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Hudinilson TT ORALIDADE PN (O caso Rubem Fonseca) Keecuya GSeaiana Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Urbano, Hudinilson Oralidade na literatura : 0 caso Rubem Fonseca Hudinilson Urbano — Sao Paulo : Cortez, 2000. Bibliografia. ISBN 85-249-0732-0 1. Falanaliteratura 2. Fonseca, Rubem, 1925- 3. Lingua falada 4. Oralidade I. Titulo. CDD-808.5 indices para catdlogo sistematico: 1. Oralidade : Literatura 808.5 4) As marcas do personagem interlocutor em geral Os personagens em geral — e ndo apenas © personagem que narra — praticam agdes de virios tipos que constituem 0 contetidc dos enunciados do narrador, seja de primeira pessoa, seja de terceira Entre essas agdes inscrevem-se os atos de fala, isto &, os didlogos ou as enunciagdes dos personagens ¢ os enunciados de: goes. enuncia- A narracio dos atos de fala € semelhante & das demais agdes Para as agdes em geral representam-se a agdo e 0 modo da aco. Assim, se 0 personagem pratica a acdo de andar, esta ado pode ser referida apenas por “andar” ou pode ser modalizada como em “andar devagar”, “andar depressa”, “andar em companhia de” etc. Se pratica a ago de falar, este ato também pode ser simplesmente representado com “falou”, “disse”, ou pode ser mod modalizagaio pode se dar de duas maneiras: 1) sincreticamente, como em “gritou” falou baixo), “recriminou” ( falow reprovando) ete. ou 2) analiticamente, como em “respondeu com voz trémula € entrecortada”’. lizado. A falou alto), “murmurou” 2.5 O discurso direto, direto livre, indireto e indireto livre Em relagdo ao ato de falar (ou pensar) de um personagem. além da desctigao do ato dicendi, modalizado ou nao, pode o narrador, ainda, reproduzir 0 préprio contetido desse ato. Surge entio na estrutura narrativa uma narragio especial, que exige téenicas especiais ¢ consegue efeitos originais: é a narragiio do contetido dos enunciados dos personagens, que pode ser feita pelo narrador, pelo narrador-personagem ou por qualquer personagem nao narrador: 0 enunciado de outrem se torna objeto do enunciado de um desses enunciadores. Relacionam-se entio 0 enunciado citado com o enunciado citante © tal relagdio gera certos tipos particulares de discurso. Por outras palavras, acontece na narrativa a presenca dos chamados discursos direto, direto livre, indireto indireto livre, que sio as palavras dos personagens citados em oposi¢do as do enunciador citante. Por ora, observamos essa técnica apenas sob o enfoque do narrador 64 Na realidade, trata-se de discursos referidos, “narrados”, direta ou indiretamente; anunciados, ostensiva ou veladamente, pelo narrador, que representa, nessa oportunidade, 0 papel de testemunha. A narrativa toda nao deixa de ser, sob certo angulo, um di direto sui generis, onde nem sempre aparecem as marcas evidenciadas de sua enunciacdo. Bakhtin, discorrendo sobre o discurso direto na Jingua literéria, conjectura que toda “narrativa poderia ser posta entre aspas como se fosse de um narrador, embora isso no seja marcado temética ou composicionalmente” (1979:153). Todavia, interessa-nos aqui, n&o o discurso direto do narrador “historiador” dirigido a0 narratdrio/leitor, mas, especificamente, a fala dos personagens, que narrada ou descrita, no texto, por meio do recurso dos discursos direto, diteto livre, indireto e indireto livre, mas no apenas. Diz Moisés que personagens sio “seres ficticios construidos & agem e semelhan aqueles sio ‘pessoas’ imaginérias: se os primeiros habitam o mundo le nos cerca, OS OULTOS Mmovem-se no espago arquitetado pela fantasia do prosador”. (1978:145) a dos seres humanos: se estes so pessoas reais, Afastando, a0 menos no momento, consideragdes acerca da sua conceituagio, caracterizagao, classificagao, concentremo-nos no fato que, embora sendo “pessoas” ficticias, os personagens agem, sentem, pensam e falam; sobretudo, pensam e falam, E no pensamento = na fala dos personagens, segundo Moisés, que residem as condigdes. = matéria-prima das obras literdrias de ficgaio, pois “os conflitos, os amas, residem na fala das pessoas, nas palavras proferidas (ou esmo pensadas) ¢ nfo no resto (...). As palavras, como signos de © emogées, podem construit ou destruir”. (1967:103) A representagio direta. ou indireta das vozes dos personagens constitui uma das dificuldades dos autores, que devem, a bem da srossimilhanga, diferencid-las conforme as suas personalidades fin- cisticas, Nao devem, pois, os personagens — a admitir-se um rigor 52 coeréncia — falar como seus autores, nem umas como as outras cea, op. cit., p. 137) sentimentos Embora ligeiramente, cabe lembrar as diversas formas da pre- sega dos personagens na narrativa, “falando” ¢ “pensando”. Costu- =z-se atribuir-Ihes a denominagio de didlogo. O termo pode ser ~preendido num sentido genérico e num sentido restrito. Num <-:do genérico, entende-se qualquer manifestagdo enunciativa de 65 personagens; num sentido restrito, apenas quando a fala ocorre entre duas ou mais pessoas, isto €, quando haja a presenga de e 0 intercdmbio entre interlocutores. Exclui-se assim, em principio, no didlogo restrito, 0 monélogo, embora, sob certo Angulo, 0 mondlogo possa também ser considerado dislogo: Na realidade, continua a ser didlogo, uma vez que subtende a presenca dum interlocutor, virtual ou real, incluindo a personagem, assim desdobrada em duas entidades mentais (0 “eu” © 0 “outro”), que trocam idéias ou impressdes como pessoas diferentes. (Moisés, 1978:145) A fim de dar suporte a algumas consideragées sobre 0 assunto, aduzimos 0 seguinte quadro sobre o didlogo de modo geral ou em sentido amplo, comegando, entretanto, pelas formas do diélogo restrito: a) didlogo (em sentido restrito): direto direto livre indireto indireto livre? b) monélogo (interior): direto indireto indireto livre ¢) soliléquio (direto) 4d) deseric: onisciente © quadro sinético merece algumas observacées, restritas & questo taxionémica. Assim, estendemos ao mondlogo a técnica do discurso indireto livre, que, aliés, a0 que parece, nele ocorre com maior freqiiéncia. Igualmente, a descrigdo onisciente no € uma técnica especffica de exposigdo do pensamento ou da fala de um personagem. Ela € uma das técnicas para descrever o fluxo de consciéncia. 3. A aplicagdo tipiea do discurso indireto livre parece sera de taduzir estados ‘mentais, 0 que ndo justificaria sua incluso como técnica de didlogo. Todavia isso na: € regia geral ¢ em Machado de Assis, cujo diseurso indireto livre mereceu um estud= ‘especial de Mattoso CAmara (1962:37-38), 86 mesmo esporadicamente o encontramos par ‘essa finalidade. 66 Humphrey (1976:30) define a descrigdo onisciente como “a técnica de romance usada para representar 0 contetido e os processos Psiquicos de uma personagem na qual um autor onisciente descreve essa psique por meio de métodos convencionais de narragio e descrigao”. A descrigiio onisciente do fluxo de consciéncia € realizada nio 86 pelo monélogo — principalmente indireto e indireto livre — mas também pela narragio ou descrigio de ages. © didlogo, em sentido restrito, 6 a reprodugio das palavras (ou do seu contetido) do personagem, em fungio de seu interlocutor. O mondlogo é a reprodugio do pensamento (ou de seu contetido) do personagem (fluxo de sua consciéncia),! abstragio feita de qualquer interlocutor ¢ leitor. Uma conceituagao mais completa de Humphrey diz: © mondlogo interior é, entdo, a técnica usada na ficgao para representar © contetido © os processos psiquicos do personagem, parcial ou inteiramente inarticulados, exatamente da maneira como esses processos existem em diversos nfveis do controle consciente antes de serem formulados para fala deliberada. (1976:22) Ducrot e Todorov, reconhecendo nao ser tao simples a oposii entre mondlogo € didlogo, arrolam alguns tracos distintivos: Podemos descrever 0 monélogo pelos seguintes tragos distintivos ‘entuaciio posta no locutor; © pouco de referéncia a situagdo elocutiva: um tinico quadro de referéncia; auséncia de elementos metalingufsticos: a freqléncia das exclamagdes. Por oposiciio, descreveremos 0 didlogo como um discurso que: acentua 0 alocutério; refere-se abundantemente a situagao alocutiva; tem varios quadros de referéncia s caracteriza-se pela presenga de clementos metalingiifsti frequiéncia das formas interrogativas. (1973:363) O soliléquio & a reprodugio dos pensamentos do personagem somo se expressos fossem, € diretamente por ela), pressuposta a presenga do leitor, mas nfo na qualidade de interlocutor. 4. Cf. essa discussao sobre no sinonit =stior em Carvalho (1981: $2-53). ja entre Mluxo de consciéncia © mondlogo 67 As diferengas bésicas entre diélogo, monélogo,€ soliléquio, de um lado, entre linguagem do narrador e dos personagens, de outro, motivam procedimentos lingiifstico-estilisticos do autor bastante di- versos, como jé insinuaram Ducrot e Todorov. Apenas para tornar clara a afirmagio, pode-se lembrar desde logo: 0 didlogo e o soliléquio, pressupondo exteriorizag’o, siio mais formais e conven- cionais, enquanto 0 mondlogo, pressupondo interiorizagao, “identifi- ca-se pela desarticulagio légica dos perfodos e sentengas”. (Moisé 1978:145) decorrente do pensamento in natura e, por desnecessidade, despoliciado. No nosso entender, essa desarticulagdo légica nio é conseqiiéncia inevitavel. como nao & condigdo necesséria que o pensamento ou fluxo de consciéncia seja inevitavelmente ilégico ¢ desarticulado, dentro mesmo dos padrées convencionais exteriores. Particularmente, 0 soliléquio difere do diélogo e do monélogo porque, com © soliléquio © personagem se expressa sempre “dire- tamente” (discurso direto), ao passo que, por meio do didlogo e do monélogo, pode 0 personagem expressar-se ora “diretamente” (dis- curso direto), com suas préprias palavras ou pensamentos, ora “indiretamente” (discurso indireto), com a intermediagio patente do narrador. Estabelecidas as caracteristicas gerais que opdem o didlogo a0 monélogo, assemelham-se eles, porém, pela possibilidade que tem © narrador de empregar as mesmas técnicas ou moldes lingiifsticos a fim de transmitir-nos os pensamentos e as palavras de seus personagens, ou seja, 0 discurso direto, 0 direto livre, © indireto e © indireto livre. Na retomada, na seqiiéncia, faremos novas observagdes e de- talhamentos, que devem aclarar e complementar 0 assunto. No discurso direto, 0 narrador deixa ou deveria deixar o personagem expressar-se na sua “propria Ifngua” ou pensar segundo © seu préprio fluxo de consciéncia. Prevalece certa identidade entre © personagem (na forma como foi criado) e 0 modo de suas manifestagdes verbais e mentais, 0 seu desempenho lingufstico e psiquico. No discurso direto livre, como se observaré no quadro (p. 70), ‘ocorrem as mesmas caracteristicas do discurso direto, com excegao do elemento introdut6rio (n° 11), dos sinais graficos especiais (n° 14) © da auséncia de indicag%io do autor do enunciado (n° 17). 68 No discurso indireto, 0 narrador incorpora ao seu proprio falar © falar ou o pensar do personagem, informando ao leitor 0 contetdo dessa fala ou pensamento, sem preocupagio de fidelidade com a forma da linguagem ou do fluxo de consciéncia, como teria sido realmente produzida pelo personagem. No discurso indireto livre, a fala ou 0 pensamento “de deter- minada personagem ou fragmentos” deles “inserem-se discretamente no discurso indireto através do qual o autor relata os fatos”, man- tendo-se, por vezes, “o ritmo e os movimentos, os cortes © a carga afetiva da lingua oral”. (Garcia, 1980:147; Da Cal, 1969:182). Na vurdade, em geral ocorre uma fusiio de tragos expressivos do narrador e do personagem, que se interpenetram, identificando-se um com outro. A fim de ilustrar a riqueza © complexidade que o estudo pode oferecer, apresentamos, desincumbindo-nos de demoradas ¢ profundas reflexes, um levantamento sintético € superficial de algumas carac teristicas dos quatro discursos, servindo-nos de sugestio metodolégic: de Dolezel. (1970:192-8) (Cf. pagina seguinte.) Na trilha de Dolezel, podemos distinguir 0 discurso do narrador — quando se trata de narrador de terceira pessoa — e discurso misto — quando se trata de narrador de primeira pessoa. Ambos apresentardo caracterfsticas prdprias, distanciando-se 0 primeiro bas- tante das caracteristicas acima e ficando a meio-termo o segundo. © esquema nfo pode ser interpretado em termos absolutos. Cada item exige explicitagao e estudo especiais. Assim, s6 para exemplificar e demonstrar uma linha de possfveis reflexdes, tomemos 2 questiio da perspectiva personagenYnarrador, ou melhor, da passagem da perspectiva do ew para a do sujeito da narragiio, que o discurso indireto acarreta. A transposigao do discurso direto para o discurso indireto exige uma série de transformagdes formais, como podemos observar, comparando os seguintes enunciados Discurso direto: Joao disse: — O Pedro, eu encontrei este livro aqui ontem ea partir de agora é meu. urso indireto: Jodo disse a Pedro que ele havia encontrado aquele livro ali no dia anterior e que a partir de ent&o era seu. 69 CARACTERISTICAS DISCURSOS Direto | Direto | Indireto | Indireto livre livre — fungées_ estéticas didlogo + | + + + mondlogo + + + + solil6quio * + 5 = 2 — “fala” ou pensamento formais + + = x 3. — s6 contetido = = + x_| |4 — contetido mais tragos_afetivos + + = x [5 — entonagao propria (exclamagio = - x efou interrogacio) 6 — entonacdo no grupo de entonagio | — = + x do_verbo de clocugio 7 — perspectiva do personagem (eu, + + - = aqui, agora do falante) Is — perspectiva do narrador com as - 5 + lees respectivas transposigses 9 — elo psiquico narrador/personagem | — = = + 10 — cardter informativo e intelectivo | — = + da. narrativa 11 — elemento introdutor/verbo de + = + = elocugio 12 — dependéncia sintatica (0.D.) + + + : (mas no entonacional) ao verbo de_elocugio 13 — liberdade sintitica = S = + 14 — sinais _graficos especiais + = = = 15 — interferéneia do narrador = 5 + x 16 — individualidade de e + + + [= oy 17 — indicagio do autor do enunciado | + + = Obs. (*) O sinal (+) indica presenca do trago caracteristico; (-) indica auséneia © 0 (x), situagdo hibrida ou complexa; (#*) Pode manter alguns tragos do discurso direto; (***) A frase do discurso indireto livre é hibrida, no sentido de que é misto de discurso indireto e direto. Comparando-se 0s dois discursos, observa-se facilmente que 0 universo do falante (pessoa, tempo, lugar, afetividade) passa a ser, 70 dentro do possivel, objeto do relato do narrador, provocando, no caso, varias transposigdes, omissdes ou reestruturagées. Além dessas marcas, deve-se considerar a nova curva entona- cional, decorrente da incorporagio da fala de Jodo no discurso indireto do narrador. E preciso observar ainda que os pronomes pessoais possessivos, demonstrativos e advérbios de tempo e lugar (anaféricos) referidos a0 eu-aqui-agora do falante transpdem-se para a perspectiva do eu-aqui-agora do natrador. Como se vé, 0 que esta em jogo so as marcas da enunciagio no enunciado, ora diretas e evidentes, ora apagadas, mas denunciadas por via indireta. Com efeito, 0 ele, por exemplo, refere-se & pessoa (e conforme Benveniste, & ndo-pessoa) que nfo esta falando, mas denuncia um eu-falante. Transpor discursos exige critério e habilidade, porque todos os discursos tém méritos, segundo angulos e propésitos especiais do narrador. Fazé-lo sem essas condigdes pode neutralizar efeitos esti- listicos pertinentes ou provocar ambigilidades. Antes de encerrar estas consideragées sobre a fala do outro na narrativa, queremos observar que, na narrativa oral, podem ocorrer ainda estratégias variantes do discurso direto com. caracteristicas proprias, em que o narrador indica o falante citado ora de maneira ostensiva nominal ou pronominalmente, ora de maneira indireta por o da voz, de sotaques ¢ trejeitos articulatérios. (Cf. Urbano, 263-78) Ou, na visio de Bastos (1983:213-4), considerando sempre as modalidades da narrativa oral € narrativa escrita: Outro problema decorrente do emprego de recursos orais nas narrativas em questio é a interrupgao freqiiente dos enunciados com intervengdes, stibitas do natrador e de outras personagens e com colocagées ou detathes alheios & histéria com posterior recuperagio da mesma. Na narragdo oral, freqtlentemente reproduzimos nossa fala ¢ a fala de outros personagens sem nenhum aviso (as vezes imitamos sua voz seu modo de falar, indicando que é outro quem fala) e, permeando fatos, emitimos nossa opinido sobre estes. A altemancia entre comentdrio € narragdo (Weinrich, 1973) nao se dé da mesma maneira no discurso oral e no discurso escrito. a

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