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Revista de Economia Politica, vol. 18, n° 2 (70), abril-junho/1998 Avaliacao de duas correntes da economia ambiental: a escola neoclassica e a economia da sobrevivéncia (CHARLES C. MUELLER* It is possible to evaluate the main schools of thought in environmental economics based on a stylized view of sustainable development. This view considers that is sus- tainable the development that assures: at least the maintenance of the level of well-being. of the current gencration of inhabitants of the first world; an increase in the well-being of the present generation inhabiting the poor countries; and, the ability of the future generations to maintain or improve their well-being. In principle, a school of thought in environmental economics should consider these three aspects; however, some em- phasize one, others stress another of these aspects. Based on a framework founded on the above concept of sustainable development, the paper presents an evaluation of two of these schools of thought: neoclassical environmental economics, emphasizing the short term and industrialized market economies; and a school which could be termed the economy of survival, emphasizing the very long term. It begins with a discussion of the recent insertion of the environmental dimension in economics, follows with a review of the concept of sustainable development, which is adapted for the evaluation. It concludes with a discussion of the main contribution of the two schools, and of the ‘main contrasts between them. 1, INTRODUCAO Até recentemente a analise econémica tendia a ignorar as inter-relagées entre a economia ¢ 0 meio ambiente, Uma caricatura da concep¢ao predominante é a do dia- grama de fluxo circular de livros-texto, que descreve o processo econémico por inter- médio de fluxos ligando empresas ¢ familias, em um ciclo fechado de circulag&o con- tinua, As empresas e as familias produzem e consomem bens ¢ servigos, ¢ estes, as~ sim como a moeda, circulam sem que se registrem trocas com o meio ambiente. A natureza nao apresenta, pois, limitag6es ao funcionamento do sistema econémico. * Professor Titular, Departamento de Economia, Universidade de Brasilia e membro do Instituto Socie- dade, Populagio e Natureza (ISPN). Trabalho desenvolvido com o apoio de bolsa do CNPq, 66 A hipétese das dadivas gratuitas da natureza e da livre disposigao de residuos e rejeitos é parte, tanto da economia neoclissica como da teoria marxista, nos seus ra- mos convencionais. Conforme mostra Georgescu-Roegen (1975: 348-9), essas corren- tes de pensamento tratavam a economia como um processo isolado ¢ auto-sustenta- do, ignorando o fato crucial de que a atividade econémica “nio pode perdurar sem trocas continuas com o meio ambiente que o afetam de forma cumulativa, ¢ nao pode deixar de ser afetado por tais alteragdes”. Apegavam-se, assim, a unta epistemologia mecanicista, “hoje defunta mesmo na fisica”. Esse estado de coisas permaneceu até fins década de 60. Desde entao, surgiram e se firmaram correntes de pensamento de economia ambiental, desenvolveram-se € se fortaleceram associagdes de economistas ambientais, as revistas de economia tra- dicionais passaram a aceitar regularmente trabalhos na area e apareceram periédi- cos especializados, Com isso, a economia ambiental foi acumulando um aprecivel volume de contribuigdes. Este trabalho apresenta uma avaliacio das duas principa correntes de pensamento da economia ambiental: a corrente neoclassica ea da “eco- nomia da sobrevivéncia”. A segdo 2 examina os fatores que levaram 8 insergaio da dimensio ambiental na andlise econémica; a segdo 3 discute o conceito de desenvol- vimento sustentvel, que na seciio 4 é incorporado ao referencial da avaliago. Tendo por ponto de partida esse referencial, a segdo 5 avalia as duas correntes. A seco 6 apresenta as conclusdes do trabalho. 2. A INSERCAO DA DIMENSAO AMBIENTAL NA ANALISE ECONOMICA Em fins da década de 60 e no inicio da de 70 comegaram a surgir analises do impacto de restriges ambientais sobre o crescimento econdmico, e deste sobre o meio ambiente; foram divulgados, também, os primeiros modelos neoclassicos de equili- brio geral, considerando explicitamente as inter-relagdes entre a economia ¢ 0 meio ambiente. Entretanto, a atengo 4 questo sé se ampliou um pouco depois, em decor- réncia, principalmente, dos seguintes eventos: (1) A acentuagio, por volta de meados da década de 60, da poluigdo no Primeiro Mundo. Tornou-se patente que, em algumas regides de forte concentracdo da indus tria e de veiculos motorizados, a poluigao e a degradacao ambiental estavam atingin- do niveis preocupantes. A medida que foi se firmando a consciéncia da seriedade desse problema, ficou claro que a economia convencional precisava ser adaptada para tra- tar do mesmo. Considera-se que 0 problema da poluico foi o principal fator no sur- gimento da “revolugdo ambiental” da teoria neoclassica! (2) A crise do petréleo da década de 70, com acentuada elevaciio nos seus precos. Essa movimentagdo de pregos — em esséncia, o resultado do funcionamento do cartel da OPEC — incutiu na opinio publica a sensagio de crescente escassez de petréleo. As crises do petrdleo contribuiram para aumentar as dividas sobre a viabilidade da conti- nuagao, por muito tempo, de crescimento intensivo em energia e recursos naturais. Uma avaliagio nessa linha é a de Croper & Oates (1992: 675). 67 (3) O relat6rio do Clube de Roma. Na década de 60, uma série de estudos extre- mamente pessimistas’ levou o Clube de Roma a encomendar de um grupo de cientistas do MIT a avaliagao das perspectivas a longo prazo da economia ¢ da sociedade mun- diais. Para tal, estes desenvolveram um modelo de computador baseado na dinamica de sistemas, que usaram para simular a evolugao futura da economia mundial. O re- sultados das simulagées foram publicados em 1972 sob o titulo The limits to growth.’ Segundo este, a continuidade do crescimento demografico e econdmico nos padrdes observados no inicio da década de 70 faria com que, em um prazo relativamente cur- to, fossem atingidos ou ultrapassados limites fisicos, impostos pela restrigdo de recursos naturais e pela capacidade do meio ambiente de assimilar a poluigdio. Em conseqiién- cia ocorreriam profunda desorganizagdo econémica e social, forte aumento de desem- prego, acentuado declinio na produgao de alimentos e nivcis intoleraveis de degrada- ao ambiental. As taxas de mortalidade aumentariam muito, fazendo a populagdo mundial declinar para um nivel compativel com uma base reduzida e altamente de- gradada de recursos naturais. [sso ocorreria de forma abrupta, por volta de meados do século XXI. O fim catastréfico sé seria evitado se houvesse rapida e drastica re- dugio na taxa de crescimento demografico e forte contengao da produgao material. Foi grande a tepercussio sobre a comunidade cientifica e a opinido publica do The limits to growth mas, regra geral, 0s economistas menosprezaram 0 trabalho. Conforme acentua Georgescu-Roegen (1975: 365), entretanto, embora a conclusao de que menos de cem anos separaram a humanidade de uma catastrofe ambiental careca de base cientifica sdlida, os economistas deveriam considerar as contribuigdes cen- trais do estudo. Essa série de eventos esquentou o debate sobre as inter-relagdes entre o sistema econdmico e o ecossistema. Levou, também, 4 formacao de estrutura institucional, tanto nas Nagdes Unidas e em outras organizagées internacionais, como em diversos pai- ses, estimulando o surgimento de organizagées nfio-governamentais preocupadas com o meio ambiente. E foi fator central no desenvolvimento da economia ambiental — o foco de nossa andlise. As proximas segdes introduzem a moldura conceitual, apoiada no conceito de desenvolvimento sustentavel, usada no exame das duas principais cor- rentes dessa area. 3. O DESENVOLVIMENTO SUSTENTAVEL COMO BASE PARA AVALIAGOES DA ECONOMIA AMBIENTAL Nossa andlise das duas escolas da economia ambiental apdia-se em moldura as- sentada no conceito de desenvolvimento sustentavel; por essa razao examinamos aqui 08 seus principais elementos; a se¢iio 4 apresenta o modelo estilizado empregado. 2 Ver, por exemplo, Ehrlich (1968) ¢ Commoner (1971). » Ver Meadows ef al. (1972). 68 3.1. A nogao de desenvolvimento sustentavel Depois de mais de uma década de discussdes sobre os problemas ambientais as- sociados ao crescimento econémico, em 1983 as Nagdes Unidas instituiram a Comis- sfio Mundial do Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMD), para realizar um exa- me em profundidade da questo e sugerir estratégias para a implementagao do desen- volvimento sustentavel* antes do inicio do préximo século, Tratava-se de procurar formas de compatibilizar o crescimento com a preservacio ambiental, corrigindo ao mesmo tempo 0s atuais padres distributivos distorcidos. Nas palavras do Our common ‘future —o relatério da Comissio:* “Desenvolvimento sustentivel 6 0 desenvolvimento que garante o atendi- mento das necessidades do presente sem comprometer a habilidade das ge- rages futuras de atender suas necessidades. Engloba dois conceitos-chave: + 0 conceito de necessidades, em particular as necessidades basicas dos pobres de todo 0 mundo, aos quais se deve dar absoluta prioridade; € + 0 conceito de limitagdes, impostas pelo estado da tecnologia e pela organizagao social, 4 capacidade do meio ambiente de assegurar sejam atendidas as necessidades presentes e futuras.” ‘A Comissio reconheceu que existem obsticulos dificeis de ser superados para a construgao do novo paradigma, mas com um grande esforgo, as limitagdes “impostas pelo atual estdgio de desenvolvimento tecnolégico e de organizagao social, pelos re~ cursos ambientais ¢ pela capacidade da biosfera de absorver os impactos da atividade humana (seriam passiveis de superagio), abrindo caminho para a nova era de cres mento econdmico”. O desenvolvimento sustentivel foi visto como “um processo de mudanga no qual a exploracdo de recursos, a orientaco do desenvolvimento tecnolé- gico ¢ das mudangas institucionais so tornadas consistentes, tanto com as necessida- des do presente como com as do futuro™, 3.2. O apelo da nogao de desenvolvimento sustentavel A forga do conceito de desenvolvimento sustentavel reside em sua simplicidade eno fato de que quase todos concordam com seus grandes objetivos. O conceito é vago, mas é essa a razo de sua grande aceitagao. Quem nao vé com simpatia a combinagio da eficiéncia, com a equidade e a sustentabilidade ecol6gica? Conforme ressalta Lélé (1991: 613): “O desenvolvimento sustentavel é “um ‘meta-arranjo’ que une a todos, do industrial preocupado com seus lucros, ao agricultor de subsisténcia mi- nimizador de riscos, ao assistente social ligado ao objetivo de maior eqiti- dade, ao primeiro-mundista preocupado com a poluigao ou com a preserva co da vida selvagem, ao formulador de politicas maximizador do cresci- mento, ao burocrata orientado por objetivos e, portanto, ao politico interes- sado em cooptar eleitores. + A nogio de desenvolvimento sustentavel foi popularizada pelo relatdrio da CMMD (1987). Entretanto, ‘comegou-se a usi-la, em varios sentidos, ja no inicio da década de 1980. Ver Lélé (1991: 610). 5 Ver CMMD (1987: 43), © CMMD (1987: 8-9). 69 Entretanto, como enfatiza 0 Our common future — e como confirmou a Confe- réncia das Nagdes Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (a Rio 92) —, 08 atuais padrdes de crescimento nao so sustentiveis, e a implementagio do novo pa- radigma requer mudancas drdsticas. Mesmo que algumas dessas mudangas originem uma legigo de ganhadores, impordo perdas a muitos. Uma maior compreensio da natureza desses sacrificios certamente trara considerdvel reduco do apoio ao para- digma do desenvolvimento sustentavel. Dai a tentagao de deixar vago 0 conceito. Poderia parecer que, para a ciéncia econémica, nao s4o controvertidos os elemen- tos centrais do conceito de desenvolvimento sustentavel. Mas as correntes de pensamento econdmico encaram de forma distinta —e as vezes irreconciliavel —a sustentabilidade. 4. O DESENVOLVIMENTO SUSTENTAVEL COMO BASE PARA AVALIACAO DA ECONOMIA AMBIENTAL De forma estilizada, desenvolvimento sustentavel pode ser visto como 0 desen- volvimento que resultaria da adogiio de estratégia factivel do conjunto D da figura |, composto da intersecao dos conjuntos de alternativas A, B eC. O conjunto A inclui as alternativas factiveis para assegurar a expansdo do bem-estar da geracdio presente que habita os paises industrializados; 0 conjunto B é composto das alternativas factiveis de elevagdo do bem-estar da geragdo atual dos que habitam os paises em desenvolvi- mento; ¢ 0 conjunto C, das alternativas factiveis para a manutengdo ou ampliagao do bem-estar das geragées futuras. Se adotada com sucesso estratégia do conjunto A fora da area de intersegdo dos trés conjuntos, a crescente prosperidade dos atuais habitan- tes do Primeiro Mundo seria obtida sem a ampliagao do bem-estar, tanto dos habitan- tes dos paises pobres no presente como das geragées futuras. Da mesma forma, se perseguidas estratégias do conjunto B fora das areas de interse¢do, aumentos de bem- estar da atual geraciio dos que habitam os paises pobres seriam conseguidos as expensas, tanto dos atuais habitantes dos paises industrializados como das gerag6es futuras. Fi- nalmente, estratégias do conjunto C fora das areas de intersegdo, significam sacri- ficios & geragdo presente em favor da ampliagdo do bem-estar de geragdes futuras. E possivel imaginar alternativas factiveis descritas pela intersegdo de apenas dois conjuntos; entretanto, o desenvolvimento s6 é sustentavel se resultar de alternativa da rea de intersegio de todos os trés (a area D da figura 1). So assim havera pelo menos a manutengao do bem-estar da atual geracdo dos paises industrializados, acompanha- da de aumentos de bem-estar dos atuais habitantes dos paises em desenvolvimento, tudo isso sem 0 sacrificio das geragdes futuras. Um ponto deve ser ressaltado. A figura I pressupée que os trés conjuntos se inter- sectem e portanto que, pelo menos por enquanto, o desenvolvimento sustentavel é possivel. Entretanto, alguns rejeitam essa suposigdo. Para o The limits to growth, por exemplo, nao existiria a area de intersegdo dos trés conjuntos; este também é o ponto de vista de Georgescu-Roegen (1993: 12). Depois, mesmo admitida a intersegio, a realidade é dinamica e as posigdes dos trés conjuntos sofrem mudangas com o tempo. A persisténcia nos erros do presente pode fazer com que os trés conjuntos se afastem uns dos outros, a ponto de inviabilizar o desenvolvimento sustentavel. Com apoio na visio estilizada acima vém se efetuando avaliagées das principais 70 correntes de pensamento da economia ambiental’. Isso € feito examinando a posigio de cada corrente em relagio aos trés conjuntos de alternativas factiveis. A proxima seco oferece um esboco de andlise das duas correntes de pensamento mais estrutu- radas e cientificamente mais rigorosas: a da economia ambiental neoclassica, associ- ada s alternativas do conjunto A; e a da economia da sobrevivéncia, que privilegia 0 muito longo prazo, e assim, alternativas do conjunto C. Para um esbogo do pensamento identificado com a questo ambiental na perspectiva dos paises em desenvolvimento —e portanto, com estratégias do conjunto B — ver Mueller (1994, seg 5.3). 5. AVALIACAO DAS DUAS PRINCIPAIS CORRENTES DA ECONOMIA AMBIENTAL 5.1, Escola que enfatiza a posigao da atual geracdo dos habitantes do Primeiro Mundo — a economia ambiental neoclassica Existindo avaliagio detalhada da economia ambiental neoclassica (ver Mueller, 1996), e sendo sua base analitica bastante conhecida, o esboco desta subsegao é con- ciso. Em esséncia, a economia ambiental neocldssica assenta-se na teoria do balango dos materiais ¢ da energia, conforme conceituada no trabalho pioneiro de Ayres ¢ Kneese (1969: 284). Segundo este: “Os insumos para o sistema (econémico) so os combustiveis, os ali- mentos ¢ as matérias-primas que, em parte, so convertidos em bens finais e, em parte, tornam-se residuos e rejeitos. Exceto no caso de aumentos nos estoques, os bens finais também acabam ingressando na corrente de rejeitos. Assim, em esséncia, os bens que so ‘consumidos’ apenas fornecem certos servigos. Sua substancia material continua existindo e, ou os mesmos sio reaproveitados, ou sio descartados no meio-ambiente. Em uma economia fechada (sem exportagGes e importagdes) na qual no haja acumulagiio liquida de estoques (construgdes ¢ equipamentos, es- toques das empresas, bens de consumo durivel, ou construgao de residén- cias), a quantidade de residuos inserida no meio ambiente natural é aproxi- madamente igual ao peso dos combustiveis primérios, dos alimentos € das matérias-primas que ingressam no sistema produtivo, adicionado ao do oxi- genio tomado da atmosfera.” Em outras palavras, a matéria e a energia usados pelo sistema econémico nao surgem do nada e nem desaparecem com 0 uso nos processos de produgdo e de con- sumo; so captadas do meio ambiente e acabam sendo restituidas a ele nas mesmas quantidades iniciais, embora qualitativamente alteradas ‘A adogao da teoria do balango dos materiais levou a economia ambiental neo- clissica a substituir a visio de fluxos circulares dos processos de produgio e consu- mo por representacao linear. Os consideraveis avangos teéricos dessa escola nao alte- 7 Ressalte-se, porém, que 0 uso feito da nogdo de desenvolvimento sustentivel nlo é sinénimo de renga na viabilidade técnica ~e especialmente politica — da implementacdo desse paradigma. No requer. ampouco, que © conceito seja, em todos os seus elementos, enfatizada pelas correntes de pensamento analisadas. n raram esse fundamento. Hoje as suas contribuigdes sio bastante extensas ¢ variadas, registrando-se um grande niimero de aplicagées das suas teorias bem como um am- plo elenco de sugestdes de politica, a maioria afinada ao paradigma liberal. principio do balango de materiais permite um tratamento simultaneo dos proble- mas ambientais decorrentes da extrago de recursos naturais do meio ambiente, bem como da deposigio neste de residuos e rejeitos. Entretanto, o mainstream da economia ambiental neoclssica optou por tratar separadamente esses aspectos, Evoluiram, assim, dois ramos virtualmente independentes: o da teoria da poluigao, ¢ o das teorias dos recursos naturais. 5.1. A teoria da poluigéo Essa teoria, que tanta énfase recebe na andlise ambiental neoclassica, emprega modelos de equilibrio geral estdticos de economia competitiva, juntamente com a teoria do bem-estar ¢ com a teoria das externalidades de Pigou (1932). As externalidades, antes tratadas como excegdes, assumem papel central. A principal mensagem dessa teoria é que, com uma correta definigao de direitos de propriedade e com instrumen- tos de internalizagao dos custos sociais da poluigao (via tributos pigouvianos ou li- cengas negociaveis para poluir), a sociedade sera levado a um nivel dtimo de polui- a0, definido com base nas preferéncias dos individuos que a compdem, na dotagao de recursos e nas alternativas tecnolégicas a sua disposigao°. A poluigao dtima emanaria, assim, de um sistema de mercados livres, devidamente corrigidos. Alternativamente, conforme demonstrou Coase, um sistema de negocia- des entre os agentes que geram e os que sao afetados pela poluicao poderia conduzir 8 poluigdo dtima.’ Ressalte-se, entretanto, que em um e no outro casos, considera-se que os individuos tém a capacidade de estabelecer, de forma inequivoca, o equilibrio entre 0 desconforto provocado pela poluicdo que emana da produgio e do consumo de bens e servigos, e a satisfagdo proporcionada pelo consumo destes. A teoria da poluigdo pode ser criticada por sua visio simplista das inter-relagdes entre o sistema econémico e o meio-ambiente. Via de regra, este é considerado neutro, passivo, podendo ser poluido em maior ou menor grau, com reagdes previsiveis, que variam monotonicamente com o nivel de poluigdo. A teoria sugere que a economia ¢ o meio ambiente operam em um continuo de posigdes de equilibrio e que, via de regra, essas posigdes sio reversiveis. Além disso, considera que a polui¢do eficiente é 6ti- ma, tanto do ponto de vista econémico como ambiental. Fatores como efeitos cumu- lativos e de patamar minimo da poluig&o, como o sinergismo entre diferentes tipos de poluentes, como as consideriveis incertezas que ainda permanecem sobre os impac- tos ambientais da poluigo, tendem a ser ignorados ou tratados de forma superficial. 5.1.2, Teorias de recursos naturais No que diz respeito a extragdo, pelo sistema econdmico, de recursos naturais do meio- ambiente, a economia ambiental neoclissica desenvolveu uma série de teorias, assentadas, * Para uma exposicdo mais detalhada da natureza desses modelos nesta linha, ver Fisher (1981) ¢ Baumol & Oates (1988). ° Ver Coase (1960). O problema com a teoria de Coase & que, para que se torne factivel a negociacao, 0 ‘mimero de agentes envolvidos deve ser reduzido. Por isso, embora registre a contribuigo desse autor, a ‘economia ambiental neocléssica tende a enfatizar solugdes via mecanismos classicos de mercado. n em grande medida, na andlise de Hotteling (1931). A maioria destas volta-se & determina- <0 das regras para 0 uso étimo dos recursos naturais, sejam eles renovveis ou no-renovaveis. Merecem destaque, também, avaliagdes sobre as limitagdes que a disponibilidade desses recursos podem exercer sobre a continuidade do crescimento econdmico. ‘As regras de uso timo (socialmente eficiente) no tempo, de recursos naturais especificos, ¢ os exames dos impactos de distorgdes e de imperfeigdes de mercado, feitos pela teoria neockissica, tendem a ser extensdes de teoremas bisicos da teoria do bem-estar, agora com o emprego de modelos de otimizagao dinamica.'° Esses mo- delos mostram essencialmente que, em economia de mercados livres, a internalizagao de externalidades e a cobranga de precos que reflitam os custos de oportunidade do emprego de todos os recursos produtivos —~ e, em especial, dos recursos naturais, renovaveis ou ndo —, conduzirao a um uso étimo dos recursos naturais. Entretanto, 05 modelos deixam expostas as dificuldades priticas de viabilizar esses requisitos. A questio da limitacdes dos recursos naturais ao crescimento, que esta no ama- g0 do conceito de sustentabilidade, ja recebeu énfase da escola neoclassica, mas hoje éconsiderada virtualmente superada. A questio foi examinada com base em modelos agregados de crescimento, apoiados na teoria do controle étimo". Para muitos dos seguidores da corrente neoclissica, andlises apoiadas em tais ‘modelos demonstraram convincentemente que nao ha a possibilidade de recursos natu- rais — nem mesmo os nao-renovaveis. Na verdade, o pensamento neockissico recen- te ver exudando otimismo a respeito da sustentabilidade do crescimento”. Esta seria garantida por dois elementos: pelo desenvolvimento tecnoldgico e pela susbtituta- bilidade entre recursos naturais e capital, complementados por politicas de reforgo ao livre funcionamento dos mercados. Esse otimismo se apdia tanto nas contribuigdes teéricas acima referidas como em estudos empiricos. Uma série de trabalhos exami- now a tendéncia de longo prazo dos pregos reais de recursos naturais € de seus custos de extragdo e de exploragio, tendo, em sua maioria, concluido que a evolugio dessa tendéncia ndo revela a existéncia de escassez". E estimativas eldsticas de substitui- do de recursos naturais por capital, juntamente com andlises do desenvolvimento de tecnologias poupadoras de recursos naturais, reforgaram ainda mais esse otimismo. Na avaliagio da maioria dos praticantes da economia ambiental neoclassica, os estudos que dio suporte a recente onda de otimismo sio considerados impecaveis. Entretanto, ha quem aponte para inconsisténcias e problemas com os mesmos"*; al- guns autores respeitados dessa escola chegaram inclusive a expressar, embora timi- damente, preocupagio com a fragilidade da base teérica ¢ empirica desse otimismo". Além disso, pode-se demonstrar'® que prisma da economia ambiental neoclassica € nitidamente o dos paises industrializados. Existem exemplos de uso do instrumental Ver Conrad & Clark (1987), por exemplo. "Para o emprego desses modelos no debate da questio da sustentabilidade, ver Solow (1974a, 1974b € 1986); e Stiglitz (1974). ® Ver, por exemplo, Baumol (1986). Ver, por exemplo, Barnett & Morse (1963), Nordhaus (1974), Fisher (1981), Baumol er al. (1989). Ver, por exemplo, Fisher (1981) ¢ Norgaard (1990). 'S Sao reveladores, nesse sentido, os comentarios de Maller (1986), um dos fundadores da economia am- biental neoclassica (ver Maller, 1974), © Ver Mueller (1996, segao 2.2.3) B neoclassico no exame de problemas de economias em desenvolvimento, mas essa pra- tica origina uma outra critica a essa escola — a da sua pretensao de ser universal, de aplicabilidade para qualquer sociedade e qualquer momento histérico. Os problemas das economias em desenvolvimento so tratados como casos especiais da teoria geral criada para economias de mercado desenvolvidas. No que diz respeito ao interesse das geragées futuras, este tende a ser tratado de forma superficial. Quando muito, considera-se que o emprego de taxa social de des- conto correta é suficiente para assegurar a sustentabilidade. Tende a ser ignorado, entretanto, o fato de que a propria pratica do desconto leva a um drastico encurtamento do horizonte temporal relevante da analise. 5.2. Andlises que ressaltam o bem-estar das geragées futuras Acescola aqui denominada economia da sobrevivéncia tem como ponto central a preocupagdo com os padrdes de crescimento econdmico predominantes no presente, que estariam levando os conjuntos A ¢ B a se afastar rapidamente do conjunto C, com- prometendo, pois, as perspectivas das geragdes futuras. Ao contrario da econo- mia ambiental neoclassica, essa escola ainda nao se constitui em corrente forte ¢ con- solidada A visio analitica da economia da sobrevivéncia parte da constatagio de que al- guns dos materiais fundamentais 4 manutengio da vida, retirados pelo sistema eco- némico do ecossistema —~ inclusive os combustiveis fosseis —, existem em quanti- dade limitada e que vém decrescendo com 0 uso; e, de que é fixa e relativamente re- duzida a capacidade do ecossistema de assimilar residuos e rejeitos dos processos de produgio e de consumo, Assim, nos atuais padrées, 0 crescimento econdmico hori- zontal — mais gente, embora com reduzidos ganhos de renda per capita — dos paises pobres, adicionado ao crescimento vertical — populago quase estacionaria mas com significativos aumentos de renda per capita — dos paises ricos, estariam provocando rapida deplegio de recursos naturais vitais e perigosa acumulagdo no meio ambiente de residuos e rejeitos. Em outras palavras, o atual padrdo de desenvolvimento nao seria sustentavel, ameagando a sobrevivéncia da humanidade em um futuro mais distante. A economia da sobrevivéncia critica a andlise neoclassica por sua obstinacaio em focalizar 0 lado monetirio dos fluxos do sistema econémico, colocando em um se- gundo plano as dimensées fisicas dos processos de produgio e de consumo e suas complexas inter-relagdes com o meio ambiente. Fazendo isso, mesmo no seu ramo ambiental, a economia neoclassica estaria gerando modelos, principios ¢ observages que fornecem uma percepgiio errénea da evolucao da economia quando avaliada numa perspectiva temporal mais longa. Reconhece que modelos dinémicos da economia ambiental neoclassica consideram horizontes temporais infinitos, mas ressalta que a pritica do desconto do futura a taxa social de retorno, juntamente com suas hipéteses basicas, restringem a relevancia dos resultados, quando muito, a umas poucas décadas. Para Georgescu-Roegen — um dos principais tedricos da economia da sobrevi véncia — o problema é que a “economia moderna” (neoclassica e marxista) teima em se apoiar em epistemologia mecanicista, “um dogma ja banido até pela fisica”. Trata, assim, 0 proceso econémico como “um andlogo mecanico, consistindo — como to- dos os andlogos mecdnicos — de um principio de conservacao e uma regra de max 4 mizagdo”. O sistema econdmico aparece como um sistema auto-contido e auto-sufi- ciente, como se inexistissem inter-relagdes significativas entre o mesmo € 0 meio ambiente'”, Conforme ressalta o autor, a melhor ilustraco deste ponto esta “[...] no grafico que aparece em quase todos os manuais de introdugao 4 economia, retratando © processo econdmico como um fluxo auto-susten- tado e circular entre a ‘produgao’ e 0 ‘consumo’.” ponto crucial, é que o “[...] processo econémico nao ¢ um processo isolado e auto-sustentado, Esse processo no pode persistir sem um intercmbio continuo que altera o meio- ambiente de forma cumulativa, e sem ser, por sua vez, influenciado por tais, alteragdes. Os economistas classicos [...] insistiam na relevancia econémi- ca desse fato. Entretanto, economistas, tanto convencionais como marxis- tas decidiram ignorar completamente o problema dos recursos naturais [...]” Quando os economistas tratam “‘o processo econdmico como um and- logo mecdnico, esto implicitamente supondo que o sistema econdmico fun- ciona como uma espécie de carrossel de parque de diversdes, nao podendo, de nenhuma maneira, afetar 0 meio ambiente [...] A conclusdo dbvia ¢ a de que no hi a necessidade de trazer o meio ambiente para dentro da moldura analitica de tal processo” (Georgescu-Roegen, 1975: 350-1) Esse ponto é aprofundada por Perrings (1987), para quem existem dois tipos de hipéteses ambientais relevante “economia convencional”: a hipdtese ambiental fra- ca, que considera que o meio ambiente nao é inteiramente dominado pelo s econémico, mas que desempenha um papel passivo e benigno. E, a hipdtese ambiental forte, que supde que a economia domina completamente o seu meio-ambiente, “Equi- vale a dizer que o meio ambiente nao existe.” (pp. 4-5). A hipétese forte & a que pre- domina em diversas variantes de teoria de equilibrio geral. A hipétese ambiental fra- ca — mais antiga —, representa um compromisso entre a suposigao da dominagao do meio ambiente dos fisiocratas a hipétese de que o meio ambiente nao existe, Georgescu-Roegen e Perrings se referem a andlise econdmica que prevalecia antes de surgir a economia ambiental neoclassica. E interessante observar entretanto que, a despeito dos avangos introduzidos por esta, esbogados acima, quando se analisa a es- séncia das suas contribuiges na perspectiva do horizonte temporal relevante para a sustentabilidade, verifica-se que as mesmas se apdiam em hipétese ambiental fraca atenuada. Vimos que esta escola de pensamento também rejeita a representacao do processo de produgio na forma de fluxos circulares, e em isolamento. Descreve, en- tretanto, esse processo inserido em um sistema mais amplo, mas essencialmente p: vo, que tende a aceitar sem maiores problemas diferentes graus de degradago. Esta afeta, acima de tudo, aos agentes econdmicos que, com base em suas preferéncias (fun- Oes-utilidade) custos, decidem o grau de degradaco apropriado. A poluigdo eficiente da andlise ambiental neoclassica é étima do ponto de vista da preferéncia dos indivi- duos em sociedade, aos quais se atribui a capacidade de determinar 0 equilibrio entre 0 desconforto produzido pela poluigao resultante da produgio e do consumo de bens e servigos, e a satisfacdo proporcionada pelo consumo destes. Tratando o meio ambiente como um espago neutro, benigno, o qual se pode poluir em maior ou menor grau, com " Georgescu-Roegen (1975: 348). 15 reagdes previsiveis ¢ reversiveis, a teoria evita a discussio sobre se a poluigdo efici- ente é, de fato, sustentavel. 5.2.1. Um esbogo da economia da sobrevivéncia Essa escola de pensamento considera explicitamente a economia um subsistema de sistema maior — 0 meio ambiente — e reconhece a complexidade das relagdes entre 0s dois sistemas. Enfatiza as dimensGes fisicas da atividade econdmica e procura de- terminar 0s possiveis limites impostos 4 sua continua expansio. Em contraste a0 paradigma neoclissico, que tende a ressaltar a estabilidade, a ordem e 0 equilibrio, a visio analitica da economia da sobrevivéncia ressalta a desordem, a instabilidade e 0 desequilibrio. £, pois, levada a rejeitar 0 otimismo neoclassico em relagiio a susten- tabilidade dos atuais padrdes de expansio econémica. Conforme sumaria Norgaard (1986: 326), a forma pela qual o meio ambiente é enxertado nos modelos neocles cos “permite manipulagdes que levam A absurda conclusio de que tanto a justiga so- cial como o bem-estar das geragdes futuras ¢ a sustentabilidade econdmica e ecologi- ca podem ser atingidos mediante a expansio econdmica. Esse argumento é conside- rado infalivel, independentemente das condigdes prevalecentes em cada momento do tempo”. Segue-se um esboso da economia da sobrevivéncia, com base na contribuigao de dois de seus fundadores: Kenneth Boulding e Nicholas Georgescu-Roegen. paradigma da espagonave. Boulding foi um dos primeiros economistas de pres- tigio a alertar para os problemas com os padrées de desenvolvimento prevalecentes. Em seu artigo “The economics of the coming spaceship Earth’”, expressa preocup: do com a reduzida consciéncia de que as fronteiras livres esto gradualmente desa- parecendo. Partindo do principio do balango dos materiais e da energia, Boulding tr taa sociedade humana, ou melhor, a econosfera (a parcela econdmica dessa socieda- de), como um sistema aberto encrustrado em um sistema fechado de dimens6es fixas —o globo terrestre. A econosfera retira deste materiais e energia disponiveis em quan- tidades limitadas, as usa e as devolve ao sistema maior, degradadas ou dissipadas. O autor reconhece que esse proceso é inevitavel, pois sem ele a humanidade pereceria; argumenta, entretanto, que isso vem sendo feito de forma perdularia, como se a di ponibilidade de recursos naturais e a capacidade de assimilagao de rejeitos, de polu ¢4o fossem ilimitadas. Essa atitude resultaria de uma percepgao quase atavica do mun- do, como um plano virtualmente ilimitado. Sabemos que a terra é uma esfera de di- mensdes imutaveis mas “estamos longe de ter feito os ajustamentos morais, politicos ¢ psicologicos necessirios nessa transigdo do plano ilimitado a esfera fechada” (1964 121-2). Cumpriria 4 humanidade abandonar essa a visio de “fronteira aberta” ¢ ado- tar 0 “paradigma da espagonave”’; ou seja, passar a tratar o globo terrestre como uma nave espacial em longa jornada, com recursos limitados para assegurar a sobrevivén- cia dos seus passageiros e com capacidade fixa de assimilagdo, tratamento e reciclagem de rejeitos. Juntamente com Georgescu-Roegen, Boulding foi pioneiro no emprego da segun- da lei da termodinamica —a lei da entropia — na andlise dos problemas que, com 0 Ver Boulding (1966); na mesma linha, ver Boulding (1980). Um texto menos técnico, mas extrema- ‘mente interessante, é 0 de Boulding (1977). 16 espirito depredador do homem de fronteira, a sociedade contemporanea estaria im- pondo as geragdes futuras. Mostra que o sistema econémico funciona por intermédio de processos materiais que, num extreme, retiram matéria de fora do sistema e, no outro, devolvem efluentes (materiais degradados) a reservatérios fora da econosfera (a at- mosfera, rios, oceanos). E para que possam operar, esses processos materiais reque- rem energia ordenada ¢ disponivel (ou seja, de baixa entropia) — oriundos da radia- go solar, das aguas, dos movimentos da terra ¢ dos combustiveis fosscis. A energia entra na econosfera com baixa entropia e a deixa com entropia elevada — dissipada na forma de calor. O autor argumenta que a energia que vém do sol, das Aguas ¢ de movimentos da terra é “renda”, pois se renova; j4 a energia dos combustiveis fosseis 6 “capital”, finito e ndo-renovavel — constituindo-se em importante limitaco, ainda no inteiramente compreendida pela sociedade humana. Boulding mostra que a econosfera cria entropia liquida, ou seja, scus processos materiais tomam a matéria e a energia de baixa entropia e os dispersando degradados sobre a terra, 0 oceano e a atmosfera em quantidade muito maior que 0 possibilitado pelos processos antientrépicos que vém sendo desenvolvidos e que captam matéria e energia difusos ¢ 0s concentram. Com isso se esgota gradativamente 0 capital de re- cursos naturais — que inclui a capacidade de assimilagdo do meio ambiente —, colo- cando em risco a sobrevivéncia da humanidade. Ressalta o carater irreversivel que a lei da entropia imprime a dissipagio da energia e & degradagao da matéria. ‘As contribuicdes de Georgescu-Roegen. Antes de se preocupar com as inter-re- lagdes entre a economia ¢ o meio ambiente Nicholas Georgescu-Roegen originou contribuigdes importantes para os fundamentos da economia que chamou de “conven- cional”; foi, por exemplo, um dos pilares da teoria ordinalista do consumidor'. Mas 6 da sua rica e variada produgdo focalizando as fundagées biofisicas da ciéncia eco- némica que se pode compor uma visao analitica completa e rigorosa da economia da sobrevivéncia, Segue-se um esboco dessa visao, apoiada nas prineipais pegas burila- das pelo autor. Iniciamos com sua revisao da nogio de processo econémico. Ja no seu Analytical economics Georgescu-Roegen, (1966: cap. 5) aponta para a deficiéncia da economia convencional em estabelecer claramente as fronteiras do sistema econdmico — no Ambito do qual se desenvolve o processo econémico. Essa deficiéncia surge porque a economia convencional trata o sistema econémico como um sistema isolado; se um sistema é isolado, nao hé porque falar em fronteiras™. Quando se considera a econo- mia um sistema aberto, entretanto, torna-se necessario delimitar claramente as suas fronteira. Nao é valido supor, como fez Pareto”', com muitos seguidores, que 0 pro- cesso econémico é dotado de limites naturais evidentes. " Ver, por exemplo, Georgescu-Roegen (1966, parte I) 2 Vimos que a economia ambiental neoclassica passou a considerar a economia um sistema aberto, mas em que o meio ambiente com 0 qual interage é basicamente passivo, reagindo apenas quando fortemente atacado — geralmente em razao de deficiéncias no funcionamento de mercados relevantes. F a economia ambiental neoclassica vem tratando de forma superficial a questdo da defini¢do da fronteira do sistema econémico, » Pareto achava que assim como a geometria ignora a quimica, 0 homo economicus pode ignorar, por abstragio, 0 homo ethicus, 0 homo religiosus e os demais homines. Conforme Vilfredo Pareto, Manuel -onomie politique, (Paris, 1927, p. 18, apud Georgescu- Roegen, 1967: 103). 1 Nao é, pois, trivial delimitar as fronteiras de um sistema. Nem mesmo “as cién- cias naturais (...] apresentam fronteiras rigidamente determinadas e claramente tracada: Nao hé pois razio para a economia se constituir em excegao a esse respeito. Pelo con- trario, tudo mostra que 0 dominio econémico é rodeado por uma penumbra dialética bem mais acentuada que a que envolve as ciéncias naturais”. Mas essas dificulda- des nao devem impedir 0 economista de estabelecer o sistema relevante para sua ana- lise. Onde tracar a sua fronteira, qual a duragao relevante para 0 processo parcial que se desenvolve no ambito do sistema e quais o aspectos qualitativos usado para cl ficar os elementos do sistema so questdes que dependem dos propésitos especificos da anilise (Georgescu-Roegen, 1969 ¢ 1977). Mas tudo isso deve ficar claro antes de que se inicie a anilise. Um outro elemento da visio analitica do autor é 0 conceito de processo econémico. Partindo de revisio de processo produtivo — um dos processos centrais do sistema econd- mico — Georgescu-Roegen critica a teoria neoclassica da produgao e, especialmente, o.uso descuidado que esta faz do conceito de fungio de produgao”. O autor demonstra que, estritamente falando, a fungao de produgao neoclassica se aplica apenas & produgio fabril em linha, ¢ ndo a produgao agricola e as outras produgdes nao executadas em linha, Assim, é incorreto empregar uma fungao de produgao agregada do tipo Cobb- Douglas para representar a toda a economia, Essa critica & teoria da produgdo con- vencional tem sérias implicagdes, uma vez que fungdes de produgdio Cobb-Douglas so centrais em demonstragdes da viabilidade do crescimento sustentavel como a efetuada por Solow (1974a € 1974b), que, como vimos, tanta repercussio tiveram. O curioso & que, a despeito dos seus trabalhos sobre o assunto, a critica de Georgescu-Roegen a teoria da producao convencional tem sido ignorada pelo mainstream neoclassico™ Assumem papel central na visio analitica de Georgescu-Roegen a primeira e a segunda leis da termodindmica’®, que o autor emprega, ndo no sentido metaforico de Boulding, mas como leis da fisica de importancia central na determinagdo das inter- relagdes entre a economia e o meio ambiente. A primeira lei da termodindmica é a da lei da conservagao da matéria e da energia — empregada pela teoria ambiental neo- clissiea. Esta afirma que, em um sistema isolado*, a matéria e a energia so constan- tes, nao podendo ser nem criadas nem destruidas. Sistemas fechados ou abertos po- dem ampliar ou reduzir a matéria e a energia que usam, importando-os de, ou expor- tando-os a outros sistemas. Assim, embora a matéria e a energia nao possam ser nem criadas ¢ nem destruidas, nesse processo de intercdmbio sofrem mudangas qualitati- vas, determinadas pela segunda lei da termodinamica —a lei da entropia. De forma relevante para a andlise econdmica, a energia ¢ a matéria existem em dois estados: em estado disponivel e em estado nao-disponivel”; a lei da entropia assegura que estas ® Georgescu-Roegen (1966: 102). » Ver, por exemplo, Georgescu-Roegen (1969 1971: cap. IX). % Quando apresentou sua anélise sobre o assunto em congresso em 1968, um dos debatedores foi o pro- fessor Patinkin, que tentou derrubar pontos centrais da demonstragao de Georgescu-Roegen. Entretanto, as criticas de Patinkin foram omitidas dos anais do evento, pois o professor subseqiientemente “se con- venceu que suas objegdes ndo eram validas” (Georgescu-Roegen, 1969: 528). ® Ver o clissico The entropy law and the economic process (Georgescu-Roegen, 1971). Para outras con- tribuigdes importantes, ver Georgescu-Roegen (1975; 1977; 1979; 1982; 1986; 1993) 2 Um sistema isolado & um sistema que nao intercambia energia e matéria com o seu exterior, 78 se degradam irrevogavel e irreversivelmente, passando continuamente do primeiro para o segundo desses estados. Estritamente falando, o universo € 0 tinico sistema isolado que se conhece. O globo terrestre é um sistema fechado, uma vez que intercambia a energia, mas nao a maté- ria com 0 seu exterior. E o nosso planeta abriga uma infinidade de sistemas abertos — todas as formas de vida. Os seres vives sdo sistemas abertos pois, para que vivam, necessitam de matéria e energia disponiveis (i. e, de baixa entropia). Mas usando-as, degradam a matéria ¢ dissipam a energia, tornando-as nao-disponiveis ¢ restituindo- as assim ao meio ambiente, Contribuem, pois, para aumentar a entropia — a quanti- dade de matéria e energia nao disponiveis para o sustento da vida. Todos os seres vivos fazem isso. As plantas retiram energia do sol e matéria do globo terrestre; os animais absorvem a matéria e a energia captadas pelas plantas € por outros animais. Todos dissipam a energia que usam e jogam a matéria degradada no meio ambiente. A humanidade também procede dessa maneira, em escala muito maior. Isso tornou-se possivel quando passou a usar, em adicdo a energia solar direta ea capturada pelas plantas e apropriada pelos animais, o capital de energia acumula- do no petréleo, no gas ¢ no carvao. Hoje, a humanidade depende de enormes quanti- dades desses recursos, que utiliza como se sua disponibilidade fosse ilimitada**. Para Georgescu-Roegen (1975: 352) “a lei da entropia é a mais econémica de todas as leis naturais”, estando nela a “raiz da escassez econdmica”. Por isso, sendo, esta deveria estar na base de qualquer modelo econémico que trate da questéo da sus- tentabilidade. Como os recursos naturais que suprem a humanidade de matéria e de energia de baixa entropia sao finitos, é uma questdo de tempo o esgotamento de mui- tos destes, com sérias conseqiiéncias para geragdes futuras. Juntando as pecas acima, pode-se esbogar a visio analitica de Georgescu-Roegen. O sistema econdmico esta inserido em um meio externo natural e interage com este; a fronteira do sistema é determinada, de um lado, pela captagao do meio ambiente, da energia bruta e da matéria bruta; e do outro, pela devolugio pelo sistema econémico a0 meio ambiente da energia dissipada, da matéria dissipada e de rejeitos — residuos nio-aproveitaveis (ndo-reciclaveis). O sistema econémico inclui os seguintes setores: dois setores que tornam matéria e energia brutas em matéria e energia controladas — a matéria ¢ a energia disponiveis, para uso nos demais setores. Dois setores propria- mente produtivos —o que produz bens de capital ¢ o que produz bens e servigos de consumo. Um setor consumidor, que transforma produtos em satisfagao, em bem-es- tar. Esses trés setores geram residuos e rejeitos do seguinte tipo: material reciclavel (residuos que podem ser reaproveitados); residuos despoluiveis (a fumaga de fabri- cas, residuos liquidos de processos produtivos; certos tipos de lixo; aguas servidas e esgoto residencial); e rejeitos (residuos naio-aproveitaveis e ndio-despoluiveis). Em adigao, dado 0 comportamento defensivo da sociedade em face a degrada- do ambiental que ele mesma gera, 0 sistema econémico tem, também, um setor res- » Boulding (1980), oferece conceituagao alternativa. Para o autor, a lei da entropia é a lei da exaustio do potencial de gerar satisfacio, ben-estar, conferidos & humanidade pela matéria e energia. Considera que { intuitivamente mais interessante tratar da exaustio do potencial, do que da ampliacio da entropia. Note- se, contudo que, para esse autor, a lei da entropia & mais uma metéfora ™ Geongescu-Roegen (1975: 352-3). 79 ponsavel pelos processos de reciclagem e um setor despoluidor. Ambos tomam resi- duos reaproveitaveis ou despoluiveis e geram, além de um meio ambiente menos de- gradado, algum material aproveitvel. proceso parcial que se desenvolve no Ambito do sistema econémico se inicia com a retirada da energia e da matéria do meio ambiente pelos setores que as trans- formam em energia e matéria controladas®. Todos os setores usam essa matéria e essa energia; isso ocorre inclusive no setor consumidor, nos setores de reciclagem e de despoluicdo”, e nos préprios setores que tornam matéria e energia brutas em matéria € energia disponiveis. Além disso, a exceco do setor consumidor, todos os setores empregam servigos de fatores de fundo (capital, terra, mio-de-obra) ¢ fatores de flu- xo (matérias-primas; manutengao). O setor de bens de capital usa energia e matéria disponiveis para produzir bens de capital, para si proprio e para todos os demais seto- res (inclusive o setor consumidor; ex., residéncias), J4 os produtos do setor de bens e servigos de consumo sao destinados apenas ao setor consumidor. Todos os setores fornecem aos setores reciclador e despoluidor residuos recicliveis e despoluiveis. A importincia e 0 peso desses setores em uma sociedade depende de fatores de ordem econdmica (do prego de materiais reciclados; da existéncia de tec- nologias vidveis; do nus imposto sobre a degradagdo ambiental — taxas pigouvianas, multas) ¢ legal-institucional que requerem, estimulam e condicionam a reciclagem e a despoluicao. Finalmente, todos os setores devolvem ao meio ambiente energia ¢ matéria dissipadas ¢ rejeitos. Alguns despejam mais e outros menos desses elementos no meio ambiente, mas setor algum esté isento de “contribuir” para a sua degradagio — mesmo os envolvidos na reciclagem na despoluic&o, pois nao existem reciclagem ¢ despoluicao perfeitas. Ou seja, mesmo a sociedade mais “ambientalmente correta” retira a matéria e a energia de baixa entropia do meio ambiente e devolve a este ener gia dissipada, matéria dissipada e rejeitos. Na verdade, como vimos, isso ocorre com qualquer ser vivo e nao apenas com a sociedade humana. Qual 0 problema, entio? O préprio autor indica que a “matéria-energia terres- tres, bem como a radiagdo solar que chega ao nosso globo, degradariam estando a vida presente ou niio. Contudo, a presenca da espécie consumidora acelera consideravel- mente essa degradacao” (Georgescu-Roegen, 1977: 309). Na atualidade, de todas as formas de vida a espécie humana é, de longe, a que mais danifica 0 meio ambiente com sua atuacdo ¢ & a que menos espago deixa as demais formas de vida do nosso globo. Além disso & a que mais prejudica as oportunidades futuras dos membros de sua prd- pria espécie, Por essa razdio Georgescu-Roegen é cético em relagio a viabilidade do desenvolvimento sustentavel. Uma reflexdo sobre a visio analitica de Georgescu-Roegen nos permite consta- tar um fato surpreendente: em esséncia, tudo que o processo econdmico produz J matéria ¢ energia dissipadas e rejeitos. E como se o sistema econémico fosse uma maquina de degradar e poluir o meio ambiente. Conforme ressalta o autor, entretanto, ® O setor de reciclagem também gera alguma matéria controlada, © Esses setores também requerem energia disponivel e matéria disponivel para funcionar; nada impede ‘mesmo que algumas unidades de tais setores usem mais desses recursos basicos que os recuperados pelos respectivos processos. 80 “este € apenas o lado da matéria-energia da histéria. A historia com- pleta revela que o produto verdadeiro do processo econémico nao é 0 efluente material, mas sim um fluxo imaterial — 0 fluxo de gozo da vida [enjoyment of life}. Numa primeira aproximagio, um economista ambiental neoclissico poderia ser levado a afirmar que 0 modelo de Georgescu-Roegen nao se choca com as anéllises de sua escola e que, quando muito, seu mérito é 0 de detalhar aspectos da insergao da economia no meio ambiente, Na verdade, esta vem sendo a esséncia da critica da eco- nomia ambiental neoclissica ao autor. Argumenta-se, mesmo, que o fundamental é primeira lei da termodinamica — a lei da conservacio da matéria e da energia; a se- gunda lei — a lei da entropia — teria pouco a oferecer a economia, O ponto central da critica neoclissica é pois a relevancia dessa lei. Embora con- cordando que o processo econémico é essencialmente entrépico, Burness ef al. (1980: parte III), por exemplo, negam o papel da lei no tratamento da questo da escassez econémica®. Para esses autores, “em mercados razoavelmente competitivos, as leis da termodindmica esto, sem nenhuma duivida, refletidas em mercados.” (p. 6); 0 pro- blema da escassez seria, assim, enfrentado de forma mais competente com medidas para internalizar externalidades e fazer com que os precos reflitam os custos de opor- tunidade, do que com qualquer intervengao calcada diretamente na lei da entropia. Outro exemplo est em Young (1991: 178-9) que, apés uma resenha competente dessa lei, concluiu que a mesma “nao apresenta especial relevancia particular & economia, no que tange 4 escassez no longo prazo de recursos”, pois se refere a um sistema isola- do, ¢ nfo a um sistema aberto como o econémico. Seria mais adequado, portanto, con- centrar a atengao sobre a lei da conservacio da matéria e da energia e sobre aspectos de mercado — como 08 acima mencionados —, evitando confundir a andlise da es- cassez com um conceito emprestado da fisica, mal adaptado ao exame do problema. Tais criticas consideram a lei da entropia uma pega isolada, passivel ou ndo de ser incorporada & andlise. Na visio analitica de Georgescu-Roegen, entretanto, essa | parte inseparavel de um todo®. O autor reconhece que o sistema econémico é um sis- tema aberto que, como todo organismo vivo, resiste a sua propria decadéncia entrépica mediante a importagdo de recursos de baixa entropia do meio ambiente, e a exporta- cdo a este de entropia elevada. Entretanto, conforme insiste, grande parte da baixa entropia importada pelo sistema econdmico se origina de um meio externo finito— 0 globo terrestre, um sistema fechado. A parte que vem do cosmos — a energia do sol — s6 pode ser apropriada pelo sistema econdmico em quantidades muito reduzidas em relagdo as necessidades atuais. Assim, quando se esgotar o capital de energia de baixa entropia do nosso globo (os combustiveis fosseis), ha grande possibilidade de que sur- ja séria escassez de energia. Além disso, é limitada a capacidade do meio ambiente de assimilar a alta entropia devolvida pelo sistema econdmico. Ou seja, como € finito 0 seu meio externo, a lei da entropia nos assegura que esto diminuindo tanto os reser- Georgescu-Roegen (1977: 308); ver também Georgescu-Roegen (1967: 97). ® Como vimos, para Georgescu-Roegen a lei da entropia esta na raiz da escassez econdmica, O autor trata dessa questio em varios de seus trabalhos; um exemplo significativo esta em Georgescu- Rocgen (1975: parte III). 81 vatérios de recursos de baixa entropia como a capacidade do meio ambiente de assi- milar a alta entropia gerada pelo sistema econémico. Nas palavras de Daly (1992), “a escassez de recursos ‘resulta da combinagio da primeira e da segun- da leis da termodinamica, e ndo de uma delas isoladamente. Se as fontes [de recursos de baixa entropia] e a capacidade de assimilagao [da elevada entropia gerada pelo sistema econémico] fossem infinitos (ou pudessem ser criados ou destruidas), o fato de que os fluxos entre eles ¢ entropico e irreversivel nao teria conseqiiéncia; se, sendo finitas as fontes e a capacidade de assimi- lagdo, nao existisse a lei da entropia, poderiamos tornar recursos degradados em recursos disponiveis, reciclando tudo [...]’ Mas nao é isso que acontece. “A luz desses fatos torna-se dificil entender como alguém possa afirmar que a lei da entropia nao é relevante para a escassez de recursos" (p. 94). Resta a questo da relevancia do mecanismo de pregos para os problemas da deplecio de recursos naturais e da degradagao ambiental. Georgescu-Roegen tratou do assunto em varios trabalhos, mas foi particularmente enfético no seu artigo de 1975, em que condena 0 mito de que “o mecanismo de pregos pode contrabalangar qualquer escassez, seja de terra, de energia ou de materiais” (p. 355). Para 0 autor, nfo faz sen- tido falar de pregos que reflitam custos ambientais; “o ‘custo da deplegdo de um re- curso’, ou o ‘custo da deterioragao ambiental’ [...] sao expressdes puramente verbais, de vez que nio existe tal coisa como o custo de recursos insubstituiveis ou de polui- cao irredutivel” (p. 374, nota 61). Lembra, nesse sentido, que “existe um principio elementar de economia segundo o qual a tinica forma de se atribuir um prego relevan- tea um objeto nao reproduzivel (...] 6a de assegurar com que todos possam fazer lan- ces pelo mesmo”. De outra forma, seu prego nao refletira a preferéncia de toda a so- ciedade mas apenas a de um grupo menor. “E exatamente isso que acontece com re- cursos nao reproduziveis. Cada geraco pode usar o tanto de recursos terrestres ¢ pro- duzir o tanto de poluigdo determinados por apenas seus proprios lances. Mas as gera- bes futuras no esto, porque nao podem estar, presentes nos mercados da atualida- de.” As demandas da atual gerago podem até refletir o desejo de proteger os interes- ses da proxima geragio ou da que se seguira a esta. A oferta também pode incluir expectativas sobre disponibilidades e sobre pregos no futuro. “Contudo, nem a demanda e nem a oferta atuais podem incluir, mesmo de uma forma muito ténue, a situacao das geragdes mais remotas, como, por exemplo, a do ano de 3000, ou mesmo a que possa existir daqui a cem anos” (p. 374). Para terminar esta parte, a insisténcia de Georgescu-Roegen em caracterizar 0 processo econémico como essencialmente entrépico, fez com que se atribuisse ao autor © propésito de criar uma teoria do valor-energia™. Georgescu-Roegen (1986: 8) rejei- ta enfaticamente essa interpretagao. Mostra que baixa entropia é condigao necessaria mas nio suficiente para que alguma coisa tenha valor. A condicao suficiente requer que essa coisa possa gerar satisfagdo. Conforme registrou, ja em 1966, no seu Analytical economics, “a verdadeira ‘produgio’ do processo econémico nao ¢ o fluxo fisico de rejeitos, mas sim um fluxo de gozo da vida [enjoyment of life] [...]Se nao * Ver, por exemplo, Burness et al. (1980). 82 reconhecermos esse fato e se nao introduzirmos 0 conceito de gozo da vida no nosso arsenal analitico, niio estaremos no mundo econdmico. E nem po- deremos descobrir a verdadeira esséncia do valor econdmico, que é 0 valor que a vida tem para todo o ser vivo.” Essa discusso nos leva ao exame de como a economia da sobrevivéncia avalia perspectivas da humanidade num horizonte temporal estendido. 5.2.2. O futuro da humanidade para a economia da sobrevivéncia Os principais autores dessa corrente de pensamento expressaram forte preocupa- 10. com os impactos sobre as geragdes futuras dos padrdes de desenvolvimento vi- gentes, mas alguns se mostraram mais pessimistas que outros. Comegando com Boul- ding, no seu artigo de 1966 (sobre o spaceship Earth) indica como principal fator a restringir o futuro da humanidade os processos altamente entrépicos da economia contemporanea, que estariam esgotando muito rapidamente o capital energético da econosfera. Ressalta que “infelizmente nfo ha como fugir da tétrica segunda lei da termodindmica” pois, “sem insumos de energia na terra, qualquer processo evolutivo ou de desenvolvimento torna-se impossivel” (p. 125). Reconhece que ha a energia oriunda do sol, mas argumenta que esta s6 pode ser captada em quantidades insuficiente para manter os atuais padres de crescimento. No seu “Equilibrium, entropy, development and autopoiesis”, entretanto, Boulding tempera seu pessimismo inicial ao afirmar que “o que detectamos na historia da hu- manidade é a constante interagdo de dois processos, atuando em sentidos opostos, dos quais um as vezes domina 0 outro. Um processo é 0 do principio da entropia, inter- pretado como 0 principio da exaustio de um dado potencial.” Mas esse processo & “constantemente contraposto por processos de recriagao de potencial”. (Boulding, 1980: 184). Continua considerando muito elevadas as incertezas sobre o futuro, especialmente porque na econosfera “estamos lidando com um sistema muito diferente da mecanica newtoniana e da previsdo de eclipses”, mas ressalta o principio da autopoese, segun- do 0 qual, “em um sistema estocastico um evento de dada probabilidade, por mais reduzida que esta seja, eventualmente ocorrerd se passar o tempo suficientemente longo. E uma vez ocorrido 0 evento, isso muda a probabilidade de eventos na sua imediata vizinhanca, simplesmente porque a estrutura do sistema se altera com a ocorréncia do evento [...]” (p. 187)28 Em outros termos, 0 fato de que € inexordvel o esgotamento do capital de recur- sos energéticos, e que ainda no surgiram fontes alternativas vidveis de energia para substituir, nos montantes necessarios, 4 energia que se esgota, nao significa que no futuro isso ndo venha a ocorrer. Com o tempo poderdo surgir formas de recriar 0 po- tencial que vai se esgotando. Contudo, ha que lembrar que o principio da autopoese pressupde a passagem de um periodo de tempo o suficientemente longo para ocorra. Mas, se demorar muito para que se dé a recriago do potencial, quando isso acontecer pode deixar de ter sentido, dada a decadéncia atingida pela humanidade em decorrén- °S Georgescu-Roegen (1966: 97), Na verdade, as interpretaydes de que o autor teria criado uma teoria do valor-energia, resultaram de leitura superficial de sua obra e de tentativas de descredita-lo, transfiguran- do-o em espécie de cientista louco, Isso em razo de suas implacéveis criticas ao mainstream da economia, 5 Essas mudangas fazem com que a autopoese seja elemento importante no processo de evolucao. 3

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