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Emmanuel Alloa (org.] PENSAR A IMAGEM Georges Didi-Huberman Jacques Ranciére W. J. T. Mitchell Horst Bredekamp Hans Belting Emanuele Coccia Jean-Luc Nancy Marie-José Mon Gottfried Boehm Emmanuel Alloa Bir-tel tte eT tiae eed eleng a tet Fernando Fragozo ear) ye Renee auténtica Copyright © Les presses du réel, Dijon Traducéo publiceds mediante acordo com Les presses du rél, Dijon, www lespressesdurel com Copyright © 2015 Autentica Editora Titulo original: Penser image Todos os direites reservados pela Auténtica Editora, Nenhuma parte desta publicacdo poderé ser reproduzida, seja por meios mecdnicos, eletrénicos, soja via cOpia xerografica, sem a autorizacao previa da Editor. ‘Todos 05 esforgos foram feitos no sentido de encontrar os detentores dos direitos autorais das obras que constam deste livo. Pedimos desculpas por eventuais omissfes involuntérias e nos comprometemos 3 inser 05 devidos crédits ecorriair possveisfalhas em edigdes subsequentes, ‘ooHDANADOR DA CEE AD RO krona asssree Gilson tannini Ceca Martins conseno ForoRAL roo Gc Gilson lannins (UFOP); Barbara Cassin (Par) Diogo Droschi Carla Rodrigues (UFR); Cliudio Oliveira (UFF); rewsto Danilo tarcandes (PUC Rio} Ernani Chaves lis Girone (UFPAY; Guttherre Castelo Branco (UFR), 080 Re Si Carlos Salles (UFBA); Monique David- Ménard (Paris); Olimpia Pimenta {UFOP); Pedro Sissekind CA (UFF); Rogerio Lopes (UFMG); Rodrigo Duarte ‘Alberto Bittencourt (UFMG); Romero Alves Freitas (UFOP); Slavoj Zek —ousceemacio (Giublina); Viaciir Safatie (USP) Biro Abvarenga Fonseca OTORA RESPONSAVEL Aejane Dias Dados Internacionais de Catalogagao na Publicado (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Pensar a imagem/ Emmanuel Alloa, (9r9.).— 1.ed. ; 1. reimp. ~Belo Horizonte: Auténtica Editora, 2015. (Colecao FilevEstetica) | Thule original: Penser image. | Varios autores. Yas oases | 1. Arte - Filosofia 2. Estética 3. Imagem 4. Percepgdo visual I, Alloa, Emmanuel | 1508707 cDp-700,1 Indices para eatélogo sistematicr 1. Percepcao visual : Arte: Ensaios 700.1 @cruroaurentica Belo Horizonte So Paulo Rio de Janeiro Rua Carlos Turner, 420 ‘Av. Paulista, 2.073, Rua Debret, 23, sala 401 Silveira . 31140-520 Belo Horizonte. MG Tel. (55 31) 3465 4500 Televendas: 0800 283 13 22, weaw.grupoautentica.com.br Conjunto Nacional, Horsa | 23° andar . Con). 2301 (Cerqueire César 01311-9409 ‘Sao Paulo. SP Tel: (55 11) 3034 4468 Centro . 2030-080, Rio de Janeiro . RI Tels (55 21) 3179 1975 O que as imagens realmente querem? W. J. T. Mitchell Traduzido do inglés por Marianna Poyares As perguntas sobre imagens que dominam os trabalhos recentes em cultura visual e hist6ria da arte tém sido interpretativas e retéricas, Queremos saber o que significam as imagens e 0 que fazem, 0 modo como elas se comunicam como signos e simbolos, que tipo de poder elas tém de afetar as emogdes e 0 comportamento humano. Quando se levanta a questo do desejo — normalmente localizado nos produ tores e consumidores de imagens ~, a imagem é tratada ou como uma expressiio do desejo do artista ou como um mecanismo para suscitar os desejos do espectador. Neste ensaio, gostaria de deslocar o desejo Para as proprias imagens e perguntar o que elas querem. Tal pergunta certamente nao significa um abandono das questées interpretativas e retricas, mas permitira considerar diferentemente, espero, a questao acerca do poder e significado pictéricos. Também nos auxiliars a nos apossarmos da mudanga fundamental ocorrida na historia da arte ¢ em outra disciplina chamada de cultura visual (visual culture) ow estu- dos visuais (visual studies),' que tenho associado A virada pictérica da cultura intelectual tanto popular quanto erudita. Para poupar tempo, quero partir do pressuposto de que somos capazes de suspender nossa descrenca a respeito das premissas da Visual culture ou visual studies, comumente traduzido para o portugués por cultura visual ou estudos visuais, é uma érea de conhecimento relacionada 20s estuslos cul turais, histéria da arte e teoria critica, dedicada ao estudo da relacio entre cultura e imagem, (NT) pergunta “O que as imagens querem?”. Estou ciente de se tratar de uma pergunta estranha e mesmo passivel de questionamentos, Tam- bém estou ciente de que solicita uma subjetivagao das imagens, uma personificagio ambigua de objetos inanimados, que flerta com uma atitude regressiva e supersticiosa com relagio 4s imagens € que, se tomada seriamente, nos levaria de volta a praticas como totemismo, fetichismo, idolatria ¢ animismo, Sao praticas consideradas primitivas ou infantis pela maior parte dos individuos esclarecidos quando trata- das em sua forma original (por exemplo, adorar objetos materiais ou tratar objetos inanimados, como bonecas, como se estivessem vivos) ou em suas manifestagdes modernas (fetichismo, tanto de commodities quanto de perversio neurética). Também estou perfeitamente ciente de que a pergunta pode soar como uma apropriacio de mau gosto de uma questio normalmente reservada a outros individuos, particularmente aqueles que tém sido objeto de discriminagio, vitimados por imagens preconceituosas, identificados com esteredtipos ou caricaturas. A pergunta de certo modo ecoa toda a investigagio a respeito do desejo do Outro despre~ zado ou menosprezado, da minoria ou do subalterno, qhe tem sido tio central para os estudos modernos sobre género, sexualidade e etnia “© que quer 0 negro?” é a pergunta levantada por Frantz Fanon (1967. p. 8), arriscando a reificagio da masculinidade e negritude em uma 36 formula. “O que querem as mulheres?” foi a pergunta que Freud nio péde responder.’ Mulheres € negros tém lutado para responder diretamente tais perguntas, em articular seu proprio desejo. E dificil Transferir as imagens de caracteristicas prdprias is minotias ¢ aos subalternos se: ‘um tema central para a sequéncia do texto. Poderfamos partic de uma refiexio acerc da famosa pergunta de Gayatri Spivak (1988) “Pode o subalterno falar?". A respose: de Spivak é “no”, uma resposta que ecoa quando imagens so tratadas como signos silenciosos ou mudos, desprovidos de fala, sonoridade ou negagio (nesse caso a resposs: a nossa pergunta seria: as imagens querem uma voz, uma poética de emunciacio ‘Uma anilise da situagio de “menoridade” da imagem pode ser encontrada nas ob- servagdes de Deleuze (1977, p. 109, 159) acerca da forma segundo a qual o processo poético introduz o mutismo nas imagens, produzindo “uma linguagem de imagens ressoando ¢ colorindo-as”, “cavando buracos” na linguagem “através de um siléneic ordinario, quando as vozes parecem terem se calado”. (N.A.) Ernest Jones rclata que Freud uma vez exclamou a princesa Maria Bonaparte “W will das Weiss?" (“O que quer a mulher?") (GAY, 1989, p. 670). (N.A.) 166 FILOES: imaginar como imagens podem fazer o mesmo ou como qualquer questionamento desse tipo pode ser mais do que apenas um ventrilo- quismo mal-intencionado ou, na melhor das hipéteses, inconsciente — como se Edgar Bergen perguntasse a Charlie McCarthy “o que querem as marionetes?”* Nio obstante, gostaria de proceder como se a pergunta valesse a pena ser feita, por um lado, como um tipo de experimento de pen- samento, simplesmente para ver o que sucede e, por outro, pela con- vicgio de se tratar de uma pergunta que ja estamos fazendo, que nio podemos evitar e que, portanto, merece ser analisada. Os precedentes de Marx e Freud me encorajam, uma vez que ambos consideravam. necess4rio que as ci€ncias sociais ea psicologia modernas tivessem que lidar com as questées do fetichismo ¢ do animismo, com a subjetivi- dade dos objetos, a pessoalidade das coisas.5 As imagens sio marcadas por todos os estigmas proprios 4 animacio e 4 personalidade: exibem corpos fisicos e virtuais; falam conosco, is vezes literalmente, as vezes figurativamente; ou silenciosamente nos devolvem o olhar através de um abismo nao conectado pela linguagem.° Elas apresentam nio apenas uma superficie, mas uma face que encara o espectador. Ainda que Marx e Freud tratem 0 objeto personificado, subjetivado e ani- mado com profunda suspeita, subordinando seus respectivos fetiches 4 critica iconoclasta, acabam por gastar grande energia em detalhar 0s processos pelos quais a vida dos objetos é produzida na experién- cia humana. E, ao menos no caso de Freud, trata-se de uma questio realmente importante a possibilidade de uma “cura” da doenca do Edgar Bergen era um célebre ventriloquo americano ¢ Charlie MeCarthy uma de suas marionetes. (N.T) Ao afirmar que as imagens tém certas caracteristicas da pessoalidade, trago a questo acerca do que é uma pessoa. Qualquer que seja a resposta 3 pergunta, deverd levar em. conta o que & que hi nas pessoas que tora possivel que as imagens as representem ¢ as imitem, A argumentacio poderia iniciar-se pela origem da palavra per-sonare (oar através), que funda a figura da pessoa nas mascaras usadas na tragédia grega. Em sum, pessoas e personalidades podem ter suas caracteristicas derivadas de imagens bem como as imagens derivam suas caracteristicas de pessoas. (N.A.) Estou citando aqui o comentario de John Berger (1980, p. 3) sobre o olhar do animal (“a gulf unbridged by language”) em seu clissico ensaio “Why look at animals’. Mais sobre esse assunto em meu texto “Looking at animals looking” (MITCHELL, 1994, p. 329-344). (N.A) W. J.T. MITCHELL 0 QUE AS IMAGENS REALMENTE QUEREM? 167 fetichismo.’ A minha posicao é a de que 0 objeto subjetivado, anima- do, de uma forma ou de outra, é um sintoma incurivel, e que tanto Marx quanto Freud devem ser tomados como guias 4 compreensio desse sintoma para, talvez, sua transformacio em algo menos danoso e patoldgico. Resumidamente, estamos presos a nossas atitudes magicas ¢ pré-modernas frente a objetos, especialmente frente 3s imagens, € nossa tarefa nio € superar tais atitudes, mas compreendé-las, para entao lidar com sua sintomatologia. O tratamento literirio das imagens é bastante ousado na cele- braco de sua personalidade e vitalidade misteriosas, muito provavel- mente porque a imagem literaria no solicita ser encarada diretamente, mas encontra-se distanciada pela mediagio da linguagem. Retratos migicos, méscaras, espelhos, estituas vivas e casas mal-assombradas esto por toda parte nas narrativas literdrias, tanto moderna quanto contemporinea, a aura dessas imagens imagindrias infiltra-se nas relagées profissionais e cotidianas com imagens reais. Os historia~ , dores da arte podem “saber” que as imagens que estudam so apenas objetos materiais que foram marcados por cores e formas, mas eles frequentemente falam ¢ agem como se as imagens tivessem senti- mentos, vontade, consciéncia, agéncia € desejo.’ Todos sabem que * Freud (1961, p. 152-157) aborda o fetichismo sublinhando que se trata de um sintoma notoriamente satisfatdrio e que seus pacientes rarameate reclamam dele. (N.A.) * Imagens magicas ¢ objetos animados sio caracteristicas especialmente notiveis do romance europeu do século XIX, aparecendo nas piginas de Balzac, Brontés, Edgard Allan Poe, Henry James e, claro, por toda parte no romance gético (ZIOLKOWSKI, 1977). Como se, a partir do encontro com sociedades fetichistas tradicionais ou pré-modernas ~ e sua destruigdo —, houvesse se produzido nos espacos domésticos vitorianos um ressurgimento pés-iluminista de objetos subjetivizados. (N.A.) ° A documentagio completa do tropo da obra de arte personificada ¢ viva no discurso histérico-artistico ocidental necessitaria um ensaio 4 parte, Tal ensaio poderia comecar considerando o status do objeto de arte nos trés “pais” candnicos da historia da arte: Vasari, Winckelmann e Hegel. Suspeito que as narrativas progressivas e teleolégicas sobre a arte ocidental nio so primordialmente focadas na conquista da aparéncia € no realismo visual, como se pensa, mas na “vida” ¢ “animago” (para usar os termos de Vasari} so insuffadas nos objetos. © tratamento oferecido por Winckelmann & midia actistica como agente de seu proprio desenvolvimento histérico e sua descri~ sao do Apolo de Belvedere como um objeto tio carregado de inimo divino que transforma 0 espectador em uma figura do Pigmaleio, uma estétua tornada viva, serio foco central de tal ensaio, assim como o tratamento que Hegel faz do objeto artistico como uma coisa material que recebeu o “batismo do espirito”. (N.A.) 168 FILOESTETICA uma foto de sua mae nio é algo vivo, mas relutariam em destrui-la. Nenhum individuo moderno, racional ¢ secular considera que ima~ gens devem ser tratadas como pessoas, mas sempre estamos dispostos a fazer algumas excegdes pata casos especiais. Tal atitude nio esta restrita a valiosas obras de arte ou imagens que possuam um significado pessoal. Todo executivo do ramo da propaganda sabe que algumas imagens, para usar o jargio, “tém pernas”” — ou seja, t&m a surpreendente capacidade de gerar novas diregSes ¢ torgdes em uma campanha, como se tivessem inteligéncia e propésitos préprios. Quando Moisés pede a Aario que explique como fez o bezerro de ouro, Aario responde que simplesmente jogou © ouro dos israelitas no fogo e “saiu este bezerro” como se fosse um autémato autogerado.'' Evidentemente, alguns idolos também “tém pernas”.!® A ideia de que as imagens tém um poder social ou psicolé- gico proprio é, de fato, o cliché reinante nos estudos contemporineos em cultura visual. A alegagio que vivemos em uma sociedade do espeticulo, vigilancia e simulacro nio é uma mera intuigao da critica cultural. Mesmo um icone do esporte e da propaganda como André Agassi pode afirmar que “imagem é tudo” ¢ ser compreendido como alguém que fala no apenas a respeito das imagens, mas pelas imagens, como alguém que é, ele proprio, “nada mais do que uma imagem”? Nio hé nenhuma dificuldade, portanto, em demonstrar que a ideia de uma personalidade das imagens (ou, no minimo, um ani- mismo) encontra-se tio viva no mundo moderno quanto outrora em sociedades tradicionais. A dificuldade esta em saber 0 que dizer a seguir. Como as atitudes tradicionais frente a imagens — idolatria, Expressio propria do ramo da propaganda, tradugio da expressio inglesa have legs (NT) " Pier Bori sublinha que o relato acerca do “autoengendramento” do bezerro era uma parte crucial da expiagio da culpa de Aario (e da condenagio do povo judeu) pelos pais da Igreja. Macirio, o Grande, por exemplo, descreve 0 ouro atirado ao fogo “transformado em idolo como se 0 fogo imitasse a decisfo [do povo|” (BOR, 1990, p- 19). (NA) ? Ow asas. Meu colega Wu Hung me afirma que as estituas voadoras do Buda sio um. fenémeno comum nas lendas chinesas. (N.A.) © autorsse refere a uma propaganda de maquinas fotogrificas Cannon do inicio dos anos 1990 estrelada pelo tenista André Agassi. (N.T.) W. J. T. MITCHELL 0 QUE AS IMAGENS REALVENTE QUEREN!? 169 fetichismo ¢ totemismo ~ sio recolocadas na sociedade moderna? Seria nossa tarefa, como criticos da cultura, desmistificar essas ima~ gens, destruir idolos modernos, expor os fetiches que escravizam os individuos? Ou seria nossa tarefa discriminar 0 verdadeiro do falso, 0 saudavel do doentio, © puro do impuro, imagens boas de imagens mas? Sera que as imagens sio um terreno onde ocorrem disputas politicas, onde uma nova ética pode ser articulada? Ha uma enorme tentagdo em responder tais perguntas com um ressonante “sim” e tomar a critica da cultura visual como uma estratégia direta de intervenco politica. Esse tipo de critica procede expondo as imagens como agentes de dano e manipulacio ideolgica. Em um extremo encontra-se a tese de Catherine McKinnon (1987, p. 172-173 e 192-193), segundo a qual a pornografia nfo é apenas a representacio da violéncia e da degrada¢io da mulher, mas um ato de degradacio violenta e que, portanto, imagens pornogrificas ~ espe- cialmente fotografias e imagens cinematogrificas — sio, elas préprias, agentes dessa violéncia. Existe também 0 argumento familiar e menos controverso na critica politica da cultura visual: 0 cinema hollywoo- diano constréi a mulher como um objeto do “olhar masculino”; as massas iletradas sio manipuladas pelas imagens da midia visual ¢ da cultura popular; pessoas de cor sio sujeitadas 4 esteredtipos grificos ¢ 3 discriminagio visual racista; museus de arte sio uma forma hibrida de templo religioso e banco, nos quais os fetiches da mercadoria sio exibidos em rituais de adoragio publica, designados a produzir mais~ valia estética e econdmica. Ainda que todos os argumentos anteriores tenham algum grau de verdade (eu mesmo sou responsivel por formular muitos deles), ha algo de radicalmente insatisfatrio neles. Talvez o problema mais ébvio seja que a exposicao e demoli¢ao critica do poder vil das imagens é to facil de ser realizada quanto ineficaz. Imagens so antagonistas politicas populares, pois é possivel posicionar-se contrariamente a elas €, no entanto, no final das contas tudo permaneceré praticamente idéntico.* Amplos sistemas podem ser depostos, um apés 0 outro, ™ Um forte exemplo dessa politica de sombras a inditstria de testes psicolgicos destinados a provar que os jogos de videogame sio causadores de violencia juvenil, Enormes quantias de dinheiro piblico sio gastas anualmente em “pesquisas” (sic) 170 FULdesTeTiCa sem que isso surta nenhum efeito na cultura visual ou politica. No caso de McKinnon o brilhantismo, paixao ¢ futilidade da empreitada sio evidentes. As energias de uma politica progressista ¢ humana, que busca justica social e econémica, estariam sendo realmente bem empregadas em uma campanha que tem como objetivo erradicar a pornografia? Ou tal empreitada seria, no melhor dos casos, um mero sintoma de frustraco politica e, no pior, um desvio da energia politica progressista pela colaboragio com formas dibias de reagio politica? Ou, melhor dizendo, o tratamento que McKinnon oferece as ima- gens, como se tivessem agéncia, é um tipo de testemunho de nossa incorrigivel tendéncia a personificar ¢ animar imagens? A futilidade politica poderia levar-nos 4 reflexio iconolégica? Em todo caso, é tempo de puxar as rédeas dos argumentos acerca das consequéncias politicas da critica 4 cultura visual e de moderar nossa retérica sobre o “poder das imagens”. Certamente, as imagens nio sio desprovidas de poder, mas podem ser muito mais frigeis do que supomos.,O problema é refinar ¢ complexificar nossa estimativa acerca desse poder e do modo como ele se exerce. E por esse motivo que estou deslocando a pergunta de o que as imagens fazem para 0 que elas querem, do poder para o desejo, do modelo de poder domi- nante, a0 qual devemos opor, ao modelo do subalterno que deve ser interrogado ou, melhor, convidado a falar. Se o poder das imagens é como 0 poder dos fracos, isso poderia explicar por que seu desejo to forte: para compensar sua impoténcia. Como criticos, gostarfa- mos que as imagens fossem mais fortes do que verdadeiramente sio para, assim, conferirmo-nos uma sensagao de poder ao confront4-las, expé-las ¢ aclamé-las. Por outro lado, o modelo subalterno das imagens revela a dialé- tica entre poder e desejo nas relagdes com as imagens. Quando Fa- non reflete a respeito da negritude, a descreve como uma “maldi¢io corporal” arremessada na imediatidade do encontro visual: “Olhe, sobre o impacto de videogames, apoiadas por interesses politicos que preferem um bode expiatério icdnico, “cultural”, do que atengio aos verdadeiros instrumentos da violéncia, a saber, armas de fogo. Para maiores detalhes, ver conferéncia proferida na Universidade de Chicago, “Playing By The Rules: The Cultural Policy Challenges of Video Games”, parte do evento The Arts and Humanities in Public Life, em 26 27 de outubro de 2001. (N.A.) W. J. T. MITCHELL 0 QUE AS IMAGENS REALMENTE QUEREM? VW. um negro!” (FANON, 1967, p. 109). Mas a construcio do esteredtipo racial e racista nao € um simples exercicio da imagem como técnica de dominagao. Antes, trata-se da atadura de um n6 que une tanto © sujeito quanto 0 objeto do racismo em um complexo de desejo e édio."* A violéncia ocular do racismo parte seu objeto em dois, tornando-o simultaneamente hipervisivel ¢ invisivel,'° um objeto de “abominacio” e “adoragio”, nas palavras de Fanon.” Abominacio € adoragdo sio precisamente os termos usados na Biblia para condenar a idolatria: é exatamente pelo fato de 0 idolo ser adorado que deve ser abominado pelo iconofébico.'* O idolo, como o homem negro, é to desprezado quanto adorado, desvalido por ser insignificante, um escravo, e temido por ser uma forca desconhecida ¢ sobrenatural. Se a forma mais dramética do poder da imagem na cultura visual & a idolatria, ela também é uma forga consideravelmente ambivalente e ambigua. Enquanto a visualidade e a cultura visual estiverem infec- tadas por um tipo de “culpa por associagio” com a idolatria e o mau- olhado do racismo, no é de se admirar que o historiador e intelectual Martin Jay (1993) possa considerar o préprio “olho” constantemente “baixo”” na cultura ocidental, e a visio repetidamente “denegrida”. Se as imagens siio pessoas, endo, sio pessoas de cor, marcadas, e 0 escindalo da tela completamente branca ou preva, da superficie em branco, sem marcas, apresenta uma face bastante diferente. Para uma andlise sobre esse “n6" (double bind), ver Homi Bhabha, “The Other Ques- tion: Stereotype, Discrimination and Discourse of Colonialism” (1994, p. 66-84), (N.A} O romance The Invisible Man, de Ralph Ellison, trata dese paradoxo: ¢ exatamente por ser hipervisivel que © homem: invisivel é (em outro sentido), invisivel. (N.A) “Para nés, 0 homem que adora o Negro ¢ tio doente quanto aquele que © abomi-~ na"(FANON, 1967, p. 8). (N.A.) Ver, por exemplo, 0 caso do idolo de Astoreth (Reis 23:13 / Isaias 44:19). A versio ne do Dicionirio Oxford de Inglés oferece uma ctimologia duvidosa: “Abo- minavel (abominable), comumente escrito abhominable, ¢ explicado como ab homine, “afastado do homem, inumano, bestial”, A associagdo da imagem animada com bestas €, suspeito, um trago caracteristico do desejo pictérico. Abominacio também é am termo regularmente aplicado a animais impuros ou malditos na Biblia. Sobre o idolo como uma imagem monstruosa, composicio impossivel de formas que combinam caracteristicas humanas ¢ animais, ver Carlo Ginzburg (1994, p. 55, 67). (N.A} on-| Da expressio inglesa downcast eyes, utilizada por Martin Jay (1993). (N.A.) 172 FILOESTETICA Quanto ao género das imagens, est4 claro que a concep¢io- padrio € que estas sejam femininas. Segundo 0 historiador da arte Norman Bryson (1994, p. xxv), as imagens “constroem sua audiéncia ao redor de uma oposi¢io entre a mulher como imagem e o homem como 0 portador do olhar” — no imagens de mulheres, mas imagens ’ como mulheres.”” A pergunta “o que as imagens querem?” é, portanto, inseparavel da pergunta “o que querem as mulheres?”. Muito antes de Freud, “O conto da mulher de Bath”, de Chaucer, coloca em cena uma narrativa construida em torno do questionamento “o que as mu- Theres mais desejam?”. A pergunta é posta a um cavaleiro condenado pelo estupro de uma dama da corte, a quem foi concedido um ano de suspensio da execucdo de sua pena de morte para que va em busca da resposta correta. Caso ele retorne com a resposta errada, a sentenga de morte ser executada. O cavaleiro recebe muitas respostas erradas das mulheres que entrevista: dinheiro, reputacio, amor, beleza, belas roupas, prazer na cama, admiradores. A resposta correta, no entanto, & maistrye, termo do inglés medieval que indica a ambiguidade entre a dominacio de direito ou por consentimento e 0 poder advindo de uma forga superior ou astticia." A moral do conto de Chaucer é que o dominio consensual, livremente outorgado, é melhor, mas o narrador do conto, a cinica e mundana mulher de Bath, sabe que o que as mulheres querem (ou seja, 0 que lhes falta) é poder, ¢ que clas © tomariio da forma que for. Qual é a moral para as imagens? Caso se pudesse entrevistar todas as imagens que se encontre em um ano, quais respostas clas da- riam? Certamente, muitas imagens dariam as respostas “erradas” do conto de Chaucer, isto é, as imagens pediriam um alto valor para si, serem admiradas e louvadas por sua beleza, adoradas por muitos aman- tes. Mas, acima de tudo, elas gostariam de exercer alguma maestria (maistrye) sobre 0 espectador. O critico e historiador da arte Michael Fried resume a “convencio primordial” da pintura nos seguintes ter- mos: “uma pintura deve, primeiramente, atrair o espectador, depois » Um texto central acerca do género da imagem ¢ do olhar 6, certamente, o “Visual Pleasure and Narrative Cinema” de Laura Mulvey (1975). (N.A.) > Meus agradecimentos a Jay Schleusener por sua ajuda com a nogao chauceriana de maistrye. (N.A) W. J.T. MITCHELL 0 QUE AS IMAGENS REALMENTE QUEREM? 173 prender seu olhar e finalmente encanti-lo, Uma pintura deve cha- mar © espectador, paralisélo e sustentar sua atencio, como se o espectador estivesse impossibilitado de mover-se, como se estivesse enfeitigado” (Friep, 1990, p. 92). Em suma, 0 desejo da pintura trocar de lugar com o espectador, fixé-lo em seu Ingar, paralisé-lo, tornando-o assim uma imagem para o olhar da pintura, 0 que po- deriamos chamar de “efeito Medusa”. Esse efeito é, provavelmente, a demonstracio mais clara que temos que © poder das imagens e © poder das mulheres sio modelados um 4 semelhanga do outro, ¢ que se trata de um modelo, tanto de imagens quanto de mulheres, abjeto, mutilado e castrado.* O poder que desejam é manifestado como falta e no como possessio. Sem divida, poderiamos estabelecer uma relacio entre imagens, feminilidade e negritude de forma muito mais elaborada se relacio- nassemos outras variages da subalternidade das imagens com outros modelos de género, identidade sexual, local cultural, e até mesmo de identidade entre espécies (suponha, por exemplo, que os desejos das imagens fossem modelados a partir dos desejos dos animais? © que Wittgenstein queria dizer com suas frequentes referéncias a certas s queer”), Mas, pelo momento, gostaria simplesmente de retornar ao questionamento de penetrantes metforas filosficas como “imager Chaucer e ver 0 que acontece se questionarmos as imagens a respeito de seus desejos em vez de simplesmente olharmos para elas como veiculos de significados ou instrumentos de poder. Comecemos por uma imagem que é como um livro aberto, 0 famoso cartaz de recrutamento do exército norte-americano durante a Primeira Guerra Mundial, Uncle Sam, de James Montgomery Flagg (Fig, 1). Trata-se de uma imagem cuja demanda e mesmo seu desejo parecem ser absolutamente claros, focados em um objeto especifico: ® Ver Neil Herz (1983) e minha argumentagio acerca da Medusa em Mitchell (1994 p. 171-177). (N.A) ® No entanto, termo queer, como utilizado por Wittgenstein (1953, p. 79-80 ¢ 83-84 niio significa de forma alguma perverso (wtdematirich), mas sim algo absolutament= natural (ganz natilich), ainda que estranho (selisam) ou curioso (merkwurdig). (N.A. Na traducio inglesa, os vocdbulos alemies supracitados sio traduzidos por queer A diferenciagio de significados 6 estabelecida por Mitchell e nio por Anscombe. tradutor para o inglés desta obra de Wittgenstein, (N.T) 174 FILBESTETICA “vod”, ou seja, jovens homens admissiveis para o servigo militar." © objetivo imediato da imagem parece ser uma versio do efeito Medusa: cla interpela o espectador verbalmente ¢ tenta paralisé-lo com seu olhar penetrante ¢ (seu elemento pictérico mais extraordinério) com 0 efeito de proximidade de sua mio e seu dedo que aponta ao espec- tador, acusando-o, designando-o e comandando-o. Mas 0 desejo de paralisi-lo no passa de um objetivo transitério e momentineo. Seu objetivo a longo prazo é emocionar e mobilizar o espectador, envii-lo a0 “posto de alistamento mais préximo” e, finalmente, fazer com que atravesse 0 oceano para lutar e, possivelmente, morrer por seu pais FOR U.S.ARMY NEAREST RECRUITING STATION Figura 1 ~ Montgomery Flagg, Uncle Sam “Quero voc’ para o exército dos Estados Unidos. Posto de alistamento mais proximo” * Tnvoco aqui distineio lacaniana entre desejo, demanda e necessidade. Jonathan Scott Lee (1991, p. 58) oferece uma glosa interessante: “desejo é aquilo que é manifesto no intervalo em que a demanda o esvazia, é [...] aquilo que é evocado por uma demanda para aléra da necessidade por ela articulada”. Ver também Slavoj Zizek (1992, p. 134). Certamente, o verbo “querer” pode sugerir qualquer um desses significados (descjar, demandar, necessitar), dependendo do contexto. Zizek me fez perceber que seria perverso ler 0 “Eu quero vocé" do Uncle Sam como “Eu desejo voce” € nio como ‘uma expressio de necessidade ou demanda, No entanto, em breve ficari evidente 0 quio perversa é essa imagem! (N.A.) W, J.T. MITCHELL 0 QUE AS 175

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