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Sergei Eisenstein A Forma do Filme Apresentagao, notas e revisio técnica: José Carlos Avellar Traducao: Teresa Otroni Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro Titulo original: Film Form Copyright © 1949 by Harcourt Brace Jovanovich, Inc. ‘Copyright renewed 1977 by Jay Leyda Published by arrangement with Harcourt Brace Jovanovich, Inc. Copyright © 2002 da edicio em lingua portuguesa: Jorge Zahar Editor Leda rua México, 31 sobreloja 20031-144 Rio de Janeiro, RJ tel (21) 2240-0226 / fax: (21) 2262-5123 e-mail: jze@zahar.com.br site: www.zahar.com.br Todos os direitos reservados. A reprodugio nio-autorizada desta publicagao, no todo ‘ow em parte, constitui violacio de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Capa: Sérgio Campante Primeira edigao em lingua portuguesa: 1990 Os editores agradecem & Fundacio do Cinema Brasileiro e, em especial, a sua Diretoria Técnica, representada por Ana Pessoa, pela reproducio fotogrifica das cenas dos filmes de Eisenstein utilizadas na edigdo brasileira de A forma do filme e O sentido do filme. Os editores agradecem também 4 Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro por ter cedido cépias dos filmes Alexander Nevsky, ‘A greve, O encouragado Potemkin ¢ Outubro para que as reprodusoes fossem feitas diretamente dos fotogramas desses filmes. Reprodugio dos fotogramas feita no Laboratério da Fundacéo do Cinema Brasileito por José de Almeida Mauro. CIP-Brasil, catalogagio-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Eisenstein, Sergei, 1898-1948 E37F —_A forma do filme / Sergei Fisenstein; apresentagio, notas ¢ revisio técnica, José Carlos Avelar; tradugao, Teresa Ottoni. — Rio de Janeito: Jorge Zahar Ed., 2002 ib; ‘Tradugio de: Film form Anexos ISBN 85-7110-112-4 1, Cinema — Estética. I. Avellar, José Carlos, 1936-, II. Titulo. CDD 791.4301 02-1643 CDU 791.43 Sumario INTRODUGAO: E = mc?, por José Carlos Avellar . . . Prefacio de Sergei Eisenstein Do teatro ao cinema . Uma inesperadajungdo ......-..-.--- Roradelquadro 2 Dramaturgia da forma do filme . . . bee Aquarta dimensao do cinema .........- Métodos de montagem.. 6.0.2.2... aes eee Eh! Sobre a pureza da linguagem cinematografica A forma do filme: novos problemas Sobre a estrutura das coisas we se Realizagao Dickens, Griffithenéds ......... " 15 27 x. 49 72 79 89 108 120 141 - 163 APENDICE: Declaragao. Sobre o futuro do cinema sonoro....... fNDICE DE NOMES EASSUNTOS .........-4- or 225 229 As notas ao final de cada capitulo assinaladas com as iniciais N.S.E. s4o originais de Sergei Eisenstein. INTRODUGAO E=mc José Carlos Avellar Para conseguir voar, o homem estudou atentamente o movimento das asas dos pdssaros, ¢ ao se dar conta das miiltiplas fungées que elas desempenham durante v6o, ao se dar conta de que as asas dos pdssaros funcionam as vezes como hélices € as vezes como superficies para planar, dividiu esas fungées em diferentes partes, ctiando para cada uma delas uma parte em separado; entao, através da montagem dessas partes numa outra ordem, inventou o avido. Para criar uma obra de arte, para conhecer e transformar a realidade através da arte, o homem trabalha assim como trabalhou para inventar o aviao. Foi em 1934, durante uma aula na VGIK, na Escola da Unido dos Institutos de Cinema da Unido Soviética, em Moscou. Eisenstein dizia a seus alunos que a arte nao se reduz ao registro ou imitagio da natureza; que arte é conflito; é a escritura dos sonhos sonhados pelo artista; que arte é 0 conflito entre a representagio de um fendmeno ¢ a compreensio ¢ o sentimento que temos do fendmeno representados é uma representagio que toma os elementos naturais do fendmeno representado € cria com eles a lei organica da construgio da obra; que arte é 0 conflito entre a légica da forma orginica e a égica da forma racional. Eisenstein dizia essas coisas, e para melhor representar sua idéia montou mais ou menos como aparece acima a histéria de como o homem conseguiu voar, lembrando que, primeiro, ele tentou reproduzir com exatidao a forma de um pdssaro, mas nao conseguiu voar com as asas construi- das iguais as asas dos passaros. pedago de conversa acima é um bom exemplo do que Eisenstein discute de como ele constrdi a discusséo nos ensaios que compéem este livro. Esta aula é citada na biografia do realizador escrita por Viktor Shklovski, publicada em Moscou em 1971 ¢ logo traduzida para o espanhol ¢ o italiano. As aulas de Eisenstein, especialmente as do curso de diregio cinematogréfica entre 1932 € 1936, foram todas registradas em anotag6es estenogréficas feitas pelos alunos. Parte dessas anotages foram reunidas em dois livros editados em Moscou em 1957 € em 1966. Shklovski selecionou esse fragmento de aula para ilustrar a afirmagao de que ao falar de montagem Eisenstein nao estava querendo se referir apenas ao trabalho de juntar pedagos de filmes numa certa ordem, nem mesmo, num sentido mais amplo, apenas a idéia que organiza a composigéo de cada um 8 A forma do filme desses pedagos ¢ a inter-relacao/coliséo entre eles para formar o sentido do filme. Para Eisenstein, diz Shklovski, 0 pensamento humano € montagem e a cultura humana ¢ resultado de um proceso de montagem onde o passado nao desaparece € sim se reincorpora, reinterpretado, no presente. O leitor que entrar nos textos de A forma do filme depois de passar os olhos, num véo rapido, pelo pedago de conversa que abre esta introdugao, e pela observa- gio de Shklovski acima, chegaré mais rapido a sensacéo que vai tomando conta da gente ao longo da leitura, sensagéo néo muito facil de se traduzir em palavras mas que talvez, exagerando um pouco, se possa sugerir dizendo que ler Eisenstein, tal como ver seus filmes, é algo assim como descobrir que para voar com 0 pensamento o homem inventou o cinema. E 0 cinema, para Eisenstein, comegow a ser inventado bem antes de comegar de fato a ser inventado. ‘A montagem jé existia na pintura, como podemos ver, Eisenstein nos lembra, nas vistas de Toledo feitas por El Greco, no retrato de Cissy Loftus feito por Lautrec, ou no retrato do ator Tomisaburo Nakayama feito por Toshusai Sharaku; jd existia no teatro, como podemos ver nas solugées de cena ¢ no jeito de interpretar dos atores do Kabuki; existia também na musica, como podemos ver nos experimentos de Debussy € Scriabin, compardveis a0 que num filme pode ser feito com o uso de grande-an- gulares bem abertas e teleobjetivas bem fechadas; € na prosa, como podemos ver em Gorki, Tolstoi ou Dickens; € na poesia, como podemos ver em Maiakovski ou em versos japoneses como, por exemplo, Corvo solitdrio Galho desfolhado Amanhecer de outono sinais de que 0 poeta escreve com planos de cinema e monta seu poema assim como um realizador monta seu filme, formando uma nova idéia a partir da fusio/colisio de planos independentes. Uma certa qualidade cinematogréfica jé existia em obras realizadas antes do invento do cinema, ¢ para falar do cinema que existiu antes do cinema ¢ que continua a existir fora dele, em textos, em desenhos, na mtisica ¢ no teatro, Eisenstein criou algumas palavras, como “cinematismo” e “imagicidade”. O cine- ma que existe dentro do préprio cinema — e para falar dele Eisenstein criow também algumas palavras, como “tipagem”, “mise-cn-cadre” ou “mise-en-short” —, 0 cinema depois da invengao do cinema permite pensar melhor as leis que governam a construgao da forma numa obra de arte. Para tanto, € preciso que observemos com atengio, ¢ usemos, como ponto de partida, as caracterfsticas Eo me? 9 particulares de seu processo de montagem — a fusio, a colisdo, a construgao de uma ordem nio igual 4 da natureza mas sim igual A da natureza dos homens: quando misturamos um tom azul com um tom vermelho chamamos o resultado de violeta, ¢ néo de uma dupla exposiggo de vermelho e azul; a ilusdo de movimento que recebemos durante a projecio de um filme nasce da percepgao dos fotogramas fixos nao um depois do outro mas sim um em cima do outro; 0 encadeamento das partes que formam o todo de uma obra de arte se faz em obediéncia & estrutura especial dos pensamentos, nao formulados através da constru¢ao légica em que se expressam os pensamentos elaborados, mas sim em obediéncia a processos sensuais e de fantasia do pensamento — como se fosse uma escrita do sonho. E por causa dessas coisas anotadas aqui, rapidamente, como uma espécie de indice dos ensaios reunidos a seguir, ¢ por tudo isso que bem no comeco desta introdugéo, antes mesmo do pedaco de aula de 1934, esta como t{tulo, para ser apanhado meio como imagem meio como trocadilho, a férmula (de Einstein) que se pode pegar como para orientar a leitura: E = mc’, onde E (de energia) correspon- dea Eisenstein, 0 m corresponde & montagem, ¢ - (a velocidade da luz) correspon- de ao cinema, o cinema que existe depois da invencao do cinema mais 0 que jé existia antes da invengio do cinema. Uma imagem meio de brincadeira, para marcar esta série de textos, que nos mostra o quanto, no cinema, espago e tempo séo grandezas inter-relativas. Sio 12 ensaios, a maior parte deles escrita em 1929. Eisenstein havia termina- do Outubro (Oktiabr, 1927-28), retomado ¢ finalizado O velho e 0 novo ou A linha geral (Staroie i novoie, ou Gueneralnaia liniia, 1926-29), ¢ tinha como projeto filmar O capital de Marx. Também se preparava para estudar o cinema sonoro, a partir de agosto, em companhia de Eduard Tisse e Grigori Alexandrov, numa viagem a Alemanha, Franga, Inglaterra e Estados Unidos. O livro, na verdade, é 0 resultado da montagem de textos escritos separadamente, mas todos basicamente preocupados com a questao que aparece no titulo de um deles, a dramaturgia da forma do filme. A idéia de reunir estes ensaios num livro surgiu primeiro em 1936, quando, depois da proibigao de O prado de Bejin (Bejin Lovii, 1935-37), Jay Leyda, aluno de Eisenstein e um de seus assistentes de direcao neste filme inacabado, deixou Moscou de volta para os Estados Unidos com 0 plano do livro para tentar edité-lo em Nova York. A forma do filme, no entanto, sé viria a ser publicado em 1949, um ano depois da morte do realizador. Antes, o mesmo Jay Leyda consegui- tia publicar, em Nova York e em Londres, em 1942, uma outra coletinea de textos de Eisenstein, O sentido do filme. A boa acolhida a este livro levou Eisenstein a rever aidéia de A forma do filme em 1946-47, ¢ a acrescentar trés novos ensaios escritos em 1939 € 1944, Durante longo tempo Eisenstein foi conhecido apenas por estes dois livros € pelos filmes que conseguiu finalizar: A greve (Statchka, 1924), O encouragado Potem- hin (Bronienosets Potemkin, 1925), 0s ja citados Outubro e O velho e 0 novo, Cavalei- 10 A forma do filme 10 de ferro (Alexander Nevsky, 1938) ¢ as duas partes de /van, o Terrtvel (Ivan Grozny, 1942-46, mas s6 liberado para exibigao integral a partir de 1958). S6 mesmo no comeso da década de 60 € que se pode perceber que o que se conhecia de Eisenstein era muito pouco. Primeiro, a publicagio de duas novas coletaneas de textos — Reflexes de um cineasta, que teve traducio brasileira em 1969 pela Zahar, e Lessons with Eisenstein de Vladimir Nizhny, publicado em inglés pela George Allen & Unwin em 1962; depois pela edigio em Moscou de seis volumes de textos selecio- nados, entre 1964 ¢ 1971; ¢, ao lado dos textos, a publicagio dos livros com os desenhos, feitos no México, para a preparacio de Alexander Nevsky ¢ de Ivan, 0 Terrtvel; ¢ finalmente, a0 lado dos livros, as diversas montagens feitas com 0 material de Que viva Méxicol, a montagem dos fotogramas fixos de O prado de Bejin, ¢ a divulgacao dos esbogos de roteiros ¢ anotagées para Uma tragédia ameri- cana, Ouro de Sutter, O capital, O amor do poctae a terceira parte de Ivan, 0 Terrivel, entre outros — tudo isto comesou a mostrar que o que se conhece é apenas uma pequenina parte de um amplo trabalho pratico e tedrico sobre cinema. ‘Ao morrer, aos cinqiienta anos, em feverciro de 1948 — vitima de um ataque cardfaco, enquanto preparava um ensaio sobre a cor no cinema encomendado por Lev Kulechov —, Sergei Mikhailovich Eisenstein deixou uma quantidade de textos muitas vezes superior ao que jé foi editado. Outros seis volumes de escritos se encontram prontos para edigao na Uniao Sovietica, textos inéditos feitos a partir de seu tiltimo trabalho tedrico, A natureza ndo indiferente, A publicasio de A forma do ‘filme, paralelamente a de O sentido do filme (com uma ficha bibliogréfica e filmo- grafica em apéndice), vai permitir entrar em contato com uma pontinha das reflexdes deste homem que, depois de estudar atentamente o movimento dos filmes, de um modo geral, ¢ dos filmes que cle mesmo realizou de um modo particular, dividiu as varias caracterfsticas da forma e do sentido do filme em partes, € montou uma teoria para ensinar o cinema a voar. PrefAcio' © cinema, sem diivida, € a mais internacional das artes. Nao apenas porque as platéias de todo o mundo véem filmes produzidos pelos mais diferentes paises ¢ pelos mais diferentes pontos de vista. Mas particularmente porque o filme, com suas ricas potencialidades técnicas ¢ sua abundante invengao criativa, permite estabelecer um contato internacional com as idéias contemporineas. Porém, no primeiro meio século de sua histéria, o cinema s6 explorou uma parte insignificante de suas infinitas possibilidades. Por favor, nao me interpretem mal. Nio se trata do que foi feito. Coisas magnificas foram feitas. S6 no que diz respeito a0 contetido houve um diltivio de novas idéias ¢ novos ideais que fizeram brotar da tela as novas idéias sociais e o novo ideal socialista da vitoriosa Revolugo de Outubro. ‘A questo é — 0 que pode ser feito no cinema, o que sé pode ser criado com os meios do cinema. Aquilo que ele possui de especifico, de tinico, aquilo que somente o cinema seria capaz de construir, de criar. Ainda nao encontraram a solugio definitiva para o problema da s{ntese das artes que tendem a uma fusio plena e organica no campo do cinema. Enquanto isto, problemas novos se acumulam diante de nés. Mal tinhamos acabado de dominar a técnica da cor ¢ novos problemas de volume ¢ de espago se colocaram diante de nés, culminando com o filme estereos- cépico. E entio, de repente, o imediatismo da televisio nos coloca diante da realidade viva e parece desmanchar as experiéncias ainda néo completamente assimiladas € analisadas do cinema mudo e sonoro. ‘A montagem nada mais era do que a marca, mais ou menos perfeita, da marcha real de uma percepsio de um acontecimento reconstitu(do através do prisma de uma consciéncia ¢ de uma sensibilidade de artista. De repente, a televisio puxa todo este processo para frente, para o momento da percepgio. " 2 A forma do filme Assiste-se assim & fusio incrivel de dois extremos. O clo inicial da cadeia de formas evolutivas do espeticulo, o ator-intéxprete, que transmite ao espectador o resultado de seus pensamentos e sentimentos no instante mesmo em que esta pensando e sentindo, pode agora estender a mao a0 mestre da forma mais elevada do teatro do futuro: 0 mago cineasta da televisao, que, répido como um piscar de olhos ou como o surgir de um pensamento, jogando com as lentes e com o visor da camera, imporé diretamente, instantaneamente, sua interpretacao estética do acontecimento durante a fragao de segundo em que ele se produz, no momento de nosso primeiro, tinico e fabuloso encontro com ele. Pouco provavel? Imposstvel? Ser4 isso realizével numa época que, por meio do radar, jé se pode captar em pleno véo 0 eco de sinais enviados para a lua e para além dela, ¢ jd se podem enviar avides na velocidade do som acima da cipula azul da atmosfera? Em meio a guerra sonhava-se que, vinda a paz, a humanidade vitoriosa aplicaria sua energia liberada para criar novos valores de cultura, para imprimir & civilizagao um novo desenvolvimento. ‘A tio esperada paz chegou. Eo que vemos? Inebriados pelo fato de possuir um brinquedo integrante do alucinante po- tencial destruidor, os enlouquecidos pelo dtomo cada vez mais se afastam do ideal de paz ¢ unio, sempre mais préximos de rematerializar a imagem do materialismo, sob formas ainda piores que o {dolo, hé pouco abatido, de um fascismo de trevas e de desumanidade. ‘A Unido Soviética ¢ a parte avangada ¢ melhor da humanidade pensante apelam a uma cooperacio verdadeiramente democrdtica entre as nagbes mundiais. A vontade avessa dos adversdrios da paz pée-se a trabalhar para impor humanidade uma nova hecatombe, novas guerras, novo massacre homicida, fratri- cida, E por isso os povos, mais do que nunca, devem aplicar suas forsas para a compreensio reciproca e a uniao. © cinema tem 50 anos. Um mundo imenso ¢ complexo de possibilidades abre-se diante dele. A humanidade dedica-se a dominé-las, nao menos do que a dominar o aspecto fecundo das descobertas da fisica de hoje, da era atémica. Quéo pouco tem sido aplicado nas pesquisas estéticas em todo o mundo para permitir a0 homem tornar-se senhor dos meios ¢ possibilidades que o cinema oferece! Nio nos falta nem capacidade nem impeto. O que espanta aqui € 0 imobilismo, a rotina, a fuga diante de problemas absolutamente novos que se superpdem enquanto o desenvolvimento técnico do cinema corre na frente. Prefacio 13 Nao devemos temer nada. Nossa tarefa ¢ reunir e resumir as experiéncias do passado € do presente, armando-nos com esta experiéncia para enfrentar novos problemas e dominé-los, permanecendo conscientes, ao fazer isso, de que a base genuina da estttica e 0 material mais valioso de uma nova técnica é serd sempre a profundidade ideolégica do tema e do conteitdo, pata os quais os meios de expressao cada dia mais aperfeigoados serio somente meios de dar corpo as formas mais elevadas de concepgio do univer- so, as idéias do comunismo. Como trabalhadores do cinema soviético, nés nos sentimos obrigados, desde 08 primeiros dias de nossa nova atividade, a conservar cada um dos pequenos grios de nossa experiéncia coletiva, a fim de que cada fagulha de pensamento no campo da criaao cinematogréfica se tornasse propriedade de todos os que trabalham com cinema. Fizemos isto nao apenas nos filmes, mas também nos ensaios e pesquisas, para compor um quadro do que buscamos, do que encontramos ¢ daquilo a que aspiramos. Assim nasceram meus ensaios. E hoje, resolvido a reunir num volume o que escrevi em diferentes épocas sobre assuntos diversos, sinto-me impulsionado novamente por estes mesmos sen- timentos: contribuir para o dominio das amplas possibilidades do cinema. Sao os sentimentos que devem animar todo aquele que teve a oportunidade de criar neste meio de incompardvel beleza e cujo fascinio nao tem precedente. Em contraste com os que guardam sob sete chaves os “segredos” atémicos, nés, cineastas soviéticos, cooperando com todos os nossos amigos democratas, contribuiremos para a causa comum com tudo aquilo que os anos de prética nos ensinaram sobre essa arte fabulosa. A idéia de paz universal nao pode ser sufocada pelo amor-prdprio egofsta de nagées ¢ paises prontos a abrirem mio da felicidade universal em nome de sua avidez individual. O cinema, a mais avangada das artes, deve estar em posi¢ao avangada nesta luta. Que ele indique aos povos o caminho da solidariedade e da unanimidade no qual devemos nos mover. Foi com tal pensamento que preparei a presente selecio de textos, escritos em diferentes datas ¢ locais. E possfvel que muitos tenham envelhecido. E possivel que muitos tenham sido superados. E que muitos estejam ultrapassados. Talvez parte deles tenha apenas um interesse histérico, como ponto de partida na luta comum dos anos em que eram mais fervorosas as pesquisas cinematogréfi- cas. O todo, espero, poderé encontrar algum lugar num dos degraus da escada da experiéncia coletiva do cinema, que, a despeito dos que gostariam de langar a 14 A forma do filme humanidade no caos da discérdia e da escravidio muitua, sobe passo a passo ¢ onde a cinematografia soviética continuaré subindo, como encarnacao dos mais nobres ideais da humanidade. SERGEI EISENSTEIN Nota 1. Escrito em 1946— o original vem datado Moscou-Kratovo, agosto de 1946 — e publicado pela primeira vez.dez anos mais tarde na abercura da coletinea Reflexies de um cineasta. Do teatro ao cinema’ E interessante rememorar os diferentes caminhos seguidos pelos profissionais do cinema de hoje desde seus pontos de partida criativos, que compéem o multiface- tado pano de fundo do cinema soviético. No inicio dos anos 20, todos viemos para © cinema soviético como para algo ainda inexistente. Nao chegamos a uma cidade jd construida; nao havia pragas nem ruas tragadas; nem mesmo pequenas alamedas tortuosas ¢ becos sem saida, como os que podemos encontrar nas metrépoles cinematogréficas de hoje. Chegamos como beduinos ou cacadores de ouro a um lugar de possibilidades inimagindveis, das quais apenas uma pequena parte foi explorada até hoje. ‘Armamos nossas tendas ¢ iniciamos nossas experiéncias em varias éreas. Ativi dades particulares, ocasionais profissdes passadas, habilidades impensdveis, insus- peitadas erudigées — tudo foi reunido ¢ usado na construgio de algo que nao tinha, até entio, tradigdes escritas, requisitos estilfsticos exatos, nem mesmo neces- sidades formuladas. Sem mergulhar muito fundo nos fragmentos teéricos das especificidades cinemato- graficas, quero discutir aqui dois de seus aspectos. Séo aspectos também de outras artes, mas o cinema é particularmente responsével por eles. Primo: fotofragmentos da natureza séo gravados; secundo: esses fragmentos sio combinados de varios modos. Temos, assim, o plano (ou quadro) ¢ a montagem. ‘A fotografia é um sistema de reprodugao que fixa eventos reais e elementos da realidade. Essas reprodugées, ou fotorreflexos, podem ser combinados de varias maneiras. Tanto como reflexos, quanto pela maneira de suas combinagées, elas permitem qualquer grau de distorgéo — que pode ser tecnicamente inevitavel ou deliberadamente calculada. Os resultados variam desde a realidade exata das combinagoes de experiéncias visuais inter-relacionadas, até as alteragbes totais, composigées imprevistas pela natureza, ¢ até mesmo o formalismo abstrato, com remanescentes da realidade. A aparente arbitrariedade do tema, em sua relagio com o status quo da natureza, é muito menos arbitréria do que parece. A ordem final é inevitavelmente 15 16 A forma do filme determinada, consciente ou inconscientemente, pelas premissas sociais do realiza- dor da composicao cinematogréfica. Sua tendéncia de classe é a base do que parece ser uma relagdo cinematogréfica arbitraria com 0 objeto que se coloca, ou se encontra, diante da camera. Gostarfamos de encontrar neste processo duplo (o fragmento e suas relagées) uma indicagéo das especificidades cinematograficas. Mas nao podemos negar que este processo pode ser encontrado em outros meios artisticos, sejam ou nao préxi- mos do cinema (¢ que arte nao esta préxima do cinema?). Porém, é poss{vel insistir em que estes aspectos so especificos do cinema, porque o especifico do cinema reside no no processo em si, mas no grau em que estes aspectos sio intensificados. O mitisico usa uma escala de sons; 0 pintor, uma escala de tons; o escritor, uma lista de sons ¢ palavras — e estes so todos tirados, em grau semelhante, da natureza. Mas o imutével fragmento da realidade factual, nesses casos, € mais estreito e mais neutro no significado e, em conseqiiéncia, mais flextvel 8 combina- g40. De modo que, quando colocados juntos, os fragmentos perdem todos os sinais visiveis da combinagio, aparecendo como uma unidade orginica, Um acorde ~ ou mesmo trés notas sucessivas — parece uma unidade orginica. Por que deveria a combinagao de trés pedagos de filme, na montagem, ser considerada uma colisio tripla, impulsos de trés imagens sucessivas? Um tom azul é misturado a um tom vermelho e 0 resultado se chama de violeta, € nao de uma “dupla exposicao” de vermelho azul. A mesma unidade de fragmentos de palavras permite todo tipo de variacdo expressiva posstvel. E muito facil distinguir trés gradagGes de significado na linguagem — por exemplo: “uma janela sem luz”, “uma janela escura” ¢ “uma janela apagada”. Agora, tente expressar estas varias nuangas na composigao do plano. E possi- vel? Se for, entéo que contexto complicado ser necessério para arrumar os peda- gos de filme num rolo de modo que a forma preta na parede comece a mostrar uma janela “escura’, ou uma “apagada”? Quanta capacidade ¢ engenhosidade serio gastas para se conseguir um efeito que as palavras obtém de modo tao simples? O plano é muito menos elaboravel de modo independente do que a palavra ou 0 som. Assim, 0 trabalho miituo do plano e da montagem ¢, na realidade, uma ampliagéo de um processo microscopicamente inerente a todas as artes. Porém, no cinema este processo é elevado a um tal grau que parece adquirir uma nova qualidade. O plano, considerado como material para a composigio, é mais resistente do que o granito, Esta resisténcia ¢ especifica dele. A tendéncia do plano a completa imutabilidade factual esté entaizada em sua propria natureza. Esta resistencia deter- minou amplamente a riqueza ¢ variedade de formas ¢ estilos da montagem — porque a montagem se torna o principal meio para uma transformacio criativa realmente importante da natureza. Do teatro ao cinema 7 Assim, 0 cinema € capaz, mais do que qualquer outra arte, de revelar 0 processo que ocorre microscopicamente em todas as outras artes. O menor fragmento “distorcivel” da natureza é 0 plano; engenhosidade em suas combinagées é montagem. A anilise deste problema recebeu cuidadosa atengao durante a segunda meia década do cinema soviético (1925-30), uma atengao freqiientemente levada ao excesso. Qualquer alteragio infinitesimal de um fato ou evento diante da camera se transformou, ultrapassando todos os limites legitimos, em teorias completas de documentalismo. A necessidade legitima de combinar esses fragmentos da realida- de se transformou em concepgées de montagem que pretendiam suplantar todos os outros elementos de expresso do cinema. Dentro de limites normais, estes aspectos fazem parte, como elementos, de qualquer estilo de cinematografia. Mas nio se opéem, nem podem substituir outros problemas — por exemplo, o problema do argumento. Voltando ao duplo processo indicado no inicio destas notas: se este proceso é caracteristico do cinema, tendo encontrado sua plena expressio durante o segundo estdgio do cinema soviético, valeré a pena investigar as biografias criativas dos diretores daquele perfodo, vendo como estes aspectos emergiram, como se desen- volveram no trabalho pré-filmico. Todos os caminhos daquele perfodo levaram a uma sé Roma. Tentarei descrever 0 caminho que me levou aos principios do cinema. Em geral diz-se que minha carreira no cinema comegou com minha encenagio da pega de Ostrovsky Mesmo 0 mais sabio se deixa enganar’ no Teatro do Proletkult (Moscou, margo de 1923). Isto é verdadeiro e nao é verdadeiro. Nao é verdadeiro se se baseia apenas no fato de que esta encenacéo continha um filme de curta metragem cémico? feito especialmente para ela (néo separado, mas inclufdo no plano de montagem do espeticulo). Est4 mais perto da verdade se se baseia no cardter da producao, porque jé nessa ocasido os elementos da especificidade men- cionada acima podiam ser detectados. Concordamos que o primeiro sinal de uma tendéncia do cinema ¢ mostrar eventos com 0 minimo de distorcao, objetivando a realidade factual dos fragmen- tos. Uma busca nesta direcdo mostra 0 comeco de minhas tendéncias cinemato- graficas trés anos antes, na produgio de O mexicano (da histéria de Jack London). Aqui, minha participagao levou para o teatro os proprios “eventos” — um elemento puramente cinematogréfico, porque diferente das “reagées aos eventos”, um ele- mento puramente teatral. Este é 0 enredo: um grupo revoluciondrio mexicano precisa de dinheiro para suas atividades. Um rapaz, um mexicano, se oferece para conseguir o dinheiro. Ele

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