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PENELOPE FAZER E DESFAZER A HISTORIA PUBLICAGAO QUADRIMESTRAL — N° 13 + 1994 DIRECTOR A. M. HESPANHA REDACGAO Alvaro Ferreira da Silva (Fe-unt); Amélia Aguiar Andrade (Fcs#-un.); AntOnio Costa Pinto (cence -isce); Anténio M. Hespanha (ics); Bernardo Vasconcelos @ Sousa (rest-uni); Carlos Fabido (rt); Fernando Rosas (rcsi-un.); Helder A. Fonseca (ve); José Manuel Sobral (ics); Lufs Krus (rost-um); Luts Ramalhosa Guerreiro; Mafalda Soares da Cunha (ue); Marla Alexandre Lousada (Fit); Nuno Gongalo Monteiro (ics); Nuno Severiano Teixeira (ue/uce); Rul Ramos (ics); Valentim Alexandre (ics); Vitor Serrdo (ruc); Secretdria da Redaccéo: Dulce Freire Propriedade do titulo: Cooperativa Penélope. Fazer e Desfazer a Histéria Subsidios & Redacg4o da J.N.I.C.T. @ S.E.C. Os originais recebidos, mesmo quando solicitados, n&o ser&o devolvidos. Edigao apoiada por Lisboa 94, Capital Europeia da Cultura © Exdigdes Cosmos ¢ Cooperativa Penélope Reservados todos os direitos de acordo com a legislago em vigor Impressio ¢ acabamentos: EdigSes Cosmos Maio de 1994 Depésito Legal: 49152/91 ISSN 0871-7486 ISBN 972-8081-42-1 Difusio Lavaanta Arco-frus Enicors Cosmos Ay. Jdlio Dinis, 6-A Lojas 23 30 - P_ 1000 Lisboa Rua da Emenda, 111-1° - P 1200 Lisboa Telefone: 795 51 40 Servigos Comerciais: Av. J6lio Dinis, 6C-4° D ‘Telefax: 796 97 13 Telefone: 795 51 40 + Telefax: 796 97 13 Lisboa Sozinha, Quase Vitiva. A Cidade e a Mudanga da Corte no Portugal dos Filipes Fernando Bouza Alvarez Universidade Complutense, Madrid ‘«Noites vidvas, dias imperfeitos» G. Pereira de Castro, Lisboa Edificada Lisboa Vista @ Distancia: Um Lind{issimo Castelo A auséncia da figura do rei em Lisboa entre 1583 e 1640 e a possibilidade, entio avangada, de instalar nesta cidade atlantica aquela que seria a corte de toda a monarquia hispanica, acabaram por tornar-se duas referéncias obrigatérias do Portu- gal dos Filipes e, de certa forma, em simbolos do que foi e € a sua controversa rea- lidade hist6rica e historiografica. Grande parte da tradi¢ao julgou a circunstancia da nao residéncia como uma das muitas provas do que foi a sujeigao lusitana aos «alheios» interesses da Casa de Austria — sujeigao da sua caput regni que, mais cedo ou mais tarde, devia quebrar- se, restituindo a Lisboa a sua condi¢Ao de capital. Paralelamente, também se preten- deu ver nas propostas de transferéncia da corte para a foz do Tejo a remota hipétese de se construir um Portugal dos Filipes muito diferente do que realmente existiu — na realidade, um Portugal de «sertio» versus de mar e de fidalgos em vez de cidades — € que, na eventualidade de se ter procedido 4 mudanga da corte, talvez nao estivesse condenado ao fracasso. Nao hd diivida de que tanto uma como a outra posigdo se enrafzam em teste- munhos datados do perfodo que vai de 1580 a 1640, se bem que a sua definitiva formulacdo historiogréfica se deva mais ao vigoroso confronto restauracionista de meados do século XVII ea posterior elabora¢ao, nao menos polémica, das suas prin- cipais linhas de argumentagiio. Cingindo-nos ao tempo dos Filipes, a situag&o em que se encontrava Lisboa foi alegorizada com duas imagens fortissimas e atraentes: uma, a da cidade adormecida desde 1580 que um dia acabaria por despertar, na linha dos /amenti de outras loca- lidades que tinham sido saqueadas ou abandonadas e que constitufa um verdadeiro 71 PENELOPE - Fazer E DesFazer A Historia género, cujo episédio mais importante era o saque de Roma de 1527', e, a outra, uma curiosa derivacaio do uso do matriménio como metéfora politica, personificando Lisboa como uma cidade real 4 qual a aus€ncia do monarca reduzira @ triste condi¢ao de quase vitva e que s6 recuperaria a sua alegria se 0 rei estivesse a seu lado, restabe- lecendo-se a plenitude da relag&o de sponsus e sponsa. Na origem destas duas ima- gens confundem-se tradic6es diversas e linguagens polfticas distintas, se bem que ambas acabem por unir-se servindo ao mito de Lisboa corte, capital e metrépole. As p4ginas que se seguem destinam-se & apresentagao das queixas desta cidade que, sendo corte, perdeu a presenga do seu rei, bem como a mostrar que, tal como sucedeu com outras cortes que se encontraram na mesma situagdo, a resposta ao abandono seguiu o duplo caminho de exigir, primeiro, uma presenga permanente do principado e, depois, a incessante proclamacfio das suas préprias exceléncias. No caso lisboeta, esta tiltima hip6tese de reacgiio traduziu-se numa série ininterrupta de elogios que, embora baseados numa antiga tradicZo de enc6mios, ratificaram para sempre a condi¢&o proeminente de Lisboa como caput regni, estatuto que viria a ser confirmado pelas diferentes praticas negociadoras dos Filipes?. Existem, sem divida, outros exemplos de cidades abandonadas pela corte que até ent&o af estava estabelecida. Para nao recuarmos a épocas mais remotas, recorda- remos a grande repercuss4o para a Hist6ria da imagem mitica da cidade que teve a mudanga da corte papal para Avignon, mudanga que abalou profundamente Roma e que comprometeu, como engenhosa e premeditada reacg4o, a sua condigao de centro do mundo e de cidade de mirabilia, basflicas e peregrinag6es*, Entre os autores que lastimaram as calamidades por que passava Roma e que consideravam Avignon como uma Babilénia — uma Babylon Gallica — destacou-se 0 préprio Francesco Petrarca, que incluiu a restauragdo da urbs abandonada no processo mental que dar4 origem a prépria ideia do Renascimento*. Na viragem para o século XVI, e num curto espago de tempo, pouco depois de Lisboa ser substitufda por Madrid esta também o ser4, se bem que por poucos anos, por Valladolid, da mesma forma que Toledo havia cedido o seu lugar Aquela em 1561. Aos olhos dos seus defensores, dos que preconizavam o regresso da corte, o aban- dono de uma destas cidades encontra-se sempre revestido de perfis retéricos com muitos pontos em comum. A exemplificd-lo temos a descrigéo de uma Madrid melancélica, sem corte, feita por Agustin de Rojas Villandrando no seu El buen reptiblico, cuja ret6rica de esperanga e desamparo se harmonizam com os testemu- nhos referentes 4 Lisboa dos Filipes. Sem a presenca da corte que lhe deu vida, Rojas visita o Alc4zar madrileno pin- tando-o calado e amarguradamente saudoso. Lembrava-lhe «un hermostsimo castil- Jo» de Franga, cuja altiva beleza era tal que, sendo assediado, nunca foi tomado pelos sitiantes, que tinham pena de bombardear tamanha grandeza. Olhava 0 local, as ruas ¢ edificios circundantes e s6 encontrava maravilhas; ali tudo estava «como las rosas que con el rigor del yelo o erizado invierno estén mustias y marchitas hasta que el Sol hermoso de la corte, que es la gallarda y alegre primavera, las alegra y resuscita>’. 72 Estupos Os louvores 4 cidade abandonada e as lamentag6es pelos efeitos que a mudanga provocou na sua prosperidade misturam-se naquilo que um estudo recente chamou «La guerra por la capitalidad», em que Madrid se envolveu entre 1600 e 1606, pri- meiro para impedir que a corte se transferisse para Valladolid e, depois, para conse- guir que regressasse a si®. Como estudou ‘Alfredo Alvar, em diferentes memoriais sobre este assunto dirigidos ao rei Filipe III, alguns impressos por ordem da cidade, desenvolve-se uma teoria da localizacio ideal para uma corte na qual se possam ouvir os ecos antigos de Vitnivio, os renascentista de Alberti e os mais recentes de Botero. Se, entre 1600 e 1606, estes memorialistas defensores de Madrid, que desempe- nham um papel semelhante ao de um Mendes de Vasconcelos, de um Gomes Solis ou de um Severim de Faria para o caso lisboeta, elogiam as vantagens da localizagao de Madrid, outros autores dedicaram-se a sua descri¢dio, destacando o seu vinculo & Casa Real e outros atractivos nao menos interessantes para a €poca como a veneragio que merecem os seus santudrios. Exemplo disto é uma curiosa obra, impressa em 1604 na «rival» Valladolid, dedicada aos milagres da padroeira da cidade — a milagreira Virgem de Atocha — em que o seu autor, Francisco de Pereda, inclui um primeiro livro «en el qual se haze una breve descripcidn de las excellencias y calidades de la nobiltssima y real villa de Madrid»’. Do mesmo modo, durante o perfodo filipino, cresceram os elogios a Lisboa e as hist6rias da sua fundagdo e grandeza, sem dtivida por ser necessério enaltecer a cidade abandonada, nao por um breve espacgo de tempo mas por décadas. Quase no final do tempo dos Austrias, Anténio de Sousa Macedo fez uma primeira lista das laudes da cidade nas suas eruditas «excelencias» de 1631, relagdo que, nao preten- dendo ser exaustiva, pode bem servir para auferir o ntimero e o valor das obras a isso dedicadas. Futuro autor de um poema em honra da mitica fundagao (Ulissipo, 1640), Macedo detém-se nas obras de Damiaio de Géis (1554), Luis Mendes de Vasconcelos (1608) e Nicolau de Oliveira (1620) e, entre louvores, recorre a autoridades que vio do quase remoto De rebus Hispaniae de Lucio Marineo Sfculo ao Epftome de las historias portuguesas de Faria e Sousa (1628), passando por Duarte Nunes do Lefo (1610), Vasco Mousinho de Quevedo (1611), Gil Gonzdlez Davila (1623) ou Juan Izquierdo de Pifia (1627)*. Embora existam outros exemplos anteriores, tanto textos como testemunhos do perfodo 1580-1640 aos quais Macedo nfio se refere, h4 que reconhecer que a olissipografia, enquanto defesa de Lisboa, teve um momento de especial esplendor no tempo em que n&o contou com a presenga real®, Para isso contribufram a ocasido e a necessidade, factores em tudo novos e que tinham origem na mudan¢a da corte, se bem que, para entender com rigor essa defesa de Lisboa, h4 que ter presente que a Europa se achava, ent&o, emersa numa eclosfio de histéria comunal que Jevava os habitantes dos v4rios locais a louvar a sua cidade em detrimento das outras, sem receio do riso de Plutarco, que ridicularizara os que afirmavam que a Lua de Atenas era mais bela do que a que brilhava sobre Corinto”. 73

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