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NICOLAU SEVCENKO Futebol, metrépoles e desatinos 3O REVISTA USP “Prrririii! - Af, Heitor! A bola foi parar na extrema esquerda. Melle desembestou com ela. A arquibancada pés-se de pé. Conteve a respiragao. Suspirou: - Aaaaaaahl(...) Em torno do trapézio verde a Ansia de vinte mil pessoas. De olhos vidos. De nervos elétricos. De preto. De branco. De azul. De vermelho. Delfrio futebolistico no Parque Antartica. Camisas verdes ¢ calgées negros corriam, pulavam, chocavam-se, embaralhavam-se,cafam,contorcionavam-se,esfalfavam-se, brigavam. Por causa da bola decouroamareloqueno parava, que no parava um minuto, um segundo. Nao parava. - Neco! Neco! Parecia um louco. Driblou. Escorregou. Driblou. Correu. Parou. Chutou. - Go0000000l! Gooooo000ll (...) - Alegu4-gué-gu4! Alegu4-gu4-gué! Urr4-urr4! Corinthians! Palhetas subiam noar. Com os gritos. Entusiasmosrugiam, Pulavam. Dangavam. E as mdos batendo nas bocas: -Go-0-0-0-0-0-0l! (...) Aexaltagaio decresceu como um trovao. (...) - Quantos minutos ainda? - Oito. Biagio alcancou a bola. Af, Biagio! Foi levando, foilevando. Assim, Biagio! Driblouum. Isso! Fugiu de outro. Isso! Avangava paraa vitria. Salame nele, Biagio! Arremeteu. Chute agora! Parou. Disparou. Pa- rou. Af! Reparou. Hesitou. Biagio! Biagio! Calculou. Agora! Preparou-se. Olha o Rocco! E agora! Af! Olha o Rocco! Caiu. -CA-VA-LO! Prerrrriii! - Pénalti! Omedo fez siléncio. Provrrriii! Pan! - Goooooool! Corinthians! - Quantos minutos ainda? Pri-pri-priiiiiii! - Acabou, Nossa Senhora! Nise ar) 6 professor Pot estnnry Frementes Pie) REVISTA USP 31 32 REVISTA USP conto se chama, laconicamente, “Corinthians 2 X Palestra 1”. Como se v8, mais do que um titulo, isso é um escore. O autor é 0 escritor e jornalista Antonio de Alcantara Machado. Desde o grande boomes- portivode 1919, quando. futebol se tornou uma mania que galvanizou toda a juventude da cidade, 0 entao estu- dante Alcantara Machado jai se destacava como entusiasta, compondo o grupo que criou a Liga Allética da Academia do Lar- gode Sao Francisco, a primeira associago atlética universitéria do pafs. Mais do que divulgare popularizarosesportes,comdes- laque parao futebol, oquea Liga se propu- nha era moldar uma cultura desportiva no sentido mais pleno da palavra. Os acade- micos cumpririam a risca essa sua determi- nagdo, mas Aledntara Machado, por sua propria conta e por conta da pereepgiio arguta que tinha da profunda transforma- do cultural que engolfava a sociedade Paulista, foi muito, muito além, Otextoacima é um primorde concisao, ritmo e vibragio. Ao mesmo tempo é fun- damentalmente visual. EquasesGimagem, movimento e ruido. Verbos, interjeigdes € onomatopéia. $6 hd um modo de ler esse texto: em voz alta, de um folego $6, com 0 frenesi apaixonado de um locutor de fute- bol. Mas note-se: essa profissiio ainda nao existia -0 que torna o fluxo arrebatado de Alcantara Machado numa espécie de dis- ‘curso premonit6rio ou elocugo congenial Aesséncia energética c passional doespor- te. Oescritorintuiuedeu formaliterériaao mag mesmo do fendmeno, Ha pois uma indiscutivel descontinuidadc entre essa es- crita do contista-locutor-toreedor ¢ litera- tura que a precede historicamente, Essa é uma escrita de énfase fisica, voltada para 95 sentides, os nerves € os m mais para o intelecto, a sensibil sentimentos. Aledntara Machado procura se comunicar comocorpo emsua presenga concreta, ndo com o intelecto em sua di- mensio mental abstrata O texto de Aleintara Machado 6 um documento de singular valor parase refle- tir sobre 0 impacto que o advento dos es- portes teve sobre a cultura no século XX, Asdiferentes modalidades esportivas atu: aistiveramsuaorigem,emgeral,apartirde transformagées, combinagdesc adaptagbes deintimeras préticas lidicasarcaicas, algu- mas populares outras aristocrdticas. Essas praticas podiam ter o sentido de lazer e en- tretenimento, como a caga (game) para as classes armadas ou as brincadeiras de rada para os grupos populares. Masseu carter essencial mantinha sempre um sentido ri- tual, com conotagdes estamentais, cerimo- niais ¢ confirmatérias de papéis ¢ simbolizagdes sociais. A invengao dos es- portes em fins do séeulo XIX, embora te- nha se alimentado dessa tradigfo, deu ori- gema coisa completamente diversa. O que caracteriza por exceléncia essa nova alivi- dade € a pressio dos desempenhos contra origordocrondmetro, acircunscrigio pre- cisa do espago da ago, a definigao de re- gras fixas e padrdes de arbitragem e sua institucionalizagdo em ligas locais, nacio- naiseinternacionais. Desempenhos medi- dos na linguagem abstrata dos ntimeros, desenvolvidos num espago abstrato, num tempo padronizado, segundo um anda- mento meticulosamente normatizado € configurados numa escala global. O cli- max dessas priticasmetodizadasse crista- liza nas Olimpfadas e nas Copas do Mun- do de futebol. E claro que alguém se lembrou de com- parar essas novas atividades com os antigos jogos olimpicos das gregos da época clissi- ca, tentando assim estabelecer uma ponte direta entre aquele momento de fastigia civilizacional, tomado como afonte mesma da grandeza hist6rica e do destino manifes- to do Ocidente, e 0 atual momento da ex- pansio e dominio imperial europeu sobre todaasuperficie do planeta. Foi porissoque 0 Ambito internacional das competigoes es- portivas foi batizado de Olimpico ese criou um pastiche do transporte da tocha olimpi- caa partirdosolo grego. Mas mesmo mais superficial das observagdes no podem es- capar as diferengas irredutiveis que sepa- ram osatuaisesportesdosjogosgregos. Para 5 antigos povos helénicos, aquele era um festival essencialmente religioso, cuja fun- gio era evocar a presentificagio do fluxo energético e fertilizador do cosmos, onous, no corpo jovem e viril de alguns guerreiros, através do ritual sacrificial da agonia, a dis- puta. Por isso 0s carpos jovense nus daque- lesguerreiros que, na plenitude doseu vigor ico, se demonstraram possufdos do nous, erameternizadosempedrae veneradospelo que sua imagem incorporava de divino. Nocaso dos esportes, todo o sentido da agdo converge para um efeito de maximizagao de um padrao de produtivi- dade. Por isso 0 resultado tem sempre que ser numérico: Corinthians 2 X Palestra 1; 100metrosrasos em 9,89 segundos; nocau- teaos2 minutose 33segundosdo7° assalto, etc. Alids, nada mais revelador nesse senti- do doque 0 fato de que tenha sido umatle- tafandtico por todasas priticas desportivas, ele proprio um alpinista famoso ¢ depois autor do primeira ¢ até hoje melhor méto- do para o treinamento racional de ténis, quem inventouo gerenciamento industrial cientifico ¢ as linhas de montagens, Frederick Winslow Taylor. Nemmenossin- tomético ¢ o fato de que tenha sido exata- mentenocontextoda Primeira Guerra que 0 gerenciamento cientifico ¢ as linhas de montagem encontraram as condigdes ide- ais para a sua rdpida ¢ inelutavel difusdo por todo 0 mundo, como um meio de maximizar a produgéo, multiplicando a ‘ofertae rebaixandooseustosdeformadrés- tica. Também nesse contexto é que asl dades atléticas tiveram 0 seu boom, com- preendidas como um segredo militar para aadequada preparagiodas tropas em vista dascondigdesde combate. O final da Guer- ra foi simbolicamente celebrado com uma grande Olimpfada militar, envolvenda to- dososefetivosdosexércitos vitoriosos, Em fungioda grande publicidade desses even- tosnaimprensainternacional équesedeve compreender a explosio da mania desportiva que tomou de assalto varias cidades por todo 0 mundo logo apés a Guerra, inclusive Si Paulo em 1919, le- vando 0 nosso académico de Direito An- AWnio de Alcantara Machado a partici da fundagao da primeira Liga Desportiva Estudantil do pais. As comparagdes e contextualizagbes nessa linha nao param de se multiplicar. Por exemplo, nao € tampouco casual que com a répida difusdo dessas novas fontes de energiaesuas respectivas tecnologias, a eletticidade e os motores de combustao interna movidos a derivados de petréleo, na segunda metade do século XX, tenha- mos acompanhado paralelamente uma in- tensa expansio do comércio ¢ processamento industrial de outras fontes, nese caso pessoais ¢ individuals, de ener- gia e excitantes, bebidas alcodlicas, refri- gerantes aditivados com estimulantes, ta- baco, agticar, cacau e, sobretudo, café. Numa clara demonstragio da destinagao individual desses produtos e de seu ajus- tamento com as necessidades de otimizagao ¢ aceleragio do desempenho industrial, o tradicional vinho ¢ substituf- do pela cerveja engarrafada,o tradicional charuto pelocigarro,otradicional ché pelo cafezinho, de preferéncia com bastante agdcar € acompanhado de uma bala de hortelé ovum bombonzinhade chocolate com recheio de licor. Em caso de calor, 0 cafezinho pode ser substitufdo pela coca- cola, Para casos de excesso ousobrecarga, nesse mesmo momento se dé a providen- cial invengao da aspirina, Outro dos componentes da Revolugao Cientifico-Tecnolégica desencadeada ao redor de 1870 foi a répida expansiio das grandes cidades, dando origem as metré- poles megal6polescontemporancas. Esse fendmenofoidecorrentedas migragdesem massa provocadas pelo alcance global das novas tecnologias, que na sua fome por novas fontes de matérias-primas ¢ merca- dos abrangeu todosos territériosda super= ficie do planeta numa feroze cdpida corri- sta, Pressionadas pelas novas que destruiamosmodosde vida tradicional, reduziam a necessidade de mao-de-obra, valorizavam terras, rios, montanhas ¢ mares ¢ levavam ao colapso civilizag6es inteiras, por mais milenares e sagradas que fossem suas bases, popula- gdes imensas foram deslocadas de seu habitat e postas a vagar pelo mundo ao sabor do mercado internacional de mio- de-obra, arrastadas pela velocidade dos novos transatlinticos,no maior movimen- to migrat6rio jamais registrado na histGria, Essas dezenas de milhdes de seres huma- nos cram atraidas e dragadas pelas novas fronteiras econdmicas em expansio, a pe- cudria na Australia c na Argentina, os mi- nérios no Chile e na Africa do Sul,o petré- Jeo no oeste americano, 0 ouro no Alaska, a monocultura nos Estados Unidos e no Canadé, o café no Brasil. Mas mais e mais, o destino inicial ou secundario dessa ava- lancha humana eram as grandes cidades tomadasde um prodigioso surto industrial. Osindices de crescimento urbano nesse pe- riodo passamaser espetaculares, as condi- REVISTA USP 33 34 REVISTA USP ‘gbes de vida nas novas metrépoles, porém, tornam-se draméticas, aflitivase, sobretu- do, perigosas. Diante desse quadro¢ dos imperativos que ele suscita, é que foram engendradas a arte, aciénciae atecnologia do urbanismo. A gestio de uma grande cidade se torna um complexo processo de administragao defluxos, Desdeainfra-estruturadeforne- cimentode dgua,cletricidade, gs,esgotos, aos sistemas de abastecimento de generos € produtos, 0s circuitos de distribuigio € direcionamento do tréfego conforme as flutuagées de demanda e hordrios de pico, © planejamento das zonas urbanas segun- dousos¢ fungdes, osservigos de seguranga publica, os equipamentos de lazer ¢ entre- amas de saiide, educa- prego ¢ habitagio, tudo passa a ser gerido por uma pequena elite técnica, detentora deumconhecimentoaltamenteespecializa do, a qual decide no sé sobre 0 destino geral, mas sobre as menores praticas cot dianas de cada cidadao. Adaptar portanto esse mesmo cidadao aossistemas, rotinase automatismos desse grande ¢ complexo parato metropolitano passa tambéma ser um problema das autoridades dirigentes, devendosertecnicamente resolvidosegun- docompeténcias superiores. Parase tomar um Gnico exemplo, atravessar uma aveni da especialmente em hordrio de rush, € um ato ousado que demanda uma sofisticada combinagao de instintos, ref xos, coordenagio motora ¢ disciplina de alosconcatenados. Comoessacombinagio complexa nos ¢ incorporada desde cedona vida, é muito dificil por isso atentar para o quao exigente esse pequeno ritual cotidia- no pode ser. Basta porém imaginar as r agdes dessa criatura que as metrépoles inventaram,o “caipira”, parase avaliaro caos que significa alguém solto no interi- orda megaldpole que nao estejaadequa- damente treinado para responder, auto- maticamente e sem parar para pensar, &s suas solicitagdes de accleragao de fluxos. Para piorar um pouco o quadro c realgar ‘oseu potencial de risco, pense-se no“ca pira” solto na megalépole no a pé, mas num carro superesporte num fim de tar- de de uma sexta-feira Por essa razio, portanto, ¢ nio apenas: em fungio das exigéncias do ritmo de pro- duo cadenciado pelas maquinase de situ- agdes de emergéncia como as guerras ou grandes evacuagdes, 6 que as autoridades desdecedocomegarama investir pesadoem educagaio fisica, atletismo, esportes e disci- plina coletiva. Hi af até um sutil jogo de polarizagées, dado que, uma vez postas as condigdes tecnolégicas que exigiam uma automogio das reagSes fisicas € reflexos humanos, houve uma tendéncia adaptativa no sentido de buscar um novo condiciona- mento corporal partindo da prépria popu- aco, que se predispésa uma intensificagio ¢ diversificagio de seus dispéndios fisicos, (08 quais em muitos casos $6 ulteriormente foram direcionados ¢ formalizados em ter- mosinstitucionais pelasautoridadesoupela nascente indiistria das diversdes e entrete- 1entos baratos. Exemplo disso 6a ampla difusao das misicas fortemente ritmadas e sincopadas logo no inicio da inddstria fonogrifica, polka, jazz, fox-trot, ra ango,habanera,maxixe, samba, ete. Eigual- mente perceptivel a relagio que logo se es- tabeleceu entre as coreografias das dangas populares cosestilosde praticasdesportivas em diferentes culturas e sociedades. Assim, quanto mais cedo uma erianga for exposta aessesestimulos de condiciona- mento, tantomaisfundoe rapidamente cles irdo se compor como um repertério incons- ciente de reagdes automatizadas, que itd garantir o perfeito ajustamento deste ser humano as miltiplas contingencias ¢ solici- isicas do ambiente urbano, Embora tudo isso nuneaseja explicitado, éno.entan- to intuitivamente muito claro para populagies, as quais esto expostas a esti mulosdessanaturezaque procedem dasmais variadas fontes ¢ convergem no sentido de promoversocialmenteepremiarsimbolica- mentequem melhorcoresponderasdeman- das damaiscompletadestreza fisica,dasmais ‘imediatas © precisas reagdes reflexas ¢ da mais fremente disponibilidade instintual, Essas qualidades se tornam to importan- tes, que aqueles que as levam aos seus limi- tesmaximose paraalém tornamseudesem- penho © mais excitante espetdculo para os demais, fazendo disso profissdes que esto dentre as de maior prestigio e as mais alta- mente remuneradasemescala mundial. Elas figuram no topo da hierarquia de valores, no ‘centro das representagies simbélicas¢ proje- -g6es desejantes, produzindo a galeria dos essas feonescotidianamentewenerados,quesusten- tam a pulsagao reiterativa dos meios de co- municagio ¢ tonificam o dia-a-dia estiolado pela rotina dos fatos previsiveis, dos gestos mecdinicos e da imaginagio impotente. Nes- se bravo mundo novo, os reis so os herdis maximos do esporte e do pop, de quem, gra- 23 a0s esforgas dos meios de comunicagao social, todos se sentem cortesdios, conselhei- ros, favoritos e eventuais amantes. Um dos aspectos mais prodigiosos da historiado futebol, desde suas origens, tem sido a rapidez extraordindria da expansdo da sua popularidade dentre as massas po- pulares, especialmente no contexto das ci- dades industriais. O fendmeno além de in- teressante € bastante revelador, tanto das caracteristicas mais atrativas deste espor- te,quantodoambiente peculiar criado pelo erescimento acelerado das cidades em pro- cesso de industrializagao. O fato j4 é nota- vel desde o momento da organizagao mais, efetiva do futebol come esporte profissio- nal, vinculado a uma entidade coordena- dora, a Liga, e programado segundo uma tabela de jogos que ao longo de uma tem- porada de disputas definiria um campedo final. Isso ocorreu na Inglaterra durante a década de 1880, ‘Cada uma das grandes cidades industri- ais inglesas se veria dividida nesse periodo ‘emduas imensas comunidades rivais, arras- ladas a0 mais apaixonado estado de loucu- ra,quandoostimes queasrepresentavam se viam frente a frente nos limites do gramado edos noventa minutos, Era uma comogao, um remoinho, um cataclisma de nervos ar- rebentados e coragdes explodidos, néio raro com algumas cabegas quebradas € olhos arroxeados. Era assim quando se enfrenta- vam, porexemplo,o Manchester Unitedeo Manchester City; o Nottingham Forest e 0 Nottingham County; 0 Glasgow Celtics ¢ 0 Glasgow Rangersouem Londres, qualquer partida em que se confrontassem os arqui- rivais Arsenal, Chelsea e Crystal Palace. Essas misteriosase parasempre inconci- lidveis divisées ocorriam por diferentes motivos, ora opondo catélicos contra pro- testantes, irlandeses ou gauleses contra anglo-saxdes, trabalhadores especializados contra ndo-especializados, residentes anti- gosda cidade contra imigrantes recenteseo que mais se imaginar, muitas vezes varias

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