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A tese central deste livo 6 a de que, no Brasil, as lui populares no campo avancaram mais depressa do que os pat: tidos politicos na interpretago e incorporacéo do problema camponés @ da questéo agriria. Esse descompasso ‘tolhe 2s luitas camponesas, cada vez mals numerosas em todo 0 pais, 20 mesmo tempo em que empobrece a ago dos partidos pol. ‘loos. © descompasso tem origem dentro dos préprios parti. dos politicos, e nao dentro dos movimentos camponeses, resistem a reconhecer a importéncia politica das lutas cam ponesas atuais e seu lugar no processo de construgao de luma democracia politica no Brasil. Ha hoje no pais grupos Intelectuais © politico-partidérios empenhados em desdenhar © papel politico ¢ histérica do campesinato, baseados em Interpretagdes produzidas em outras épocas, outros. pai © outras situacoes historicas, e A parte mais extensa do livro constitul uma hist6ria politica do campesinato brasileiro, destinada a localizar as raizes dos impasses atuais. © livro termina com uma contribuicao. teo- rica defini¢io da situacdo do campesinato, basea procedimentos clissicos da andlise historico-conereta, © autor: José de Souza Martins 6 mestre (1966) © doutor (1970) em Sociologia pela Universidade de Séo Paulo, onde leciona nos cursos de graduacao e pds-graduacao, Foi “vi- siting-scholar” da Universidade de Cambridge (Inglaterra), em 1876. Participou de conferéncias e semindrios no México, na Itdlia_ © na Inglaterra, onde tem trabalhos publicados. Entre outros livros, publicou: Capit Sobre 0 Modo Capitalista opriacdo e Violéncia ATENDEMOS PELO REEMBOLSO POSTAL SEW JOSE DE SOUZA MARTINS OS CAMPONESES E A POLITICA NO BRASIL As lutas sociais no campo e sew lugar no processo politico ‘SBD-FFLCH-USP Aun 3347 % y Petropolis 1981 © 1981, Wditora Vozes Ltda. Rua Froi Tats, 100 25600 Peirdpolis, RI Brasil Diagramacgio ‘Valdecir Mello ‘A lgreje do Evangelho que std em Sto Felis do fraguals, Provincia do Mato Grosso, partes do rast tate eno decino; aD. Pedro Casaiddliga que, como On projets, gnuncia 0 Novo Tempo, ceando nou ferd catrampeivo subre « terra porgue a terra send tte todos. US - Acervo - FFLCH-GE NGA 21100020817 DEDAL ts Sumario spresentacto, Capitulo 1 — Os cumponeses e @ politica mo Brasil, 21 Thlroduglo, 21 LAS oFigens soclals do campesinato tradicional, $1 2 Term 6 potitica: © poder des “corondis", 41 5B Messiaulsmo @ canmico: a cre do eoroaeiisme, 60 4.08 movimenios ciponaies 0 a Iitas eamporesns, 6 5.0 campante os proseios dos oulrus, 8 6. As tulas camponos atts ¢ a Indetinigio dos partklos poliieos, 2 Caplbila 1 — tattando pote terra: instios © posseiras na Amucbnia Eepet, 1 4 Noticias de uum pais Lzopical, 100, 20s confttes ean Jogi, 100 Capitulo II — Terra ¢ lberdadde: a Inte dos posseiroy ne Arnaatrle Zeoat, 135, Capito IV — Os trabathadores do campo em busea de wns alternating, 138 Ccupitula V— A sujeigzo da rendu de terra ao sapitat ¢ 0 novo sentido da nua peta rojorme. area, 151 1.0 que sip as relagdes. copitalistay” de producio, 151 2A contvadicay entre a tora e 0 cepitii: a tendo. da terse, 159 5. As diferongas ontze a coneentragio da pioptiedade @ do tapi, 165 4.8 apropriaio’ da vonde da terra pelo. capital 10) Bivtiografia @ documentos, 178 Avéndice: Histirin visual das nto eamponesisy 1% Apresentacio “Desejamos somente que cada um de vis Gemonstre o mesmo ardor em levar até o fim © pleno desenvolvimento da esperanca, para niio serdes lentos & compreensio, © sim imitadores daqueles que, pela £6 e pela perseveranga, recobem a heranca das promessas’ Hebreus 611-12) Fato politico dos mais importantes na historia brasileira do presente 6 0 de que os movimentos © lutas populare: sobretudo no campo, caminham mais depressa do que os bartidos politicas, legais ¢ clandestinos, Esse distanciamen. to, que ocorre também na maior parte dos paises da Amé rica Latina, mostranos que os partidos esto tend! culdades priiticas, tedricas e doutrindrias para acon © incorporar as tenses sociais e as reivindicagées campo- nesas. E nos mostra, 10 mesmo tempo, uma das razoos da fragmentacdo e dispersio das lutas populares no campo. Blas necessitam de organizacio e estrutura partidéria para itrarem 8 unidade da sua diversidade, a sua forga ca € © seu lugar tanto no processo politica quanto manga com as classes socials que se defrontam com. as classes dominantes ¢ 0 Estado. Esse fato adquire o seu sentido na histérla de um cam: pesinato brasiloiro progressivamente insubmisso — prime. Tamente, contra a dominagio pessoal de fazendeiros “coronéis"; depois, contra a expropriagio territorial cfetua- da por grandes proprietirios, grileiros e empresirios; e ja 9 agora, também, contra a exploragao econémica que se con- cTetiza na agao da grande empresa eapitalista, que subjuga (© fruto do seu trubulho, e na politica econdmica do Estado, que cria ¢ garante as condigées dessa sujeigio. Particular mente 2 partir dos anos 50, camponeses de varias regides do pais comegaram a maanifestar uma vontade politica pro- pria, rebelando-se de virios modos contra opressores, quebrando velhas cadeias, levando proprietérios de terras aos tribunais para exigir ‘0 reparo de uma injustiga ou o pagamento de uma indenizagho; orgunizando-se om ligas e sindicatos; exigindo do Mstado uma politica de reforms agréria; resistindo de wirios modos a expulsdes € despejos; exguendo barreizas @ fechando estradas para obter melhores precos para seus produtos. Certamente, 0 que marcou e defini as hitas camponesas dessa época fol a disputa entre as Ligas Camponesas, 0 PCB a Igreja pela hegemonia na organizacdo dos camponeses: ¢ trabalhadores rurais, disputa apoiada nas lutas campo- esas que irromperam, entao, em varios pontos do pats. Da allanga téciia entre catdlicos e comunistas, exclufdas as Ligas, surgiu o mais importante resultado politico dese perfodo, para 0 campesinato — a CON'TAG, Confederacio Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, e a estrutura sindical que The corresponde, ‘Mas, a0 mesmo tempo que, antes de 1964, fortaleceu sua presenga na organizagtio € nas reivindicaces dos trabalha- Gores rurais, 0 POB fol perdendo influéncia sobre os movi- mentos camponeses. A medida que cresceu em importancia conjuntural a politica de frente tnica e de alianca entre a classe operdria e a burguesia nacional, o lugar politico do compesinato passou a ser definido pelo papel menor que pudesse representar na consiiiuigio de uma democracia urguesa. Os documentos partiddrios mostram, como se vera adiante, que os compromissos da frente nica repre- sentavam cada ver mais, & medida que ela se ampliava, uma igo aos propdsitos das lutas camponesas. Egsas lutas se mosiificarrm com o correr dos anos, sobre- turlo a partir de 1964, A questfio da reforma agriria, antes dessa €g0ca, tinha sua base social nos arrendatérios, par- seiros © foreiros, tanto no Nordoste quanto no Sudeste, ameagados de expulsio da terra, xeduzidos rapidamente a 10 uma relacdo precdria ¢ extorsiva de arrendamento, Depois disso cresceu muito e rapidamente a entrada de grandes empresas no campo — seja envolvidas diretamente na pro- ducao agricola © pecuaria, seja envolvidas na comercia- lizagho @ industrializagio dos produtos agxicolas, ‘soja envolvidas na venda de insumos aos produtores agricolas. ‘A politica de incentivos fiscais para o desenvolvimento da ‘amuazOnia e a politica de florestamento e reflorestamento nas Yarlas regides do pais acentuaram o interesse das empresas Capitatisins pela terra, Em todos 0s cantos, camponoses ligados A terra por varias geragGes viram-se repentinamente ameacados ou expulsos, freqlientemente submotidos @ toda sorte de violéncias, Os menos informados costumam dizer que esse 6 um fendmeno particular da Amazonia (cligase Ge passagem que a AmazOnia legal compreende, na ver dade, uns 2/3 do territério nacional), das zonas pioneiras, ea ela restritos. Isso, entretanto, niio 6 verdadeiro, Os conflitos pela posse da terra tém ocorrido em todos os Estados ritérios do pais, com exeegio da Tha de Fernando de Noronha, $6 na regiio agricola que circunda fn cidade de Sio Paulo, a menos de 100 km do perimatro tbano, ha wirlos litigios em tudo semelhantes aqueles que ocorrer mas Temotas resides amazhnicas, nem mesmo faltando © jagungo. ‘A mulliplieagao desses conflitos pela terra fez com que 6 posseiro se Lornasse a principal, embora nfo a tiniea, per- sonagem das Tutas camponesas atuais. Com isso, a pro- Dlemética da reforma agréria, como solugaio ware a questfio fundiétia, repousa hoje sobre uma base social muito mais diferencada do que aquela dos anos 50, pois inclui, além de arrendatiirios e parceiros, 0s posselros ¢ até os peyuenos proprickirios. Essa diversidade, 20 mesmo tempo que au menta o poder do pressio pela reforma agréria, faz dela tima questi complicada, pois envolve interesses que no 40 idénticos © concepebes igualmente diversificada ‘A medida que 0 PCB foi perdendo intluéncia sobre 03 movimentos camponeses, cresceu a influéncia e a presenca ‘da Tgreja nesses movimentos, ao mesmo tempo que s¢ CON: solidou a presenga do sindicato no campo. Essa perda de jnfluéneia nao se expliea apenas pelo advento da ditadura mililar © pela perseguigiio feroz movida aos militantes polt- u {icos no campo, comunistas © néo-comunistas. De um lado, ela esi marcada pela posi¢io doutrinéria a respeito da superioridade politica das lutas operdrias sobre as lutas camponesas; de outro Indo, est marceda pela progressiva alteragio na concepelio e respeito do Ingar politica do cam: pesinaio. A falta de unidade e de contimiidade das lutas camponesas esti relacionada, de um Indo, com a prdpria diversidade de situag6es do’ camposinato ‘brasileiro; mas, de outro aldo, deve muito As mudancas de posiedes. par: tidarias a respeito de ‘ais Iutas. A impbrtincia desse fato vai a tal ponto que, nos conflitos dos anos 50, nfio ha, & or, um elemento de referéneia que os torne convergentes }$ arranque do localismo que Ihes ¢ fatal, Mais recon ssi antiga deseontinuitiade doutrinaria, eonvertou- se numa plurakidade de tendéneias © de posig6es politico- partidirias que envolvem, contflitivamente, desde a tese da superioridade histérica da classe operdria sobre 0 campe- sinato até a tese da guerra popular, do cerco da cidade pelo campo. Chegotrse a um ponto do absolutinagio tal desses pontos de vista doutrindrios que, como demonstraram estu- os © depoimentos recentes. praticamente nada mais tem a ver com as lutas sociais no campo e com 0 processo polf tico brasileiro, 8 no contexto dest esquizofrenia doutringria que as lutas camponesas tém sido classificadas politieamente tam sido vistas sob fortes suspeitas e deserédito| Com fre atiéncia, a discussio sobre a relacdo entre o cémpesinato € 2 politica repousi. na pressuposi¢io de que 0 eampesinato € estranho 2 polities @ 6 melhor que assim permaneca. 0 que se liga & suposiedo de que, no processo politico, campesinato s6 pode ter uraa presenea passiva e subordi- nada — isto 6, subordinada & perspectiva, ao jogo e aos interesses de outra classe social (conservadoramente, 2 Durguesia ou aos prourietérios de terra; revoluefonariamen: te, a0 prolotariado). A possibilidade de 0 eampesinato falar sua prdpria Hnguagem de classe perturba os esquemas de interpretacdo, a8 posicées partiddrias, a 16gica férrea enferrujada do economicismo desenvolvimentista, 46 fatal que nesse tipo de interpretagio e julgamento (e julgamento valovativo) o erescimento e a multiplieagio das lutas camponesas, particularmente hoje as lutas dos pos. 2 seiros, sejam interpretados, de certo modo, como erro hisiorico. A importancia nlo s6 numérica dessas lutas é reconhecida, pelos que assim pensim, como um fato real, mas sem peso histérico suficiente, Para eles, 0 que vai deodir 0 processo histGrico de transformacio Ga sociedade € fundamentalmente o crescimento da classe operiria no campo e na cidade, & da completa expropriagiio do. tra- balhador, da sua conversio em trabalhador assalariado ©, portanto, do seu explicito antagonismo com o capital, que surgiré tal possibilidade de transformacio. Em tese, e de mado rauito geral, esse ponto de vista 6 correto, A compreensiio tedrica do que é 0 proceso his torico de trans fio da sociedade, 0 processo que resolve ‘a contradigao entre a produgdo social e a apropriagéo pri- vada pela qual © capitalismo se constitui e se define, tor- ne-se possivel com o surgimento da classe operdria, o tra: balhador exproprindo @ assalariado. Tal proceso, na ver dade, seria impedido pelo trabalhador, pelo camponés, que ergue sua resisténcia & expropriacio capitalista, porque faze- jo seria 0 mesmo que opor resisténcia ao proceso histé- rico, aos efeitos historicamente positivos da expropriactio ¢ do desenraizamento do campesinito, unt condigio fv damental para o desenvolvimento capitalista. Seria, entre tanto, pura imbecilidade tentar convencer 0 camponés que esté sendo despejado, cuja casa esté sendo queimada pelo jagungo e pela policia, de que deve aceitar tal fato como uma contingéneia histériea, como ocorréncia que ¢ ruim pare cle, mas que é boa para a humanidade (ou ao menos para os idedlogos e justificadores de tais violéncins ¢ injus: tigas), pois € 0 que vai permitir o desenvolvimento do capital, daquele mesmo que o antagoniza patrocinando tais violéncias. O problema nem € um problema estritamente econémico nem estritamente teérico — é um problema politico, da Tuta e do confronto entre as classes socials, entre exploradores © explorados. Esse 6 um problema que precisa de resposta € resposta politica. A questéo 6 saber se @ acho politica e 0 sentido politico das lutas sociais encontram sta importincia histérica nas coisas como sao ‘ou nas coisas como deveriam ser, nos fatos concretos vivi- dos pelo campesinato em suas Telaghes visiveis ¢ claras, & fem suas relagées ocultas, ou nas fantasias dos intelectuais pretensamente descomprometidos. 13 Por isso mesmo, hé uma distorefo tedrica na discussio politica que hoje se faz nos meios académicos a respeito des Iutas camponesas. Nela, a histéria 6 concebida como © desenvolvimento das forgas produtivas e das alieragdes que tal desenvolvimento promove nas relacdes sociais. Certamente, 0 desenvolvimento das forgas produtivas tem um papel crueial no processo histérieo e no aleance das Imtas politicas. Entrotanto, fazer dele sindnimo de historia 6 uma heresia, Nio 6 preciso que as forgas produtivas se desenvolvam em cada estabelecimento agricola on indus- trial, em cada sitio ou oficina, a ponto de impor a neces- sidade das relagdes caracteristicamente capitalistas de pro- ducio, de impor o trabalho assilariado, para que o capital estenda suas contradigées ¢ sua violéncia sos varios ramos dz produgio no campo ¢ na cidade, Claro estd que as tenses que o capital cria no sitio de um pequeno lavrador ou na oficina ce um artestio siio distintas da tensio que permeia sas relagdes com 0 trabalhador da grande inddisiria, A concepeao de desenvolvimento com a qual Marx trabalhava nfo era a do desenvolvimento igual, e sim a do desenvol- vimento desigual. 1 o que permnile enleuder ansformacies sociais profundas em sociedades, desse ponto de vista, atrasadas. A partir de distorgSes tedricas como essa, 0 problema das Juéas camponesas passa a ser objeto de uma controvérsia aparentemente tedrica, mas de {ato ideolégica e politico- partidéria. Isolase 0 campesinato (sem levar em conta até mesmo suas diversidades, como a que ha entre um cam ponés-posseiro, um camponés-parcelro, um camponés-pro- prietario) como se sua existéncia, sua reprodugio, suas tenses e suas Iutas nfio fossem determinadas por relacdes de classes, diferengas © antagonismos. Questiona-se, entio, a importincia que © campesinato possa ter na situagiio bra- sileira atual, j6 que efetivar a sua vontade de classe seria, um retrocesso histérica e politico, como se 0 eamponés estivesse sozinho no mundo. 1550 impediria 0 desenvolvi mento do capitatismo, a instalagdo da grande empresa capitalista no campo. Metodologicamente falando, esse pro- cedimento ¢ positivista porque recorta um pedaco da rea- lidade e faz pensar que a histéria 6 uma virtualidade dosse “pedago”. Ora, o process historico é constituido pelas rela- M4 bes socinis, pelas relagdes ¢ antagonismos de classes. Um argumento dessa ordem 6 um argumento agrondmico, que nessa restrila perspectiva tem o seu sentido (sob pena, po- ‘rém, do set. compromisso anticamponés, antipopular e con- servador). A partir desse ponto de vista, 0 camponés nio tem futuro; s6 pasado. Toda compromisso com as Intas camponesas passa, assim, a ser impugnado sob acusagio de que tal compro: misso 6 populista. Curiosamente, os autores que tém invo- cado essa designagiio extemporanea e estrangeira para de- preciar a ago dos grupos que assumem como legitimas fas lutas eamponesas iio se dio ao trabalho, como seria correto na atividade cientifiea cue declaram desenvolver, de demonstrar a legitimidade do seu uso e 0 acerto da sua invocacdo, “Populistas” era a designacaéo que Lenin dava aos socialistas “narodniks” (que a si mesmos se chamavam “Amigos do Povo”) numa polémica partidaria aguda na Riissia do final do século XTX, Os bolcheviaues, que Lenin representava, tinham uma interpretagio ocidentalizada do processo politico russo, baseada nas formulagdes que, em © Capital, Marx desenvolvera sobre 0 capitalismo, na im: portancia do crescimento ¢ da agio politica da classe ope: réria, Jkt os popUllistas entendiam que a transformagio social podia corer sem que houvesse o desaparecimento da comunidade Tussa, 0 que implicava conesber os camponeses como uma forca politica e nfio como um fator de atraso politico, Aliis, Marx, numa carta de 1881 a uma populista russe, havia apoiado a posigho dos populistas, que aps fa leitura @’O Capital humildemente entraram em dtivida a respeito de suas préprias posigdes sobre o papel histérico dos camponeses na passagem para o socialismo. ‘A comparagio da situagio brasileira atual com a situa. cao russa do séoulo KIX 6 totalmente descabida, porque hg diferencas substantivas entre o campesinato russo da- quela época e 0 campesinato brasileiro de hoje. Lt, 0 cam: pesinato resistia A expansio do capital porque era um campesinato apegado, ligado 2 terra. Era, como comprovava Lenin, um campesinato esiamental vaseado na propriedade ‘comunitaria e tradicional da terra. La, era um campesinato que nio queria sair da terra, que queria permanecer defon- sivamente alheto ao capilalismo, fora e contra ele, quo resistia a0 processo de expropriagiio que poderia desenraizé- lo, Itberta-lo da comuna, abrirIhe os horizontes. Aqui, ao contrério, 0 campesinato 6 uma classe, nio um esiamento, E um campesinato que quer entrar na terra, que, ao ser expulso, com freqiéncia a terra retorna, mesmo que seja terra distante daquela de onde saiu. © nosso campesinato 6 constituido com a expansiio capitalista, como produto das contradigdes dessa expansio. Por isso, todas as agies © Tulas camponesas recebem do capital, de imediato, reagdes de classe: agressées e violéncias, ou tentativas de aliciamer to, de acomodacio, de subordinagio. O direito de proprie- dade que, afinal de contas, o camponés invoca judicial- mento para resistir ds tentativas de expropriagio é 0 mesmo direito que © capitalista invoca para expropriar 0 campo- nés (o nio um direito institucionalmente diferente, como o da propriedade comunal). das contradigdes desse dineito, que serve a duas formas de propriedade privada — a fami. liar @ a capitalista — que nascem as interprotagdes dis- tintas sobre a terra camponesa e a terra capitalista, terra do trabatho e terra de negécio. Essa contradigio est no fato de que o mesmo eddigo gorante dircitos confittantes na nossa situagio — 0 do “pequeno” e o do “grande”; 0 do camponés e o do capitatista, 34 um campesinato que tem, na sue relacio com o capital, contradigdes diferentes daguelas que tem 0 operario. O cam: ponés nfo 6 uma figura do -—passado, mas uma figura do presente da historia capitalisia do pais, Classificar a esp ranca da terra livre como um dado do passado é imputar sentido &s lutas camponesas; ¢ admitir equivocadamente que 0 passado tam uma exisiéneia em si mesmo. Entretanto, 38e “pasado” s6 tem sentido, s6 pode ser compreendido, por meio das relagdes que tornam sua evocagiio necessé. ria — essas relagées estao na violénela do capital e do Estado. Portanto, esse “passado” 6 uma arma de Iuta do presente, Esse "passado” 86 tem sentido no corpo dessa Iuta, 86 se resolverd quando se resolverem as contradigées do capital — quando entio seré possivel compreender que o sentido do passado $6 se desvenda corretamente “no futu- ro”, na superacio © na solugiio das contradiges do ca- pital — da exploragiio e da expropriagio, 16 No nosso caso, o avango do capitalismo nfo dependeu da abertura de um espaco livre & ocupacio do capital. © trabalhador 4 era expropriado. Foi o proprio capital que, com a crise do trabalho escravo, instituiu a apropria- Ho camponesa da terr: ‘a contradi¢io evidente num. momento em que o capital necessitava de forga de tra- batho, de trabalhadores destitttidos de toda a propriedade que néo fosse unicamente a da sua prdpria foroa de tra balho. Por essa raziio, © nosso camponés nao ¢ um enraizado. Ao contrario, 0 camponés brasileiro 6 de- senraizado, ¢ migrante, é itinerante. A histéria dos camponeses-posseiros 6 uma historia de perambulacao. ‘A historia dos camponesesproprietérios do sul 6 uma historia de migragdes. H4 cem anos, foram trazidos da Europa para o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Parand, SA0 Paulo, Espirito Santo, Ha pouco mais de trinta anos deslocaram-se para as regiées novas do Parand, Hoje, muitos ostiio migrando para Rond6nia ¢ Mato Grosso. Tanto 0 deslocamento do posseiro quanto © deslocamento do pequeno proprietério siio determinados fundam te pelo avange do capital sohre a. terra Classificar como populisias as Iutas camponesas 6 parte de uma conduta ideolégica @ volitica que s6 deixa as lutas camponesas 0 caminho da alienagio, do abandono, do mis- icismo, do banditismo. # a recusa 20 campesinato do direito de se expressar politicamente, de manifestar os ter- mos da sua alianca com a classe operdria sem ® media- 80 de uma porspectiva politica distorcida pelo compro: misso da alianga preferencial com » Durguesia, com as classes dominantes, com 0 governo e com o Gesonvolvimen- to da democracia burguesa. Dai a importancia de ouvir o campesinato, 1 evidente que ouvir 0 campesinato no quer dizer, simplisticamente, partir do préprio discurso dos “agentes sociais”. Quer dizer soc muito mais. Quer dizer que é preciso mobilizar recur- sos tedricos que permitam decifrar a fala do camponés, especialmente a fala coletiva do gesto, da aco, da Inta eam: ponesa. preciso capiar o sentido dessa fala, ao invés de imputardhe sentido, ao invés de desdenhis. E isso somen- te seré possivel so entendermos que a resisténcia do cam- ponés néo expressa 0 seu sentido num universo particul i © isolado, camponés; que a resisténcia do camponi propriacio, ao capital, vem de dentro do préprio capitalism, Que essa resistencia $6 adquire sentido pela mediagio das contradigées fundamentais que contrapdem operiirios © bur- gueses, pois 8 questdo agréria é uma entre outras expres: s6es das contradigdes do capital. Tanto a sonegacko de apoio tis lutas camponesas, que eséas perspectivas indicam, quanto os equivocos sobre 0 alcance revoluctonixio das Iutas camponesas (enquanto Iutas: estritamente caraponesas), quanto ainda a vacilagio dos partidos politicos em rolagio ao campesinato ¢ suas Iutas, tém diretamente a ver com o distanciamento entre 0 movi- mento camponés © 0 movimento politicd) Esse distancia. mento eriou um vazio de representagao propriamente politica dos camponoses. Esse vazio, no que tange a insutficiéncia de agdes partidarins, comega a ser preenchido pelo Estado de dois anos para cit (sobretudo apés 0 III Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, quando, entre outras coisas, se decidiu pela invasio de terras, e apés 0 documento “Igreja © Problemas da Terra”, aprovado na Assembléin da. Confe- réncia Nacional dos Bispor do Brasil). Dentro de seus pra prios termos, 0 Estado tem procurado assumir a represon- taco politica dos interesses do campesinato. A usurpagio politica que ai se pratica 6 evidente, coneretizada sobre- tudo na deliberada © organizada desmobilizagho camponesa nas dreas de tensio grave, com direto envolvimento militar, incluindo 0 cereenmento de direitos civis. Essa medida ate- nua, @ fregiientemente anula, as conquistas politicas do campesinato nos tltimos 30 anos, sobretudo enfraquece 0 processo cle constituicio da cidadania do homem do campo, ‘a sta libertaeao ca dependéneia. pessoal, a afirmagio em. lermos proprios do seu luger politico. Longe de constituir um produto das divisGes internas de um Estado nio2nono- litieo, de um Estado eontraditorio, como se poderin pensar, 6 antes medida de carater estratégico destinada a absorver as creseenles pressées do campesinato, ssas pressées tor: natam-se poderosas particularmente em virtude do envolvi- mento da Igreja na aceitagéo e reconhecimento da legiti- midade de tais lutas, como admitiu ha pouco © ministro chefe da Casa Civil da Presidéncia da Repitblica numa con- na Escola Superior da Guerra, A absorgio dessas 18 pressées pelo Estado ocorrem, porém, mediatizadas por uma concepelo e uma politica préprias, anticamponesas, do regime militar a respeito da questo fundidria. Tamer os empresirios rurais acaba de se manifestar a respeito do direito de propriedade, pedindo que seja restringido, Aparentemente entregam a eabeca dos especuladores de texras para tornar admissiveis as solugdes restritas, anticam- ponesas, que o governo tem adotado e para impedir que as presses do campesinato avancem além dos Lmites estabe- lecidos pela grande empresa capitalista no campo. Resta saber 0 que farlio os préprios camponeses, além do que 44 estilo Lazendo, @, sobretudo, 0 que farao os partidos poli- ticos com © problema campones. Agradeco muito: a AntOnio Canuto, pelas informagées sobre Maria da Praia; a Lednelo Martins Rodrigues ¢ Raul Matons Castell, pelo empréstimo de documentos utilizados no capitulo 1;'a Zarine Galvio Cameiro, pela Gatilogratia dos originats, Siio Paulo 1° de maio de 1981 Capitulo I Os camponeses ¢ a politica no Brasil * Introdugio As palavras “eamponés” ¢ “eampesinato" sio das mais recentess no vocabulério brasileiro, ai chegadas pelo eami- nho Ga importagio politica. ** Introduzidas em detinitivo pelas esquerdas hit pouco mais de duas décadas, procuraram dar conia das Tuias dos trabalhadozes do campo que irxom- peram em varios pontos do pais nos anos cingtienta, Antos disso, um trabalhador parecido, que na Europa ¢ em outros paises da América Latina 6 classifieado como camponés, finha aqui denominagdes proprias, espesificas até em cada regiiio. Famoso tornouse 0 caipira, palavra provavolmento de origem indigena, usada para designer 0 camponés das regides de Sio Paulo, Minas Gerais, de Golds, do Parané, do Mato Grosso do Sul. No litoral paulista, esse mesmo trabalhador ¢ denominado de caicara. No. Nordeste do pais, se BamMe gpreenade, 20 Semin whee sees poi do cmos ow hiersidads Nacioonl Aaenarka Wo. México, Cextepes, aneiro de 1st. 2 “Selin tmaho "apt loner fore esis a eins Dect, puruauiarmante daily Sealine on ‘propeedaes as tarts fe. Compo Co ea Page a enon Inelshaio’osmbaltndorsrminssdo” 0 exngo 21 chamam-no de tabaréu. Noutras partes ¢ conbeciéo como cabloco, palavra muito difundida que quer dizer diferentes coisas em diferentes épocas ¢ em diferentes lugares: em Sio Paulo do século XVII era designagéo depreciativa pela qual se nomeavam os mesticos de indios e brancos; no Norte & no Centro-Oeste do pais é palavra empregada para distin- guir © pagio do erlstao, sendo nome que se dé ao indio, mesmo em contato com’ o branco; em varias regiées 6 pala vra que designa 0 homem do campo, o trabalhador. Sto palayras que desde tempos remotos tém duplo sentido. Referem-se aos que vivem li longe, no campo, fora das povoagdes @ das cidades, e que, por isso, sio também ris: ticos, atrasados ou, entiio, ingenuos, inacessiveis, ‘Tém tam- bém o sentido de’ tolo, de tonto, As vezes querem dizer também “preguigaso”, que nfio gosta do trabalho.* No con- junto, so palavras ‘depreciativas, ofensivas. Isso talvez explique por que essns palavras foram desaparecendo do voeabulério cotidiano, encontrando um tiltimo refiigio nos diciondrios dos foleloristas. F significative que a progres siva inutilidade dessas palavras tenba correspondido apro- ximadamente a0 crocoimento das lutas camponesas e & en. trade da situagao do campesinato no debate politico nacional. 1 Também os proprietérios de terra tinham designagdes distintas conforme a regio e a atividade: estanciziros no Sul; fazendeiros em Sflo Pauilo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Golds, Parand; senhores de engenho no Nordeste; seringa- listas no Norte. Mas também eles tiveram sua designacéo mudada ® partir do mesmo debate auc alcancou os cam poneses — passaram a ser designados como latifundtdrios. Essas novas palavras — camponés e latifundiério — sio palavras politicas, que procuram expressar a unidade das regpectivas situagdes de classe e, sobretudo, que procuram dar unidade as Iuias dos camponeses. Nao sio, portanto, meras palavras, Esto enraizadas muma concepgio da His- toria, das Inlas politicas e dos confrontos entre as classes sociais. Nesse plano, 2 palavra eamponés néo designa apenas tals gn, cman Cocado, Dilontito do Fostrs, Rraeigy, twee oti ros cot tee Rada TERS wal oP pe heats Bib, woh $k in? Rees” S? pice “Eine, “razors Anon fama suo ‘eee? an ie Te vate Since” ands boel sven ous Ommapn Salon ty Sin ence. sie di Eikiacte a Culutn, MOGs Satan inte pea 22 6 seu novo nome, mas também 0 seu Iugn sacle, nfo apenas ho espago yeogritico, no campo ea coptraposieéo & povos (ao om & cldate, mas na estratura a sOelededs; por 1:80, ‘ho. @ apenas una novo nome, mas pretends ser também a Gosignagde de tun destino histtoo. ‘Una eoiss, porsm, € esse destino, Outra colsa 6 a com coped dese destin. O transplente a. consepcio de. ca ponds do outras senllgades stress, partoularmente da Featidade ussa ‘dos fins do séoulo XIX © do comeco co seculo 3X, para engadra © expliear a stuagio e as lutas ho ineio ral brasleiro, desies tampos recontes, & pro Cocimento que apresenta| sas difieuldades. destino do Camponés Dratilero. passa a ser concebido abraves ce um entenimento estrangelzo de destino do. camponts_ (como estranha é-® prapri. palavra nova que © designe) © que no corresponds A sun ralidade, as contradigoes au vive, to destino neal te nasce de fate dessa da imaginagio polities. Caio Prado dtinior questionow ‘em tompo 0 eariter meto- dologieamente insustentivel dessa. transposigao mecca." No seu entender, no tivemes nema temo no. Bl ad gue se pareea ao. carmponés dessas eoncengées. potions, Tal campones' seria. personagem do_uma estrutura feudal ou dos restos do feudailamo, 0 que no entender daquele tutor mio tem eabimento, De wm lado, porque 0 fazen dio era tm homom do negdeos. De outto lado, pore as chimadas Telagoes fetdals o¥ semifeudn’s — como as v% Fas forinas de parerie — easimilame antes ao assulriado TNi0 estou do neo!do com essa formulas, como nfo estou do condo com aqusla ota que assa pretence eit car, Tibor agut ainda nio seja 0 Mgnt para abordar mais extensumente n questo, que € mals questo politica do aue tsorica, pareceme indlgpensivel nfo esquecer as situagoes Sorleis cspecions das diferenws lasses, do mesino modo gue mo’ so. pode esquecer stius dotarminagoes.singuares Embora 0 fazendeiro fosse, e 6 ainda, um negociante, um produtor de mereadorias, rmbora no saja umm rentisic, 6 Eambein wn proprietro de terra. On sofa, 0 seu huero incl: ee ee ee 23, a renda capitalista da terra, Nessa condigio, ele se distingue do burgués clissico, do mesmo modo que se distingue do senhor feudal. A questéo do campesinato no se resolve, igualmente, ignorando ou minimizando a sua existéncia, E muito arbitrario reduzir 0 Colono da fazenda de café ou 0 morador do engenho de agiicar & condigho de assalariado, Em ambos 0s casos, a relagéo conereta do trabalhador com 0 fazendeiro & uma relagéo complexa ¢ contraditoria, onde se combinam © pagamento de disrias em dinheiro ¢/ou 0 trabalho gratuito, e a producio direta de alimentos. O mes- mo ocorre com a situacio das witias modalidades de par- ceiros, que entregam ao dono da terra uma parte da pro- dugdo ou que dele recebem uma parte da produgio. a questiio nig 'se resolve pelo pro mento classificatério e positivista de segmentar a relagio con: creta em varias relacdes abstratas, segundo cada modalidade de pagamento, para identificar numa relagio pura inexis: tente, como 2 da remuneragdo em dinheiro, o carter sala- rial do trabalho e das relagdes de produgio nas favendas,” ‘Tal procedimento violenta o vinculo real que faz da produ Gio dirata dos meios de vida uma maediagso (e, portanto, doterminacao) do pagamento em dinheiro, As diferentes palavras, que em diferentes lugares desig: navam 0 camponés, tinham um duplo sentido, como disse at ln ae" poacls Sa “Ea, Ie, Sh as Sa Slade tis Panto Sle oa” Sal Eee pe te ele phat aad tie ede sat’ cot to ka i, ite tn Wi ube ah tea RT a ata thal Suiahine cowed tia a naga Gy "e's Ga Aagt e Se Sicily Sweat pata bSlarne cathe Fal trina" SR uaa “Sein econ nndte at Sal ao tie" ae leas Sho Seat & Shea” Hencae hans Rie? "Hines eee Terk ona’ Hho Clink atc, “SS Pahl asa gle Sagi a Shendo ovhandis anu, DFR, God acatest, (oe See anie tn Un "ean sat gl ha aS ‘eto Sn eeoaati ae" Sod SS a tae s * 24 antes, Definiram-no como aquele que estd em outro lugar, no que se refere 20 espaco, e como aquele que nao est seniio ocasionalmente, e nas margens, nesta sociedade. Ele néo 6 de fora, mas também nfio 6 de dentro. Ele é, num certo sentido, um ezcluido. 1 assim, excluido, que os mili: tantes, os partidos © os grupos politicas vao encontri-lo, como se fosse um estranho chegando retardatiirio no debate politico. Isso tord muito a ver com a forma como ser, tra- tado, até mesmo por aqueles que se diziam e se dizem sous alfados — As veres sera encarado como um porigo, outras vezes como um incapaz de fazer histéria, de definir € atuar no processo histérico senfo no sentido de conté-lo. Isso definiré, também 0 modo de colocé-lo no debate politico — através da “consclentizacdo” ou da “alianga subordi- nada” as diretrizes da classe operdria, Disso falaremos depois, A exclusiio do camponés do pacto politico 6 0 tato que cercaré 0 entendimento da sua a¢io politica. Mas essa exclusiio nao ¢, como &s vezes tem sido entondida, mera exclusao politica. Por isso, 6 necessario entender a histéria nismos econdmicos, socinis, poli. sho define justamente o lugar do campo: histérico. A auséneia de um coneelto, de uma categoria, que 0 localize socialmente ¢ 6 defina de modo completo e uniforme constitui exatamente a clara expres: sio da forma como tem se dado a sua participacdo nesse proceso — alguém que participa como se nfio fosse essen cial, como se niio estivesse participando. O escamoteamento conceiiual ¢ o produto necessario, a forma necessiiria ¢ elo- gtiente da definigaio do modo como 0 camponés tem tomado parte no processo histérico brasileira — como um excluido, um inferior, um ansente que ele realmente 6: ausente na apropriacio dos resultados objetivos do seu trabalho, ¢ aparece como se fosse desnevessdrio, de um lado, e aiheio, de outro tado, Essa exelusiio ideologica 6 tio profunda, iso radical, que alguns dos mais importantes aeontecimentos politicos da. hist6ria contemporanea do Brasil so camponeses e, nio obstante, desconhecidos nio s6 da imensa massa do povo, como também dos intelectuais, excecio feita a este ou Aquele que por razdes profissionais se vé obrigado a saber 25 de cortas coisas. Na cabeca de muita gente fina da univer sidade, ds Igreja, da intelectualidade esclarecida, estio ausentes esses acontecimentos. Illes no se somam & con cepcdo de histéria j4 elaborada e cristalizada ma cabeca dos inielectuais. A histOria brasileira, mesmo aguela cultivada por alguns setores de esquorda, é uma historia urbana — uma histérfa dos que mandam e, particularmente, uma historia dos que participam do pacio politico. A mesma exclusio, alids, afeta também o fndio, esse parente préximo do cam: ponés brasileiro. Awé hoje ‘nfo se reconstituia a histéria, das Iutas indigenas no Brasil, as formas do confronto entre fndios e brancos que continua até nossos dias. Do mesmo modo, quase nada sabemos sobre a resistencia e as lulas do escravo negro. A histéria do Brasil é e histéria das suas classes dominantes, 6 uma historia de senhores ¢ generais, niio uma histéria de trabalhadores @ do rebeldes. A maior guerra popular da historia contemporanea do Brasil foi a Guerra do Contestacio, uma guerra camponesa. no sul do pais, nas regides do Parand e Santa Catarina, de 1912 a 1916, Abrangeu 20 mil rebeldes, envolveu metade Gos efetivos do Exercito brasileiro em 1914, mais uma tropa de mil “vaqueanos”, combatentes irregulares. Deixou um saldo de pelo menos trés mil mortos.' Pouco antes, em 1896-1897, 2 Guerra de Canudos, nos series da Bahia, gue durou corca de um ano, também envolvera meiade do Exército © milhares de camponeses, tivera uns cinco mil mortos entre estes, impondo severas dervotas tus foreas: mi litares.* Fnquanto ume greve na regio industrial de Sio Paulo estimula iizias de artigos, teses e livros sobre a classe operéiria e os rumos histéricos do pais, a Revolta do Formoso, que por mais de uma década, nos anos cinqiienta € sessenta, implantou um territério livre dominado por sats Taso ah ee Ge tba, “Atgae innate" Gaus” Mess Eine Soot givin ina. do “Coteus iia) S18) aligts “Cian Bt PR wi ed dagtay ee Mase gure Pree Ge Quai, Za “Uae Sata inv picts" Rowman Ssiengae au "Cuwteiato™ Poeidnde’ de Misra Ci’ Su Goats eee ce ie eee FOAMS Salting de J, Cente. de Tsudes nse Criomay, 28'S i" tes aa eee Gast ee ino as oe o'pandleon D obigi, Halters Chatto. Hovilen, Rio ae Jamo, HS 26 camponeses no centro do pais, no Estado de Goids, perma- tros acontecimentos similares, que serio objeto de referén- cia ao longo deste trabalho, pouco se sabe e pouco se diz cos sabem e se dio conta de que o campesinato brasileiro a unica classe social que, desde a proclamacio da Repu- sien te ea ee on mec: amon, Coun, a0 do Sudoeste do Parandé, no Nordeste, e mais recente- Soe eee ee re ee, Teme eet mpone seinen sre, Salada tn eed se nee ane ocean's eachmenenas San rem ius pateeTomamars, nde co rts, movimenis me an oma li ¢Denpit, wost ame com os sindicatos de trabalhadores rurais. Essa perspectiva errena ceeoeaeny me cet moet faeces ae ee eae eee opts nae Ea "Slow phage tio, aly Gon, Oy ermy ea 3 morale Bisel ier,‘ Chy anthem axle Ye otsiner, cbelded Priiioay, ‘anes inatnino tio sgestive’ tina o'0e" Antal Golfer Werido Go" Drobo. Sees ake a7 realidade concreta do processo social, enti rs mente da realidade da andilise histrica e socioldgics, as coisas nfo sio necessariamente assim, Nao 6 demais lem- brar quo na andlise de Marx 0 processo social se concre tia na tendéncia que ele oculta, mas também na aparéncia de imobilidade ou de avango e recuo que ele manifasta. 1350 porque o processo histérico tem na sua esséncia a contra: digo que gera e confronta as classes entre si opostas, mas contém também a desigualdade dos ritmos de desonvolvi- mento historico, sobretudo a desigualdade entre as relagbes sociais € & interpretacto dessas relagdes por aqueles que as vive.” -2 Nho fosse assim, ficaria a impresstio completamente falsa de que 05 movimentos messifinicos. delxaram de existir com © fim da Guerra do Contestado, em 1916, ov com a morte do Padre Cicero, em 1934, Ainda om 1938, 08 misticos reu- nidos em Pau de Colher, no sertdo baiano, foram destrocados por uma forga militar de Pernambuco.” Em 1955, campo- noses de Malacachota, Minas Gerais, vivem um surto mos: sianico na espera do juizo tinal. Nestes nossos dias, cam- poneses urguitizudus vm grupos religiusus v nuiluutislas, como os do Divino Pai Eterno, da Maria da Praia, da Ban deiza Verde, tem uma presenga quase sempre ativa nas lutas eamponesas de Goids, do Paré, do Maio Grosso, do Maranhio. © mesmo se pode dizer do banditismo social. A morte ce Corisco, antigo companheiro de Lampifio, em 1940, nio exierminou © cangago, pois que continuaram quase inalte- radas as bases sociais do banditismo e do misticismo. O Jaguneo reaparece, agora como bandido isolacio, como arma de aluguel, a servigo de fazendeiros e politicos, nas dispu- tas polo poder e nas disputas pela terra, no Parand, na fest, goin, ram dt onan, pln «ovina iis See ee ee ee ee enna iia volta “Efe Pour, Sennen Siglo Velnia “atntina “tons “eae, ue HST odo cpla ecnules "9 gerteijo mig’ muse 6" Real Nia aero Oe ee ee a ee a 28 Amaz6nia, no Nordeste, no Centro-Oeste. O caso mats do- cumentado ¢ o do Sindicato do Crime, no Norteste: hoje om a fmglo. definida de ellminar curnponeses em ‘aia regides. Os proprios camponeses endividados. slo recrut, dos. coino’matadores. 1390 no impede, porém, que ban. didos isolados envolvidos em demoradas buscas de vinganca pessoal por tazdes de torra, do sangue ow do. hour, £6 tnvolvant eta Intas ao lado do camponesas amongadoe de perderem as suas terras, como aconteces com 0. bandide Floro Gomes Novaes, assassinado em 1011, envolvido nium Tonia Tuta de familia, ¢ quo so pos ao lado dos camponese de Pernambuco ameacados por seu eotsito." ‘Tanibém insurretgao camponesa de 1081, no sudoesto do Purang, unm {nsurrelgdo claramente politica © néo. pre-polition, ox” cam: poneses eontaram com apoio de bandos da tronteir, Un Geles, Pedro Santin, colocouse a frenle Geum grupo de mais’ de vinto bandolelres pare vingnr @ honra ad tlpa de tin eamponés, seu eompndse, que havin sido violada, pelos guages quo, a servigo da companhia de terms, de expulsar os lavradares, Mais slgniticativos, ainda, ¢@0 os eave om avo prdpria movimento. prepotitico ororre. depois, © com os mesos personagenss do movimento. pollice, tim dos casos 8 ao tamponts Antonio Jonquim Medeiros, conocido. como “Chapéa de Couro”. Poi um dos lideres dos trabalhasores surais de Pernambuco, no periodo do governo de. Miguel Arraes, tendo sido companheiro de Joo Severino da Silva, lum dos ativistas das Ligos, Camponeses. Apés ©. golpe de 1964, no periods de barbara reproso aos camponeccs do Nordeste, ques. soguiu, Chapeu de Couro cal, no can, fo, formando' ua pando, Im tine de 19640 erupo” ja havin agsattado yarlos engenhos do apicar escapade, de ‘virios coreos da. poli” Oulro caso ogorred em Sao Pau, 1, darts Rouse, “gamma — aa eine com net, 0 nen Se amr ID BIE BO, She ub Et ee Aer (hha SOAS Oho op Re Re me a Enrico hae BS See ha 29 na regio da Alla Araraquarense, em Sania Fé do Sul. Ali houve, dos anos cingiienta até a época do golpe, um ativo movimento politico de camponeses que trabalhayarm em. terras das fazendas sob 0 regime de arrendamento e quo estavam ameagadas de despejo. Com o golpe de 64, 0 movi- mento foi desmantelado, 0 lider Jotre Corréa Neto fugit, sendo preso mais tarde em Jundiai. Apds esse periodo, um. pequeno proprietirio que estivera ligado ao movimento e @ Jofre passou por um processo de transforagio mistica @ deseneadeou, no mesmo Tugar, um movimento messianico. Em conseqiéneia, foi proso e eaviado pela Justica Militar 20 ManicOmio Judicidrio, Ali permaneceu longos anos, até ser libertado em 1979, apés a interferéncia da Igreja. ' Escas consideragGes niio_pretondem invalidar a distingio entre movimentos pré-politicos ¢ movimentos politicos, mas apenas relativizé-la no que se refere os movimentos cam- poneses, Os préprios partidos propriamente politicos, mes- mo os de esquerda, tém uma boa dose de envolvimento & responsabilidade na’ orientagéo pré-politica dos movimentos camponeses no Brasil, eomo ospero deixar claro mais adian- te, Isso nfo impede que se constate que o carter propria. mente politico, na acepeao da distingao acima, se defina no movimento camponés a partir do final dos anos quarenta, @ mais significativamente a partir dos anos cingtlents. O movimento sindical ¢ politico-partiddrio no campo pas a cobrir uma boa parte do espago que antes era oct pelo messianismo e pelo bandilismo social, mas no cobre, mesmo hoje, todo 0 espaco. If significative que movimentos messianicos e 0 movimento sindical se entrecruzem com freqliéncia, sem causar nos seus participantes 0 mesmo cho- que que tal cruzamento causa nos guardifies da pureza poli- tica das Iutas populares. Isso provavelmente tem a ver com © forte carter de classe média que as liderangas de esquerda sempre tiveram no Brasil e com o forte materia lismo racionalista que decorre dessa condigao, O que leva as esquerdas, no campo, a fazerem com freqtiéncia, até inadvertidamente, do proselitismo politico um proselitismo religioso, apresentando 0 materialismo pequeno-brrgués como condigio necessiria da lula pelo socialismo, como crenga que deve ocupar 0 espago ocupado pela religiéo gt Bg erg oun Caen, Coes de Ope, 3% omuroie 20 camponesa, O desconhecimento da vida ¢ da realidade do camponés, © sobretudo da historia dos camponeses, leva a uma superestimagio do misticismo e ao desconhecimento das formas peculiares do seu materialismo, Leva, sobretudo, a confundir a religiio camponesa como a causa do cariter pré-politico dos movimentos e das Intas camponesas. Isso impede que se veja a condicio do cardter pré-politico na propria estrutura social em que se insere o camponés. O ocalismo e 0 misticismo do campesinato nao podem ser explicados como limitagdes de'classe dos camponeses, mas devem ser busendos nas condigdes sociais da classe, Este trabalho cobre um periodo definido da histéria poli tica contemporanea do campesinato brasileiro. Grosso modo, sbrange a fase que vai da aboligéo da escravatura (1888) até o golpe militar de 1964, Reforéneias feitas 2 époces an- teriores © posteriores ocorrem unicamente como recurso para ilustrar uma constalagéo ou demonstrar uma hipétese. Hissa_delimitagao tem o seu sentido: o fim da eseravidfio redefine as condigdes de existéncia do campesinato; o golpe de Bstado poe fim as alternativas que estavam ‘contidas nas Iutas eamponesss da épooa o deixa aberlo apenns 0 ‘aminho da sindicalizacso, AO mesmo tempo, airavés Go Wstatuto da Terra, de fins de 1964, abre caminho para que © governo federal enquadre e administre institucionalmente as reivindicagdes e os surtos de inquietacko camponesa: © Estatuto abre a possibilidade da reforma agraria locali- vada e restrita nas dreas de tensio social grave, ao mesmo tempo que desearta a possibilidade de uma reforma agriria de ambito nacional. O governo militar poderd, assim, a partir de entfio, controlar duas tendéncias aparentemente contraditorias em favor da primeira: de um lado uma polt tica deliberada de concentragio fundiiria e de constitul cao de grandes empresas no campo; de outro lado, uma politica de redistribuicho de terras nos lugares em que as tensdes sociais possam ser definides como um perigo & seguranca nacional, isto ¢, estabilidade do regime militar, 1. As origens sociais do campesinato tradicional No periocio colonial, quem néo tivesse sangue limpo, quem fosse bastardo, mestigo de branco e india, estava excluido at a heranca."’ A interdigao da propriedade, desse modo, al- cangava nao s6 0 indio reduzido & condigao de peca ¢ escra- vo, nas fazendas ¢ nos aldeamentos organizados ¢ adminis- trados pelos padres ¢ pelas cAmaras, como aleangava também © filho de branco sem pureza de’ sangue. No século XVI este ainda aparecia arrolado como simples escravo, oven- tualmente alforriado e recomendado a misericérdia da vita nas disposicdes testamentérias de seu pai branco. Cessada fa legalidade da escravidio indigena no comeco do século seguinte, a nfo ser em circunstincias e periodos detinidos, como 0 da escraviaagio da presa de “guerra justa”, 0 indio © 0 mestigo entraram para o rol dos agregados da fazenda, excluidos do dizeito de propriedade, obrigados ao pagamen: to de tributos variados, desde servigos até géneros, segundo a época, 28 ‘as condigées do fazendeiro. © préprio indio, cujas terra fossem alcangadas pela concessiio de sesmarias, era com freqtiéncia utilizado em disputas de famflias, basicamente disputas pela terra, como aconteceu com os sndios Juci, subjugados pela familia Feitosa, do Coard, empregados nas suas disputas territoriais € politicas com a famflia Monte, no século XVIII. Um terceiro grupo velo engrossar e diferengar o cam: pesinato durante 0 periodo colonial: © dos excluidos ¢ em pobrecidos pelo morgadio, regime que tornava 0 primogé: nito herdeiro legal dos, bens de um fazendeizo. Isso fazia dos outros herdetros uma espécie de agregados do patrk ménio herdado com base na primogenitura. O morgadio 86 foi extinto no Império, em 1035, tendo sido causa tanto do empobrecimento da populagio" quanto de muitos con- ffitos de familias que perduraram por longos anos." Tudo rte ah aad eee aac Hat oy GER ‘edlorsWiatonaioalune foconal ds Lives, Sho" Bate, 1h Oe ier iat See ae a ae Pa Sena aaa ee nO eee etl SEP tee oY wt eigen mt $8 Gi gta Ret ita een cat ae 32 indica, que a extingio do morgadio teve por finalidade im- pedir a constituigdo de uma aristocracia fundidria, que Fronopolizusse o8 cargos politicos do Senado do. Império com base em direitos heretitérios," Segundo Maria Tsatra Poreira de @ueirom, a extincao do morgadio estimulow os asamentos intrafemiliares ", 0 que pode ser indielo de cima tentativa de resistencia % quebra das relagbes e priv Ieelos quo garantlam aos fazendetros no 56 um monop6s- io de elasse sobre a tecra, mas também sobre escravos © agreyados. O morgudio interdilava a disporsio da riqueza pela heranga, mas nao impedia a abertura de novas fazendns © & Consliuigao de nove propriedades. ‘mediante simples oct: pacio e uso da terra, AlMs, exa esse 0 provesso de obten- Gio do sesmariag: 0 future sesmelro coupava antes a terra, fbria ta faenda e 36 assim se eredenciava para obter a concesséo ea logitimagao da sestnaria, O emprego titil da terra era a ose da legitimacao,”" Por esse motivo, tes2as bandonadas, como ocorreu com freqiténeia onde os erre- not se tomnaram “cansados”, ainda dive 16 concedidos em Sesmatias, podiam eair em comisso, revettendo Corea, porsibiltendo a sun entrega. umn novo sesmer0." Tinsiamento © morgadio indica uma das caracteristicas mals importantes do fegime de sesmarias: a formelagio do critérios que impedissem a tragmentagio da fazenda e a fragmentagio da familia. Mesmo apds a extin: maalo, os ‘casamentos intrafamiliares, no foram o tnico Fecurso que 03 fazendeiros utlisaram pare impedir essa fragmentagao, Usou-se largamente, em todas as regides do pals, o resureo de manutencdo das terras indivisas, em co- rum, entre 0s hevdolros, baseada no coneenso. sobre, nal SRE SRE EAS gree 2 Mertaede oye ee Sth a Ree Ha a Se Sc ie ph aie A A See 3 tes e direitos aproximados de cada herdeiro. Provavelmente, @ manutengao das terras em comum ja ocorria muito antes que fosse extinto 0 morgadio, cujas regras operaram, ao que parece, em condigées limitadas. Antonio Augusto Aran- tes Neto fez recentemente observagées muito interessantes no serlio da Bahia sobre critérios de heranga baseados na epropriaciio familiar em comum da terra da fazenda. Ali, os herdeiros delegam 2 determinados membros da famf- Ha o registro de memoria de amplas genealogias cobrindo largos territorios e que constitui uma espéeie de mapa dos vineulos de familia e dos direitos de cada herdeiro ao Jongo de muitas geragées. Hi indieages de que tal pro- cedimento estende-se a outras regies do pafs onde as terras foram mantidas em comum durante muito tempo, as vezes durante séculos." A masse dos exchifdos constiiuida durante o periodo colo- nial nfo era, pois, massa indiferencada. Isso permitia a um. branco deserdado pelo morgadio abrir a sua prépria posse, onde pudesse, ¢ obter assim » sua sesmaria, Jé um mestico pobre podia abrir a sua posse, mas, devido aos mecanismos tradicionais de exclusao que alcangavam o impuro de sangue, dificiimente podia tornarec um sesmeiro. Quando no vv. mego do século XIX um desembargador da Casa de Suplica- go da Corte do Rio de Janoiro solicitou 8 Wéguas (52,8 km) de sesmarias no Rio Grande, na regiio da Serra do Mar, em Sto Paulo, uma das* pessoas que tinha fazenda naque. las terras apresentou como prova do seu dominio, opondo-se & concessio pretendida, dois agregados para confirmarem © seu direito & terra.“ O agregudo, na verdade, efetivava dominio em nome do fazendeiro, situagéo que nio seré expressamente modifica: Lei de ‘Terras na validagio ou tevalidagio de diroito sobre terras possuidas por par- ticulares. * Tay Mting, Clare os. ot. D1 Tens Cxelo, Drange, ferccgy Co, i ee 34 Do mesmo modo, a concessio da sesmaria tinha precedén- cia legal sobre direitos de posseizos, Nao era raro o fazen- deiro encontrar, no territério de que se tornara sesmeiro, posselres instalados com suas rocas e seus ranchos. De- pendia do fazendeiro aceitar ou néo a permanéncia desses posseiros como agregados. De qualquer modo, se no Ihe conviesse mantéJos no interior da propriedade, estava obri- gado unicamente a indeniz-los pelas benieitorias, como a Lei de Terras © confirmard."* A posse do fazendeiro con: duzia 2 legitimagio através do titulo de sesmaria; 0 mesmo no se dava com a posse do camponés, do mestigo, cujos direitos se efetivavam em nome do fazendeiro. Basicamente, tais situagdes configuravam a desigualdade dos direitos entre 0 fazendeiro e © camponés — desigualdade essa que definia os que tinham e os que néo tinham direitos, os incluidos @ os excluidos. Com isso, os direitos dos campont que viviam como agregados 6 eram reconhecidos como extensio dos direi- tos do fazendeiro, como concessio deste, como questio pri- vacla € no como questo piiblica. Isso nao fazia do agregado um eseravo do fazendeiro, um servo, como os servos da sociedade feudal. O cddigo que regulava as relacde: nhor com 0 escravo era um; 0 que regulaya as relag fezendeiro com o agregado era outro. Naquele, configurava- se uma relagdo de dominacdo, da pessoa sobre a coisa que era 0 escravo, cuja humanidade a relacio escravista nio reconhecia, Humano era o senhor, niio 0 escravo. No outro, fa relagiio era essencialmente a relagio de troca — troca de servigos e produtos por favores, troca direta de coisas desiguais, controlada através de um complicado balango de favores prestados ¢ favores recebidos. Nesse plano, a natu- rez das coisas troeadas sofria muiagdes — pelo fato de viver @ trabalhar autonomamente nas terras de um fazen- deiro, um agregado podia retribuirthe defendendo o seu direito de se assenhorear de mais terras, de litigar com fa- zendeiros vizinhos, etc. Com isso, 0 agregado defendia tam- 22, soime otis avis om, somtray 0. on comp. pon seein, mem Enid trina de utara, "Sioa, oi p. 20a. © aeiga Sh. Bet da al ‘ryan atabacens que ha suey em erodstincas, ox Seyi “put aala kis's6 davio data h indenfsagka ‘pelas tenfeiorag". TNURA, 38 bém 0 seu direito de estar na terra do fazendeiro. Mas néo podia defender o cireito de estar na terra, sem fazer dessa terra propriedade do seu fazendeiro. A sun luta era luta do outro, Por isso, is vezes pode parecer estranha a oxpressio “morador de favor”, que existia e existe todavia tanto no Nordeste quanto em outras regides do pais. Muitas vezes, alega-se que os vinculos entre o fazendeiro @ 0 agregndo, 0 morador, cram vinculos extre-econdmicos, feudais, toman- dose como referéncia a morada de favor, 2 morada em terra alheia sem pagamento da renda, No meu modo de ver, a morada de favor esconde duas relagées enire si dis. tintas: 1 do verdadetro agregado, 0 mestigo, exeluido do direito de propriedade e de heranga, ¢ a do parente, do membro da familia, que 0 morgadio exeluiu da heranga e que no entanto permaneceu na terra, como era costume, até empobrecendo-se ao longo das geragies ¢ do tempo. Muito provavelmente, nestes casos nao cabia cobranga de renda por fora mesmo dos vinculos de sangue. Por outro lado, a concepefio de morador de favor niio esconde nada: favor com favor se page. A morada de favor envolve uma relagao de troca que inclui e ultrapassa o t balho € as xelagoes de trabalho, jd que a concepeio de favor, como prestacéo pessoal, mas Teeiproca, envolve niio apenas a produgio material, mas a propria lealdade das partes: a Getesa de supostos direitos de propriedade de um fazen- dairo, bem como o abrigo e proteciio ao camponés contra @ perseguicao policial por um erlme cometido, ete. A natureza da (roca envolvida e embutida na concepesio de favor cvoluiri com 0 desenvolvimento econdmico brasileiro para se definir mats concretamente como relagio de arren- damento: terra em troca de renda em trabalho (como 6 0 caso do cambio no Nordeste), em espécie (como 6 0 caso da parceria em todas as regides do pais) 6 em dinhoiro (como ¢ 0 caso particularmente do arrendamento de terras no sul e no sudeste). Mas essa evolugao sera diferente para 0 fazendeiro @ para 0 agregado, A troca concebida como troca de favores era estabelecida com base num eddigo de honra, que regulamentava a Ges entre um e outro, Nao era troca de coisa por coisa, ovorre nas trocns comerciais car 36 tudo por tudo, Envolvia, por isso, desde as relagées mati niuis, a eessio da terra em troca de parte dos géneros ali- menlicios produzidos, até a reciproca lealdade, até a trama teligiosa ¢ do compadrio, pelo qual o agregndo colocava seu filo sob tutela e protecao do fazendeiro-padrinho, tecen- do uma teia de relagdes sagradas de prestagio e lealdade reciprocas. ‘A exelusio do camponés vista até aqui é aquela que mar: cou 0 periodo eseravista, em que o trabalho na grande fa yonda era Tundamentalmente executado pelo escravo negro, de origem africana, Ha algumas suposigies fundamentadas para entendermos por que, ao invés de empregar o tra balho de indios © agregados na grande lavoura de exporta- ao, preferiuse empregar 0 trabalho cativo do negro. De rabalho escravo estava jo eseravista e no na avenda escravista que a escravi * Por outro lado, essa situagio tinha o seu sentido, ji que permitia nos trafieantes de escravos fazer do eativo renda capitals yada, extrair zenda da coldnia jé antes da produgao colo: nial, ao invés de extratla por meio de monopslio e renda lutiiloriais, © tréfico negreiro © o trabalho escravo exam exatamente os falores que reliravam da colonia qualquer caréter feudal, Permitiam que, a0 invés da metropole tirar ronda da terra através de uma elite territorial, de um monopd- lio de classe ot de um monopélio estritamente estamental so- bre o solo, tirasse renda na circulagao, fazendo o escravo pro duzir renda capitalista antes de produzir mereadorias, ¢o- prando tributo antes da producio e nao depois da producto, como ocorria com a xenda feudal, deslocando 0 proble: ma da renda (colonial) da produgao para a circulaco das mereadorias, no caso 0 eseravo.” Com isso, a indepen Géncia do territérlo, em 1822, nfio representow um colapso para as relagdes colonials. O monopdlio da terra nio so constituia na condiefio do trabalho esczavo; ao contririo, fa escravidéo é que impunha a necessidade do monopélio rigido © cle classe sobre a terra, para que os trabalhadores livres, oS camponeses, mestigos, nfio viessem a organizer B,voymodo, A, Nuit, Fort ero mt ne, do Ato Stems Chlriat CEE ea Sta DN atety afer, Lira, Bator, Cin

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