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‘ousor integrar - revista de reinsergBo sociale prova | n.° 1, 2008: 21-32 Programas de intervencao em agressores de violéncia conjugal Intervencao psicolégica e prevencao da violéncia doméstica Celina Marita * RESUMO - No presente tex10 sao apresentadas algunas informagdes ¢ reflexdes sobre a intervencdo em agressores ¢ as suas principais caracteristicas, seguindo-se uma descrigado geral dos principais tipos de programas de intervengio em ‘agressores actualmente existentes wna caracterizagiao dos programas de imtervencao em agressores desenvolvidos no GEAV ~ Gabinete de Esudos ¢ Atendimento a Vitinas da Faculdade de Psicologia e Ciencias da Educagdo da Univer- sidade do Porto, Conelui-se com algumas consideracdes em torno da relevancia dos programas de intervengio em agressores, designadamente 0 seu contributo para a prevencio da violéncia doméstica/conjugal Palavras-chave - violencia doméstica e conjugal, intervengao em agressores, programas psicoeducacionais, programas de intervencao psicoldgica ABSTRACT - fn this articte the author presents some information and makes some considerations about the intervention with perpetrators of domestic violence and its main characteristics, followed by a general description of the main types of intervention programmes used with perpetrators and a more specific characterization of the intervention programmes developed by GEAV « Centre for Research and Counselling of Victims and Offenders of the Schoo! of Psychology and Educationat Sciences of the University of Porto (Gabinete de Estudos € Atendimento a Vitimas, da Faculdade de Psicologia ¢ Citncias da Educagao da Universidade do Porto). In the conelusion are made some reflections on the importance of the intervention programmes with perpetrators, namely their contribution to the prevention of domestic violence. Keywords - domestic violence, intervention with aggressors, psycho-educational programmes, psychological interven- tion progranmes RESUME - Dans cet aicte Paueur présente quelques informations et éflexions sur intervention auprs des agreseurs eles principe caractéisiques de cere inervention, suis d'une description générale des plus inponams types de programmes @inervention existants au présente! une earacérsation plus détaile des programmes intervention aupres des agresseurs ‘veloppé au GEAV ~ Cente d’Enudes et d'intervention avec Vcines et Agresseurs de ta Faculté de Psychologie et Sciences de L’Education de I'Université de Porto. L'auteur conclue avec quelques considérations au tour de V'importance des programmes intervention auprés des agressens, notamment sa contribution & ta prévention de la violence domesiquefconhgale. Mots-clés « violence domestique/conjugal, intervention auprés des agresseurs, programmes psycho-educatves, programmes d'intervention psychologique AAs sociedades securitérios do final do século Xe (e vice-versa), como aconteceu com a viol8ncio con- inicio do século XXI s6o caracterizados por ume ele- tro as mulheres e os criancas, duronte séculos tida vod sensiblidade & violencia simbdlica eco proprio como natural, ndo problematizada, e que s6 come- sentimenio de inseguranca (Agra, 1999; Lipovetsky, cou a ser encorada como problema social a com- 1989), obrigando-nos a pensor de forma diferen- _bater em meados do século XX ciada os vérios fipos de violéncios e os diferentes vertentes do fenémeno da violéncia, bem como a Se queremos discutiro estatuto de cientilicidade das interrogar-lhe as légicas e sentidos actuais. Assisti- actuais praticas e dos actuais discursos sobre a vio- mos hoje & co-ocorréncia do que vem sendo designa-_léncia, em particular sobre a violencia doméstico/ do como a violéncia sof ~exercida pelas insténcias conjugal, teremos, entéo, de proceder o um exerci- de controlo formal, violéncia estruural,invisivel, acei- cio miltiglo de problematizacéo do campo de objecios te e aié exigida pelos cidaddos -e. violéncia horde enunciados que este conceito recobre, de recons- visivel, publicomente condenado, criminalizado e truco légica dos sistemas que a enunciom e de punido, que nos assusia ov incomoda, que quere-andlise critica dos paradigmas que tendem a ‘mos comboier e eliminor (idem). A violéncio soft de explicé-la (Agro, 1999). Sendo um fenémeno si- um tempo é muitos vezes a violencia hard de outro multaneamente da ordem dos facios (dominio da ~ Dowtoado am Piaigi Preesor race do Facade de Psicologia ed Circe do Edvcogdo de Universidade do ot, Directors doGEAV'- Gabinete deEshdos e Nendenenioa Vimo eeina@oce.up 2 ‘ousorintegrar- revisla de reinsercio sociale prove | n° 1, 2008 ciéncio, do empirico) e dos valores (dominio do oxiolégico}, 0 viol&ncia apela quer ao exercicio do explicagéo quer ao exercicio da interpretagéo ou hermenéutica (idem). Nae hovendo espaco, no contexto deste orligo, pore realizar tal exercicio, apelamos, contudo, @ necessi- dade de se exercer um olhar critico e distanciado sobre os discursos mais imediatisias e do senso co- mum, bem como sobre as prélicas ndo sustentadas no conhecimento e na rellexdo que frequentemente se produzem neste dominio, A violencia doméstica e, em particular, a violéncia conjugal , revelo-se um fenémeno complexo e multidimensional que exige agrelhas de leituro e modelos de iniervencéo iombem eles complexos e muliidimensioncis. Uma adequa- dda compreensdo e intervengéo neste fenémeno exi- ge, olém disso, a tomoda em consideracao dos dife- rentes aciores e dinémicos envolvidos. Desde logo, @ vitima, © agressor © as dinémicas individucis, diddicas € socioculturais que sustentam as interaccées vielentas. Nesse sentido, realizar estudos nacionais sobre este fenémeno é crucial; interir junto dos vitimas de violéncia doméstica 6 um imperativo; agilizaro sis- temo judicial e investir na formagéo especializada dos magistrados e de todos os outros aclores do sistema judicial que intervém nos casos de violén- cia doméstica/conjugal ¢ fundamental; apostor no formagio pré e pés-groduada dos profissionais de jude as vilimas fundamental; promover a edu- cago para « igualdade e pora a néo-violéncia & cruciol; intervir junio dos perpetradores de violén- cio conjugal é também um elemento central para a redug6o do violencia doméstica e conjugal. CONSIDERACOES GERAIS SOBRE OS PROGRAMAS DE INTERVENCAO EM AGRESSORES Ume anélise e reviséo histérica da evolucéo dos progromas de intervencéo em agressores, no pla- ‘no nacional e internacional (Manita, 20050), reve- lou-nos que, durante anos, a intervengéo junto dos agressores no foi bem aceite por muitos dos pro- fissionois que intervém junio das vitimos e que con- siderovam, entre outros aspectos, que aqueles de- veriom ser punidos, ndo ojudados, e que os recur sos humanos ¢ econémicos o canalizor parc ¢ in- 22 jervengéo junto dos agressores eram recursos que faziam falta para 0 apoio € o intervencdo junto das vitimas e, portanto, néo deveriom ser aplicados noqueles. Acredilavam ainda que desenvolver pro- gromas de inlerveng6o para agressores significova desculpabilizor © seu comportamento ou desvalo- fizar o vertente criminal dos acios de violéncia do- méstica e violéncia conjugal. Tendo-se veriicado que nenhum destes argumen- tos correspondia @ realidade (isto é, apostar ope- nes na punigo no elimina, nem 1&0 pouco reduz, 08 niveis de violéncia conjugal; « intervencao em ‘agressores visa, em dltima instancia, a proteccao dos vitimas e @ prevengdo da reincidéncia em cri« mes de violéncia conjugal e, nesse sentido, contri- bui poro a reducéo dos custos individuois (da viti- mo), familiares, médicos, judiciais e sociais, da vio- lencie conjugal; ume dos condicées base do inter. vencdo em agressores é a responsobilizacéo dos perpetradores pelos seus acios ¢ suas consequéncias, como mais 4 frente veremos) os programas de iniervencéo em perpeiradores de vio- lencio doméstica/conjugal foram-se desenvolven- do e generalizando quer nos Estados Unidos da América, Canadé, Austrélia « Nova Zelandia, quer no meioria dos poises europeus Em Portugal, este processo repetiv-se, embora com ‘lguns anos de atraso em relagio 00s resianies pai- 528 europeus, tendo-se verficado que os primeiros programas de intervencdo em agressores se desen- volveram em finais dos anos 90 = na Universidade do Porto e na Universidade do Minho ~ suscitondo reservas e desconfiancos por parte de algumos dos inslivigGes e movimentos de apoio a vilimas; e que 6 nos climos 3 anos se verificou suo integracéo no conlexto do Plano Nacional de Luta contra 0 Vio- lencio Doméstica, assim como a compreenséo mois generalizade da sua validade e utilidade, com surgimento de novos programas e novas insivicdes ‘ue olerecem, hoje, diferentes modelos de inierven- 60 em diferentes regiées do po's (Manito, 20050) Aindo assim, « oferta é cloramente inferior 0s neces- sidades, facio que se fornou porlicularmente visivel depois da recente revisdio do Cédigo Penal e dos olteragées introduzidas no artigo 152.°. Parecem-nos estar, contudo, e apesar do reduzido numero de programas de inlervencéo em agressores, reunides os condicées de base para que tombém no nosso pals se comece a encarar a intervencéo junto das vitimas e a intervengGo junto dos agressores de violéncia conjugal, néo como respostos opostas ou concorrentes, mas como modalidades de intervencéo complementares, vi- sando um mesmo objectivo comum: « interrup¢ao da violencia, « proteccdo da vitima, 0 redugéo do violéncic conjugal e das elevados taxas de reinci- déncia neste tipo de crime. NGo obstonte a diversidade dos quadros teéricos em que assentam, dos modelos e estratégias de intervencdo a que recorrem e dos objectivos espe- cificos a que se propéem, € possivel ofirmar que o maioria dos programas de intervencdo existentes actualmente se inspira no madelo pioneiro do Pro- jecto de Duluth - Duluth Domestic Abuse Intervention Project (DAIP} -, da Universidade de Duluth, no Minnesota (Manita, 20050). O modelo de Duluth tem como um dos seus objectivos centrais coorde- nor os diversas insftuicées (judiciais, policiais, de saide, rede de apoio a vitimas, etc.) que lidam com estes casos, tendo como principal preocupacéo gorantir a seguranca da vitima. A intervencao é desenvolvide o partir de um curriculo educacional denominado "Creating a Process of Change for Men Who Batter” (que se desenvolve ao longo de 24 semanas) ¢ assenta em 5 pilares fundamentais, de entre os quais destacamos o principio de que a responsabilidade pela mudanga do comportamento do agressor deve recair, nao openas sobre este, mas sobre todo « comunidade, sendo uma das respon- sobilidades da comunidade e de sociedade a pro- mogGo de novos estratégias educativas e a promo- {GG0 dos principios do igualdode, © combate a “vio- lencia socializada” e as crencos ¢ alitudes que sus- tentam ou legitimam a prética de octos violentos; 0 principio de que é necessério trabalhar de forma articuloda, em rede; ¢ o principio de que 0 protec- <0 da vitime € sempre uma prioridade na inter vencao com os agressores (Paymar, 2000; Pence, Poymar, Ritmeester & Shepard, 1993). No bose da consirucéo deste documento, destina- do @ intervencdo com agressores, esliveram ques- tes colocadas em sintonia com o que seria 0 pon- to de vista do mulher vitima, entre elas: porque é o mulher (ou aquelo mulher em pariicular) 0 elvo de sua violencia? Como é que a sua conduta reflecte © impacto do desnivel de poder na relacéo? O que € que 0 agressor acha que vai alcancar/modificar 23 orto através de agresséo? Porque é que parte do princi- pio de que é ele quem delém o poder na relacao? Como & que a comunidade edopte uma posture de conivéncia com @ sua conduto violenta? Se durante 0 proceso de intervencéo estas ques- tes forem reflectidas e respondidas pelos perpetradores de violéncia conjugal, entéo, 6 um primeiro grande passo teré sido dado. No contexlo do Projecto de Duluth, como na maio- ric dos outros programas, 0 agressor é entendido como um individuo que foi submetido a modelos e podrdes de socializagéo que Ihe incutirom um sen- fimento de superioridade de género e que Ihe ensi- naram diversas formas de dominacéo {traduzides graficamente na “Roda do Poder”), mas tois factos néo obviam a que cada agressor seja responsobili- zodo pelos seus actos pessoais, assuma as suas cousas € consequéncias, e se responsabilize acti- vamente por os transformar (Paymor, 2000; Pence, Paymar, Ritmeester & Shepard, 1993) E, tal como o Duluth, @ maiorie dos programas de infervengGo em agressores parte de um quadro de leitura do fenémeno da violencia daméstica/conju- gol de cariz feminista ou pré-feminista, enfatizando uma perspectiva de género e explicondo a violén- cia doméstica como produto de uma combinagde de factores culturais, individuais e situacionois. Es- tas obordagens teéricas apontom as questées de género, a discrepéncia de poder entre homens mulheres ainda hoje existente e a esirutura patrior- cal da sociedade como um dos mais importantes factores explicativos do violéncia conjugal. Se neste ‘artigo nos vamos referir apenas 4 violéncia que é exercida no contexto das relacées heterossexvais segundo as esiotisticas judiciais e os estudos empiricos, uma violéncia dominantemente exercida pelos homens contra as mulheres -, néo podemos, contudo, esquecer quer a violéncia que é exercida ne quadro das relages homossexuais ~ @ exigir novos elementos de leitura teérica € algumas especificidades ao nivel do intervengée que come- sam agora « ser estudodas no nosso pals ~ quer a violéncia que & exercido pelas mulheres conkca os homens ou a violéncia motuo/reciproce (Sousela, 2006; Sousela, Machado & Manito, 2008) Para além dos quesiées de género, também as di- mensées individuais s60, segundo estas aborda- gens feéricas, fundamentois para se perceber o ‘ousorintegrar -cevsle de reinsersdo social e prova | 1. relagdo entre o comportamento agressivo ¢ as di- namicos educacionais e familiares, os mecanismos de coping aprendidos no infancio, os motivagées & dinémicas comportamentois de cada agressor. Da mesma forma, os varidveis situacionais ajudam-nos €@ ideniificar e compreender factores fundamentois para a intervencéo, como as circunstancias em que 6 tisco de ocorréncia de violencia conjugal é mois elevado ov os estratégias de racionalizacéo, de fexternalizagéo, de minimizacdo ou de negacéo de grovidade, intensidade e consequéncias do com- portamento violento a que 0 agressor recorre. Pore uma melhor planificacdo do intervengtio 6, as- sim, fundamental perceber o forma como as esco- thos comportamentais individuais séo constrangidas pelas normas sociais dominantes, pelos papéis soci- aise de género, pela forma como a sociedade estru- ture os relacdes inlimas e constréi a imagem de ho- mer ¢ de mulher, pela “sociolizacao 4 violencia” *yiolencio socializada” que ocorre em muitos comu- nidades e em muitas familias, pelo recurso 6 viol8n- ia visto como forma legitima de auto-afirmagéo {Ylo & Bogard, 1988; MacKinnon, 1989; Douglas, 1993; Yilo, 1993). A moioria dos actuais programas de interven- cdo em agressores parle lambém da premisse bose de que a violencia conjugal é um compor- tamento deliberado, intencional, através do qual um agente procura controlar outro, dominan- do-o e negando-Ihe a liberdade a que tem di- reito, endo fruto de uma determinacdo biolégi- ca ov psicopatolégica que determinaria o sujei- to pare além da sua vontade. Mesmo nos casos em que se verifice o co-ocorréncia de proble- mas de alcoolismo ou toxicodependéncia, ov for mos de psicopatologia menos severas, estes fun- cionoréo mais como factores potenciadores do risco do que como as cousas da violéncia con: jugol, sendo mutes vezes utilizados como “des culpo” pelos agressores, no seio de estratégios de auio-desculpabilizacdo ou de racionalizacao/ neutralizacéo do seu comportemento violento & tambem assumidos como justificacéo para 0 violencia pelas préprios vitimas que acabom por permonecer nas relacées violentas no expecta- tiva de ver emergir 0 “verdadeiro eu” néo vio- lento, néo perturbado do agressor, que se ocul- taré sob 0 dlcool ou outros problemas que aquele revele. 21,2008 24 Por variadas rox6es, estudadas j6 por diferentes ov- ores, sobre as quais n6o nos iremos alargar aqui, dodo que exiravasam os objectivos deste texto, as vitimos de violencia doméstica/conjugal, embora pretendam o fim do violéncio, podem nao querer fu néo estar preporadas para abandonar o com- panheiro (Walker, 1979, 1994; Gelles & Loseke, 1993}, mesmo quando a violéncia de que sao viti- mas se arrosta hé anos, produz consequéncias de- vastadoras e segue 0 padrao ciclico de repeticao de escalada definido como “o ciclo da violéncia” (Walker, 1979) £ sabide também que, quando as vitimas decidem romper com a situacdo violento e alastar-se do ‘agressor, essa ruptura néo elimina © risco ~ por vezes, 0 periodo pés-ruptura é mesmo o mais peri- oso para a vitima, ocorendo, néo roras vezes, escalados de violéncio, quando néo homicidios, no momento em que o agressor compreende que, no obsionie os esiratégias de controlo e deminacéo que implementou, néo obstonte o medo, os ameo- gas, 0 isolamento, néo obstonte os anos de sub- misséo silencioso, ¢ vilima tomou a deciséo de se cfastor e romper a relaco consigo. Por tltimo, os dados dos estudos empiricas @ 0 ex periéncia clinica demonstram que a violencia do- méstica/conjugal é um dos crimes com mais eleva- das taxos de reincidéncio. A probobilidade de um cgressor repetir actos de violéncia, néo s6 dentro de umo mesma relacéo, mos também em fuluras relagées intimos, & muito elevada Por todas estas razées, € cada vez mais consensual @ ideia de que é fundamental desenvolver progra mos de inlervencéo junto dos ogressores, em complementoridade com os programas de inter- vengéo em vitimas, de forma a promover mudan- os comportomentais € cognitivas nos agressores @ reduzir 0 risco de re-vitimagGo/reincidéncia no crime de violéncia conjugal e doméstica. Visondo proleccéo das vitimas actuais e/ou @ prevengao do vitimagéo em fuluras relacées, @ intervencdo em agressores consti um pélo fundemental em dife- rentes Plonos Nacionais de Combate & Violéncia Doméstico em poises como o Canad, os Estados Unidos da América, a Australia ov. a Nova, Zelandia fe, mais recentemente, Portugal (Ammerman & Herson, 1990; Gefiner & Rosenbaum, 2001; Manito, 20050)

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