg» deve ser entendida num sentido diferente daquele que usdmos para falar do «grupo de Jena: falta, neste caso, a vontade programética de agir como «movimento». Além disso, nem sempre é fécil tragar uma fronteira ni- {ida entre este grupo e aquele que se costuma denominar «grupo de Ber- lim», que gira, a partir de 1808, em tomo das figuras de Adam Miller (1779-1829) e de Heinrich von Kleist (1777-1811), j4 que Amnim, por cexemplo, transita entre os dois grupos. Também Kleist e Milller publi- cam uma revista, a Phoebus; amigo de ambos € o cientista G. Heinrich ‘Schubert (1780-1860); ainda na cena berlinense encontraremos depois escritores e poetas rominticos, entre os quais, muito importante, ndo apenas pela qualidade das suas obras mas pela difusdo das ideias e dos temas romanticos fora da Alemanha, B. T. A. Hoffmann (1766-1822). Este segundo romantismo vem normalmente indicado, nos estudos de lingua alema, como romantismo «mais recente» ou «alto»,em oposi- ¢4 a0 romantismo de Jena; outros estudiosos, ainda em ambito germanistico, assinalam posteriormente uma distingdo entre um primei- 10 romantismo (1796-1802), um romantismo «médio» (até 1815) ¢ um romantismo tardio (entre 1815 ¢ 1830), com uma menor importéncia, porém, do ponto de vista teérico. Os interesses e as orientagdes do ro- mantismo de Heidelberg so j4, a uma primeirissima vista, notoriamen- te diversos dos do grupo dos Schlegel. Creuzer & essencialmente um mit6logo, que na Simbélica (1810) alarga as suas consideragdes as mi- tologias orientais e elabora um novo conceito de simbolo; Gérres, que jem 1802 publicara Aforismos sobre a Arte que contém, na realidade, um sistema das artes, estuda predominantemente os mitos asiéticos e a 24 poesia popular Os Livros Populares Alemdes, (1807); ¢ estudiosos de poesia popular sfo também Amim e Brentano (O corno magico do rapazinko, com um escrito te6rico de Arnim, & de 1806-1808) sobre- tudo os irmios Grimm (Jakob: Pensamentos sobre a relagiio entre as sagas, a poesia ¢ a hist6ria, 1808), estudiosos da lingua e da literatura germinicas das origens; Kleist, para além de dramas de grande forga, escreve um breve mas muito significativo ensaio As Marioneras (1810), enquanto a Hoffmann devemos algumas obras literdrias decisivas para a formagao da imagem do artista romantico, ¢ a Schubert um tratado so- bre a Simbélica do Sonko. O mais sistemético, como tebrico da estética, 6 sem diivida Adam Miiller, autor de ligdes Sobre a Ciéncia ea Literatu- ra Alemas (1806), Sobre a Arte Dramérica (1806), Sobre a Ideia de Belo (1807-1808). A diversidade de orientagoes entre o primeiro eo segundo romantismo foi sublinhada por muitos intérpretes, e uma tese extrema, que foi posta em circulag#o nos anos 20 por Josef Nadler € Alfred Bacumler, tende a negar ao primeiro romantismo o carécter autentica- ‘mente roméntico para o reconhecer apenas ao segundo. Pode-se contra: riar esta posig&o, quer sublinhando a novidade e a plenitude dos resulta- dos conseguidos pelo primeiro romantismo, que € magna pars do Tomantismo no seu todo, quer evidenciando 0 modo como a variedade das posigdes romanticas vai muito além da esquemética contraposigao dos dois grupos, sendo possivel construir linhas que atravessam posi- ges cronologicamente afastadas: é inegavel, para dar apenas um exem- plo, a diversidade entre uma orientacdo mistico-religiosa (que poderia incluir desde Wackenroder ¢ Novalis até certas posigdes do segundo romantismo) € uma linha critico-irénica (que poderia ir de Friedrich Schlegel a Adam Miller). Nao pertence a nenhum dos grupos roménti- cos, porém, Kat] W. F. Solger (1780-1819), que todavia assistia as li- Ges de Schelling, estabeleceu uma estreita amizade com Tieck, conhe- cou Kleiste leu e criticou os escritos dos irmaos Schlegel. Professor de filosofia em Berlim, realizou com certa regularidade cursos de estética entre 1810 ¢ 1819, As suas Ligdes de Estética s6 foram editadas em 1829, com base em apontamentos de alunos, mas em 1815 Solger publi- cara ja uma grande obta sistemitica de estética, 0 didlogo Erwin, no qual desenvolve uma estética que apresenta muitos tragos claramente romAnticos, de tal modo que houve quem visse nele um «filho tardio» 25 do primeiro romantismo ou um teorizador da estética romantica apés 0 seu florescimento: 0 certo € que ele surge como o tinico, entre todos os pprotagonistas da segunda c tardia estaco romantica, a apresentar-se como filésofo «profissional» e a elaborar uma teoria estética de forte implementagdo especulativa. Oromantismo mais tardio foi escassamente conhecido fora dos pat- ses de lingua alemi: a circulagdo europeia das ideias romanticas é um facto que diz respeito quase exclusivamente ao primeiro romantismo. ‘Também aquela, todavia, considerou apenas alguns autores e foi quase sempre uma divulgacdo e uma popularizagdo das teses originais. O De Allemagne de Mme de Staél, publicado em Londres em 1813 ¢ em Franga no ano seguinte, oferece um quadro vivo da literatura e da socie- dade alemis do tempo, mas é muito superficial no que concerne a filo- sofia © nfo diz quase nada sobre a estética: no entanto, foi uma das fontes principais de informagio para italianos e franceses. A outra & cconstituida, como jé foi referido, pelas tradugses do Curso de Literatura Dramética de A. W. Schlegel, editado em inglés em 1814, em francés ‘no ano seguinte em italiano em 1817. 0 debate roméntico na Ita inici- ara-se jno ano anterior por meio da publicagdo na «Biblioteca Italia- na» do artigo de Mme de Staél Sulla maniera e P'utlité delle traduzioni [Sobre a maneira e @ utilidade das traducées}, que suscitou respostas muito duras por parte dos literatos de orientagdo classicista. Em defesa de Mme de Siaél, ¢ em polémica com estes diltimos, entraram em campo Lodovico di Breme (1780-1820), com o opiisculo Intorno alla ingiustizia di alcuni giudizi letterart italiani (Acerca da injustica de alguns juizos literdrios italianos] e Pietro Borsieri (1788-1852) com o escrito Avventure letterarie di un giorno [Aventuras literdrias ce um dia), enquanto Giovani Berchet (1783-1851) na sua Lettera semiseria di Grisostomo [Carta semi-séria de Criséstomo] propunha como exemplos da nova poesia as tradugSes de duas baladas de G. A. Biirger, um poeta alemio da segunda metade do século XVIM, que com o seu teor macabro horrifico contribuiram para que o romantismo fosse identificado, em Ikdlia, por parte dos adversérios, com a escolha de assuntos extrevagan- tes e assustadores. Os autores citados, juntamente com Silvio Pellicoe Federico Confalonieri deram vida em 1818 a um periédico, 0 Conciliatore, que na secgdo literéria se fez porta-voz da nova tendéncia, 26 mas que teve vida breve porque foi suspenso pela censura austrfaca. Neste foram publicadas as Idee elementari sulla poesia romantica [Ideias elementares sobre a poesia romantica] de Ermes Visconti (1784-1841) que constituiram a exposig&o mais organica e clara, se bem que nao a mais profunda, das convicgdes estéticas do grupo romAntico italiano. Nes primeira fase, no interveio directamente na polémica Alessandro Manzoni (1785-1873), que, no entanto, se manteve sempre muito proxi- mo do grupo do Conciliatore que nas suas tragédias se opord ao siste- ma dramitico classicista, defendendo a recusa das unidades tradicionais de tempo ¢ de espaco. E precisamente para defender a sua propria con- cepgao de teatro, e, portanto, da nova poética romfintica, que Manzoni escreveré em 1820 a Lettre a Monsieur Chauvet, [Carta ao senkor Chauvet] publicada em 1823, e Sul Romanticismo, Letiera al Marchese Cesare D'Azeglio [Sobre 0 Romantismo. Carta ao Marqués Cesare D'Azeglio), composta no mesmo ano mas publicada s6 muito mais tarde, Em Franga, comparativamente a Itdlia, ser preciso esperar ainda algum tempo para que o debate sobre o romantismo se inicie. A primei ra parte de Racine e Shakespeare de Stendhal (1783-1842), o texto que introduz a polémica, é de 1823, e faz grande eco do debate italiano, que Stendhal tinha seguido ao longo da sua estadia em Milo; a segunda parte, que contém a réplica de alguns ataques da parte dos classicistas, & publicada dois anos mais tarde. O prefacio a0 Cromwell de Victor Hugo (1802-1885), o texto mais significativo de um ponto de vista teérico em: fimbito francés, é de 1827. O préprio facto de em Itélia e em Franga quase todos os protagonistas da discussdo setem artistas eeriticos, endo tanto filésofos, pode servir j como adverténcia quanto aos limites den- tro dos quais se pode falar de uma estérica romantica nestes dois pafses. Com efeito, as ideias romanticas tornam-se aqui imediatamente os ins- trumentos de uma acesa polémica sobre que literatura fazer, que ve os romfnticos oporem-se aos apoiantes da literatura classicista, e que se centra quase inteiramente na arte literdria, Ermes Visconti admite tranqui- Jamente que as ideias romanticas nfio tenham interesse para as artes figu- rativas ¢, aliés, os seus escritos sobre 0 belo € 0 estilo ~ 05 mais pro- priamente filoséficos, portanto — revelam muito poucos tragos que possamos chamar autenticamente romanticos; os artigos de Stendhal sio um manifesto polémico para uma literatura actual, na qual 0 roméntico 7 €simplesmente aquele que pertence ao seu tempo, 0 cléssico aquele que pertence ao passado. O romantismo italiano, em particular, caracteriza- -se pela substancial moderacdo € 0 relativo eclectismo das posigdes te6- ricas. Com efeito, nfo obstante a vivacidade da polémica que opds os romanticos aos classicistas, os prinetpios tesricos do romantismo italia~ no no operavam uma ruptura radical com a tradigdo anterior, e af se ‘buscou argumento para negar a existéncia de um verdadeiro movimento roméintico em Itélia, A fim de prevenir possiveis equivocos, convém pois assinalar que a relagdo entre «tominticos» ¢ «cléssicosy assume, ‘em relagio a Franga e & Itélia, um sentido bem diferente daquele que aduite quando o empregamos a propésito da Alemanha. Nos estudos de germanistica, quando se fala de «Klassik» a propdsito do periodo de que nos ocupamos, entende-se a producdo literdria de Goethe ¢ Schiller a partir pelo menos do encontro de ambos, ocorrido em Weimar em 1788; mas a «Klassiky no é 0 nosso «classicismo», ¢ a relagio dos primeiros romanticos com a «Klassik» nfo tem nada da oposigao clara entre «cléssicos» ¢ «romanticos» que iré deflagrar na Europa vinte anos mais tarde, Mesmo sem abragar as teses que nao véem distingdes, na Alemanha, entre classicismo ¢ romantismo, ou que colocam o segundo como desenvolvimento natural e quase afirmagiio do primeiro, ndo se pode deixar de considerar 0 continuo intercdmbio e estimulo existente entre os dois, para lé das relagdes pessoais nem sempre ficeis entre os romanticos e Goethe e sobretudo Schiller. Muitas vezes, os romanticos, especialmente os Schlegel, mas também, por exemplo, Adam Miller, consideram as obras de Goethe como modelos e inspiram-se nelas para construfrem as suas teorias. Acrescente-se ainda que na época Goethe & Schiller foram frequentemente considerados, no estrangeiro, como «ro- ‘ménticos», como aconteceu na Itélia € tia Franga ~ de tal modo, que & importante reafirmar que nenhum deles pertenceu de forma alguma ao movimento romantico alemao, quer dizer, nao partilharam, pelo contré- rio, ctiticaram, as suas posigdes teéricas. Para se ter um quadro mais completo da difusio do romantismo em Itélia e em Franga, seré preciso ter em conta o facto de que aevo'ngiio da polémica, bem como a consciente adopeao da denominagao de «roman- ticos» por parte de alguns artistas, foi precedida em ambos os paises de ‘uma nova sensibilidade, que comegou a encontrar formulagdes te6ricas 28 muito antes que se comegasse a assistir & formagdo de um alinhamento romantico. Em Franga, de acordo com este ponto de vista, 6 extrema- mente significativa a figura de Frangois-René de Chateaubriand (1768- -1848). A sua obra Le génie du Clristianisme {O génio do Cristianis- mo], publicada pela primeira ver.em 1802¢ posteriormente varias vezes revista ¢ reeditada, esté completamente embrenhada de uma forte cons- ciéncia das diversidades que opdem a arte antiga, cléssica e paga, Aque- Ja que vai da Idade Média a0 século XVI, anticléssica e cristd. A reivin- Gicagdo da fecundidade postica da religido crista, da superioridade dos artistas modernos relativamente aos antigos, leva Chateaubriand, por vias substancialmente auténomas, a desenvolver uma concepefo que tem muitos pontos de contacto com as tendéncias que, mais ou menos naqueles anos, ganhavam corpo para li do Reno. Em Tilia, pode-se pensar antes de mais numa personalidade como Ugo Foscolo (1778-1827), que, embora subsiancialmente ligado aos princfpios literdrios neoclssi¢os (n0s tiltimos anos de vida entraré explicitamente em polémica com as poéticas roménticas), daré expresso na sua obra, e em particular nas Ultime lettere di Jacopo Ortis (Uitimas cartas de Jacopo Ortis] (1802), ‘4 um modo jé romantico de olhar a arte ¢ a natureza. Ainda diferente, em Itilia, é 0 caso de Giacorno Leopardi (1798-1837), que alinha ofi- cialmente com posigdes classicistas (Discorso di un italiano intorno alla poesia romantica (Discurso de um italiano acerca da poesia ro- ‘mdntical, escrito em 1818), mas que nas reflexdes anotadas em Zibaldone (1817-1832), acaba por se envolver cada vez mais numa direecHo que 0 leva, de forma completamente autSnoma, a posigSes de certo modo afins das do grande romantismo europeu. Estes escritos leopardianos, toda- ia, 66 chegaram a ser publicados muitas décadlas ap6s a morte do seu autor, permanecendo por isso estranhos ao debate literario do tempo. Ainda diferente foi o caminho percorrido pelas ideias roménticas na Inglaterra, Aqui faltou totalmente um confronto polémico entre cléssi- cos e romiéinticos como se viu nos paises neolatinos ¢, consequentemen- te, a introdugio do termo pata indicar uma tendéncia literéria foi mais, Jenta e menos penetrante que noutras latitudes. Todavia, pelo menos partir de meados do século passado, comecow-se a indicar como «ro mntico» 0 grupo dos poetas chamados «laguistasy. Isto é relevamte no nosso contexto porque as duas figuras mais emtinentes entre eles, William 29 Wordsworth (1770-1850) e Samuel T. Coleridge (1772-1834) néo pro- duziram apenas uma radical renovacdo na linguagem poética inglesa, ‘mas acompanharam a sua obra de uma reflexao te6rica constante e deci- siva. O Prefécio de Wordsworth as Baladas Liricas compostas por ele © por Coleridge é de 1800: um outro texto teérico, também na forma de Prefacio acompanhado de um Ensaio suplementar, foi posteriormente escrito por Wordsworth em 1815 por ocasiao da publicagao de uma se- gunda recolha de poesias suas, Coleridge, por seu lado, para além dos ciclos de conferéneias sobre Shakespeare e outros poetas, publicados na sua maior parte postumamente, escreveu ensaios Sobre os Principios da Critica Genial (1814), Sobre a Poesia ou a Arte (1818) e sobretudo a Biografia Literdria (1817), um amplo tratado que, além da forma com- pésita e divagante que permeia amplas discussdes teoricas com narra- ‘ees autobiogréficas ¢ digressGes, representa talvez a nica tentativa de fundagSo teérica dos problemas da estética, comparivel, em extensto e empenho filos6fico, aos seus homélogos alemaes. Com efeito, Coleridge manteve relagdes estreitas e continuadas com quanto se vinha produzin- do na Alemanha no campo filoséfico em geral ¢ estético em particular. Em 1798 ¢ em 1799, juntamente com Wordsworth, viajou até a Alema- nha; ¢ embora sem entrar em contacto com nenhum representante do romantismo alemio, salvo com o poeta Tieck, Coleridge teve oportuni- dade de se familiarizar com a lingua e a cultura do pais, que continuou a estudar. Leu Kant e Schiller, ¢ ele proprio admite na Biografia Literdria 4 sua divida filos6fica retativamente a Schelling; muito aprendeu tam- bém através da leitura das Ligdes de A.W. Schlegel. A questio da influén. cia do pensamento alemao na estética de Coleridge tem suscitado um debate som fim, no qual as posigdes tém oscilado entre duas teses extre- mas, isto é, aquela que vé Coleridge como totalmente tributitio, até 20s limites do plagio, das suas fontes continentais, ¢ outra diametralmente ‘posta que minimiza a capacidade das influéncias alemiis. Nio pode- ‘mos esquecer, no entanto, que, seja qual for o valor que se atribua a influéncia exercida pela filosofia alema sobre Coleridge, ¢ indubitavel 0 facto que este mantém uma relacdo profunda com as teorizagées'desen- volvidas na Alemanha, ¢ esta circunstincia é suficiente para distinguir aquilo que acontece em Inglaterra daquilo que acontece nos outros pai- ses europeus, em relagdo & difusio da estética do romantismo aleméo, 30 se bem que isso j nao seja vélido para os expoentes da «segunda gera- 0» dos poetas romanticos ingleses. Com efeito, nem Percy B. Shelley (1792-1822),nem John Keats (1795-1821), muito menos George Byron (1788-1824), que, arauto da poesia romantica inglesa na Europa, nfo foi ‘um romiintico no que toca a posigdes te6ricas, mantiveram relagées com ‘0 romantismo alemiio. Mas, por mais peculiar que seja 0 seu substrato teérico, no qual se distingue uma heranca platénica ou neoplaténica, todavia, a Defesa da Poesia (1821) de Shelley ou as numerosas declara- {ges de postica contidas nas Lertere [Cartas] de Keats cabemn de pleno titulo no canone da estética roméntica, ‘Uma outra particularidade da estética do romantismo inglés tem sido frequentemente indicada através da ligago mais estreita que ela mani festaria relativamente aos anteriores desenvolvimentos da reflexdo esté- tica no decurso do século xvinl. Com efeito, ao longo de todo 0 século difundem-se em Inglaterra, tanto no plano do gosto como no plano té6- rico, temas ¢ atitudes com uma profunda acgo futura sobre o romanti mo ou que, no mfnimo, constituem a preparaco ¢ a introdugao de de~ senvolvimentos posteriores. Pense-se, por exemplo, na insisténcia sobre © génio como forga capaz de criagéo original, desvinculada de regras codificadas ¢ até mesmo em confronto com estas, e no consequente cul- to de Shakespeare, mas também na paix4o pelo desordenado, o movi- mento, o «natural» em oposicao ao artificial, que se manifesta na moda do jardim inglés. Igualmente importantes, se no mais caracteristicos, sio o interesse pelas literaturas primitivas, ou tidas como tal, e as pri- meiras recolhas de cantos populares e reliquias da antiga poesia local, a redescoberta da arquitectura gética, a moda do romance negro e todas aquelas novas orientagdes do gosto que no plano tedrico encontram ex pressdo no conceito de sublime, que a partir de meados do século se coloca ao lado do de belo e que viré a justificar a atraccdo exercida pelo terrivel, pelo grandioso, pelo violento, pelo tenebroso — em suma, pela orca que subverte a forma, Todos estes fenémenos podem ser interpre- tados como manifestagdes de uma transferéncia de realce, no émbito da tworia estética, da razdo para a imaginagdo, e da imitagao para a expres- ‘do, na qual no ser4 artiseado descortinar os prédromos, na Inglaterra, {ino inicio do sécuto xVull, e que prossegue 20 longo do mesmo século, culminando precisamente na estética romantica. 31 ‘Muitos dos novos temas colocacios na ordem do dia pela reflexdo estética em Inglaterra esto igualmente presentes na Alemanha, ainda ‘que sobre a validade da influéncia directa dos autores ingleses a critica se tenha exprimido muitas vezes de forma discordante, O certo € que 1nos pensadores e artistas alemies eles encontram um terreno favorévele rapidamente comecam a encontrar desenvolvimentos auténomos. Assim acontece para os conceitos de génio e de sublime, que, introduzidos no debate estético a partir de meados do século, virdo a desempenhar um papel decisivo na teotia estética kantiana; mas também o interesse pela poesia primitiva e a paixao por Shakespeare difundem-se rapida- mente. Uma recotha de ensaios de 1773 (Sobre Método e a Arte Ale- ‘iies) compreende dois escritos de Johann G. Herder (1744-1803) so- bre Ossian e os cantos dos povos antigos e sobre Shakespeare, além de uma apaixonada reivindicacdo da arquitectura gética por obra do jovem Goothe, que s6 mais tarde se fixaré em posigdes classicistas. Em geral, 0 papel desenvolvido por Herder sera de enorme importéncia para 0 10- mantismo nascente, ainda que a sua personalidade complexa ndo possa caber na designagdo de um r6tulo iinico (a sua obra, por exemplo, & igualmente decisiva para a Klassik de Weimar). O interesse pela poesia primitiva, considerada como expresso espontinea e proxima da natu- reza, a introdugao do método genético no estudo literério e antropol6gi £0, ou seja, a conviegao de que a natureza de certos fendmenos s6 pode ser compreendida mediante o conhecimento das suas otigens histéricas, a redescoberta da Idade Média e a necessidade de avaliar cada época historica com base em princfpios proprios e nio ajustada a normas abs tractas, a concepgao da linguagem como produto humano em proceso de evolugao a partir de uma condicao poética original, o estudo dirigido para.a mitologia uma perspectiva pedagdgica (o mito como instrumen- to de educagio), so todos temas herderianos que estario igualmente no centro da reflexio romdintica, e no apenas do primeira romntismo, mas também no mais tardio. Alm disso, para a preparago do clima spiritual em que ganhou forma o romantismo, muito contribuiu na Ale- manha, no plano do gosto ¢ das formas literdrias, para além do’ sempre citado Sturm und Drang, 0 chamado movimento da Empfindsamkeit («Sensibilidade» ou «Sentimentalidade»), ligado, desde meados do sé- culo, as obras de C. Gellert e aos primeiros dramas de G. E. Lessing, que 32 no constitui apenas um confronto com a paralela literatura «sentimen- tal» inglesa, mas também um intermediario em relaciio a religiosidade lem, em especial a de tipo pietista, Para interpretar correctamente estas répidas indicagdes acerca das «

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