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UMA TEORIA DA JUSTICA John Rawls Tradugio ALMIRO PISETTA LENITA M. R. ESTEVES Martins Fontes Sao Paulo 2000 Digitalizado com Cam Esta obra foi publicada originalmente em inglés com o trl A THEORY OF JUSTICE por Harvard University Press, US.A. Copyright © 1971 by the President and Fellows of Harvard College. Publicado através de acordo com Harvard University Pres. (Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Lida, ‘Sdo Poulo, 1997, para a presente edisio. Medigho ‘agosto de 1997 2 tragem ‘abril de 2000 Tradugio ALMIRO PISETTA LENTTA M. R. ESTEVES Revisio téenica Dr. Gildo Rios Revisto grifica Solange Martins Maria Cecilia de Moura Madarés . . Produgio grifica Geraldo atves Paginagéo/Fotolitos Studio 3 Deeervolvimento Editorial “Capa Katia Harumi Terasaha ‘Dados Internacionais de Catalopacio na Pubscacio (CIP) (Ciara Brasieira do Livro, SP, Bras) ‘Rawis, John ‘Uma teria da justga / John Rawis ; radu Almiro Pisera e i Lenita M. R. Esteves. - Sto Paulo : Martins Fontes, 1997, — (Casino Superior) ‘inal original: A'theory of justice, ISBN 85-336-0681-8, 1 Disto - lost 2 Junin ~ Tora. Tl. 1, Se, 97-3089 CDU-340.114 Indies para eathigo sistem: 1. Justiga: Dirt Teor 340.116 j Todos os direitos para o Brasil reservados & Livraria Martins Fontes Editora Lida. ‘Rua Conselheiro Ramatho, 3301340 013254000 Sao Paulo SP Brasil Tel. (11) 239-3677 Fax (11) 3105-6867 e-mail: info@martinsfontes.com ‘up:llwww martinsfontes.com DIYIlallZaUuyV CUITI Val n Capitulo Justiga como eqitidade Neste capitulo introdutério esbogo algumas das principais idéias da teoria da justiga que desejo desenvolver. A exposigao. informal e visa preparar o caminho para os argumentos mais, detalhados que vém em seguida. Inevitavelmente hi alguma superposicao entre esta € outras discussdes. Comego descre- vendo o papel da justica na cooperagao social ¢ apresentando uma breve explicagio do objeto primario da justica, a estrutura bisica da sociedade. Apresento em seguida a idéia da justica como eqiiidade, uma teoria da justica que generaliza ¢ leva a ‘um nivel mais alto de abstragdo o conceito tradicional do con- trato social. O pacto social € substituido por uma siruago ini cial que incorpora certas restriges de conduta baseada em razdes destinadas a conduzir a um acordo inical sobre os prin- cipios da justica. Também tato, para fins de esclarecimento € contraste, das concepsées clissicas da justiga ~ a utilitiria e a intuicionista - e considero algumas das diferengas entre essas, visGes ¢ a da justiga como eqiidade. O objetivo que me norteia, 6 claborar uma teoria da justia que seja uma altemativa para ‘essas doutrinas que ha muito tempo dominam a nossa tradig0, filoséfica. 1.0 papel da justiga ‘A justiga é a primeira virtude das instituigdes sociais, como a verdade o € dos sistemas de pensamento. Embora elegante € econdmica, uma teoria deve ser rejeitada ou revisada se no é viyitaizauy cuin Cam 4 UMA TEORIA DA JUSTICA verdadeira; da mesma forma leis e instituigdes, por mais efi- cientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformadas ou abolidas se sio injustas. Cada pessoa possui uma inviolabilida- de fundada na justiga que nem mesmo o bem-estar da socieda- de como um todo pode ignorar. Por essa razio, a justica nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. Nao permite que os sacrificios im- postos a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual so consideradas invio- liveis; 0s direitos assegurados pela justica ndo estio sujeitos a negociagio politica ou a0 calculo de interesses sociais. A tinica coisa que nos permite aceitar um teoria errénea é a falta de ‘uma teoria melhor; de forma anéloga, uma injustiga étoleravel somente quando & necesséria para evitar uma injustica ainda maior, Sendo virtudes primeiras das atividades humanas, a ver- dade ca justiga sio indisponiveis. Essas proposigdes parecem expressar moss conviccio intwitiva sobre a primazia da justica, Sem diivida estdo expres- sas de modo excessivamente forte. De qualquer forma, descjo indagar se essas afirmagées ou outras semelhantes so bem fun- dadas, ¢, caso 0 sejam, como se podem explicar. Com esse in- tuito é necessério elaborar uma teoria da justica & luz da qual cessas asserges possam ser interpretadas ¢ avaliadas. Comeca~ rei considerando o papel dos principios da justiga. Vamos assu- mir, para fixar idéias, que uma sociedade € uma associagd0 mais ou menos auto-suficiente de pessoas que em suas rela- es miituas reconhecem certas regras de conduta como obri- {gatorias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas. Suponhamos também que essas regras especifiquem um siste- ma de cooperaglo concebido para promover o bem dos que fa- zem parte dela. Entio, embora uma sociedade seja um empre- cendimento cooperativo visando vantagens mituas, ela é tipica- ‘mente marcada por unt conflito bem como por uma identidade de interesses, Hi uma identidade de interesses porque a coope- ragio social possibilita que todos tenham uma vida melhor da que teria qualquer um dos membros se cada um dependesse de TEORIA 5 seus proprios esforgos. Ha um conflito de interesses porque as pessoas ndo sio indiferentes no que se refere a como 0s benefi- ios maiores produzidos pela colaboragdo miitua s3o distribui- dos, pois para perseguir seus fins cada um prefere uma partici- pagio maior a uma menor. Exige-se um conjunto de principios para escolher entre virias formas de ordenagao social que de- terminam essa divisio de vantagens ¢ para selar um acordo so- bre as partes distributivas adequadas. Esses principios so 0s princfpios da justica social: eles fornecem um modo de atribuir direitos e deveres nas insttuigdes bisicas da sociedade ¢ defi- nem a distribuigio apropriada dos beneficios ¢ encargos da ‘cooperacao social, Digamos agora que uma sociedade & bem-ordenada no apenas quando esté planejada para promover o bem de seus membros mas quando é também efetivamente regulada por ‘uma concepeao publica de justica. Isto é, trata-se de uma socie~ ‘dade na qual (1) todos aceitam e sabem que os outros aceitam (0s mesmos principios de justia e (2) as instituigbes sociais, basicas geralmente satisfazem, e geralmente se sabe que satis- fazem, esses principios. Neste caso, emora os homens possam fazer excessivas exigéncias miuas, eles contudo reconhecem ‘um ponto de vista comur a partir do qual suas reivindicagies ‘podem ser julgadas. Se a inclinagéo dos homens ao interesse proprio torna necessiria a vigilancia de uns sobre os outros, seu sentido puilico de justiga tora possivel a sua associaglo segura, Entre individuos com objetivos e propésitos dispares ‘uma concepcio partilhada de justiga estabelece os vinculos da convivéncia civica; 0 desejo geral de justia limita a persecu- Go de outros fins. Pode-se imaginar uma concepsao da justiga Como constituindo a carta fundamental de uma associagio hu- ‘mana bem-ordenada, Sociedades concretas sio, ¢ ébvio, raramente bem-orde- nadas nesse sentido, pois 0 que é justo € 0 que é injusto esti ge- ralmente sob disputa. Os homens discordam sobre quai prin- cipios deveriam definir 0s termos bisicos de sua associagio. ‘Todavia ainda podemos dizer, apesar dessa discordincia, que cada um deles tem sua concepgio da justca. Isto é, eles enten- viyltaizauy Guilt Cam 6 UMA TEORIA DA JUSTICA dem que necessitam, ¢ estio dispostos a defender, a necessida- de de um conjunto de prinepios para atribuir direitos e deveres basicos e para determinar o que eles consideram como a distri- bbuigao adequada dos beneficios © encargos da cooperagio social. Assim parece natural pensar no conceito de justiga ‘como sendo distinto das varias concepgses de justica e como sendo especificado pelo papel que esses diferentes conjuntos de principios, essas diferentes concepgdes, tém em comum', Desse modo, os que defendem outras concepgdes de justica podem ainda assim concordar que as instituigBes sio justas quando nio se fazem distinges arbitririas entre as pessoas na atribuigio de direitos e deveres bisicos e quando as regras de- terminam um equilibrio adequado entre reivindicagdes concor- rentes das vantagens da vida social. Os homens conseguem concordar com essa descrico de instiuicdes justas porque as nogdes de uma distingdo arbitréria e de um equilibrio apropria- do, que se incluem no conceito de justiga, ficam abertas & in- terpretagio de cada um, de acordo com os principios da justica, que ele aceita. Esses principios determinam quais semelhancas diferengas entre as pessoas io relevantes na determinacio de direitos ¢ deveres e especificam qual divisio de vantagens é apropriada. E claro que essa distingao entre o conceito eas vie rias concepges de justiga no resolve nenhuma questio im- portante. Simplesmente ajuda a identificar 0 papel dos princi- pos da justia social. Um certo consenso nas concepgses da justiga nfo é, toda via, o tinico pré-requisito para uma comunidade humana vii vel. Hé outros problemas sociais fundamentais, em particular 08 de coordenacéo, eficiéncia e estabilidade. Assim, os planos dos individuos precisam se encaixar uns nos outros para que as vrias atividades sejam compativeis entre sie possam ser todas executadas sem que as expectativas legitimas de cada um so- fram frustragGes graves. Mais ainda, a execugao desses planos deveria levar & consecusao de fins sociais de formas eficientes coerentes com a justica. E por fim, 0 esquema de cooperagio social deve ser estavel: deve ser observado de modo mais ou ‘menos regular e suas regras basicas devem espontaneamente TEORIA 7 ortear a agdo; e quando ocorrem infragies, devem existir for- ‘2s estabilizadoras que impegam maiores violagBes e que ten- ‘dam a restaurar a organizacio social. Agora é claro que esses trés problemas estio vinculados com o da justiga. Na auséncia, de uma certa medida de consenso sobre o que é justo e o que é injusto, fica claramente mais dificil para os individuos coorde- har seus planos com eficiéncia a fim de garantir que acordos mutuamente benéficos sejam mantidos. A desconfianga ¢ 0 tessentimento corroem os vinculos da civilidade, a suspeita e ‘a hostilidade tentam os homens a agir de maneiras que eles em circunstincias diferentes evitariam. Assim, embora 0 papel distintivo das concepcdes da justia seja especificar os direitos ce deveres bisicos e determinar as partes distributivas apropria- das, a maneira como uma concepso faz isso necessariamente afeta os problemas de eficiéncia, coordenagio e estabilidade. ‘Nao podemos, em geral, avaliar uma concepeio da justica uni- camente por seu papel distributivo, por mais itil que ela seja na identificagio do conceito de justiga. Precisamos levar em conta suas conexdes mais amplas; pois embora a justga tenha uma certa prioridade, sendo @ virtude mais importante das institui- bes, ainda € verdade que, em condigSes iguais, uma concep- io da justiga & preferivel a outra quando suas conseqiéncias 4nais amplas sio mais desejaveis 0 objeto da justisa Muitas espécies diferentes de coisas sio consideradas jus- {as ¢ injustas: nlo apenas as leis, as instituigdes e os sistemas “sociais, mas também determinadas ages de muitas espécies, incluindo decisdes, julgamentos e imputagées. Também cha- ramos de justas ¢ injustas as atitudes e disposicies das pes- 035, €as proprias pessoas. Nosso tépico, todavia, & 0 da justi- 6a social, Para nés 0 objeto primério da justica é a estrurura bisica da sociedade, ou mais exatamente, a maneira pela qual as instituigdes sociais mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais determinam a divisio de vantagens viyitanzauy cuit Cam 8 UMA TEORIA DA JUSTICA provenientes da cooperagio social. Por instituigdes mais im- pportantes quero dizer a constituigao politica e os principais acor- dos econémicos e sociais. Assim, a protecao legal da liberdade de pensamento ¢ de consciéncia, os mercados competitivos, a propriedade particular no ambito dos meios de produgio ¢ a familia monogimica constituem exemplos das instituigies So- ciais mais importantes. Tomadas em conjunto como um tinico ‘esquema, as instituigdes sociais mais importantes definem os direitos e deveres dos homens e influenciam seus projetos de vvida, o que eles podem esperar vira ser eo bem-estar econdmi- ‘co que podem almejar. A estrutura basica é 0 objeto primirio da justiga porque seus efeitos sio profundos e estio presentes desde © comego. Nossa nogio intuitiva é que essa estrucura ccontém varias posigSes sociais e que homens nascidos em con- digses diferentes t8m expectativas de vida diferentes, determi- nadas, em parte, pelo sistema politico bem como pelas circuns- tincias econémicas e sociais. Assim as instituigGes da socieda- de favorecem certos pontos de partida mais que outros. Essas io desigualdades especialmente profundas. Nio apenas sio difusas, mas afetam desde o inicio as possibilidades de vida dos seres humanos; contudo, nfo podem ser justificadas me- diante um apelo as nogdes de mérito ou valor. E a essas desi- ‘qualdades, supostamente inevitiveis na estrutura bisica de ‘qualquer Sociedade, que os principios da justia social devem ser aplicados em primeiro lugar. Esses principios, entdo, egu- Jam aescolha de uma constituicdo politica ¢ os elementos prin- cipais do sistema econdmico e social. A justica de um esquema social depende essencialmente de como se atribuem direitos © ddeveres fundamentais e das oportunidades econdmicas ¢ con- digdes sociais que existem nos varios setores da sociedade, O alcance de nossa indagaco esta limitado de duas ma- neiras, Primeiramente, preocupa-me um caso especial do pro~ bblema da justiga. Nao considerarei a justiga de instituigdes ¢ priticas sociais em geral, nem, a nfo ser de passagem, ajustica das leis nacionais e das relagbes internacionais (§ 58). Portan- to, se supusermos que o conceit de justica se aplica sempre {que hi uma distribuigao de algo considerado racionalmente TeoRIA 9 vvantajoso ou desvantajoso, estaremos interessados em apenas ‘uma instincia de sua aplicagio, Nao ha motivo para supor de Antero que 0s principios satisfatorios para a estrutura basica se mantenham em todos os casos. Esses principios podem no funcionar para regras e priticas de associagées privadas ou para aquelas de grupos sociais menos abrangentes. Podem ser irrelevantes para os diversos usos informalmente consagrados € comportamentos do dia-a-dia; podem no elucidar a justica, ou melhor talvez, a equidade de organizagoes de cooperacdo voluntéria ou procedimentos para obter entendimentos contra- tuais. As condigdes para 0 direito internacional talvez exija principios diferentes descobertos de um modo um pouco dife- rente. Ficarei satisfeito se for possivel formular um concep¢ao rarovel da justia para a estrutura basica da sociedade conce- bida por ora como um sistema fechado, isolado de outras socie- ddades. A importincia desse caso especial é dbvia endo precisa de nenhuma explicagdo. E natural conjeturar que, assim que tivermos uma teoria sélida para esse caso, a sua luz 0s proble- mas restantes da justica se revelario administriveis. Com mo- dificagdes adequadas essa teoria deveria fornecer a chave para algumas outras questdes. ~_A.outra limitagio em nossa discusso ¢ que na maioria dos casos examino os principios de justica que deveriam regu- ler uma sociedade bem-ordenada. Presume-se que cada um aja ‘com justiga ¢ cumpra sua parte para manter insituigdes justas. Embora a justiga possa ser, com observou Hume, a virtude cau- telosa e ciumenta, ainda podemos perguntar como seria uma sociedade perfeitamente justa. Assim examino primeiramente © que chamo de teoria da conformacio estrita em oposicdo & teoria da conformagio parcial (§§ 25, 39). Esta dltima estuda, 98 principios que determinam como devemos lidar com a in- justca. Abrange tépicos tais como a teoria da pena, a doutrina da guerra justae a justificagdo das varias maneiras de oposigio a regimes injustos, variando da desobediéncia civil e da obje- fo de consciéncia & resisténcia armada e & revolugdo. Tam- bbém se incluem aqui questdes de justica compensatéria e da avaliagdo de uma forma de injustiga institucional em relaglo a viyitaliZauv cunt vam 10 UMA TEORIA DA JUSTICA coutra. E ébvio que os problemas da teoria da submissio parcial ‘io questdes prementes e urgentes. So coisas que enfrentamos no dia-a-dia. A razdo para comegar com a teoria ideal & que ela oferece, ereio eu, a tinica base para o entendimento sistemitico desses problemas prementes. A discussio da desobediéncia ci- vil, por exemplo, depende dela (§§ 55-59). No minimo, quero presumir que de nenhum outro modo se pode conseguir um entendimento mais profundo, e que a natureza € 0s objetivos de uma sociedade perfeitamente justa sio a parte fundamental da teoria da justca. (Ora, admitimos que 0 conceito de estrutura bésica é um tanto vago. Nao esti sempre claro quais instituigdes ou quais de seus aspectos deveriam ser incluidos. Mas seria prematuro preocupar-se com essa questio agora. Prosseguirei discutindo principios que realmente se aplicam aquilo que ¢ certamente ‘uma parte da estrutura basica como a entendemos intuitiva- ‘mente; tentarei depois estender a aplicacdo desses principios de modo que cubram 0 que pareceria constitu os elementos principais da estrutura bisica, Talvez esses principios demons- tem ser perfeitamente gerais, embora isso seja improvavel. E suficiente que se apliquem aos casos mais importantes de justi- «6a social. O ponto que se deve ter em mente é que a concepei0 da justiga para a estrutura bisica tem valor intrinseco. Nao deveria ser descartada s6 porque seus principios nao sio satis- fatérios em todos os casos. i Deve-se, entio, considerar que uma concepelo da justica social fornece primeiramente um padrio pelo qual se devem avaliar aspectos distributivos da estrutura basica da sociedade. Esse padrio, porém, nio deve ser confundido com os princi- piios que definem outras virtudes, pois a estrutura bisica ¢ as organizagies sociais em geral podem ser eficientes ou inefi- cientes, liberais ou no liberais, e muitas outras coisas, bem como justos ou injustos. Uma concep¢ao completa, definidora de principios para todas as virtudes da estrutura bisica, junta- mente com seus respectivos pesos quando conflitantes entre elas, & mais que uma concepeao da justica; é um ideal social (Os principios da justica so apenas uma parte, embora talvez @ TEORA i parte mais importante, de uma tal concep¢ao. Um ideal social std, por sua vez, ligado a uma concepcdo de sociedade, uma visio do modo como 0s objetivos e propésitos da cooperagio social devem ser entendidos. As diversas concepges da justiga sio 0 resultado de diferentes nocaes de sociedade em oposicéo ‘0 conjunto de visdes opostas das necessidades e oportunida- des naturais da vida humana, Para entender plenamente uma céncepgao da justiga precisamos explicitar a concepséo de cooperagao social da qual ela deriva. Mas ao fazermos isso nio deverfamos perder de vista 0 papel especial dos principios da Justiga ou o objeto principal ao qual eles se aplicam. ‘Nessas observacdes preliminares fiz uma distingdo entre 0 conceito de justica significando um equilibrio adequado entre reivindicagdes concorrentes e uma concepgao da justica como tum conjunto de principios correlacionados com a identificagio das causas principais que determinam esse equilibrio. Também. caracterizei a justica como sendo apenas uma parte de um ideal Social, embora a teoria que vou propor sem diivida amplie seu significado quotidiano. Essa teoria ndo ¢ apresentada como uma descrigdo de significados comuns mas como uma avaliagio da importincia de certos principios distributivos para a estrutura bisiea da sociedade. Pressuponho que qualquer teoria ética razoavelmente completa deva incluir principios para esse pro- blema fundamental e que esses principios, sejam quais forem, constituem sua doutrina da justia. Considero por conseguinte que o conceito de justica se define pela atuagio de seus princi- pos na atribuigdo de direitos e deveres ¢ na definicao da divi- ‘io apropriada de vantagens sociais. Uma concepedo da justica ‘é uma interpretacio dessa atuacio. Mas essa abordagem nio parece adequar-se com a tradi- 6%. Creio, porém, que o faz. O sentido mais especifico que Aristételes atribui a justiga, e do qual derivam as formulagses mais conhecidas da justica, é 0 de evitar a pleonevia, isto & evitar que se tire alguma vantagem em beneficio préprio to- mando 0 que pertence a outrem, sua propriedade, sua recom- pensa, seu cargo, ¢ coisas semelhantes, ou recusando a alguém ‘0 que Ihe € devido, o cumprimento de uma promessa, 0 paza~ viyitalzauv coil 2 UMA TEORIA DA JUSTICA mento de uma divida, a demonstragio do respeito devido, € assim por diante’. Evidentemente essa definigdo esté estrutura- dda para aplicar-se a agies, € as pessoas sio consideradas justas na medida em que terham, como tum dos elementos permanen- tes de seu cariter, um desejo firme e eficaz de agir com justiga, A definigio de Arist6teles claramente pressupde, todavia, uma explicagao do que propriamente pertence a uma pessoa e do que lhe € devido. Ora, tais direitos muitas vezes derivam, creio eu, de instruigdes sociais e das expectativas legitimas que elas originam, Nao ha motivo para pensar que Aristoteles discorda- ria disso, ¢ ele certamente tem um concepedo de justiga social para explicar essas pretensdes. A definicd0 que adoto objetiva aplicar-se diretamente a0 caso mais importante, a justica da estrutura bisica. Nao ha conflito com a nogio tradicional 3. A idéia principal da teoria da justica ‘Meu objetivo é apresentar uma concepeZo da justica que generaliza e leva a um plano superior de abstrago a conhecida teoria do contrato social como se Ié, digamos, em Locke, Rousseau e Kant’, Para fazer isso, ndo devemos pensar no con- trato original como um contrato que introduz uma sociedade particular ou que estabelece uma forma particular de governo. elo contririo, a idéia norteadora é que os principios da justica para a estrutura basica da sociedade sdo 0 objeto do consenso original, So esses principios que pessoas livres e racionais, preocupadas em promover seus préprios interesses, aceitariam ‘numa posigio inicial de igualdade como definidores dos ter- ‘mos fundamentais de sua associagao. Esses principios devem regular todos os acordos subseqlientes; especificam 0s tipos de ‘cooperagao social que se podem assumir e as formas de gover- no que se podem estabelecer. A essa mancira de considerar os principios da justica eu chamarei de justiga como equidade. ‘Assim, devemos imaginar que aqueles que se comprome- tem na cooperacio social escolhem juntos, numa agdo conjun- 1a, 0s principios que devem atribuir os direitos e deveres bisi- TeORIA B cose determinar a divisio de beneficios sociais. Os homens de- vem decidir de antemao como devem regular suas reivindica Ges miituas ¢ qual deve ser a carta constitucional de fundacao de sua sociedade. Como cada pessoa deve decidir com 0 uso da razio 0 que consttui o seu bem, isto €, 0 sistema de finalidades que, de acordo com sua razao, ela deve buscar, assim um grupo de pessoas deve decidir de uma vez. por todas tudo aquilo que centre elas se deve considerar justo e injusto. A escolha que ho- ‘mens racionais fariam nessa situagdo hipotética de liberdade cequitativa, pressupondo por ora que esse problema de escolha tem uma solugdo, determina os principios da justica 'Na justiga como eqiidade a posigdo original de igualdade ccorrespande 20 estado de natureza na teoria tradicional do con ‘rato social. Essa posicio original ndo é, obviamente, concebi- dda como uma situa¢ao histérica real, muito menos como uma condicao primitiva da cultura. E entendida como uma situagio puramente hipotética caracterizada de modo a conduzir a uma ccerta concepgao da justica’. Entre as caracteristicas essenciais dessa situacdo esta o fato de que ninguém conhece seu lugar na sociedade, a posigdo de sua classe ou o status social e ninguém conhece sua sorte na distribuicio de dotes e habilidades natu- ras, sua inteligéncia, forga, e coisas semelhantes. Eu até presu- tmirei que as partes ndo conhecem suas concepedes do bem ou suas propensdes psicolégicas particulares. Os principios da Justia sdo escolhidos sob um véu de ignorincia. Isso garante que ninguém é favorecido ou desfavorecido na escolha dos principios pelo resultado do acaso natural ou pela contingéncia de circunstincias sociais, Uma vez que todos esto numa situa- ao semelhante e ninguém pode designar principios para favo- recer sua condico particular, 0s principios da justica sio 0 resultado de um consenso ou ajuste eqiitativo. Pois dadas as circunstincias da posicio original, a simetra das relages mii- tuas, essa situacio original & eqiitativa entre os individuos tomados como pessoas éticas, ito é, como seres racionais com objetivos préprios e capazes, na minha hipétese, de um senso de justiga. A posigio original é, poderiamos dizer, o status quo inicial apropriado, e assim os consensos fundamentais nela viyitaizauy cuit Cam 4 UMA TEORIA DA JUSTICA Icangados sio eqiitativos. Isso explica a propriedade da frase sjustiga como eqiidade”: ela transmite a idéia de que os prine pios da justiga sio acordados numa situagdo inicial que é eqii tativa, A frase nao significa que os conceitos de justiga ¢ eqiida- de sejam a mesma coisa, assim como a frase “poesia como me~ tora” nlo significa que os conceitos de poesia e metifora sejam a mesma coisa. ‘A justiga como eqiiidade comega, como ja disse, com uma ddas mais genéricas dentre todas as escolhas que as pessoas po- dem fazer em conjunto, especificamente, a escolha dos primei- ros principios de uma concepeao da justica que deve regular to- das as subseqiientes criticas e reformas das instituiges. Depois de haver escolhido uma concep¢io de justica, podemos supor ‘que as pessoas deverdo escolher uma constituicio ¢ uma legis~ latura para elaborar leis, e assim por diante, tudo em consoniin- cia com os prineipios da justica inicialmente acordados. Nossa situaglo social sera justa se for tal que, por essa seqiéncia de ‘consensos hipotéticos, nos tivermos vinculado por um sistema de regras que a definem. Além disso, supondo que a posigao original determine um conjunto de principios (isto é, que uma concepeio particular de justica seja escolhida), sera verdade que, quando as instituigdes sociais satisfazem esses principios, ‘os que participam podem afirmar que estio cooperando em termos com os quais eles concordariam se fossem pessoas livres e iguais cujas relacdes miituas fossem eqiitativas. Todos poderiam considerar sua organizacao como correspondendo is condigdes que eles aceitariam numa situado inicial que incor- pore restricdes amplamente aceitas € razoaveis & escolha dos Principios. O reconhecimento geral desse fato forneceria a base para a aceitacdo piblica dos principios correspondentes, dda justica. Obviamente, nenhuma sociedade pode ser um sis- tema de cooperacio que os homens aceitam voluntariamente ‘num sentido literal; cada pessoa se encontra ao nascer numa posicdo particular dentro de alguma sociedade especifica, ¢ natureza dessa posigdo afeta substancialmente suas perspecti- vvas de vida. No entanto, uma sociedade que satisfaca os princi- pios da justiga como eqiidade aproxima-se o maximo possivel TeORIA 15 de ser um sistema voluntirio, porque vai ao encontro dos prin- cipios que pessoas livres e iguais aceitariam em circunstincias cqiitativas. Nesse sentido seus membros sio auténomos € as obrigagdes que eles reconhecem sio auto-impostas. Uma caracteristica da justiga como eqiidade €a de conce- ber as partes na situagao inicial como racionais ¢ mutuamente desinteressadas. Iss0 nio significa que as partes sejam eg tas, isto, individuos com apenas certostipos de interesses, por ‘exemplo,riquezas, prestigio e poder. Mas sio concebidas como pessoas que ndo tém interesse nos interesses das outras. Elas devem supor que até seus objetivos espirtuais podem softer oposigio, da mesma forma que os objetivos dos que professam religides diferentes podem softer oposicio. Além disso, 0 con-

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