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DIREITO CONSTITUCIONAL PREMISSAS METODOLOGICAS PARAA CONSTITUCIONALIZACAO DO DIREITO CIVIL' Gustavo Tepedino? J4 € 0 terceiro aniversario da Constituigdo da Republica e os civilistas permanecem com o dever inadidvel de compatibilizar o Cédigo Civil e a legisla- ¢ao especial ao texto constitucional. Embora proclame-se de maneira quase unanime a supremacia constitucional na atividade hermenéutica, o certo é que o direito civil brasileiro nao soube ainda incorporar o texto maior & sua praxis. Basta conferir os timidos resultados alcangados pela jurisprudéncia apds 5 de outubro de 1988 — ao menos no que concerne as decisdes que pudessem ser conside- radas diretamente informadas pela Carta constitucional — ou o estado contem- plativo de parte de nossos civilistas, cujas contribuigdes vém sendo editadas e teeditadas, apdés a Constituigao, sem revisdo profunda, limitando-se as indica- goes de dispositivos constitucionais pertinentes, uma ou outra maquiagem, al- guns retoques aqui ou acold. Parece, ao revés, imprescindivel e urgente uma releitura do Cédigo Civil e das leis especiais & luz da Constituigado. E as presentes reflexGes, sob titulo deselegante ¢ deliberadamente dibio, a provocar compreensivel suspeita quan- to. ao desapreco de seu autor pelas raizes histéricas do direito civil, querem sus- citar, ao contrario, resposta a duas indagagoes, com as quais pretendo me desin- 1 _Versao especialmente revista e atualizada para publicagdio na Revista de Direito do Estado — RDE. Aula inaugural do ano académico de 1992, proferida no saléo nobre da Faculdade de Direito do Estado do Rio de Janeiro, em 12 de margo de 1992, 4 qual foram acrescidas as referencias. bibliogrdticas essenciais. A republicagao do presente trabalho decorre da atualidade do debate sobre a eficdécia das normas constitucionais nas relagoes privadas, intensificada em face da agenda do direlto constitucional brasileiro @ da entrada em vigor do Cédigo Civil de 2002. 2_ Professor Titular de Direlto Civil da Faculdade de Ditelto da Universidade do Estado do Rio de Janelio — UERJ. Doutor pela Universidade de Camerino, Itélia. RADE | Revista de Direito do Estado Ano 1 n®2:37-53abrijun 2006 37 cumbir da honrosa tarefa que me foi confiada pela Congregagao de nossa que- ‘ida Faculdade de Direito. A primeira delas: qual o papel do Cddigo Civil nos dias aluais? A segunda: como compatibiliza-lo, do ponto de vista hermenéutico, com as leis especiais e com a Constituigaéo da Reptiblica? As respostas de certa maneira poderao servir para que melhor se com- preenda o exato significado dos adjetivos que vém acompanhando, cada vez com maior freqtiéncia, o direito privado, tido, por inimeras vozes, como sociali- Zado, publicizado, constitucionalizado, despatrimonializado. Tais designagoes estariam a significar, afinal, uma absorgao do direito privado pelo direito puiblico ou, muito ao contrario, indicariam tao-somente uma reformulagao conceitual dos institutos juridicos — do direito privado e do direito pUblico —, a exigir do intér- Prete redobrado esforgo elaborativo para compreender o fenémeno? O Codigo Civil de 1916, bem se sabe, é fruto da doutrina individualista e voluntarista que, consagrada pelo Cédigo de Napoledo e incorporada pelas co- dificagdes posteriores, inspiraram o legislador brasileiro quando, na virada do século, redigiu 0 nosso primeiro Codigo Civil. Aquela altura, o valor fundamental era o individuo. O direito privado tratava de regular, do ponto de vista formal, a atuagao dos sujeitos de direito, notadamente o contratante e 0 proprietario, os quais, por sua vez, a nada aspiravam seno ao aniquilamento de todos os privi- légios feudais: poder contratar, fazer circular as riquezas, adquirir bens como ex- Pansao da propria inteligéncia e personalidade, sem restrigdes ou entraves |e- gais. Eis af a filosofia do século XIX que marcou a elaboragdo do tecido normativo consubstanciado no Cédigo Civil de 1916. Afirmava-se, significativamente — e afirma-se ainda hoje nos cursos juri- dicos —, que o Cédigo Civil brasileiro, como os outros cédigos de sua época, era a Constituigao do direito privado®. De fato, cuidava-se da garantia legal mais ele- vada quanto a disciplina das relagdes patrimoniais, resguardando-as contra a ingeréncia do Poder PUblico ou de particulares que dificultassem a circulagado de riquezas. O direito puiblico, por sua vez, nao interferiria na esfera privada, assu- mindo 0 Cédigo Civil, portanto, o papel de estatuto unico e monopolizador das relagdes privadas. O Cédigo almejava a completude, que justamente o deveria distinguir, no sentido de ser destinado a regular, através de situagdes-tipo, todas OS possiveis centros de interesse juridico de que o sujeito privado viesse 2 ser titular. 3. Michele Glorgianni, Il diritto privato ed | sul atuali confini, Rivista trimestrale di ciritto e procedura civile, 1961, p. 399 e ss., recentemente traduzida no Brasil por Maria Cristina De Cicco (0 direito Privado e as suas atueis fronteitas, Revista dos Tribunals 747.35, 1998), em sua bellssima aula inaugural de 1961 da Faculdade de Direito da Universidade de N4poles, abserva que “este significado ‘constitucional’ dos cédigos civis do inicio do século citocentista nao decorre das Normas individualmente invocadas, mas Ihes é imanente, quando se tem presente que a proprie dade privada e © contrato, que constitufam as calunas do sistema, vinham, por assim dizer, @ ‘constitucionalizar’ uma certa concepgao de vida econémica, ligada, como é notério, a idéia liberal” 38 Essa espécie de papel constitucional do Cédigo Civile a crenga do indi- vidualismo como verdadeira religido marcam as cadificagdes do século XIX @, portanto, 0 nosso Cddigo Civil de 1916, fruto de uma época que Stefan Zweig, em sintese feliz, designaria como “o mundo da seguranga”. Seguranga — é de se sublinhar — nao no sentido dos resultados que aatividade privada alcangaria, sendo quanto a disciplina balizadora dos negécios, quanto as regras do jogo. Ao direito civil cumpriria garantir a atividade privada, e em particular ao sujeito de direito, a estabilidade proporcionada por regras quase imutaveis nas suas rela- gOes econdmicas. Os chamados riscos do negécio, advindos do sucesso ou do insucesso das transag6es, expressariam a maior ou menor inteligéncia, a maior ou menor capacidade de cada individuo4, i Esta era de estabilidade e seguranga, retratada pelo Cédigo Civil brasi- leiro de 1916, entra em declinio na Europa jé na segunda metade do século XIX, com reflexos na politica legislativa brasileira a partir dos anos 20. Os movimentos sociais € o processo de industrializagado crescentes do século XIX, aliados as vicissitudes do fornecimento de mercadorias ea agitagado popular, intensificadas pela eclosao da Primeira Grande Guerra, atingiriarn profundamente o direito civil europeu, e também, na sua esteira, o ordenamento brasileiro, quando se tornou inevitavel a necessidade de intervengdo estatal cada vez mais acentuada na economia. O Estado legislador movimenta-se ent&o mediante leis extracodificadas, atendendo as demandas contingentes e conjunturais, no intuito de reequilibrar o quadro social delineado pela consolidagao de novas castas econémicas, que se formavam na ordem liberal e que reproduziam, em certa medida, as situagdes de iniqhidade que, justamente, o idedrio da Revolugao Francesa visava debelar®. Pode-se dizer, portanto, que logo apés a promulga¢gao do Cédigo Civil de 1916 0 legislador teve que fazer uso de leis excepcionais, assim chamadas por dissentirem dos principios dominantes do corpo codificado, O Codigo Civil man- linha a fisionomia de ordenador unico das relagées privadas, e as leis extrava- gantes, se contrariavam os principios do Cédigo Civil, o faziam de maneira ex- cepcional, de modo que nao desmentiam o sentido de completude e de exclusi- vidade pretendido pelo Cédigo. 4. Sobre a influ€ncia deste periodo historico e dos valores do liberelismo nas relagOes contratuais, v.N. Iti, L'eta della decodificazione, 1976, p. 9 € ss., 0 qual se vale da expressao, citada no texto. O ambiente cultural, politico ¢ filosdfico que antecedeu 0 Cédigo Napoledo, fundamental para a compieensao histérica da codificagao moderna, é analisado por G. Tarello, Le ideologie della cosiiicazione nel secolo XIX, s.d...Cf., sobre 0 tema, objeto de conceituadisssima doutrina, dentre outtes, G. Ripert, Le régime démocratique et le droit civil moderne, 1948; P. Rescigno, L’autonomia dei privati, Justitia, 1967, p. 3 e ss,. No cireito patrio, v., por todos, Criando Gomes, Ralzes histéricas. © sociolégicas do Cédigo Civil brasieito, Direito privado (Novos aspecios), 1961, p. 77 e ss.. 5 O momento histérico, que assinalaria, na Europa, a faléncia do individualismo jurfdico, substi- \uldo, através de portentosa legislagao extracocificada, por uma generalizada socializago do direito, é retratado pelo saudoso prof. Michele Giorgianni, II diritto privato ed i suol atuall confini, Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 1961, p. 399 € ss. ADE | Revista de Direito do Estado Ano 1 n22:37-53 abrjun 2006 39 Assim concebidas, tais leis extracodificadas corroboravam o papel cons- titucional do Cédigo no que concerne as relagdes privadas, como lecionava a dogmética tradicional, permitindo que situagées nao previstas pudessem ser re- guladas excepcionalmente pelo Estado. Dai por que ter-se também designado como “de emergéncia” esse conjunto de leis, locugéo que, de modo eloqtente, a um sé tempo exprimia a circunstancia historica justificadora da interven¢ao le- gislativa e preservava a integridade do sistema em torno do Cédigo Civil: 2 legis- lagéo de emergéncia pretendia-se episédica, casuistica, fugaz, néo sendo ca- paz de abalar os alicerces da dogmatica do direito civil. Delineia-se assim 0 ce- nario dessa primeira fase intervencionista do Estado, que tem inicio logo apés a promulgagao do Cédigo Civil de 1916, sem que fosse alterada substancialmente a@ sua centralidade e exclusividade na disciplina das relacdes de direito privado® Tal situagao, no entanto, foi pouco a pouco sendo alterada, pela insofis- mavel necessidade do Estado em contemporizar os conflitos sociais emergen- tes, bem como em razao das intimeras siluag6es jurfdicas suscitadas pela reali- dade econémica e simplesmente nao alvitradas pelo Cédigo Cir Assim é que se contabiliza, a partir dos anos 30, no Brasil, robusto con- tingente de leis extravagantes que, por sua abrangéncia, j4 nado se compadece- riam com 0 pretendido cardter excepcional, na imagem anterior que retratava uma espécie de lapso esporadico na completude monolitica do Codigo Civil. Cuida-se de uma sucessAo de leis que disciplinam, sem qualquer carater emer- gencial ou conjuntural, matérias ndo previstas pelo codificador’. Pode-se registrar assim uma segunda fase no percurso interpretativo do Cédigo Civil, em que se revela a perda do seu carater de exclusividade na regu- lacg&o das relagées patrimoniais privadas. A disciplina codificada deixa de repre- sentar 0 direito exclusivo, tornando-se o direito comum, aplicavel aos negécios juridicos em geral. Ao seu lado situava-se a legislagdo extravagante que, por ser destinada a regular novos institutos, surgidos com a evolu¢ao econémica, apre- sentava caracieristica de especializagdo, formando, por isso mesmo, um direito especial, paralelo ao direito comum estabelecido pelo Cédigo Civil. Através de tais normas, conhecidas como leis especiais — justamente por sua técnica, ob- jeto e finalidade de especializagao, em relagdo ao corpo codificado —, 0 legisla- dor brasileiro levou a cabo longa intervengao assistencialista, expressdo da poli- tica legislativa do Welfare State que se corporifica a partir dos anos 30, tem as- 8 Tal situagao se intensifica com o impacto causado, na economia mundial, pelas duas grandes guertas. Sobre a legislagdo de guerra e sous efeitos econémices ¢ juridicos, v. Filippo Vassalli, Della legislazione di guerra e dei nuovi confini del diritto privato (1918), Stud/ giuridici, v. I, Rorna, 1999, p. 43 @ ss.; Francesco Ferrara, Influenza giuridica della guerra nei rapporti civill (1915). Scritti giuriaici, v. |, 1954, p. 33 e ss. e, especificamente, Diritto di guerra e diritto di pace, p. 63 @ §s., para uma interessante classificagdo da normativa promulgada durante o perfodo bélico, em tormos de técnica legislativa; Emilio Betti, Problemi dello sviluppo del capitalismo e della tecnica di guerra, Studi in onore di A. Cicu, v. li, 1951, p. 589 € ss.. 7 Cf. Amoldo Medeiros da Fonseca, Caso fortuito e teoria da imprevisdo, 1943, p. 193 e ss., para uma minuciosa resenha da intervencdo legislativa. 40 nto constitucional em 1934 e cuja expressdo, na teoria das obrigagées, se constituiu no fendmeno do dirigismo contratual. Tal modificagao no papel do Cédigo Civil representa uma profunda alte- ragao na prépria dogmatica. Identificam-se sinais de esgotamento das catego- rias do direito privado, constatando-se uma ruptura que bem poderia ser defi da, conforme a preciosa analise de Ascarelli, como uma crise entre o instrumen- tal tedrico e as formas juridicas do individualismo pré-industrial, de um lado; e, de outro, a realidade econdémica industrial ou pés-industrial, que repelem o indivi- dualismo. Os novos fatos sociais dao ensejo a solugées objetivistas e nao mais subjetivistas, a exigirem do legislador, do intérprete e da doutrina uma preocupa- Gdo com o contetido e com as finalidades das atividades desenvolvidas pelo su- jeito de direito®. Esse estado de coisas enseja uma abrangéncia cada vez menor do Cé- digo Civil, contrapondo-o a vocagao expansionista da legislagao especial. A par- tir do longo processo de industrializagao que tem curso na primeira metade do século XX, das doutrinas reivindicacionistas e dos movimentos sociais instigados pelas dificuldades econémicas, que realimentavam a interven¢ao do legislador, verifica-se a introdugao, nas Cartas politicas e nas grandes Constituig6es do pds-guerra, de principios e normas que estabelecem deveres sociais no desen- volvimento da alividade econémica privada. Assumem as Constituigées compro- missos a serem levados a cabo pelo legislador ordinério, demarcando os limites da autonomia privada, da propriedade e do controle dos bens. A Constituigaéo brasileira de 1946 é um bom exemplo desta tendéncia, expressa nitidamente na Constituigdo italiana de 1948. © Cédigo Civil perde, assim, definitivamente, o seu papel de Constituigao do direito privado. Os textos constitucionais, paulatinamente, definem principios relacionados a temas antes reservados exclusivamente ao Cédigo Civil e ao im- pério da vontade: a fungdo social da propriedade, os limites da alividade econ6- mica, a organizagao da familia, matérias tipicas do direito privado, passam a in- tegrar uma nova ordem ptiblica constitucional. Par outro lado, o préprio direito civil, através da legislagdo extracodificada, desloca sua preocupagao central, que ja n&o se volta tanto para o individuo, senao para as ati senvolvidas e os riscos delas decorrentes. & Tullo Ascarelli, Norma giuridica e realt& sociale, I! Diritto delfeconomia, 1955, p. 1.179 e ss. Ascarelli, a rigor, rejeita a idéia de crise do direito, afirmando (p. 1.220) que “ai crisi (..) si pud parlare in riferimento el contrasto tra categorie giuridiche anteriori alla produzione industriale di massa e lo sviluppo invece di questa’. Sobre o tema v., também, Michelle Giorgianni, II ciritto privato ed | suoi atuali confini, Rivista trimesirale di dirltio e procedura civile, 1961, passim, mas espec. p. 391 e ss., para o qual as “transformacdes" do direito privado *impoem uma urgente obra de controle de validade dos conceitos tracicionais em face da transtormade realidade econémica”; © Roserio Nico’, Diritto civile, Enciclopedia def diritto, XII, 1964, p. 907 e ss., que se refere a uma profunda ¢ inelutdvel “fratura entre a sitvacao social e as formas juridicas do privado’. RDE | Rovistade Diteitodo Estado Ano1 n?2:37-53 abr/un 2008 A O percurso evolutivo dos institutos do direito privado é a demonstragao eloquente desse processo. A exagerada ateng&o do vetusto Cédigo Comercial para com o comerciante da lugar & énfase central em relagdo ao atos de comér- cio e a empresa. A t6nica excessiva do Cédigo Civil em torno do sujeito de direito cede a atengao do legislador especial para com as atividades, seus riscos e im- pacto social, e para a forma de utilizagdo dos bens dispontveis, de maneira a assegurar resultados sociais pretendidos pelo Estado. A legisiagao especial é o instrumento dessa profunda alteragao, avaliza- da pela Constituigdo da Republica. O Cédigo Civil preocupava-se em garantir as regras do jogo (a estabilidade das normas); ja as leis especiais as alteram sem- ceriménia, para garantir objetivos sociais e econémicos definidos pelo Estado. O Poder Publico persegue certas metas, desenvolve nesta direg&o programas as- sistenciais, intervém conspicuamente na economia, vale-se de dirigismo contra- tual acentuado. O legislador trabalha freneticamente para atender 4 demanda setorial crescente, fala-se mesmo em uma “orgia legiferante"?. Configura-se, assim, de um lado, o direito comum, disciplinado pelo Cé- digo que regula, sob avelha otica subjetivista, as situag6es juridicas em geral: e, de outro, 0 direito especial, cada vez mais relevante e robusto, que retrata a inter- vengdo do legislador em uma nova realidade econémica e politica. A intensificagaéo desse processo intervencionista subtrai do Codigo Civil inteiros setores da atividade privada, mediante um conjunto de normas que nao se limita a regular aspectos especiais de certas matérias, disciplinando-as inte- gralmente. O mecanismo é finalmente consagrado, no caso brasileiro, pelo texto constitucional de 5 de outubro de 1988, que inaugura uma nova fase e um novo papel para o Cédigo Civil, a ser valorado e interpretado juntamente com inime- ros diplomas setoriais, cada um deles com vocagéo universalizante. Em relagaio a esta terceira fase de aplicagao do Codigo Civil, fala-se de uma “era dos estatu- tos”, para designar as novas caracteristicas da legislagao extravagante. Dito diversamente, a Constituigao de 1988 retrata uma op¢ao legislativa concordatéria, em favor de um Estado social destinado a incidir, no que concer- ne as relag6es juridicas privadas, sobre um direito civil repleto de leis especiais, chamadas de estatutos, que disciplinam exaustivamente inteiras matérias extrai- das da incidéncia do Cédigo Civil. O Estatuto da Crianga e do Adolescente, o Codigo de Defesa do Consumidor, a Lei de Locagées, na megina esteira de ou- tras leis anteriores & Constituigéo, como o Estatuto da Terra, todos esses univer- Sos legislativos apresentam-se radicalmente diversos das legislagoes excepcio- nal e especial de outrora. Tais diplomas nao se circunscrevem a tratar do direito substantivo mas, no que tange ao setor tematico de incidéncia, introduzem dispositivos proces- 9 Mauro Cappelletti, Riflessioni sulla creativita della giurisprudenza nel tempo presente, Rivista trimestrale di diritta @ procedura civile, 1982, p. 774. 42 suais, ndo raro inslituem tipos penais, veiculam normas de direito administrativo e estabelecem, inclusive, principios interpretativos. Fixam, assim, verdadeiro ar- cabougo normativo para inteiros setores retirados do Cédigo Civil. Nao se tem aqui, do ponto de vista técnico, uma relagdo de género e espécie, ou de direito comum e especial, sendo a subtracao verdadeira e propria de institutos — ou porque ndo alvitrados pelo Cédigo Civil ou porque revogados por leis especiais, © que sucedeu em relagdo a um ntimero cada vez maior de matérias. Quais as caracteristicas desses estatutos sinteticamente apresentados? Em primeiro lugar, nota-se uma alterag4o profunda na técnica legislativa. Cuida- se de leis que definem objetivos concretos; uma legislag&o de objetivos, que vai muito além da simples garantia de regras estaveis para os negocios. O legislador fixa as diretrizes da politica nacional do consumo; estabelece as metas a serem atingidas no tocante a locagao de iméveis urbanos; define programas e politicas plblicas para a protegao integral da crianga e do adolescente. O legislador vale- se de clausulas gerais, abdicando da técnica regulamentar que, na égide da co- dificagdo, define os tipos juridicos e os efeitos deles decorrentes. Cabe ao intér- prete depreender das clausulas gerais os comandos incidentes sobre indmeras situag6es futuras, algumas delas sequer alvitradas pelo legislador, mas que se sujeitam ao tratamento legislativo pretendido por se inserirem em certas situa- ¢6es-padrdo: a tipificagdo taxativa da lugar a clausulas gerais, abrangentes e abertas. Em segundo lugar, verifica-se uma alteragdo radical na linguagem em- pregada pelo legislador. As leis passam a ter uma linguagem menos juridica e mais setorial, uma linguagem que, nado obstante os protestos dos juristas, atende a exigéncias especificas, ora atinentes a quest6es da informatica, ora relaciona- das a inovagées tecnoldgicas ou a novas operagdes contratuais, ora a assuntos financeiros ou econémicos, suscitando muitas vezes dificuldades para o intér- prete. Em terceiro lugar, quanto aos objetivos das normas, o legislador, além de coibir comportamentos indesejados — os atos ilicitos —, em atuagdo repressiva, age através de leis de incentivo, propée vantagens ao destinatario da norma ju- ridica, quer mediante financiamentos subsidiados, quer mediante a redugao de impostos, taxas ou tarifas publicas; para com isso atingir objetivos propostos por tais leis, as chamadas leis-incentivo, com finalidades especificas. Revela-se, en- tGo, o novo papel assumido pelo legislador, argutamente identificado por Nober- to Bobbio como “a fungao promocional do direito”, consubstanciada exatamente na promogao de certas atividades ou comportamentos, almejados pelo legisla- dor, através de normas que incentivam os destinatarios, mediante o oferecimento de vantagens individuais’®. 10 A superagao da viséo meramente estrutural dos direitos subjetivos (limitada a andlise dos mecanismos de poder postos a disposicao do titular e voltada, por isso mesmo, tdic-somente para a sua estrutura formal), atrevés da funcionalizagao do direito aos valores conticdos no ordenamento 6a pronesta central de diversos textos reunides de Norberto Bobbio, Dalla sirutiura alla funzione, RDE | Revista de Direitodo Estado Ano 1 n®2: 37-53. abr/jun 2006 43,

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