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eso 67 ENTRELIVROS ~ Em O iltimo Jeitor, 0 senbor diz A literatura dé ao letor wm nome wma histira,subtraindo-o da prética mltiplae anénima’. A sua propria Bistéria erdria € também a de wm leitor: O serbor cecreve porgue le? RICARDO PIGLIA — Cada um que e reve tem a crenca de ter inventado tudo do zero, de que nada exista antes que ele cescrevesse, mas a vontade ¢ a decisio de cescrever sio sempre posteriores & pritica dalleitura O escrtor no € como um fils- s0fo,que deve tero conhecimento de uma tradigio prévia antes de praticar essa dis- ‘pling. Para garantir a qualidade da pro-,, dlugdo literéria, nao importa a quantidade de livos lidos e nem mesmo @ leitura de todas as obras que fazem parte do que po- deriamos chamar de cinone estabelecido. ‘A questio principal € a maneira como 0 escrtor Ie essas obras. EL ~ Seria oescritoraquele “gue lé mal, ds Loree, perce confisamente” a que 0 senbor se refere no mesma fro? PIGLIA - Sir, exatamente. Ler errado costuma ser muito produtive. Existem muitissimos exemplos de escritoces que Jeram de um modo desviado e tiraram bons frutos disso. Borges & um caso, uma grande leitor que tergiversa o sentido dos textos e constréi dessa maneira os novos sentidos. Borges trouxt 20 centro escri- tores que eram muito marginais. Recu- sava-se a ler consagrados, como Thomas ‘Mann, chegando até a desprezé-lo, EL Pensando na idtia de que 0 bom i ‘oro é aquele que carrega em sia tradigtio & dé um paso adiante, a literatera no seria uma construgiocoletiva, de todos os esritores ena consunto? PIGLIA — Sim, fiz atido, O esctitor s- reve porque antes se escreven e ele aspira a incuis, nessa rede, uma percepyso au- sente,um pequeno rastro de alguma coisa «que nfo estava ali, Todos os livros sfo uma tentativa de marcer alguma coisa na lin- gua, algo que seu autor tem a fantasia de ‘que nio existia antes. Evidentemente, se fosse possvel ter acesso a toda informa- fo, sempre se descobririam esses rastzos em algum lugar oculto do universo da cultura. E, no entanto, essa aspiragao de dizer algo diferente € fndamental para a riqueza da literatura. A tradigfo, nesse sentido, pode ser entendida como algo ue ajuda a escrever,a referéncia do que jé se fez que permite dimensionar 0 que s© pode vira fazer. A tradigéo & como um tio em que se nada, que irremediavelmente acompanba toda nova narrativa, EL~ 0 senbor & comsiderado tm dos leitores mis Beidos cos mosss tempos. Com fz: para concliar afc de iter imparcial que acei- ta, compreende e no tem a intengio de refizer ecorrigir com a do eseritr que distort? PIGLIA~ A Ieituraperfeita,a que respon- de com exatidéo 20 que 0 io implica, & ‘uma utopia. O que se fz ¢ procuraralgum de seus sentidos © tentar reconstrui-lo, ‘mas, em literatura, sempre hi um senti- do que escapa Esse é um dos fatores que gatantem seu fascinio e a possibilidade de releitura, permitindo que possarnos conti nuar lendo Hamlet e encontrando novos aspectos nele. Eu me oponho & idéia da cxisténcia de uma leitura platonica da qual alguém poderia aproximar-se, ¢ af volte mos & nogio de uso do texto a que me refer: o sentido de uma narrativa esti no ‘uso que dela se faz, € no numa esséncia aque se teria de descobris, numa exegese aque pesmitiriachegar ao amago imutivel do sentido, Cada leitor esté sempre tradu- indo para io texto,para uma lingua mais pestoal e marcada pela época. Por outro lado, também no podemos converter a istorgzo em un modelo, Porpe, sim, hé leiturassimplesmente equivocadss, EL — Borges esereen ext frase que o senbor gosta de mencionar: ‘A certeza de gue tudo «std escrito nos anula ou nos fantasmagori- za’ Essa aflgdo € também sua? PIGLIA — Nao, nio tenho essa preocupa~ cao. Borges, 2 partir dessa sensagdo de que tudo estava escrito, constrain uma poéti- ca da seleitara, do plégio, das atribuigées erréeas. Uma poética que acresventa a tudo isso um ponto interessante: apesar de estar ligado a biblioteca e & alta cul- tura, cle também estava atento a0 funci namento dos géneros populares, como o policial ou os filmes de faroeste. Borges fx vs0 de seus procedimentos, do gosto pela repetigao de férmulas. EL =O senbor também chegou a adotar exes tos, no? PIGLIA $6 escrevi um texto poticial no sentido estrito do género, o conto breve “Alouca eo relat do crime”, mas em ou- ‘sas obras de fato cheguei a empregar al- suns de seus recursos. Revpiapto artificial € um romance cheio de investigagées © enigenas e Dinbeiro queimade também se poleracoender deze de ura tai do género. © mundo das transgressbes diz mais sobre a verdad da sociedade do que o mundo da lei estabelecida, iL — O senor diz gue hi wma contradigéio entre literatura eapio politica, wma eposzto implicita entre litura e deciséo” E impossi- ‘vel wma Bteratwra essencialmente politica? PIGLIA - Sempre existiu um conflito en- tre essas instincias, mas muitas vezes foi bem resolvide. Livros que tém eficécia adr a shor 0a £ pl ‘ico, € no a politica. Sempre pedem 2 1n6s, escritores, que fagamos um romance (que retrate 0 que acontece agora em tal ou ga lgn Bx ign Banda ge jor nalistas esto nos pedindo que facamos 0 trabalho deles. O que a literatura tem de ‘aver € captar certos mecanismos de fun- cionamento do politico, certas relacdes de poder. Gosto bastante da nogio de comple ‘camo modo de a literaura se seferir 8 po- ‘itica. O complé funciona como um tipo e percepso que o sueito privado tem do fancionamento do real, vindo a substituiro «que era o destino para os gregos. O suje- to sente que hé algo que o manipula, algo incompreensivel, e supde que haja pessoas ‘comungadas para Ihe impingir aquela rea- Iidade. B isso que entendo como literatura politica: a que va buscar procedimentos de ennstrsio da realidade social, nfo 2 que acontecimentos reais. EL O inicio da década de 1980 fo um mo- ‘mento de recradescimento politica na eiagdo terra argentina? PIGLIA - Naqueles anos de ditadura, 2 sealidade era to opressva, tio extrema, «que era muito dificil aliteranura nfo cas regar uma marca disso. Em Respragto a ‘ficial, a politica estésutilmente presente em uma série de registros¢ qualquer pes- soa pode ler 0 romance como referido & época em que foi escrito. No entanto, por ser sutil, algo que tem a ver com 2 minha propria podtics, alguns acabaram pen~ sando que eu estava exercendo ume au- tocensura, Mas eu mio escrevi o romance daguele jeito por temer qualquer coisa; esse foi o modo que encontrei para narrar aquelas experiéncias. EL—A esea dew tema como de Dinkei- ro queimado éuma etratipia para se aprsi~ ‘mar deem mir mimerodeleitore? PIGLIA ~ Por um lado, o romance traz ‘uma experimentagéo com a linguagem; ‘por outro trabalha com um certo esteres- ‘ipo do jomalismo e com certas tradigbes do género, partindo de uma noticia real PIGLIA - Exatamente. Enquanto 2 infor magi nos deixa de fora, mantendo o olhar do espectador sempre distanciado, a itera- ‘ura incorpore ao leitor a experidncia de sua propria vida, da propria vida do letox: © importante € realizar 2 experiéncia que os textos pressupdem, Nunca vou me esquecer da minha i @e leivura de Gran de sertat: veredas, que ilusoriamente pensei aque podiz ler em porbagués, Passel um ano batalhando com a obra e pensando que ‘ema assim que se falava no Brasil. Depois, claro, fui pedir socomo a algumas tridu- es, mas aqulojé hava sido inesquecvel. EL — Ey trios frres, 0 senbor apresenta ‘nevestigabesbistoricae lovanta quests re- lativas ao passa. A estnatigia tom a inten io de reunir istria ¢ figio? PIGLIA ~ Alguns textos que escrevi de fato partem de acontecimentos histricos (0 05 elaboram. Respirarto artifical nas- cewassim, com a idéia de escrever a hist5- sa de um patriota exlado do século XIX, Prefiro os narradores fracos, i inseguros sobre o que estéo contando, ignorantes de seu possivel significado. O de Faulkner, por exemplo, que nunca entende o que conta seja por estar bébado, seja por ter ouvido a historia em diversas versdes © que provoca ums dristica sepamcao entre cultura de massas ¢ alta cultura é a distingao entre informagao ¢ experiéncia, ‘O campo da cultura de massas € o da in- formago, o da circulasao de noticias. A nogio de experiéncia vem a ser seu com ‘raponto: pode-se estar informado sobre determinadas coisas e mesmo assim tex poucas experiéncias nelas. A literatura transmite experiéncias, nio informacio. EL— Como o senbor mesmo ecrecey 0 lei= tor busca na literatura a experiéncia que se perdeu. -masa experiencia do exfio me interessava ‘porque era uma redlidade muito presente na Argentina ¢ porque era ume maneira de refletr sobre a situagio que eu préprio ‘estava vivendo, De qualquer modo, partir de um fito ou de um personage histé- ico nto supée escrever romances hstér- EL Sei que ndo se deve fcr este tipo de Pergunta a wm esriter, mas como entender a oor emblemétia questa ‘existe wna bistéria?, que abre Respicasio artificial? PIGLIA — Dificil de responder. Quando comecei a ecrever 0 Ivo, nfo tinha nada ‘muito definido, mas acho que af estava in- conscientemente implicito que o romance ia ser uma tensio entre histériae literatura. Interessava-me muito um narrador que ‘nfo soubesse nada do que ia contar. Gosto esse tipo de narrador, como 0 do Grande Gatsby, que nao sabe tado antes de come- gar.que vé se entende como é a histéria que quet narra. Algo pouco comum na Amé- fica Latina, onde os escritores tender a ter tudo claro e acabam dando uma liso, 1o leitor,adotando uma postura um tan to despética. Prefiro os narradores fracos, inseguros sobre 0 que esto contando, ig- norantes de seu possivel significado. O de Willian Faullines,por ererpl, que mance entende o que conta seja por estar bébado, seja por ter ouvido a historia em diversas vversbes ¢ desconhecer a mais precisa, ELA teratura ext perdendo espace para cattras artes e linguagens? PIGLIA — Sem duvide. Esta sociedade ‘io teria inventado a literatura se no 2 tivesse encontrado feita. E incapaz de compreender uma pritica tio privada, aujos efeitos econdmicos slo tio pouco previstveis. Como a literatura jé estava inventada, sequiu-se adiante, mas 0 re= sultado fi esse lugar meio estranho que cccupe hoje, em que of escritores pare~ cem mais interessantes do que os livros. ‘A diminnigio do espago da literatura se pode sentir mais no romance como gé- nero, porque alguns romancistas cléssicos, como Dickens, possuiam paiblico cativo e grande apelo popular. Ocorreu hoje esse estreitamento de alcangee as vezel as pes- soas culpam os proptios romancistas por {sso,julgam que Joyce ou Faulkner seriam (8 culpados, por terem escrito romances to difieise inacessiveis. Minka hipéte- se & quase inversa: creo que o romance jé tinha perdido seu piiblico e seu espago na construgdo das narragbes,deslocados para cinema ou para outras formas de narrar aie capturaram 0 imaginério social. Em contrapartida, passou a ser possivel doté- Esta sociedade no teria inventado a literatura se nfo a tivesse encontrado feita. E incapaz de compreender uma pratica tao privada, cujos efeitos econ6micos sao tao pouco previsiveis To do grau de experimentagio que esses esctitores extraordindrios empreenderam, Assim, fea-se da debilidade uma virtude. EL - Pensando naguela idéia sua de que er 60 ato méxioo de afirmagi da solidi, cstaria nossa solidéo ameagada diante dese posse fim da literatura? PIGLIA — Justamente, esse possvel fim da literatura esti relacionado 20 possvel fim cde um lugar mais pessoal, substituido por essa espécie de meméria ou experiéncia coletiva a que estamos sujeitos na cultura de massas, Nada eusta pensar que € esta a aspiragio da publicidade e da televisio: que todos pensem o mesmo, digam o mesmo, sintam o mesmo, digam o que sentem com as mesmas palavras. Esta €2 utopia do ca pitaismo: que todo mundo se pareca e,em conseqiincia, que todo mundo saiba o que ‘comprat. Mas nfo podemes imaginar que a sociedade conseguiré impor esses cité- | ros undnimes e uniformes. As resistincias 2 essa generalizasio sfo miltplas. A no- «fo de que cada um tem suas dias e pode construir a representagio de seu proprio ‘universo, em que a literatura é obviamente elemento importantissimo, exste também fem outro tipo de experiéncia. Por exem- plo, no vinculo com os amigos, em que os individuos constoem relagées paralelas 20 mundo social, elaborando linguagens, subentendidos, valores. E, no entanto, ‘esse € outro elemento posto em questéo no mundo atual, onde parece que no hé tempo para estar com os amigos e tudo tem de girar em tomo das relagbes profis- sonais. Seja como for, nfo sou to pessi- mista, pelo menos nesta manhi. Creio que | esse tipo de experigncia vai penis.

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