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AINVENCAO DA SOCIEDADE Sociologia e Psicologia y EDITORA SERGE MOSCOVICI VOZES PREFACIO A EDIGAO BRASILEIRA Pedrinho A. Guareschi ‘Vocé teria coragem de sair despidopelas ruas? Certamente néo. ‘Mas j se perguntou por qué? O que o constrange? Nao existem rmuitas tribos indigenas nas quais as pessoas andam sem roupa? ‘Qual a ciferenca entre eles e n6s? E mesmo que vooé tenha essa coragem, © que faz. com que se arrisque a téo estranha ago? ‘A questo que perpassa as longas ¢ profundas reflexes do autor tocar, num momento ou noutxo, num dilema onipresente € fundamental: como conciliar 0 indiv.dual e 0 social? Como con- cilia a dimensio pessoal e livre de nossas ages com a pressao que sofremos do grupo social em que vivemos? Nao hé como negar que vivemos numa comunidede, que fazemos as coisas porgue achamos que "devemos" fazé-las. De onde ver essa cria- do moral? E, contudo, se nos propusermos refletir sobre essas obrigagées com coragem, podemos chegar a conciusio de que podemos deixar de fazé-las, sim! Ertéo: sentimos, de um lado, ‘uma pressao continua, uma coergéo subjacente, uma quase im- possibilidade de agirmos de determinado modo; por outro lado, 6 sempre uma “quase” impossibilidade. As profundas reflexes de Moscovici perpassam uma tao pré xima e a0 mesmo tempo misteriosa realidade:-somos seres sin- gulares, sim; mas ndo estamos sés. E mais: sou assim porque hhé outra realidade comigo, antes de mim, além de mim, que é 0 social, ou a Sociedade. A reflextio do autor quer provocar 0 leitor fazé-lo pensar sobre essa realidade tao presente e, ao mes- mo tempo, téo estranha que é a existéncia da sociedade, Afinal, quem teve essa ideia de construir sociedades? Como as socie- dades chegaram a se constituir? Por que aceitamos viver nelas, adaptarmo-nos a elas, responder a suas exigéncias, obedecer a suas normas, seguirmos seus preceitas? Na verdade, o que Mos- coviei quer enfatizar esse fato quase que miraculoso: 6 muito mais facil entender a existncia e os alos de uma pessoa em sua singularidade, do que entender a criagao de sociedades. Qual a forga misteriosa que segura as sociedades coesas e nao permite que elas se despedacem? E interessante assinalar que este livio se apresenta sob dois titulos. No original francés o livio se chama A maquina de fazer deuses, E na sua versio inglesa leva o titulo de A invengdo da sociedade. Na verdade, os dois titulos falam do mesmo tema, mas cada um enfatiza um aspecte. O titulo francés faz referéncia A sociedade como uma maquina de “criar homens", que “podem set deuses’, dentro da inspiragao original de Durkheim. Tam- bem ¢ verdade que esses homens também “podem ser demd- nis", como constata dolorosamente o discfpulo e herdeiro de Durkheim, Marcel Mauss, quando descreve as praticas nazistas da década de 1930. O titulo A invengao da sociedade foi sugerido, segundo o pro- prio Moscovici, pelos socidlogos Antony Giddens e John Thomp- son, que quiseram deixar claro que uma.sociedade nfo 6 algo pronto e acabado, mas ela foi criada ¢ pode ser continuamente rectiada. Segundo 0 autor, a psicossociologia seria a ciéncia des- sa maquina de fazer deuses. Ela tem como vocagao explicar a anatomia desses seres absolutos € consagrar novos. Por meio de admiraveis teorias, Durkheim nos revela 0 absoluto, o lugar a parte a consciéncia coletiva e da religido. E Weber, o carisma, a inven- tividade, a possibilidade de novos sentidos e de criagao. Longe de nds, porém, pensar que Moscovici considera a so- ciedade como uma maquina que “faz” deuses de uma maneira eterminista. O que ele quer discttir é que existe uma sociedade como uma realidade de tipo especial (sui generis). Ela ¢ também algo real. O “social” existe e nao é puramente a soma de indivi- duos. Essa a grande contribuigéo de Durkheim. Mas a0 mesmo ‘tempo é importante enfatizar que esse social ndo é algo reificado, acabado, pronto, E aqui a imporséncia de Weber e sua contri- buigdo com uma sociologia compreensiva, do sentido. O social implica uma dimensao psicolégica. Mas o psicolégico, aqui, nao significa algo individual, mas a dimensao psiquica, imaterial, re- presentacional, simbolica das representagées socials, pelas quais pensamos @ a partir das quais podemos nos comunicar. 8 A sociedade nos aparece desse modo como uma reunido de {individuos que, ao mesmo tempo, os une entre eles e ria alguma coisa fora dela mesma, Que essa coisa Ihe seja superior ou inferior, ‘pouco importa: os homens veem nela uma parte do universo na qual se apoiar e que os obriga a permanecer juntos. Se a sociedade {oi e continua sendo uma méquina de fazer deuses (Durkheim), € porque molda esses seres ideais que conftontam e Ihe serve de ponto de referéncia, Qualquer que seja ele ~ a histéria, a natureza, deus, o dinheito (Sime), o lucro (Weber), a luta de classes (Marx) -, esse ponto de referéncia expressa a realidade exterior e o abjetivo para 0 qual 0s homens vivem ¢ morrem, Os leitores de lingua portuguesa séo privilegiados com a pu- blicago do livo de um dos mais poderosos pensadores de nossa epoca, livro este que conquistou o prémio mais cobigado da Eu- Topa no campo des ciéncias sociais, o Prémio Amalfi, s6 conferido a grandes nomes dentro da area, como Richard Sennett, Zygmunt Bauman, Norbert Elias ¢ John Thompson. INTRODUGAO 0 problema Duas faces do pesquisado: raposa e 0 ourigo ‘Muitas vezes 6 vantajoso considerar um problema por seu lado ‘menos evidente ¢ abordé-lo, para comegar, apenas de maneira prética. No contato com as ciénoias do homem e sob sua influén- cia, adquire-se a convicedo, tao indiscutida e indiscutivel quanto um dogma, de que os movimentos, és crises ¢ os fendmenos que se produzem na sociedade podem e devem ser explicados por causas sociais. B que se deve, pelo contrério, evitar recorrer as ‘causas psfquicas, Pelo menos seria necessério adiar esse recurso © méximo possivel, até que ele se tome inevitavel, Eu gostaria nesta obra de remontar as premissas desse dogma e demonstrar que ele é apenas um ideal de outros tempos que se petrificou em preconceito, e até mesmo em superstigao. Essa é @ ‘inica justificativa do meu trabalho. Nao pretendo nem desenvol- ver uma teoria, nem expor uma descoberta que eu tivesse feito Anno ser a de eu mesmo ter me submetido a esse preconceito por conformismo e falta de curiosidade sobre suas razées de ser, As questoes “O que é 0 homem?” ¢ “Quais séo as relagdes entre os homens na sociedade?” sao o leltmotiv de nossos estu- dos, mesmo os mais modestos. Para respondé-las, voltamo-nos para @ fonte primeira de todos os conhecimentos, isto &, 0 co- tidiano ¢ 0 vivido. Nela estamos as voltas com uma infinidade de fenémenos que temos constantemente diante dos olhos, mas que ainda precisamos enxergar. Prestemos tengo, todavia. Uns aparecem imediatamente sociais e séio catalogados como tais: meios de comunicacao e linguagens, movimentos de multiddes que se langam atras de um chefe e propaganda, poder e relagdes de hierarquia, racismo e desemprego, familia, religido, e assim por diante. Os outros 0 so de manelra indireta: assim o medo de um individuo diante do contégio pelo virus da Aids, os sen- timentos de amor e de édio para com os préximos, o suicidio @ que pode conduzir 0 isolamento, a maneira de falar ¢ de se comportar em pablico, as doengas orgénicas ¢ mentais em que naufragam nossas vidas, para dar apenas um ntmero reduzido de exemplos. (Quer ele faga estudos originais ou trabalhe de segunda mao, cada pesquisador tenta aprender esses fenémenos segundo um metodo: observer, experimentar ou reunit documentos de arqui- ‘vos. Em todo caso, sempre em busca do detalhe significativo, do fato exético ou imprevisivel e da lel das séries. Conhecer é primeiramente isso, Por essa razo, consideramos como ficgdes cativantes, mas estéreis, as nogdes e as hipdteses que querem se dispensar de semelhante esforgo. De onde provém o interesse dos pescruisadores por esses fendmenos? Eles provavelmente es- ‘Go na origem da curiosidade comum a todos os homens que se perguntam: de onde viemos, quem somos, para aonde vamos? E se actescentam a isso a escolha de uma profissdo e as exigéncias da acéo, da prética, para dar uma forma ao que, sem isso, seria apenas uma inquietude metafisice. Em seguida, o pesquisacor dedica-se a compreender como as colsas acontecem e por que acontecem dessa forma, ¢ nao de outra. Nada é mais inveterado do que essa tendéncia a descrever os efeitos complexos, a ex- plicé-los pelas causas simples que diriamos extraidas pela forga vigorosa de um bur ‘Ao longo desse trabalho, o pesquisador dé a impressao de ser um animal estranho, meio-raposa, meio-ourigo. Entre os frag- mentos do poeta Arquiloco, lemos este verso: “A raposa sabe mitas coisas, mas 0 ourigo sabe apenas uma coisa muito im- portante”. O mesmo acontece com o pesquisador. Enquanto ele descreve, nés o vemos observar, explorador e agressivo como a taposa, as imimeras pistas da geografia social, combinar fatos e nocées diferentes, manipular os métodos sem o menor pudor. Contanto que os frutos de suas incursdes e de suas rapinagens lhe permitam avancar, captar um trago de verdade, ninguém exi- ge um certificado de origem. E ninguém se preocupa com sua conformidade aos principios da economia ou da psicologia, da sociologia ou da linguistica. Contam apenas 0 faro e, definitiva- 2 mente, 0 sucesso ou 0 fracasso, Assim como para o artista, as qqualidades da obra importam muito mais do que 0 respeito as re- gras da arte. O fato é demasiado evidente para que seja necessé- rio insistir nele. Desse ponto de vista, o pesquisador se conduz, assim como escreve Einstein, “como uma espécie de oportunista sem escripulos; ele parece realista na medida em que procura descrever um mundo independente do ato de percepedo; idea- Jista na medida em que esté a procura de conceitos e de teorias enquanto livres invengées do espirito humano (que logicamente nao podem ser extraidas do dado enpirico); positivista na me- dida em que leva em considerago seus conceitos ¢ suas teorias somente até onde eles Ihe fornegam uma tepresentagao légica das telagdes entre as experiéncias dos sentidos". Tudo muda assim que o pesquisador se coloca no dever de ex. plicar a massa dos resultados obtidos. Espontaneamente, como o ourigo, ele se enrola como uma bola, eriga seus espinhos, isto é, recusa aquilo que choca e conttaria a sua propria visdo. Esses resultados, ele os examina no interior de uma disciplina e a partir de uma causa iinica, a chave dos enigmes. Ble os relaciona a um sistema de teorias cuja autoridade ¢ reconhecida, Fala-se entéo de_patadigma Nada ou quase nada Ihe escapa ou Ihe resiste. Simn, explicar consiste em revelar essa causa — 0 poder, a luta de classes, 0 intetesse, 0 complexo de Sdipo etc. - que converte 0 desconhecido em conhecido. A partit do momento que ela é en- contrada, tem-se a impress de que tudo se ilumina e que tudo faz sentido, como uma cadeia de que ela é o primeiro elo. Quem quer que a coloque em divide prendendo essa cadeia a um elo diferente, quero dizer, a uma outa causa, atrai para si a repre- ensdo e beira a heresia. Vooés néo ignoram o anatema langado contra aqueles que a psicandlise ou o marxismo excluitam por Jesa-majestade de sexualidade ou de luta de classes. O drama de alguns deles nos mostra muito bem, 2 a8 vezes de modo heroico, © que acontece quase em toda parte em uma escala menor & bem prosaica. 1. SCHILEP, PA. Albert Binsin Piloscpor Scientist. Easton: Libary of Living Pio ophar, 1649, p. 634 13 Neturalmente, néo é necessério enegrecer um quadro re- pleto de nuangas. Mas, enfim, a escolha de uma causa engaja 0s valores da sociedade e decide a hierarquia das ciéncias. Hla manifesta simplesmente o espirito do tempo. Vivernos em uma era econOmica e sociolégica. A inclinagéo natural é explicar os fenémenos, quaisquer que sejam, a partir da economia € da so- ciologia. Até ao absurdo, se neceesario for, Sendo o prestigio da verdade softeria com isso. E mais ainda 0 consenso da comuni- dade cientifca e da cultura. Raposas e ourigos, como se vé, abordam as questées que nos ocupam com um espirito bem diferente, Nao adotamos a mesma atitude para apreender um fendmeno concreto e explicar suas causas. Por um lado, lidamos com uma pratica de descoberta; por outro, aleangamos os fundamentos da ciéncia, ou seja, a de- finigao Glaquilo que se nomeia a realidade. Nao ¢ com tranquili- dade, sem paixéo, com uma opiniéo preconcebida que se inicia a discuss&o desses fundamentos. Mas ainda néo chegamos la, ‘Muito se tem repetide que as ciéncias do homem séo mais jovens do que as ciéncias da natureza. Isso estaria realmente cor- roto? Exxistem intimeras raz6es para se pensar 0 contrério, caso se leve em conta a variedade e a riqueza das instituigdes que se enxertaram ao longo dos milénios com uma técnica muitas ve- zes rudimentar. Elas supdem um maximo de saberes relativos as competéncias da sociedade e dos comportamentos humanos que os milos € as religides atestam, essim como a sabadoria popu- lar. Em todo caso, a imperfeigdo das ciéncias do homem é mais preocupante do que a sua rigidez, a idade do coragéo menos do que a idade das artérias. A dvalidade da raposa e do ourigo no pesquuisador concame sobretudo a essas ciénotas. Constata- se, 4 primeita vista, que suas descrigées e seus métodos avan- cam harmoniosamente. Vooés os vem compartilhando técnicas, dando-se conceitos, e mantendo uma troca permanente. Os pto- giessos em matéria de estatisticas, de enquetes, de observagao, de andlise das dados, rapidamente se transmitem da economia & sociologia, da linguistica A psicologia, da antropologia & histéria e vice-versa, As hipéteses defencidas em um lugar séo levadas em conta e fecundam a pesquisa em outro. A difuséo dessas “4 ee diversas possibilidades de pesquisa que se abrem aqui e acolé, 0 {ato de se encontrar a marca de sua iniluéncia por toda parte, eis sobre 0 que nao se deveria insistir. Dessa manera, formou-se ha mais de um século esse imenso corpus de saberes, essa ampla rede de campos de estudo das sociedades, ao mesmo tempo que ‘uma linguagem que melhor permite manté-lo coeso. Em nenhum. lugar suigem cortes definitivos e oposigdes firmes. E todos jul: gam da mesma maneita um bom ou um mau trabalho, onde quer que ele tenha sido produzido, Creio que minha descrigao admite poucos retoques. ‘Maas, no plano das explicagSes, as coisas tomam um aspecto diferente. O ourigo mostra seus espinhos! Ou seja, parece que estamos presos as relagdes e & sliviso da época passada, quando a ciéncia do homem tomou corpo. Incansavelmente, cada um re- toma aos esquemas de causalidade e as oposigées tradicionais, Eles provavelmente servem pala exaltar uma especialidade, para ressaltar a posigéo desta diante de suas rivais e dentro de uma hierarqula intacta. Poder-se-la dizer que as atribulagSes que abalaram nossas vidas, 0 horroraso lodagal em que chafurdou a histéria, as revolugdes que metamorfosearam @ paisagem de todas as ciéncias, humenes e outras, nada trouxeram de novo sobre a face da Terra Por essa razo nao é de se surpreender que eu volte ao pro- blema do corte mais classico, sobre o qual se apoiam ainda todos ‘os outros. Refiro-me as causas psiquicas ¢ as causas sociais. Sem sombra de duvida, esse corte tem algo de profundo e que se repete sob diversas formas. Seria absurdo e pedante lhes per- guntar: "Vooés o compreenden?”; como no o compreenderiam, quando vooés 0 aprendem nos bancos da escola ¢ muitas vezes se chocam com ele. Quanto a mim, estimo que é supérfluo re- abrir os grandes debates sobr as duas familias de explicagdes que derivam disso, Cada uma delas cortesponderia a uma reali- dade traduzida por sintomas particulares. Ninguém confunde as emogées, os pensamentos ou os desejos de um individuo com as instituigées, a violéncia ou as regras de uma coletividade. Se um individuo percorre as ruas de Paris proclamando: “Eu sou De Gaulle!”, ele sofre de perturbagdes psiquicas. Mas se dez 15 mil homens o aclamam gritando: “Somos gaullistas!”, néio du- vidamos de que se trate de umn movimento politico. & uma ver dade garantida que, quando estamos reunidos e formamos um grupo, alguma coisa muda radicalmente. Pensamos e sentimos de modo bem diferente de quanco o fazemos separadamente. Pode-se discutir 0 sentido dessa diferenga, ndo sua existéncia. Os sentimentos de amor ou de édio tomam-se mais intensos, os argumentos tomam-se mais extremos e vivazes. As qualidades dos participantes se transformam ao longo da passagem do esta- do individual ao estado coletivo, Ora, defende-se, para sustentar 0 corte, que essa transfor- magéo resulta em uma diferenga de natureza entre esses dois estados. O que era psicolégico se tornou social, pois cada estado tem causas que lhe séo propries, Durkhein escreve: E necessério ainda que essas consciéncias estejam associadas, combinadas, e combinadas de uma certa maneira; ¢ dessa com binagéo que resulta a vida social 9, consequentemente, é essa combinagao que a explica. Agregando-se, penetranco-se, mes- clando-se, as almas individuais déo origem a um ser psiquico se assim se preferis, mas que constitui uma individualidade psiqui ca de um género novo. # portanto na natureza dessa individua- Jidade, ¢ néo naquela das unidades componentes, que & neces ‘sri0 procurar as causas provaveis e daterminantes que nela se roduzem. O grupo pensa, senta, age de forma bem diferente do que fariam seus membros, casa estivessem isolados. Portanto, se Partirmos destes Ultimos, néo podetiamos compreender nada do que acontece no grupo. Km suma, existe entre a psicologia @ a.sociologia a mesma solugéo de continuidéde que existe entre a biologia e as ciéncias fisico-quimicas* Ainda que essa conclusdo nao se imponha, todos assinam embaixo. Bla tem importantes consequéncias que merecem nos- sa atengo. Ein primeiro luger, ela estabelece uma hiererguia do teal. O social é objetividade: o-psiquico; subjetividade. Um cor- Tesponde a uma esséncia cujos movimentos séo determinados 2, DURKHEIM, E La gies de la méthode soctlogique Paris: PUF, 1860, p. 103. 16 OY por Causas externas € impessoais: interesses, regras comuns etc. O outro expressa antes uma aparéncia cujos movimentos provém de dentro e formam um nftido sontraste com os precedentes por seu caréter instavel e vivido, 0 social é também racional, pois qualquer agdo e qualquer decisdo seguem uma logica, levam em consideragio a relagéo entre 03 meios e os fins. O psicnuico, em contrapartida, passa por irracional, submetido ao impulso dos desejos e das emogdes. Em seguida, ela postula uma tmposstbili- dade de explicar os fendmenos socials a partir de causas psiqui- cas, as matcas de um ser coletivo a partir das marcas dos seres individuais que o compéem. Isso é proclamado em todos os tons ha um século, Semelhante explicagdo ndo é apenas imposstvel, mas certamente falsa. Durkheim resume uma opinigo amplamen- te compattilhada: *Consequertements, todas as vezes que um fendmeno social é diretamente-explicado por um fenémeno psi- quico, pode-se ter certeza de que a explicacao ¢ falsa”® ‘Nessa formula répida - outras andlogas séo encontradas em Weber -o sociélogo vai aos extremos. Nao importa, ele enuncia uma regia cuja autoridade tomou-se indiscutivel. Ela significa que uma explicagdo esté concluida e de acordo com a.ciéncia quando resulta em causas sociais., por outro lado, que se deve eliminar, como sendo fonte de erro, o apelo aos fenémenos subje- tivos e vividos. Quanto mais conseguimos apagar as marcas psi quicas da ago e das escolhas humanas, tanto mais nos reapro- ximamos da objetividade, B certo que a facilidade da operagéio e seu caréter aproximativo deveriam nos prevenir contra ela. Mas a tautologia: o que é social é objetivo porque é social, encontra tamanho eco que ninguém a contesta. “Sem diivida [escreve Karl Poppet}, seria melhor tentar exolicar a psicologia pela sociologia, do que o inverso”*, Certo ou errado, esta estabelecido que uma vez conhecidas as forgas e as instituigdes de uma sociedade, sua ei poderia decitrar e prever aquilo que se passa na cabeca e 1io corago dos homens que dela fazem parte, Essa é a equacdo de 3. id. p. 102 4, POPPER, K. La soceté overt o sas ennomis. 2 Paris: Seu 1979, p. 67, W ee causa ¢ efeito A qual aderimos: "Tendo sido dado um estado de | sociedad, um estado psiquico resulta” i Ora, @ aposta é impertinente. Bla presume que detemos um xitério infalivel da realidade objetiva e de sou reflexo subjeti- | vo, que sabemos distinguir uma causa acessorlamente psiquica. \] Como se, por exemplo, na virtude de curar que os reis taumatur- gos na Franga manifestavam - quando simplesmente tocavamn os milhates de doentes vindos das provincias mais distantes: “O rel te toca, Deus te cura’ — se pudesse disoernir aquilo que depende do segredo do poder ou da psicologia coletiva. E que esse exame | nos permite decidir em seguida que a primeira causa ¢ mais fundamental do que a segunda. Marx, em uma formula que deu | a volta ao mundo, declara sem rodeios: "Nao € a consciéncia dos homens que determina a sua existéacia, mas a sua existéncia que determina a sua consciéncia”. Ela supe que temos @ possi- bilidade de atingir, de fora, o metal puro da existéncia humana, mas sob a condigao de Ihe retirar a ganga de representacdes e de crengas que a envolvem internamente. Assim se verificaria a pro- posi¢éo que, da forma como os homens vivem, podemos deduzir ‘0 modo como esses homens pensam e sentem, - ‘Marx, Durkheim seus discipulos sao firmemente contra uma interpretagéo que valorizasse 0s fatos psiquicos. Se even- tualmente a eles recorrem, 6 como a sintomas que permite remontar a uma realidade social mais sélida e mais oculta. Dessa forma, toda a riqueza e 0 colorido do mundo vivido, todos os recifes da alma que ordenam seu fluxo e seu refluxo, so esma- gados ¢ pulverizados, reduzidos a avatares da subjetividade, da ideologia, da falsa consciéncia, e outtos véus de Maia. Perdem, portanto, o interesse pela conduta dos homens em seus detalhes; desconfiam de seus movimentos interiores e repudiam 0 que sua vida mental tem de singular. E de fora que se instruem sobre a consciéncia, a partir daquilo que nao é ela, mas apresenta a van. tagem de convir a todos. Seria supérfiuo discomer mais loncamente sobre essa tendén- cia a subestimar o psiquismo. Ou porque o julgamos determina- do, ou porque nos dispensamos de Jevé-lo em conta € estuda-lo, 0 fato é flagrante e necessita ser mais amplamente documentado, 18 (© que se pode coneluir? Enquanto continuarmos nossas pesqui- sas, cada um em seu territério, ocupados em perseguir, coletar € analisar fatos, estaremos pouco sensiveis a esse distanciamento. Pelo menos ndo temos consciéncia dele, pois a ele estamos habi- tuados. Aperoebemo-nos disso somexite quando, devendo expli- car esses fatos, nds nos chocamos com a sua interpretagao. Uma coliséo com os outros, sem diivida, mas também conosco. Pois, para a maioria, nés aderimos a opinido comum: a explicagdo sociolégica é a rainha das explicagées. Ela deve ocupar lugar “do Giga NO Coro dos instrumentés, principal. Somos, portanto, obrigados a minorar os outros ¢ a recorrer a eles apenas ocasio- nalmente, “Tudo é 4gua", diziam os primettos filésofos. “Tudo 6 sociedade”, dizemos nés, ¢ esse principio oriena ¢ retine os resultados obtidos nos diversos camos de investigagSo para dar uma imagem sintética da realidade, do sentido da vida e da po- sigdo do homem na natureza, Seja como for, tudo acontece como se jé conhecéssemos a ex- plicagdo antes mesmo de termos dado inicio ao estudo dos fatos. NAo se trata entéo de verificar as casas para cada conjunto de dados e de Ihes deixar margem suficiente para que se fortalegam com as resisténcias encontradas. De forma que uma dose de in- certeza permita, na medida em que a explicamos, garantir que pertinenternente escolhemos causas sociais e no outras. Mas, na maioria das vezes, trata-se de ajustar, a fora, a diversida- de do real a um principio de determinagéo considerado a priori como necessario € suficiente. Como nesses processos em que jé se conhece o veredicto antes do comparecimento dos acusados, aqui também jé conhecemos as causas antes de os fatos terem sido convocados. E néo mais se procede entéo segundo uma regra da razdo, mas da {é, Nas tltimas linhas de sua emocio- nante Apologia-de-histéria, Marc Bloch-nos previne contra essa pratica: “Resumindo em uma palava, as causas em historia, nao mais que em outro lugar, ndo se postulam, Elas se buscarn. Sem isso, nés as privamos de qualquer valor de exploragao e, consequentemente, de qualquer poder de descoberta. Quando se conhece 0 seu segrodo, impede-se que o drama da vida e do conhecimento aconteca. 19 Aculpa é da psicologia J46 hora de descer das alturas e descobrir uma realidade que nos diz respeito, Se dirigirmos 0 olhar para @ rede das ciéncias do homem, 0 corte de que jé falei aparece mais ou menos nitido por toda parte. A separagao entre a soctologia, ou daquilo que a ela se assemelha, sicologia equivale, para elas, @ separagao. entre a fisica ea biologia nas cléncias da natureza. # a primeira. Mas, como tudo 0 que discrimina, a regra que a estabelece se transforma em interdito e anatema. Preconoeitos ¢ exclusdes nao se apoiam, geralmente, em um principio etéreo ¢ erudite? Sim, nada suscita mais amargura do que o "psicologismo", que se tor- nou um viés a evitar, um pecado contra o conhecimento e uma marca de infémia, Apenas a palavra fol dita, sabe-se que um erro foi cometido, que alguém pensou um pensamento que néo de- veria ter pensado, tabu, portanto. Com certeza esse qualificativo tem um peso enorme sobre as questbes que colocamos e sobre a mansira como chservamos a realidade e avaliamos a verdade de uma teoria. Querer explicar os fenémenos sociais pelas causas psiquicas pode ser Gonsiderado um erro, ¢ é abertamente censu. ado, Nao discuto aqui os argumentos dos censores, nem o valor das obras que colocam no index. O essencial ¢ que um corte na ciéncia acabou por ge tornar umn interdito na cultura, @ Sob esse aspecto nos condiciona. Por essa razéo, & mais seriamente, uma [press4o se exerce a fim de repudiar os fatores psicalégicos do conhecimento do homem e de suas relagées na sociedade. Lampejos de retérica, que nada tém a ver com a tealidade, envolvem esse assunto. Eis um primeito exemplo de anatema, escolhido entie muitos. Em um livio frequentemente citado, 0 socidlogo francés Castel empreende uma critica exernpler da psi- candlise. Rectimina-Ihe principalmente ter permanecido estra- nha aos aspectos sociais dle sua pratica e cega “aos principios de seu poder”®. Se isso for exato, a psicanélise torna-se entdo, como ‘toda psicologia, o obstéculo maior de nosso tempo para compre- ender seus problemas e encontrar-Ikes uma solugao, Muito pior, 5. CASTEL, R. Le pahanaljeme, Paris: Masporo, 1873, p. 1. 20 OY ela despenca dos pindculos da siéncia aos subterraneos da ideo- Jogia. Eis 0 que acontece a quem tenta explicar os fendmenos politicos e sociais pela Psicandl'se. E que ideologia: o psicologis- ‘mo! Citemos Robert Castel: “A deologia, assim produzida em to- dos os niveis, apresenta as caracteristicas do velho psicologismo, mas sob uma forma muito mais flexivel e mais sutil que renova os seus poderes”®. Em véo alguns psicanalistas esperaram que se distanciando da psicologia se purificariam de seu pecado original. Como ou- {ora 08 judeus alemdes que deixaram de ser solidérios com seus cortoligiondrios poloneses ou outros e denunciaram seu atavis- ‘mo racial na propria linguagem dos antissemitas. Recentemente ainda, um desses eslavofilos da psicanélise, que fazem suces 50 entre nés, se mostrava “convencido de que o psicologismo contempordineo est4 soterrando essa intertogago fundamental (sobre a familia) sob uma confusdo de teorias, solicitadas mais como produtos de mercado do que elaboradas"”. Existe alguma coisa mais simples, evidente, convincente? Robert Castel néo percebe nese tipo de argumento sendo uma astiicia, poeira Jangada nos olhos daqueles que nao sabem manté-los abertos. “A psicandlise [ele repete], airda que a revolucione |...) @ uma espécie de psicologia’ ‘Ao leo, temos a impresséo de que ndo existe contestagao mais séria e que prejudique sooremaneira a psicanélise junto a0 publico cultivado, cientifico. E que este, assim que ouve a pala- vra odiada, sabe que se trata de uma ameaga na ordem politica fe de um pseudoconhecimento na ordem da ciéncia. Parece que estamos persuadidos de que a psicologia, sob qualquer forma que seja, mina os poderes da tazdio © nos oculta as verdadairas causas da angistia social. # por isso, afirma 0 socidlogo italiano Ferraroti, que 0s neofreudianes cobrem os olhos da juventude. “A psicologizacdo espontaneista [escreve ele] dos fatos sociais 6. id. p. 210 7, LRGENDRE, P, inestimable objet des ransmission. Pais: Payard, 1986, p. 148 8. CASTEL,R, Le psychanalysmo. Op. cit. . 107 an dufos’ no sentido de Durkheim, teve como efeito final a dissolu- (0 de toda posicao critica séria em relagao as instituigdes exis- tentes e A programagio do pensamento em nome de exigéncias e de necessidades to imperiosas quanto efémeras”. Esse jponto de vista esté longe de ser isolado. Assim, entre- gando-se a uma diatribe conta 0 psicologismo, Jean Baudrillard faz ainda mais: Se existe alguém que superestime seus proprios processos psi- quicos |... ¢ certamente Freud ¢ toda essa cultura psicologis- 1a. A juriadigo do ciscurso psicolégico sobre todas as prdticas simbélicas (aquelas, espléndidas, dos selvagens, a morte, o du- plo, a magia, mas também as nossas, atuais) ¢ mais perigosa do que a do discuiso economista - ela é da mesma ordem da jurisdigao repressiva da alma ou da consciéncia sobre todas as virtualidades repressivas do corpo". Por que tanta intemperanga? Talvez nos aproximemos do li- miar em que 0 pensamento etudito se torna censura erudita, e indigno do nome pensamento. O mais sofrido para os inimeros autores que pintam a psicologia (e 0 psicologismo) sob os tragos mais negros néo¢ a imagem que de'a oferecem, nem a concluséo que dela tiram. £ a gravidade teologal de suas premissas. Eles pretendem saber o que 6 a verdadeira ciéncia, a realidade tltima ea boa explicagao dos assuntos hemanos. Para denunciar, sem subterfiigios, a falsa ciéncia, o efémero e a aparéncia, e, eviden- temente, 0 diabolus ex machina. ‘Vou me abster de dizer que o andtema 6 caracteristico da Franga, ou que serve apenas pata ttatar o psicologismo de re- acionério. Também na América 6 preciso se livrar de qualquer suspeita, como mostra a observag0 do historiador Christopher Lasch ja na introdugdo de sua obra sobre o movimento reformista: ‘Mesmo o esforgo para compreender de onde ele veio chocaré Ieitor como uma tentativa insidiosa de desacreditar as idelas dos ‘9, FERRAROTI, Ue théciogi pour athées. Pas: Libmari dos Mécidion, 1984, p. 154 110, BAUDRILLARD, J [’échange symbolique et mort. Paris: Gallimard, 1976, p. 219 22 extremistas © dos reformadores ao ‘psicologizé-las’ para delas se jivrarem. Para algumas pessoas, basta dizer que os reformadores eram animados pelo espetdculo da injustiga humana; dizer algo mais significa negar 0 fato da injusti¢: ‘Mas estarfamos ertados em supor que a rejeigéo de tudo aqui- to que diz respeito & experiéncia vivida, aos motivos humanos, a percepoao subjetiva da realidade, implica apenas uma censura politica, Para muitos, esses indicios sio também os sintomas de uma “doenca’, que causa um desconforto para a ciéneia. Qual 6 a rezé0? O socidlogo inglés Bloor busca seus argumentos na filosofia-da_linguagem. Uma de suas conclusdes expressa uma ‘opiniéo comum, Confiando na autoridade de Wittgenstein, ele escreve, Existe, diz Wittgenstein, uma espécie de doenga geral do pen- samento que sempre procura (e acha) o que se chameria um estado mental do qual todos os atos decorrem “como de urn reser vatério”, Ble deu a esse res2eito uma ilustragao simples. Como dizem "a moda muda porque o gosto das pessoas muda” [| “© gosto 6 o reservatorio mental". Observer como os fen6: ‘menos coletivos, a moda, so apresentados em termos psico\é- gicos. O acontecimento social es: relacionado com os estados mentais dos individuos que dele participaram, e esses estados mentais sto entéo mencionados como causas da mudanga, A va- cidade desse exemplo particular é clara, mas algumas explica- (¢6es desse tipo podem ser difice's de perceber. Elas tem como trago comum a tentativa de analsar os fendmenos tipicamente sociais em fungéo da psicologia. Eis por que a “doenga’ a que se refere Wittgenstein é habitualmente nomeada “psicologismo"™. ‘As aspas certamente existem. Nas aquilo que é colocado & ressaltado dessa maneira nao ¢ menos significativo, muito pelo contrério. Por mais estranha que a coisa possa parecer, é teal- ‘mente @ uma patologia do conhecimento que ele faz alluséio € & {AALLASCH, C. The ne Radon in Amarin 189-1969, Nova Yk: WIV, Nerton & Co. 1965, p. XV 12. BLOOR,D. Witgnstn: A Sol Tory ofKnonledge. Lanes: MacMiln, 1983, p46 23 necessidacie de se preservar dela. Como reduzir esses “estados mentais"? Néo enxergo uma resposta simples & questo. E nao creio que alguém tenha seriamente tentado oferecer uma, ¢ te- nha conseguido, Néo encontramos nanhuma no texto que acabo de citar. £14 alguns anos, Jiitgen Habermas tentou uma vasta sin- tese de diversas teorias, dentre elas a-do-psicdlogo social Mead. “Recorrendo aos seus trabalhos e aos trabalhos de seus seguido- Zes, ele Ihes dirige, no entanto, uma reprovago: todos misturam. elementos psiquicos A teoria das interagdes entre os homens na sociedade-.“Logicamente, a teoria da sociedade se resume entao a psicologia sodial”®. A teprovagéo soa como uma attonta, com um toque de desprezo: néo é mais 0 miolo que esté estragado, é a {ruta inteira! Pelo menos, nela podemos ler o pesar de ver eruditos com ideias to brilhantes és voltas com uma teoria raquitica, boa apenas para a psicologia social. E até mesmo um homem to pon- derado, 4 primeira vista, quanto Raymond Boudon tem reagdes semelhantes. Em seu preficio a um lio de Simmel sobre a hist6- tia em que muito se fala de psicologia, 0 soci6logo francés evita, na medide clo possivel, a palavra e a coisa. Em primeiro lugar, ele parece preocupado em tranquilizar 0 leitor que temeria a contami- nago € se dé ao tabalho de Ihe garantir que a teoria de Simmel “ndo comporta um risco mortal de psicologismo"™. Fis o que és vyezes se escreve em nome da ciéncial Os antropéloges néo so excegao Para eles também, ¢ du- ante um certo tempo, 0 recurso & psicologia significou um eto, cuja reprovacao poderia ser retrospecciva. No meio de um texto incisivo, Dan Sperber selembra: “Tylor, muites vezes considera- do como o fundador da antropologia maderna, foi culpado, aos olhos de seus sucessores, do pecado de ‘psicologisma'. De fato, as duas disciplinas logo se separaram'"®, 12, HABERMAS, J. Theorie des kommunitatven Hiadein, T. 2. Frankfurt: Subekamp, 1981, p. 212, « Théorie de agit communicatonnal - 7. 2; Pour une ertique de ia ralson ‘enctionaliste Paris Tyan, 1687, p. 154 44. BOUDON, R. La iogtque au soca. Pais rachete, 1979, p. 15 ‘%.SPERBER, D_ On nthrpologic! Knowledge. Cambridge: Cambxiclge Unvesty Press, 1986, pa 24 Que o andtema seja langado publicamente e quase todos re- negarfio cada pensamento que pode‘ia cair sob a sua influén- cia. Acreditando que, em algum lugar, se retinem juizes invisi- veis, diante dos quais sero levados para se defenderem de terem infringido regia que o profbe. Como se fosse obrigado a uma confisso, Jean Starobinski, cujos estudos sobre Rousseau sao de uma deliciosa profundidade, escreveu tecentemente: "Em telagéo fa mim, gostatia de dissipar um mal-entendido, com o risco de parecer imodesto, Pensaram ver, em meus trabalhos, um retorno a abordagem ‘psicolégica’ de Jean Jacques, portanto uma regres- ‘em TelaGAo aos ajustes sistematios de Cassirer |... Ora, em m momento tratou-se para mim de reduzir pensamento de Rousseau & manifestagéo de um desejo mais ou menos sublimado ‘ou deslocado segundo mecanismos inconscientes"®. Aquele que ‘se exprime assim nao tem contas a prestar. Mas sente-se obrigado a explicar suas incurs6es na vida inte:ior @ afetiva de um homem que justamente introduziu essa vida em nossa cultura. Quem de- cidiu, portanto, que ali havia uma regresséio? O que se reduz por meio dos mecanismos do inconsciente? B se fosse verdade? Em nenhum momento a questao da “verdade foi -coloeada,-mas a da oencia & da conformidade a uma tegra. Essa espécie de regra hipdcrita é por assim dizer incompativel com a pratica cientifica; no entanto, sentimo-nos obrigados a segui-la, quaisquer que se- jam as suas convicgdes prdprias. A hist6ria propde seus dados para garanti-la e se ajustar ao espirito do tempo. Nossa época, confessa Paul Veyne, esta tao persuadida de que as grandes forgas tacionais ou materiais conduzem.sotiatelsa mente a histérla que alguém que se contente em explicitar as condutas (que necessariamente passam pela psiqué dos atores, isto 6, pelos seus corpos, senéo palo scu pensamento) o néo recorre a essas forcas explicativas, seré acusado de deter a.ex- plicagao na psicologia”. 16, Preidco a CASSIRER, Le probléme Joanacquse Rousseau. Pais: Hachette, 1987 p.XVIe Xvi, 47. VEYNE, 0. “invodution” a BROWN, P, Genésode antiui tare Paris: Gallimard, 1988, p. XV 26 Saber se a acusagéo é justa ou ndo é uma questo irrele- vante. Mas 0s efeitos de sua censura sobre o pensamento pare- cem devastadores. De repente, a pesquisa nao se vincula mais & apaixonada descoberta do real, mas se esforca para fugir diante daquilo que ela poderia revelar. Avanga-se, sabendo que existe uma evidéncia que ndo deve ser vista. Ou diante da qual nao é preciso se deter. dificil estudar a violencia ou a religiao sem intoduzir uma dose de afetividade ¢ sem evocar experiéncias vividas. De forma que, no final das contas, no se sabe mais se a dose ColoCada foi exagerada ou pouca. Mais vale entéo tomar a dianteira @ se defender antes de set acusado, Portanto, Ren Girard,.em La Violence et le sacré [A violéncia e 0 sagrado], es- creveré: "Formulando o principio fundamental do sacrificio fora do Ambito ritual em que esta inscrito, e sem mostrar como essa insori¢éo sé toma possivel, expomo-Tios a passar por simplistas, Parecemos ameacados de ‘psicologismo"’”, Vemos surgir aqui 0 temor de no conferir ao social a parte que Ihe cabe e de perder assim toda a credibilidade. Por isso, somos ameagados de. “psi- cologismo” como de uma doenga ou de uma caréncia cientifica. No momento, contento-me em registrar as palavras “culpado” “doenga’, “ideclogia", que descrevem bem uma atmosiera. Blas servem pata diminulr ou para exctuir.a consideracao da realida- de_psiquica.Aos que recriminam no haver ciéncia suficiente, argumentam que é por haver psicologia demais. Embora social, ‘Thomas Mann descreve magistralmente o andtema-difundido nas.ciéncias do homem, e muito mais: Misericéidia, vooé ainda se preocupa com a psicologia? Mas isso faz parte do péssimo século XIX burgués! Nossa época est miseravelmente saturada dela, néo tarda e perderemos o controle a simples mengfo da palavra psicclogia, e aquele que perturba a ‘vida mesclando-Ihe a psicologia receberd simplesmente um gal- peno crénia. Vivemos em tempos, meu caro, que nao queremos confussdo com a psicalogia™ 18, GIRARD, R, La violence et le sac, Pais: Oras, 1972, p. 23 19, MANN, T. Doctar Faust. Pai: Live de Poche, 1988, p. 287 26 Certamente nio tenho a ambigdo de eliminar semelhante estigma, nem agora, nem aqui. A segregacéo do psiquico ¢ “do social tornou-se uma instituicao de nossa cultura. Ainda que independente de toda razao critica, ela resiste a qualquer critica, Aquele que se aventura a questioné-la se choca com a censura , primeiramente, com sta propria censura. Ele se coloca, do ponto de vista politico, na contramao da historia Podemos defender, sem muito exagerar, que, pelo menos na Franga, a maior parte das ciéncias do homem, a antropolo- gia - com excecdo de Lévi-Strauss -, a ciéncia politica, a economia, a historia, e muitas outres, sofreram essa dupla e estranha censura. Os contatos com a psicologia geral ¢ social sao raros, até mesmo inexistentes. Sem falar da sociologia que, como constata Edger Morin, “dissociou-se da psicologia, da historia, da economia |... 0 que impede 0 exercicio do pensamento”™ Na realidade, a desatengéo para com 0 aspecto psiquico dos fenémenos socials tem como efeito a desatengéo para com o real, simplesmente porque 840 compostos de homens. Além do mais, essa desatengao se transmite dos homens de ciéncia aos homens politicos. E isso é particularmente verdadeiro para 0 partidos situados, por conven¢ao, & esquerda, Sua visao das coisas © das Telagées esta dominada por um modo éconémico e social de ver, de pensar e, consequentemente, de agir. Eles desconfiam do que é subjetivo, espontineo, néo racional, como se diz. Ora, como tém de lidar com as massas, com as midias, para as quais as leis da psicologia coletiva séo decisivas, como se espantar que stia ago sofra com isso € conduza a resultados contrarios aos que buscavam? Falta-lhes psicologia, no sen- tido proprio da palavra. Isso se percebe nas dificuldades que os governos socialistas conheceram e no declinio dos partidos comunistas de hoje. Mas deixo aos historiadores 0 cuidado de demonstré-lo amanha._ 20, MORIN, F. Soctlogte, Pars: Fayard, 1984, p. 3. 27 Existiria uma explicagao sociolégica dos fatos sociais? ‘Ao mesmo tempo, vocés néo puderam deixar de dizer: talvez tenhamos exagerado, mas esse primado do social tem boas a- zbes de set. Por que voltar a esse agsunto? Pelo menos néo exis- tom raz0es suficientes para fazer desse primado uma condigao do conhecimento do real sempre e em toda parte. E necessério passé-las pelo ctivo e ver 0 que acontace. No amor ¢ na guerra vale tudo, Na ciéncia tudo se exige. E a primeira exigéncia ¢ reconduzir uma esposia ao estado de ques-— to, uma solugdo ao estado de problema. Portanto, aquilo que nos interessa agora se toma: existe_uma explicag4o sociolégica dos fendmenos sociais - ou dos fenémenos humanos em_geral, ‘inclusive dos fenémenos psiquicos? Nos 0 postulamos automa- ticamente quando ao longo de uma enquete procuramos saber 2 que classe social, a que profissio pertencem as pessoas que ‘votam em um partido, para explicarmos suas opinides ou seus interesses. Se essa relago de causa ¢ efeito néo aparece, entéo 1n6s nos voltamos para seus valores, suas crengas ou seus sen- ‘timentos, com 0 objetivo de explicar aor que eles ndo agem de acordo com seus interesses ou de acordo com sua classe. O pos- tulado serve ainda quando, para explicar a ascenséo do racismo ou da violencia, invocamos em primeito lugar 0 desemprego ou & ctise da familia modema. E, no mesmo sentido, quando procura- mos examinar, por meio das relagdes de poder, as desigualdades em matéria de educacao ou de chances diante da doenga ¢ da morte. A tendéncia ¢ idéntica quando estudamos a situagao da arte, da literatura ou do direito. Coma escreve Paul Veyne: “Em nosso século, a propensdo natural é explicar sociologicamente as produgdes do espirito; diante de uma obra, nos pergunta- mos: 'O que cla est destinada a trazer para a sociedade’?"*" Diante de qualquer tipo de problema, dizem: procurem 0 s0- cial E¢ evidente que nés o encontramos, como decididamente demonstrou Doise”, ao examinar estas minuciosas pesquisas 21, VEYNE, P, Les gece anes cre leurs mythes? Pars: Sui, 1983, p. 90. 22, DOISE, W. Rxpliction en psychologie social. Pris: FUE, 1982 28 sobre fentmenos examinados em grande escala, Eases exemplos, que eu podria multiplicar, nada provam, no entanto, quanto aos principios. Ora, como jé disse, uma explicago sociolégica su- pde duas premissas. Primeiramerite, que Se possa-abstrair-o-lado- subjetivo, as emogoes e as capacidades mentais dos individuos. Mais exatamente, elas ndo determinam de forma alguma o con- teddo e a estrutura da vida em comum, Pelo contrario, nada ou quase nada existe na psique dos individuos que néo dependa da sociedade e nfo carregue a sua marca. Suas maneiras de racioci- nar, as frases que eles formam e os modos que tém de andar ou de sentir provém do mundo social e ¢ ele sdo incorporados. Seja pela tradigao ou pelo aprendizado, eles se tornam disposigdes pessoas, uma vez retomados do fundo comum. & uma versdo util do individuo, como a famosa caixa negra que permaneoeria vazia caso néo fosse preenchida de estimulos ¢ de reflexos con- dicionados por um treinamento exterior. ‘A segunda premissa ¢ que dispomos de teorias concebidas a partir de causas puramente socials, ou seja, de casas que néo fossem as da economia ou da biologia -, como a utilidade ou a Juta pela vida -, mas que, todavia, fossem necessérias e suficien- tes para explicar as relagdes entre os homens, suas instituigdes seus modos de pensar ou de agir. Certamente nos esforgamos em satisfazer essas condigdes das teorias sociolégicas, mas pa- rece que chegamos a resultados contrsrios aos que esperévamos em prinefpio. No estou de forma alguma hablitado a falar enquanto so- cidiogo, e me absterei de fazé-lo. Pertanto, contentar-me-ei em reunir um feixe de suposigdes relativas a essas teorias. E entéo as resumirei expressando uma convicgéo que para mim se tornou natural. Por fim, indicarel o uso que delas se pode fazer. Se vocés examinarem a sua progria experiencia, fazendo té- ula rasa de suas ideias preconcebidas, de tudo o que lhes ¢ necessario acreditar pata viver, voces poderiam negar a parte que pertence, em todas as circunsténcias, aquilo que permanece subjetivo? Sem diivida existem elementos comuns © recebidos do meio. Mas outros parecem irredutiveis. O mesmo ocorre com ‘nosso corpo e o nosso equipamento biologico. Seria uma perda 29 de tempo procurar apagar a sua individualidade. Além do mais, nossas-faculdades intelectuais ¢ até mesmo afetivas;-inscritas em nosso cérebro, determina as possibilidades-que temos de comunicar,-de nos ligarmos uns aos outros, e impéem_um certo limite a0 que podemos fazer. Certamente a logica dessas facul- dades pode ser moldada pela vida em comum. Todavia, mesmo se transformando de individual em social, ou de social em in- dividual, a natueza dessa légica, como a da lingua, conserva alguma coisa de invariante. Ainda que uma mudanga em nossa maneita de falar, por exemplo, tenha como origem uma invengao devida a um individuo ou a um grupe, ela obedece as regras da sintaxe ou da semantica. Observago banal, sem divida, mas que evidencia quanto o corporal e o mental - 0 que existe de ais singular e de mais universal no homem -, aparecem como um duplo portal, sob 0 qual todo elemento social deve passar a fim de produzir seus efeitos, E dificil opor permanentemente o individual e o-coletivo. Assim, designa-se hoje como uma neurose pessoal de histeria ou de possessao 0 que antes era considerado como uma crenga coletiva e um ritual institufdo. E, inversamente, uma conduta antes pessoal e patolégica — 0 fato de nao se casar ou de viver sozinho, por exemplo -, transformou-se em um modo de vida comum, Bssa sobreposigio de um estado social individuado e de um estado individual socializado, andlogo a uma sobrepo- sigao de ondas luminosas, colore nossa existéncia. Compreen- de-se entéo que seria extraordinario se 0 substrato psiquico necessario & sobrevivéncia das instituipdes e das comunidades em nada determinasse as suas maneiras de ser e de evoluir. Lévi-Strauss expressou isso em uma daquelas frases que s6 ele sabia fazer: Portanto, ¢ bem verdade que, em certo sentido, todo fend ‘meno psicologico é um fenémeno aociolégico, o mental se identifica com o social. Mas, em um outro sentido, tudo se inverte. A prova do social s6 pode ser mental; ou seja, jamais podemos ter certeza de ter atingido o sentido e a funeo de uma ‘nstituic&o, se nao formos capazes de reviver sua incidéncia em uma consciéncia individual. Como essa incidéncia 6 uma parte integrante das instituigdes, qualquer interprotagéo deve fazer 30 coincidir a objetividade da anélise historica ou comparativa com fa subbjetividade da experiéncia vivide. is, portanto, o que acontece coma primeira premissa. Vamos ‘4 segunda e perguntemo-nos se as teorias sociol6gicas explicam ‘os fenémenos sociais. Mais exatamente, se elas descobriram um ‘conjunto de causas préprias a esses fendmenos. Ora, uma incur- séo, ainda que rapida, revela que nao ‘Egsas teorlas tém, em geral, a forma de um cometa. Em sua parte sdlida, elas comportam, como so deve, um sistema de categorias © de tipos ideais que permitem descrever os fatos. Obtem-se assim um quadro que conduz a observacao empirica eA coleta das estatisticas destinadas a validé-lo. A novidade dessas categorias @ desses tipos é uma das mais consideraveis aquisigdes da sociologia, ¢ ela distingue as teorias entre si, Bs- sas categorias nos livram das falsas nogSes do senso comum, do aciimulo desordenado dos exempios, eliberam nossa imaginagdo para peroaber “como” as coisas acontecem em uma sociedade. E 0 que podemos observar sem dificuldade na teoria de Weber relativa dominago do homem pelo homem. De forma magistial, ele isola as trés categorias — carisma, tradigao e razdo - que legi- timam 0 poder de umn individuo sobre um grupo. Elas detimitam 0 campo das observagdes e dos faios que devem ser retidos. ‘Alem do mais, permitem visualizar 0 tipo de relagdes que, em cada caso, determinam a maneira de comandar ¢ a maneira de obedecer. Por meio de uma vasta pesquisa comparativa, Max ‘Weber demonstra a existéncia dessas formas de dominagao e sua universalidade Encontrames um procedimento anslogo em Durkheim. Ao opor a solidariedade mecénica & solidariedade organica, ele quer defi- nit 0 trago préprio da sociedade tradicional e da sociedade moder- na, Uma é composta de individuos senelhantes entre si, € a outra, do individuos diferentes por sua atividade ou por sua profissio, ainda que complementares. A primeira mantém a coesdo entre 29, LAVISTRAUSS, C. “Introduction” a MAUSS, M. Soctologie 6 ancopologi. Pars Pati, p. XV 31 seus membros por meio de uma consciéncia coletiva muito forte; segunda, por meio de uma diviséo do trabalho que os toma de- pendentes uns dos outros, Observa-se 0 quanto essas categorias de similaridade e de diferenga, de consciéncia coletiva e de di- visdo do trabalho ordenam os aspectos religiosos, econémicos € juridicos de toda sociedade. Em cada um desses casos, estamos diante de uma definigao, de uma taxonomia ¢ de uma ordenagio dos fenémenos, ‘A cauda alongada do cometa, as vezes chamada de cabelei- 1a, prolonga essas teorias e completa seus contomos. Em linha eral, extraimos dessas descrigdes uma tendéncia inerente aos, fendmenos socials que prescreve © sentido que eles tomardo. Isso confere as teorias um cardter ao mesmo tempo necessé- tio e geral, principalmente para as mais importantes. A famosa lei de Augusto Comte, segundo a qual a humanidade passa de uma fase religiosa a uma fase metafisica e depois a uma fase cientifica, € 0 seu prototipo. E podemos evocar, para fixar as ‘deias, a tendéncia avangada de Max Weber. A sociedade moder- na se orienta para uma racionalizacdo da economia e da telacso fundada na possibilidade do célculo em todos os campos. Ela organiza a administragéo dos homens bem como @ administra- 0 das coisas, burocratiza os valores da cultura e seculariza as crenges por meio da ciéncia. Dedicada a performance tangtvel, cla furtivamente apaga as marcas milenares do mito e da magia, a iluséo de um sentido da vida. Bla avanga incessantemente para os amanhas do “desencantamento do mundo" No existe relacéo obrigatéria entte a descrigéo daquilo que prevé semelhante tendéncia e os fatos que a jlustram. Nao apenas porque, exceto pelo vocabulério, todes preveem a mesma coisa, mas também porque fora das impresses comuns ndo vemos exatamente como verificé-la. Todavia, ela alimenta um discurso necessério sobre a sociedade, uma critica do estado das coisas & propde uma visdo daquilo que deve, em principio, acontecer pelo desejo ou pelo destino, Desde Weber, conhecemos outros estados para os quais a sociedade evolufa: o fim da ideologia, a era da opuléncia, a sociedade programada etc. Detalhé-los estaria fora de nosso propésito. Ao prescrever tals tendéncias, a sociologia 32, aparece, de_acotdo com Gramsci, como “uma tentativa de extrair experimentalmente as leis da evolugéo da sociedade humana de odo a prever com a mesma certeze com que se prevé que a partirde uma Glande se desenvolvera um carvalho", E os homens devem observé-lo sem alegria nem tristeza, como se observa as coisas que chegam diariamente e ra mesma hora. Assim as teorias sociolégicas descrevem e prescrevem, Mas no explicam. Bis o que pode desconcertar, sem no entanto sur- preender. Contudo, o fato esté af: suas explicages ~ 0 que une, como se pocieria dizer, 0 corag&o cauda do cometa - séo ou de ‘ordem econdmice, ou de ordem psicolégica. Nao existe uma ter- ceira espécie que seria de ordem puramente sociclogica. Nao me arrisco, sobre esse ponto, a nenhuma especulago. Atenho-me a0 que vejo, Vos no ignoram que as 1az0es econdmicas ~ lucro, preferéncias por bens, classe social, profissio - so invocadas a guisa de explicagéo, e isso Ihes parece normal. Mas 0 recurso as causas psicolégicas parece contrério a uma regra de método. , no entanto, ele é provavelmente o mais frequente. Acabamos de falar de Weber ¢ de sua teoria dos trés tipos de dominacao. Que explicago ele oferece para a obediéncia e os motives que tornam cada um desses tipos legftimo? Para ser breve, digamos que sua “causa” é a razo, a emogdo eo sentimento, respectiva- mente, para a autoridade racional, carismética e tradicional. Em sua adimirével historia da sociologia, Raymond Aron o destaca por sua dificuldade. E efetivamente escreve: ‘A classificagio dos tipos de daminagio se refere as motivagdes ‘aqueles que obedecem, mas essar motivapées sao de nstureza essencial e nao psicolégica. Muitas vezes 0 cidado que recebe ‘0 seu formulério de impostos pagaré a soma que Ihe é exigida pelo seu contador néo por medo do oficial de justiga, mas pelo simples habito de obedecer_A motivagao psicolégica efetiva no coincide necessariamente como tipo abstrato de motivagéo ligado ao tipo de dominagdo* 24, GRAQISC, A. 1tmaterialsmo strico ea esata dt Benedetto Croce, Turk: Etna, 1862 p. 125, 25, ARON, R, Lee 6tapes de a penséesocilogique ats: Gallimard, 1957, p. 658 33 Cada uma dessas denegagdes pode ser lida como uma con- fissdo. Tratando-se de fendmenos sociais, 6 impossivel, parece protestar Raymond Aron, que as motivagdes sejam psicol6gicas. ‘Ao afirmar, contudo, que elas séo de “natureza essencial” ou de “tipo abstrato", ele substitui causas reais, as tnicas admissiveis na cléncia, por causes imperceptiveis. EB se pagamos, como ele diz, nossos impostos por habito, esse € o fruto de um aprendi- zado e cle um consentimento que comportam, tanto quanto 0 medo, um fator psiquico. A esquiva é, reconhegamos, puramente ‘verbal, E néo sem analogia com a do pensador marxista Lukécs que, em um livio memordvel, recriminava aos seus adversériog “confundiir 0 estado de consciéncia psicolégica efetivo dos pro- Jetarios com a consciéncia de classe do proletariado™. Desse modo, aos individuos concretas ou as massas, ele opunha uma categoria abstrata e, acrescentemos, reificada, como se a nagéo francesa fosse outta ooisa ¢ de uma outra natureza que 0 conjun- ‘to dos franceses. Esse tipo de substituigdes nem sempre acontece sem conse- quéncias préticas. Assim, enquanto o fascismo ganhava terreno dirigindo-se aos proletarios de came € 0880, os socialistas 0 per- iam porque discorriam para 0 pioletariado genérico. Esta ndo foi a tnica azo de seu fracasso, mas ¢ essa que Ernst Bloch invoca: “Os nazistas falaram de forma mentirosa, mas 208 ho- ‘mens, oS socialistas disseram a verdade, mas de coisas; trata-se agora de falar aos homens com toda a sinceridade sobre os seus assuntos”?. Continuemos. Trata-se, no caso, de um exemplo particular? Eu citei mais acima a regra de ouro formulada por Durkheim: “Toda explicagio-psicolégica de fatos sociais.¢ falsa". Ela nos esclarece sobre a dificuldade de Raymond Aron esforgando-se para Tespeitar, ao mesmo tempo, a regra @ a verdade. Veremos mais adiiante 0 que se deve pensar sobre isso. Ooorre que a 1e- gra nfo foi aplicada por ninguém, nem mesmo por quem que a 126, LUKACS, G Hite t conscience do clase, Paris: Minuit, 1969, p. £8 27, Apud CLAUSEN, D. Lit cor Galt Fanitut: Campus, 1982, p60, 34 decretou. A teoria da religiéo é¢ seguramente 0 ponto mais alto da sociologia de Durkheim e um dos pontos mais altos da socio- ia, Depois de tla exposto, eis 0 que conclui o antropélogo priténico Evans-Pritchard:-"Devo, no entanto, fazer um ultimo comentario sobre sua teoria da origem do totemismo e, conse: quentemente, sobre a religido em gerel. Ela se opée a seu proprio método sociolégico, pois apresenta uma explicago psicolégica, ao passo que ele proprio declarava que tals explicagées eram in- vyariavelmente falsas"®. O grande socidlogo francs nao cometeu um desvio da regra, ele simplesmente formulou, como todo bom Jegislador, uma lei cuja aplicagao se revelou impossivel, ¢ que, portanto, permaneceu letra morta {Escolhi esses testemunhos, entre tantos outros, para conferir crddibilidade a meu propésito. Se for exato que as teorias so- ciologicas ndo tém uma explicagéio que Ihes seja propria, elas dispdem, no entanto, de uma outra possibilidade, que de fato realizam. Ou seja, combinar explicagSes de origem econémica e de origem psicolégica, reunir aquilo que, de uma outra forma, permaneceria separado, Ou ainda exe:cer uma espécie de poder decretando quando o recurso a uma ou a outra se revela neces- sario. E isso é uma vantagem. Afinal, que uma ciéncia retome e adote as causas descobertas por uma outra nao tem nada de ex- cepeional. A genética molecular realmente retomou as da fisica eda quimica a fim de explicar a hereditariedade dos seres vivos. Que ela pretenda dispensé-las e exclui-las é uma outra questio. Bu deveria confessar que é a profusao das explicagdes psicol6gi- cas 0 que mais me desconcerta? Como é possivel que as teorias sociolégicas sejam levadas a multiplicé-las, depois de terem lan- gado contra elas o anétema e condenado o seu emprego? E que ‘sua histéria a isso as obri Entre a economia e a psicologia, é preciso escolher Seria arrogante ¢ inttil julgar essas poderosas teorias. Delas no sou nem o historiador, nem o exegeta, somente um de seus 28, EVANS-PRITCHARD, 8 La rlgion das primitives, Paris: Payot, 1971, p.B2 35 usuérios, Ea arquitetura delas, como vocés podem imaginar, ‘mais sutil do que o esbogo que hes epresento. Mas néo se pode negligenciar que elas fazem aquilo que proibiram e se proibiram. (Ou soja, procurar uma explicagéo verdadetra em uma psicologia que deveria torné-la falea: [Varias circunstancias agiram e agem nesse sentido. Mas retonmho principalmente trés delas. Em primeiro lugar, quando langam seu empreendimento original, os socidlogos se desviam da_visio_classica do_homem. Ne‘e nao veem mais, como 0s economistas e os filésofos do Tuminismo, um individuo livre, senhor de sua pessoa € de seus bens, que se associa com 08 outros por meio de um contrato voluntério. Também nao acre- ditam mais que o célculo ponderado € 0 consenso deliberado ‘astaram para formar uma cidade politica e sustentar uma vida econémica. Ao rejeitar a narrativa_classica: “No comego era ‘0 individuo’”, eles lhe opdem uma outra que comega por: “No comeco era a sociedade”, Esta é a matriz que confere a cada ‘um suas qualidades, lhe designa um lugar € Ihe imprime regras e valores. A consciéncia néo comeca por um “eu penso, logo existo", mas por um “vooé deve, logo voce age",.de maneira se associar a0s outros e a comungar com eles. O consenso, a au- toridade das leis, a pressa dos homens em sacrificar seus bens @ sua vida por sua familia ou sua patria nao ‘840 0 resultado de uma razdo, Dostoievski escrevia em seus Carnets: “Se tudo acon cease racionalmente no mundo, nada aconteceria”. Todos esses. comportamentos resultam de forgas irracionais ou involuntarias da sociedade. | por i860 que as agies nao logicas, que escapam a logica ey ental e cientifica, tém um lugar to importante na socio- logia de Pareto, Ou 0 afeto e 0 acaso na de Weber, as crencas © ‘os valores tltimos em Durkheim, Conhego poucos autores que empregam com tal frequéncia e compulsao as palavras emogao, sentimentos, ou seus sindnimos. Desse modo, cada um deles defende que a vida em sociedade reoobre de uma forma racional “um conjunto de recursos que nao 0 é. E que aflora de tempos em tempos @ consciéncia. Mauss descreve nestes termos 0 dia em que poderemos revela-lo: 36 Ento talvez possamos compreender esses movimentos das mas- a3 @ dos grupos que so 0s fenémenos sociais se, como acre ‘Gkamnos, eles so instintos e telexos raramente iluminados por ‘um pequeno nlimero de idelas-signos ligadas a eles, pelos quais ‘os homens comungam e comunicam®, Em segundo lugar, 6 em relacdo aos principios da economia que 08 sociélogos devern tomar suas disténoias( Como aceitar que a utilidade de uma coisa ou de uma ago para um homem, © interesse egpista de um individuo particular, possam deter- minar uma relagéo social estavel ¢ coerente? Enquanto que a utilidade, eminentemente flutuante segundo os momentos e as pessoas, pode apenas desfazé-la e acruiné-la. Do mesmo modo, acreditamos tudo explicar quando sabemos qual 0 interesse de uma classe, de um individuo ou de uma nagéo. Procuramos ats mesmo encontté-lo na origem de suas crengas ¢ de seus senti- mentos. Mas, a0 fazé-lo, esquecemos que ora ele é desconhecido e ora os homens agem contra seus pretensos interesses. Como 8 filhos de burgueses e de nobres que se revoltam contra os pri- vilégios de sua classe, e os filhos de operdrios e de camponeses que defenclem seus grilhdes ¢ seus apressores. As leis da socie- dade néo so, portanto, as do mercado, ainda que esse mercado recubra-toda’a soctedade. Querer subtrair a economia ao poder das instituigdes e das crengas significa esvazid-la das ideias e dos valores de que ela é prédiga, ¢ reduzi-la a um mecanismo esttipido, Ora, 6 evidente que nossas representagées filosoficas ou religiosas ditam nossos interesses, definem o que nos ¢ util ou prejudicial, o que nos torna felizes ou infelizes. Em uma palavia, a economia ¢ atravessada e determinada por poderosas correntes intelectuais e morais. Mas isso no é tudo, Se nos distanciamos da economia ¢ se a criticamos é por causa da oposicao ao socialismo e, em particular, a Marx. Sua explicagio da sociedade pela luta de classes e pelas relagbes econdmicas suscitou uma resisténcia e uma hostilidade que nos 6 dificil imaginar, Seu pensamento se 16 nos intersticios de cada 29, MAUS, M. Socviomie et antropalogte. Op. ct. 306. a7 ‘uma das teorias sociologicas que o cumbateram. Dois dos trés ou quatto livros mais importantes da sociologia, A ética-protestante_ eo espirito-de capitalismo, de Weber, e a Filosofia do dinheiro, de Simmel, sem divida foram escrités para se opor 4s teorias de ‘Marx A consequéncia é previsivel: ao se distanciar das causas econdinicas para explicar os fendmenos sociais, aproximamo- nos, pela forga das coisas, das causas psicolagicas - jogo de equilibrio que nao tem nada de enigmatico. Parsons indica cla- ramente que essa 6 a principal razdo pela qual as nogées da “psicologia dinamica” tornaram-se tio importantes para 0 ‘soci- Jogo. A partir do instante em que este deseja ir além da descri- co € da taxinomia da “sociologia formal’, ele deve “se ajustar com precisdo a teoria da personalidade no sentido psicolégico contempordneo™, Podemos discutir essa escolha € até mesmo recusa-la. Mas nao podemos voltar 10 tempo, retornar a UM. fato realizado e disfargar seus efeitos sobre as ciénoias do homemt} Por fim, a.verdadeira originalidade dessas teorlas foi a de res- saltar 0 fato de que as sociedacles desaparecem facilmente ¢ que elas delxaram de durar\Porque incarsavelmente trabalharam para se tornarem outras por meio de revoltas e sedigdes; mas também pelos incessantes progressos da ciéncia e da técnica, que ofere- cem ao mundo o espetculo de uma irremedivel dissolucéo das tradigdes © das praticas. A diivida e a razdio cortam qualquer vinculo que se tente estabelecer na permanéncia, Lautréamont afirmou com veeméncia: “A diivida sempre existiu em-minoria. ‘Neste século ola é maioria. Respiramos a violacéo do dever pelos ‘poros". Como se ndo pudéssemos Viver sendo na mudanga das instituigSes e na torrente das massas, ou soja, na precariedade. ‘Stendhal jé falava “desse estado precdrio que, na auséncia de um ‘ome particular, designamos pela palavra repiblica”. Nao era um acidente que vinha perturbar a sociedade, mas, pelo contrario, a propria manifestagdo de um caréter dominante e o efeito de um. mecanismo inexplorado pela ciéncia Por isso 9 problema que preocusa os sociélogos ndo é, como se tem defendido, a ordem, que éum desejo, mas a duracéo,- 30, PARSONS, T. The sock System. Glenove: Fee Press 161, p, 602. 38 que é uma necessidade, Rapidamente eles conseguiram obser- var que nossas jepresentacdes, relagdes ¢ ideais formam a parte indestrutivel de toda vida coletiva. Esses so, em suma, os-fato- res simbélicos € afetivos que Ihe conferem energia e a impedem de se enfraquecer ¢ de se degradar. Fles oferecem um panto de referéncia frdgil, arcaico talvez, mas indispensavel aos vinculos que nos unem uns aes outtos./Actedito que a sociologia moderna toma como seu o que eu denominaria o postulado de Fustel de Coulanges. Em relagdo aos homens, ele escreve: Para Ihes dar regras comuns, para instituir 0 mandamento e fazer aceitar a cbediéncia, para fazer & palxao ceder a razéo ¢ a 1a- 0 individual & razo publica, certamente é necessério alguma coisa. mais elevada do que a forga material e mais respeitavel do que o interesse, mais segura do que a teoria filosofica, mais imutavel do que uma convencao, alguma coisa que esteja igual- ‘mente no fundo de todos os coragdes e que ali presida com autoridade, Essa coisa 6 uma crenca'. (Que essa crenga seja sustentada por um mito, uma ideologia ou uma ciéncia, pouco importa; desde que exista, .os homens sentem a vitalidade do vinculo que cs une, a forga nica de-sua convicgao € 0 ima do objetivo que os faz agit em conjunto™ Se,_ fora da sociedade, nao existe salvagio, é porque, sem ela, ndo existe f6. Vocés compreendem assim a iluminacéo de Durkheim: © social 6 0 teligioso, e por que, como Weber, ele consagrou a maior parte de sua obra a religiéo. E isso em pleno século XX! Nem antes, nem em outro lugar, poder-se-ia ter colocado tal equagio entte a sociedade e a religiio, nem fazer o poder depen- der da legitimidade, portanto da confianga dos governados. Por mais materiais ¢ brutais que sejam as suas presses, observamos que "nada impede que essencialmente o poder de toda socieda- de seja um poder espiritual* ‘91, COULANGES, NDF. La cité antique Paris: Ctamps/Flammation, 1984, p. 109 32 "Leue social ext un (que. Op. cit, p. 587. 9 tligiou" Tn: ARON, R. Les éapas de la pansio soicogt 32. LUKACS, G. Hise ot casctence de case. Op. ct, p. 300. 39 Nao que @ sociedade falte coeséo ou sistema, mas criada na pressa e em constante evolugéo, somente esse poder Ihe per- mite durar ¢ se premunir contra @ apatia de seus membros. De certo modo, 0 homo ceconomicus é demasiado racional em sous métodos e resiste mal a etoso do tempo. A sociologia Ihe opde um homo credens, um homem crente, & uma criatura estranha, sem diivida, mas 0 novo é sempre estranho e dificil de defini. Conhecemos simplesmente a sua formula geral: se 0 elemen- to econémico ¢ 0 oxigénio de sua =xisiéncia em sociedade; 0 elemento ideoiigico ou religioso ¢ 0 seu hidrogénio. Podemos discutir suas proporgées, mas nao sua relagdo. Seria ela to ex- traordinéria quanto parecia outrora, 40 ousada quanto se dizia? O que ela introduz de téo pertunbadcr? Sem divide esse aspecto simbélico-e afetivo dos fenémenos scciais do qual queriamos nos livrar, taxando-0 de iluséo ou de epiiendmeno. Certamente eu simplifiquei para me ater ao essencial © 20 conhecido. Tudo acontece como se, em cada uma dessas cir- cunsténcias ~ 0 interesse pelo cardter ndo l6gico e pelos valores, fa oposigao a Marx e o distanciamento da economia -, a tonica colocada sobre o fator de convicgao inclinasse o plano objetivo da sociedade na diregdo de um excesso de subjetividade. “Exis- te, assim [declara Durkheim|, uma regiéio da natureza onde a for- mula do idealismo é quase literalmente aplicada: 6 o reino social. ‘A ideia ali, muito mais do que em outro lugar, faz a realidade"™. O contraste evidente deixa adivinhar um sutil vineulo genético. Bele que conduz a psicologia, téo energicamente excluida da descrigéo dos fatos sociais, a reintegrar essa descrigéo, como indispensdvel 8 explicagao. Expulsa da sociologia pela porta de ‘uma regra de método, ela retorna pela janela das teorias que nao podem dispenséa. Se os temas por mim destacados convergem € porque uma visio secreta 0s une e uma intuicéo direta nos permite vé-los. Em toda parte a sociedade nasce do lnterior. Como paixées sai- das de cada um de nés, costuradas juntas por intimeros atos, ‘em intimeras ocasides. Assim associados e conduzidos, nos nos ‘94, DURKEIEIM, Les formas éléments do avo rligiouse. Paris: PUR, 1968. 26. 40

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