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Historia e design nites de is iar qualquer investigagio historica do design, ¢ fundamental que se entenda o que é historia < come funciona. Os nao-historiadores geralmente pensam a historia como o conjunto dos fatos ocorridos no pasado, mas esta defini- 480, se for examinada com um minimo de atengao, esbarra em uma série de proble- mas. Primeiramente, quais seriam os fatos do pasado? Em qualquer dia, em qual- quer lugar, ocorre um niimero incontavel de incidentes e quem tentasse registrar todos logo pereeberia que a tarefa é impossivel. Se avida de cada um acumula uma multidao de episédios ¢ acontecimentos, a vida de toda uma soeiedade se faz infinita- mente complexa, tanto mais ao longo de varias geragées. A essa objecio seria possivel retrucar: a historia trata somente dos fatos importantes, aqueles que afetam a vida de muitas pessoas. Esbarra-se messe caso cm um segundo problema: quem decide quais fatos sio importantes, ¢ baseado em quais critérios? Todo leitor ja teve a experiéncia de ver na banea dois ou trés jornais do mesmo dia e de descobrir que cada um trazia uma manchete diferente, ou seja, cada jornal dava maior destaque a determinado incidente ¢ nao outro, No caso de se comparar aqueles jornais considerados ‘sérios’ com os chamados jornais ‘populares’, percebe-se que varia ndo somente aordem das noticias como até mesmo a sua incluso ou ndo no jornal. A noticia de primeira Pagina de um nem sequer figura no outro ou entdo aparece com destaque minimo. Por mais que se vilipendie as qualidades jornalistieas desse ou daquele érgio, nao ha como negar que diferentes leitores tém prioridades diferentes ¢ que essas preferén- cias decorrem de variagdes nos valores e na visio. de mundo de cada um. E cémodo para alguns descontar essas diferengas com base em distingdes sociais e edueacionais Introdug: (p-ex., {jornal popular nao é sério’), mas o quadro muda de figura quando os confli- tos sio de natureza ideolégica como, por exemplo, no contraste entre a cobertura politica de um jornal de situagao e outro de oposigio. E sintomatico que quanto mais um texto histérico se aproxima do presente, menos convincente se tornam suas generalizagdes, pois a realidade atual é conhecida demais para se encaixar na visio estreita de uma tinica pessoa. Tratando-se dos acon- tecimentos mais préximos, aqueles de ontem ou de hoje, ¢ facil pereeber que néo se transmite fatos mas apenas relatos. Se cada testemunha jé tem a sua visdo do inci- dente, matizada pelos seus conceitos ¢ preconceitos individuais, os relatos tendem ase distorcer cada vez mais, a medida que o relator se encontra afastado do epis6dio eriginal. Ac longo de muitos anos, décadas e séculos, entio, os “fatos’ podem ter oseusentido inteiramente desvirtuado de acordo com a versio contada, como em uma enorme brincadeira de telefone-sem-fio através do tempo. Coma retrospec- 13 40, acontecimentos inicialmente negligenciados podem assumir uma importincia enorme; € 0 caso da famosa maquina de calcular de Charles Babbage, que ficou esquecida durante quase um século para ser redescoberta recentemente como pre- cursora do computador (srurrorn & uctow, 1936: 265-230). Outros acontecimentos de grande impacto inicial t¢m a sua importineia relativizada com © decorrer do tempo, como ¢ 0 caso da maioria das conquistas de titulos esportivos, as quais ganham man- chetes de primeira pagina no dia seguinte mas viram apenas estatisticas vinte ou trinta anos depois. Portanto, a agéo de escrever a histéria envolve necessariamente um pro= ntemente cesso de selegio de fatos ¢ de avaliagdo da sua importancia. Existe freq uma superabundancia de fontese relatos sobre um acontecimento qualquer e cabe ao historiador a tarefa altamente delicada de interpreti-los ¢ construir a sua versio. ‘Toda versio historica € uma construgao e portanto nenhuma delas é definitiva Ahistéria nao € tanto um conjunto de fatos mas um proceso continuo de inter pretar e repensar velhos e novos relatos, constatagio esta que leva a uma indagagio de fundamental importancia para a histéria do design: repensar o passado para qué? Cabe questionar a velha maxima de que quem nio conhece a hist6ria est condenado a repeti-la. Sea histéria nio é um conjunto de fatos mas um processo de construgio, em que sentido seria possivel repeti-la? A resposta reside na conclusio inescapavel de que, embora tratando do passado, toda versio hist6rica ¢ escrita no presente. Todo historiador escreve em um contesto especifico, para um publico atual, ¢, conseqiien- temente, a interpretagao do passado apresentada tera impacto no presente. Pode ser que o pasado nao mude, mas uma mudanga na sua interpretagio pode alterar 14 | wma intxapweso A misTORIs DO DEstON $$ oe“ completamente a visio, nio somente do presente como também do futuro. Um bom exemple esta na velha interpretagio, amplamente aceita até algumas décadas atras, de que o Brasil seria um pais fadado a dar errado por ter sua populagao constituida a par tirde uma mistura de ragas ‘inferiores'. A rejeigaio subseqiiente dessa versdo racista acarretou grandes mudangas na sociedade, inclusive passando em alguns casos a uma valorizagiio exagerada de elementos antes considerados negativos. Mesmo que a trans- formagao nem sempre seja to radical, toda nova interpretagio do passado implica em uma necessidade de repensar também o presente. A obrigatoriedade do historiador de olhar 0 passado do ponto de vista presente leva a outro problema da anilise historica: a consciéneia prévia do que veio depois ‘Todo histo: anos venceram os alemies e este dado norteara as suas conclusdes sobre os aconte- dor que escreve sobre a Segunda Guerra Mundial sabe que os ame cimentos. Ao analisar a politica industrial de cada pais durante a guerra, por exemple, torna-se quase impossivel fugir da tentagio de avaliar os meios em fungao do resul= tado final, o que pode levar a enganos. © bom historiador sempre se esforga ao- maximo para interpretar as informages a partir do contexto em que foram geradas, ou seja, para situar 0 material em termos historicos. Sendo, corre-se 0 perigo de entender sempre o pasado apenas pelo crivo dos resultados mais obvios, atrope- lando nao somente as conseqiiéncias sutis como também aquelas alternativas que, por uma razdo ou outra, n&io conseguiram vingar. Mesmo quando € possivel, quase nunca é desejavel impor um sentido fixo ao relate histérico — transformar a historia em estéria— porque a coeréncia narrativa que se ganha vem quase sempre ao custo de uma perda consideravel da complexidade ¢ da densidade que marcam a realidade vivida. O erro de explicar o passado apenas em termos do presente, chamado de historicismo, tem sido um dos grandes obstaculos para uma compreensio adequada da historia do design. Oestudo da historia do design € um fenémeno relativamente recente. Os pri- meiros ensaios datam da década de 1920, mas pode-se dizer que a area sé comegou a atingir a sua maturidade académica nos tiltimos vinte anos.(penis, 1998: 318~322). Como em toda profissio nova, a primeira geragao de historiadores do design teve como prioridades a delimitago da abrangéncia do campo e a consagrasio das prati~ cas e dos praticantes preferidos na época. Sempre que um grupo toma consciéncia da sua identidade profissional, passa a se diferenciar pela inclusio de uns e pela exclusio de outros, ¢ uma maneira muito eficaz de justificar esta separagao é através da construgio de genealogias historicas que determinem os herdeiros legitimos de introduao uma tradigio, relegando quem fica de fora a ilegitimidade. As primeiras historias do design, eseritas durante o periado modernista, tendem a impor uma série de normas- ¢ restrigdes.ao leitor, do tipo ‘isto é design e aquilo nao’, ‘este é designer eaquele — ‘nao’, preocupacées estas muito distantes das intengdes do presente livro. A historia LE do design deve ter como prioridade nao a transmissio de dogmas que restrinjam a atuagio do designer mas a abertura de novas possibilidades que ampliem os seus horizontes, sugerindo a partir da riqueza de exemplos do passado formas criativas * conscientes de se proceder no presente. Se éverdade, como dizem alguns, que © pasado é outro pais, cumpre ao historiador o papel de guia amigo, indicando as atragdes ¢ chamando atengao para os perigos, ¢ nao de guardio sisudo, sempre repe- tindo que 0 horario de visita jd estd encerrado ou que é proibido pisar no gramado Q presente livro oferece uma introdugio a evolugio histériea do design, no Brasil eno mundo. A tarefa é grande ¢ cabe enfatizar que constitui uma abordagem apenas | 15 inicial, uma introdugao a uma area de estudos vasta e ainda pouco explorada. Cada capitulo ¢ cada tépico dariam (como ja deram alguns) outros tantos livros e nenhum volume poderia dar conta de todos os aspectos de um tema tio rico, complexo evariado. Conforme se afirmou acima, toda historia € uma construgao e, a0 cons truir, é necessario escolher os materiais a serem empregados ¢ réjeitar outros. Optou-se aqui por privilegiar as grandes tendéncias sociais e culturais que condicio- naram o desenvolvimento do design, ¢ nao as biografias dos designers mais famosos. Trata-se, nesse sentido, de uma histéria social do design. Seria um eontra-senso, porém, falar de design sem mostrar os objetos que gera. Qutro elemento importante na construgao deste livro éa cultura material (ou seja, os préprios artefatos) gerada pelo design, principalmente no Brasil. O leitor pode constatar que existem pelo menos dois niveis de discurso que se desenrolam em paralelo ao longo deste estudo: @ texto, que busca explicar causas gerais, ¢ as imagens, que demonstram resultados conecretos. Apesar da relativa escassez de imagens, seria um erro grave imaginar que © primeiro tipo de discurso se sobrepde ao segundo: a fecundidade do didlogo entre verbal e visual é uma das caracteristicas que distingue o design como area de conheci mento. Ao contra de outros tipos de historia, em que as imagens podem servir apenas de ilustragao ou ponto de apoio para o texto, o argumento iconogréfico deve ser entendido aqui como igualmente significativo do que o escrito. So nas imagens que o leitor encontrar janelas que abrem para outras narrativas bem como pistas em diregao a uma compreensio mais apurada da historia do design do que € possivel oferecer dentro das limitagdes do presente volume Revolucées industriais e industrializacdo conteceu na Europa entre os séculos 18 € 19 uma série de transformagdes nos meios de fabricagio, tio pro- fundas e tio decisivas que costuma ser conceituada como 0 acontecimento econémico mais importante desde o desenvolvimento da agricultura. Essas mudangas aeabaram ficando eonhecidas como a Revolugio Industrial, justamente como forma de chamar atengdo para o impacto tremendo que exerceram sobre a sociedade, 0 qual s6 encontrava eco na ruptura radical com o pasado efetuada pela Revolugio Francesa. © termo se refere essencialmente a criagio de um sistema de fabricagio que produz em quantidades to grandes €aum custo que vai diminuindo tao rapidamente que passa a nio depender mais da demanda existente mas gera o seu proprio mercado (onsnawa, 1964: 50). Hoje em dia praticamente todos vivem nesse sistema, em que quase tudo © que se con- some € produzido por industrias, ¢ ¢ justamente o longo proceso de transigio global do sistema anterior para o atual que se entende por industrializagao. A primeira Revolugio Ind Hal ocorreu na Inglaterra, com inicio por volta de 1750. Por que a Inglaterra? E uma questio complexa, amplamente discutida nos meios histéricos (ver tanpes, 1969: 42-55; neo, 1986), ¢ de dificil resposta. Tende-se a considerar que foi uma conjungio de fatores, demograficos ¢ sociais, teenol © geograficos, culturais ¢ ideolégicos, nenhum dos quais explica por sisé.a prece~ déncia inglesa. Sabe-se que foi na fabricagio de tecidos de algodao que o grande surto industrial primeiro se verificou, com um aumento de cerca de 5.000% da Produgio entre as décadas de 1780 e 1850. Um crescimento tao impressionante z é pressupée duas coisas: um mercado suficientemente grande para absorver todo esse industrial, séeulas 18 ¢ 19 © organic volume ¢ um retorno crescente que justifique a expansto rapida da oferta, ambos fatores que existiram na época. A Gri-Bretanha deteve um quase monopélio do comércio exterior europeu entre 1789 e 1815, em funcao do seu claro dominio naval e de bloqueio que impés Europa continental durante as guerras napoleoni- cas. Os seus comerciantes passaram portanto a intermediar praticamente sozinhos a compra evenda de produtos nos quatro cantos do planeta, comprando todas as mercadorias pelo menor prego e vendendo-as pelo maior. Gerou-se assim um cielo, em que tecidos, chas e lougas comprados na China ena India eram trocados por escravos na Africa, usados para plantar algodao barato nos Estados Unidos ¢ no Brasil, © qual era utilizado pela industria britanica para fabricar tecidos que, por sua vez, eram exportados de volta para todos estes lugares, gerando a cada etapa novos lucros para os intermediarios. Nao por acaso, o grande centro da industria téxtil que despontou em torno da cidade de Manchester ficava a uma curta distancia de 21 Liverpool, 0 principal porto para o comércio de escravos. O retorno desse monopélio pela forga era imenso ¢ propiciou a acumulagio de capital necessdria para financiar a transi¢ao de pequenas oficinas artesanais para grandes fabricas, no sentide moderno da palavra, equipadas com as tltimas no des mecanicas. A mecanizacao do trabalho € 0 outro grande fator que define a industrializagaio, ¢ uma série de inovagées tecnolégicas entre o final do século 18 € 0 inicio do 19 foi permitindo o aumento constante da produtividade na industria \éxtil a custos cada vez menores em fungio da rapidez da produgdo e da diminuigiio da mao-de-obra. Os teeidos de algodio fabricados na Inglaterra atingiram um custo de produgio tio baixo, que se tornaram acessiveis a toda uma classe de compradores que antes nem sonhavam em adquiri-los. Pela primeira vez na histéria, jé nfio era mais paradoxal sugerir que quanto maior a produgio, maior seria o consumo. E por isso que a definig’o avangada por Eric Hobsbawm descreve a industrializagéo como um sistema que passa a gerar demanda em vez de apenas suprir aquela exis— tente. Sabe-se, porém, que essa demanda crescente data de antes da Revolusao Industrial propriamente dita. Houve um grande creseimento no acamulo de riqueza liquida ao longo dos cem anos anteriores ¢ portanto um acréscimo corres pondente no consumo. Pode-se dizer que no séeulo 18 jé existia em alguns paises da Europa senio uma sociedade de consuino, pelo menos uma classe consumidora numerosa, que detinha um forte poder de compra que jé comegava a exigir bens de consumo mais sofisticados. E é nesse mercado de artigos de luxo que se eneon- tram os primérdios da organizagio industrial. As 194 Drone Estacl. Primordios da organizacao industrial estes tempos privatizantes, afirma-se com certa fre~ qiiéncia que fabricar ‘nao é fungao do estado’. Por tras dessa afirmagao esta a premissa de que a produgio industrial seria uma atribuigao natural do setor privado, a qual teria sido usurpada pelo estado moderno em nome de um nacionalismo equivocado. Nada poderia ser mais distante dos fatos. Do ponto de vista histérico, a produgao industrial vem sendo exereida continuamente por estados nacionais desde o inicio da industriali- zacio. A bem da verdade, pode-se dizer que a industria, na acepgao moderna da palavra, € mesmo uma invengdo do setor estatal. Entre os séculos 16 e 17, 0 eixo central do comércio europeu transferiu-se do Mediterraneo para o Atlantico. Um dos principais resultados dessa transformagaio foi a consolidagiio dos estados nacionais na Europa, organizados nao mais de forma feudal mas a partir de uma politica centralizada e voltada para a competigo com outras nagées, sobretudo no que diz respeito a colonizagic do resto do munda, O sistema mercantilista ora implantado, em que cada nagao. procurava defender os seus interesses comerciais pelo dominio de mereados estrangeiros, acabou levando ‘os estados a investirem diretamente na produgao de bens de consumo, em escala ‘inédita até entéo. Quase todos os paises europeus fundaram nos séculos 17 e 18 manufaturas reais, ou da coroa, para a fabricagio de determinados tipos de produ- tos, principalmente artigos considerados de luxo como lougas, téxteis e méveis. Porém, as primeiras manufaturas a serem assim monopolizadas foram as de fabrica~ ‘go de armas e de construcio naval, industrias estratégicas para garantir a propria sobrevivencia do estado-nagio. alizapdo ¢ organizasdo industrial, séculos 18 € 19 O sistema mais completo de manufaturas reais foi iniciado na Franga sob Luis S XIV c seu superintendente de construgées Jean-Baptiste Colbert. Além das fabri- * is cas existentes que preduziam vidros ¢ tapegarias para o rei, 0 sistema desenvolveu- <5, se principalmente em torno da manufatura real de méveis da coroa— ou, fabrica

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