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MATHESIS 6 1997 215-221 BILDUNGSREISE SEM «REGRESSO AO LAR» (ou 0 literdrio como real absoluto em Vergilio Ferreira) José CARLOS SEABRA PEREIRA «Pois que venha quando quiser! De h4 muito estou preparado...»: assim dizia Vergilio Ferreira sobre a eminente morte, e, sem 0 sabermos, para a morte iminente — com aquela frontal dignidade da existéncia cumprida e da inteligéncia desassossegada e irridente com que nos brindara por uma noite e um dia. Assim culminava, com contida emogio, a jomnada de celebragio critica da obra vergiliana (e de homenagem cordial ao escritor) que, em hora justa, tomei a iniciativa de promover na Faculdade viseense da Universidade Catélica Portuguesa. Assim se adensara, no meu caso, uma relagdo interpessoal, obvia- mente desigual, alimentada da minha admiracao e da generosidade de Vergilio Ferreira. Remontaya essa relagéo as anotagdes com que o meu juvenil neotomismo e a minha congénita vivéncia da literatura reagiam ao Espaco do Invisivel e & Aparigdo; prosseguira depois com encontros esporddicos, carteamento espacado, dedicatérias de trabalhos, postais evocativos de safdas académicas a pregar a boa nova vergiliana; e viera até aos contactos telefénicos do més derradeiro - em impressiva manifestagéo da vitalidade intelectual do escritor e do seu atento inte- resse pela actualidade literéria (que, com amizade, me manifestava a propésito do meu recente livro Do Fim-de-Século ao Modernismo). A propésito do grato significado, intelectual e humano, que para ele ganhara a jornada de Viseu, Vergilio Ferreira cuidava de me dar novas indicagées sobre a versio a publicar da intervengdo que ele mesmo ali fizera; e inquiria sobre 0 desenvolvimento que eu pensaria dar as propostas de leitura da sua obra, que ali apresentara sob o lema Linguagem do espanto, espanto da linguagem. Junto, pois, em pobre tentativa de manter a relagio com Ver- gilio Ferreira, algumas notas dessa minha relag&o actual com a sua 216 JOSE CARLOS SEABRA PEREIRA. obra — notas toldadas pela experiéncia de que, se ele estava preparado para a morte, eu e outros é que nao estévamos preparados para o ter vivo desta maneira... 1. ESPANTO E APARICAO - ALCANCE NOETICO E ONTOLOGICO «Mora de um lado 0 espanto [e a rvore]; do outro o absurdo» — eis © que a topografia da Vila e a geografia humana da Vida, no paroxismo expressionista de Raul Brandao, deixara 4 admiragio de Vergflio Ferreira, seu receptor criativo. Se a aparente bipolaridade brandoniana, tal como a do patético e do grotesco, j4 se desentranhava em desconcertante e peremptéria indissociabilidade, outro tanto se verificaré em Vergilio Ferreira. Mas dirfamos que, trocando as voltas aos pronunciamentos criticos ou aos simples testemunhos de gosto do autor empirito, o texto da sua narrativa ~ desde sempre, mas sobretudo na derradeira fase em que o seu romance problematico mais se torna Ifrico' - configura 0 «espanto» com uma dimens&o poética que, contemporaneamente ao admirado Raul Brandio, lhe fora conferida pelo menos estimado Teixeira de Pascoaes. Uma vez esbocada, no repetido «empecer» de Terra Proibida, a aparigaio do ser mais genufno a si mesmo, mediante um abalo de assombro, em Vida Etérea impée-se jd esse espanto éntico, proto- existencialista, em que o ser solitério e contemplativo desperta para a aparicio de si mesmo ou do outro como ser. E nele — «E tudo aparigao...» — que as Sombras particularizam o sentimento grave da Vida, desentranhado em urgéncia de interrogacao e de conhecimento; € ele que a Senhora da Noite faz reinar, qual fluxo encantado e pavido entre os existentes. E esse espanto, seduzido e intranquilo, que anima a metandéia de Mardnus, actualizada «no susto e no arrepio / De tao grande milagre». Choque a um tempo sensivel e noético, propiciatério da deslocaco perceptiva e da, enfim, penetrante intui¢ao do ser, vivem-no logo depois, em regime idéntico e outro, varias personagens do Regresso ao Paraiso”. Veja-se, culminando varios contributos hermenéuticos, a excelente tese de Rosa Maria Goulart, Romance Lirico. O Percurso de Vergilio Ferreira. Lisboa, Bertrand, 1990, 2 Vide José Carlos Seabra Pereira, «Raul Brando e o legado do Expressionismo» € «Teixeira de Pascoaes e a imaginagao saudosa», in Do Fim-de-Século ao Modernismo, vol. VII da Histéria Critica da Literatura Portuguesa. Lisboa, Verbo, 1995, Caps. 69. BILDUNGSREISE SEM «REGRESSO AO LAR» 217 Tao obsessivo, mas nao desorbitado, como em Raul Brandao, téo Ifrico, mas nao cosmogénico ou gnédstico, como em Teixeira de Pas- coaes, todo este vector do espanto se reactiva, mas se reformula, na narrativa de Vergilio Ferreira. Curiosamente, neste escritor que se sabia e se queria no limes de um ciclo da historicidade humana e que num dos seus depoimentos de prognose (induzida em entrevista) entendia que af caducava, entre 0 mais, a matriz aristotélica — neste escritor, dizia, afinal se refractam, vindas de Aristételes, as valoragdes do espanto como fonte de todo o conhecer’ e do correlato estranhamento discursivo como lance de conquista da visdo original. Ambos, estranhamento e espanto, transcendem em Vergilio Ferreira © dominio psicolégico e 0 formal, visam 0 alcance noético e ontolégico de uma refontalizagio paradoxalmente prospectiva e projectiva — de romance para romance mais latente como recuperagao da visio em inocéncia (em Pascoaes, rectificagao neo-franciscana), como encanto dos primeiros gestos e das imagens primigéneas (em Brandio, sortilégio clownesco ou marginal). De romance para romance, o espanto nao elimina, nem oculta a coabitacdo com o absurdo; mas cresce e impera como aura remanescente de um alterado confronto com tal absurdo, até parecer esgot4-lo numa reconversao misteriosamente ¢ indizivelmente pregnante. Esgoté-lo, nao apenas, nem sobretudo, por obstinado contflito e convivio — no sentido em que o préprio Vergilio Ferreira defendia que todos os problemas finalmente se gastam. O que o romance problemético e Ifrico de Vergflio Ferreira vinha fazendo era reconhecer 0 absurdo da condig&o humana numa éptica anti-fundacionalista e anti-transcendentalista, assumi-lo até ao seu extremo possivel e, se nao anulé-lo por exaustao, lev4-lo ao esgotamento na evidéncia exaltante da mesma condigao humana. Por isso esta se desloca, como diria Eduardo Lourengo, desde 0 alarme até & jubilagdo*, visando dar corpo ficcional, real, ao transito para 0 que, nos termos da Carta ao Futuro, se define como «a evidéncia de uma alegria final nos limites da nossa condig&o»* — e que é espanto, de novo, até ao fim! Cf. Vergilio Ferreira, Um escritor Apresenta-se. Lisboa, INCM, 1981, pp. 386, 388, etc. + Eduardo Lourengo, «Vergilio Ferreira. Do alarme & jubilagao.», in Coléquio/ Letras, n° 90, Margo 1986, pp. 24-34. 5 Vergilio Ferreira, Carta ao Futuro, 2 ed., Lisboa, Portugélia Editora, 1966, p.34, 218 JOSE CARLOS SEABRA PEREIRA 2. LINGUAGEM DO ESPANTO E ESPANTO DA LINGUAGEM Durante algum tempo, dirfamos que a deriva e o sucesso da obra de Vergilio Ferreira passavam pela busca de uma linguagem para tornar Presente, porventura preservar, em todo o caso compartilhar, essa experiéncia existencial do espanto noético e ontolégico. Gradativamente, porém, essa mesma experiéncia do espanto comega a alimentar-se também — se nao a prevalecer-se sobretudo — da maravilha, fascinante e asustadora, que é a linguagem. Oespanto da linguagem e da sua energeia, ao acentuar-se, permitiu A leitura critica aperceber-se melhor de que, no devir da ficco vergiliana, a Palavra nfo cede direitos A Consciéncia para exercerem a demiurgia € 0 «equilfbrio interior», na exploragéo semAntico-pragmatica da estru- tura textual em rosacea‘ e na instauragao da metanarratividade. A renovada atengdo da hermenéutica da obra vergiliana 4 «cele- braco da palavra» (em especial através de Fernanda Irene Fonseca)’ ou & emergente primazia da escrita (v.g., em Liicia Dal Farra, como ter- ceira instancia resultante da dissolugao da narrativa e do discurso ao longo do seu progressivo conflito, ou, em Eduardo Prado Coelho, como potencialidade que se sobrepde 4 inviabilidade do romanesco e que contraria ou reabsorve o reflexo teocéntrico)* tem, todavia, de consu- mar-se na fecunda incomodidade para que a remete a prépria metanar- ratividade vergiliana — pois esta «nao constitui, como em Nabokov e mesmo em Italo Calvino, um jogo engenhoso e irénico, mas a contraface lirica do narrador que, ao desvelar 0 nascimento do seu texto, ao interrogar-se sobre o sentido das suas estruturas discursivas e ao atentar no sortilégio das suas palavras, est4 a desvelar e a iluminar a arquitec- tura fantdstica da heideggeriana casa do ser»’. E facto que, no crescente espanto da linguagem, se afigura prenhe de consequéncias a duplicidade da instancia (empfrica e verbal) do real instaurada pelo simples desdobramento potencial do te em objecto ‘Robert Bréchon, «Prefacio a tradugao francesa» de Alegria Breve (cf. 5*ed. port., Lisboa, Bertrand, 1981, p. 9). "Fernanda Irene Fonseca, Vergilio Ferreira: a celebragao da Palavra. Coimbra, Almedina, 1992. "Cf. Eduardo Prado Coelho, «Signo Sinal, ou a resisténcia do invisivel», in Coléquio/Letras, n° 54, Margo 1980, reprod. in Hélder Godinho (org,), Estudos sobre Vergilio Ferreira. Lisboa, INCM, 1982, pp. 140 ¢ 144. ° Vitor Manuel de Aguiar e Silva, «Prefacio» a Rosa Goulart, Romance Ltrico, ed. cit., p. 10. BILDUNGSREISE SEM «REGRESSO AO LAR» 219 directo e objecto indirecto na abertura de Em Nome da Terra («Querida. Veio-me hoje uma vontade enorme de te amar. E entio pensei: vou-te escrever.»). Tal facto, porém, nao rasura a pendular atitude de obses- sdo e recusa de a Palavra antonomdsica e definitiva, 0 fascinio de dar a ver nomeando ¢ o pressentimento do potencial de morte que reside nessa nomeagio; nem elimina a atribui¢do ao Homem do poder demitirgico que promove no romance vergiliano a alterago radical do seu regime técnico-compositivo e estilistico. Sem embargo de uma e outra vez suscitar a sensagao de nos avizinharmos de um reconhecimento de que a Linguagem fala o Homem (em clave de “anti-humanismo” estruturalista), prevalece, como na tensaio de Alegria Breve, o antropocentrismo da aventura narrativa vergi- liana. Exige-o a obstinagdo, ao mesmo desenganada e gratificada, em esclarecer a verdade existencial como aquilo a que vivencialmente aderimos e se nos revela em harmonia, dentro de nés — de modo que 0 nosso ser se define e se justifica, isto é, se «cumpre» (no idiolecto vergiliano) nfo por «o que» fazemos, mas por «o proprio fazer» que conta com adesio total e auténtica do nosso eu. Linguagem do espanto e espanto da linguagem implicam-se, portanto, indiscernivelmente nessa demanda antropocéntrica; e a crescente relevancia da linguagem permanece, em boa parte, sua valorizagdo como meio de hominizag4o do mundo. 3. BILDUNGSREISE E REVOLUGAO PERCEPTIVA Surge entdo a hipétese da pertinéncia de integrar, sob 0 signo do «espanto», a linguagem e a percepgao radical (a «aparigéo», como forma de existir que excede a aparéncia) no mesmo poder da imagi- nagdo criadora e da Arte que por ele se faz. Interrogag4o e visdo, a faculdade da imaginag4o investe no plano cognitivo e no expressivo aquela ambi¢Ao de estruturar e/ou transfor- mar o mundo que antes fora empenhada no religioso e no politico. Ou, melhor, gracas 4 revolugio perceptiva da imaginagdo criadora, inves- te-a 0 sujeito, o eu, através da viagem de formagao que lhe é a vida. Esse trajecto do protagonista vergiliano é um processo simulta- neamente refontalizante e prospectivo, de retorno com progressdo, ou de recuperagdo com projeccdo para estédio mais avangado. Parece-me, de facto, que em Vergilio Ferreira de romance para romance se realiza — de preferéncia no didlogo interior do protagonista idoso, em situagdo-limite (desde Alegria Breve) ou em recapitulagéo exemplar ao longo de espago arquetipico (como a casa de Para Sempre) 220 JOSE CARLOS SEABRA PEREIRA. — uma nova variante daquela soberania revolucionéria da imaginagdo artistica e daquela Bildungsreise que na madre da arte moderna e comtemporanea fora tornada axial e imprescindivel pelos grandes roménticos alemiées e ingleses (e que em Portugal se empobrecera, como quase todo o Romantismo, até A padronizaciio redutora no «Regresso a0 Lar» junqueiriano). S6 que, em Vergilio Ferreira, o heréi de tal Bildungsreise 6 a «arquipersonagem»" do Sujeito humano — nem por isso menos eu, € certo, mas distinto do heréi individual do Romantismo. Sé que, em Vergilio Ferreira, tal Bildungsreise nao é palingenésica (como fora ainda no neo-roméntico Teixeira de Pascoaes), porque destituida de paradigma fundacional; e é intérmina, porque sem plenitude final dos Tempos. Experiéncia corporal, consciencial e verbal, tal Bildungsreise da arquipersonagem vergiliana nao reproduz nem renega a matriz romantica, sé por nela Vida, Mundo e Homem se imporem como processo que se autojustifica, ou por nela tudo se cumprir — do belo ao disforme, do pathos ao bathos - e se redimir «numa permanente oscilagao de sublimagGes e des-sublimagdes»"!. A esta luz, ganha outra evidéncia o estatuto que a prépria Arte recorrentemente atribui Vergilio Ferreira, atendendo a Malraux mas ultrapassando-o em deriva original. Nao se trata apenas de, desde Aparigdo, a Arte valer como acesso aos momentos privilegiados das epifanias do ser, caminho tnico para a possivel comunicagao e para a possivel totalizagao. Trata-se de, desde Espago do Invisivel I, a Arte surgir como «a forma auténtica da presenga a verdade original da vida». Trata-se de o ensaio de Vergilio Ferreira tornar recorrentes as varia- gGes deste asferto de do mundo original sobre «o absoluto da arte», a que por seu turno a fic¢do de Vergilio Ferreira se revela fiel: «Também a Arte nao é estritamente um «critério» de verdade: é a verdade. Nao estabelece uma adequacio entre a vida e seja o que for: é a vida que se nos oferece ou se nos esclarece na prépria essencialidade»?. Porventura, como num dos seus mestres primeiros - 0 Eca de Queirés de «a Arte é tudo, tudo o mais é nada» no prefacio aos Azulejos "Helder Godinho, «O mitoestilo de Vergilio Ferreira», in Coléquio/Letras, n° 103, Maio-Junho 1988, pp. 72-74. "Eduardo Prado Coelho, «Luce Luz», in Piiblico, 15.X.1993, p. 8 do Suplemento «Leituras». " Vergilio Ferreira, do mundo original (ensaios), 2* ed., Lisboa, Bertrand, 1979, p. 219. BILDUNGSREISE SEM «

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