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Celso Castro A Proclamagao da Republica Jorge Zahar Editor Ria de Janeiro Copyright © 2000, Cato Casco Todos os dics reervados Arad ne tradable To tedo ou em pure, cons Vago “do copih fh 5.988) 2000 Dirsitos pes eas ego eoncatads com doe Zahir Edeor ida ‘us Mésico 31 sabrloja 2003-144 Ro de Janis RJ sels (21) 2400226 1 fe 21) 962.5123 ‘mall neOtahaccombe Capa: Carl Sie Sérgio Carmpante usuago da caps "A Retalao brah” dsr de Gellenger Vins da eoero:Hsrap de Debret Compas clara Ty Tens Eligbes Gries Lda limps: Hamburg Danaley Cece talons CiP-Bael, Caaloaco-nofonse Sindcaro Naconl dar Eanes de is ‘Caco, Cao C3sp A Prcmasto da Republi / Caso Case. — Rio ‘de Santo Jorge Zaher E2000, 1L,— (Dessbrindo o Bas) Inca bibiogrfia ISBN 55.7110-5340 |. Bail Hindi Protmao da Rep, 189, 2 Bol Hsu ~ 18891 Thoth Sie cop a.a5, se.1617 DU 981-1889" Sumario Introdugio 7 ‘A mocidade militar 11 ‘A Questiéo Militar 28 Deodoro ¢ Benjamin 32 A procura de um lider 40 A conspiragio 60 ‘Avcerra da promissio? 76 Cronologia 80 Referéncias e fontes 82 Sugestbes de leitura 85 Sobre 0 autor 86 Ilustragdes (entre p.48-49) Créaitos das ilustragées 1, Foto da Escola Milita, Colegio Mare Ferres(gentilmente cedida por Gilberto Ferre) 2, Fotos de Benjamin Constant. Fundasio Getulio Vargas! (CPDOC (Arquivo Horez Barbosa) 3. Pacto de Sangue. Ata da sessio do Clube Militar de 9:11.1889. Coleséo de Paccos de Sangue e mensagens ‘ecebidos por Benjamin Constant (reproduzide no Gabi- rete Forocarcogrifico do Ministério da Guerra, 1939) 4. "A Revoluggo Brasileira” (desenho). Fundasia Geculio ‘VargasiCPDOC (Arquivo Quintin Bocaiiva) Introdugéo 0 15 de Novembro é hoje um dos feriados nacionais ‘menos evocativos. Nao hé um heréi a ser lembrado, como Tiradentes no 21 de Abril, nem paradas militares cou desfiles de estudantes, como no 7 de Setembro, Nem mesmo uma imagem consagrada, como a da forca, ou um grito, como o do Ipiranga: apenas uma “proclama¢io", um anincio ptiblico de que a Monar- ‘quia havia sido substiuida pela Repiiblica. Sem luta, sem sangue, sem mortes. Para os que na época defen- diam 0s republicanos, prova cabal de que o Império jé estava hd muito com os dias contados ¢ que a nova forma de governo amadurecera no espirito do povo brasileiro. Para os monarquistas, a Proclamagio fora apenas uma quartelada que inseria 0 Brasil no triste quadro das outrasnagéessul-americanas, marcadas por intimeros pronunciamientos militares. Na expressio de ‘Aristides Lobo, um jornalista republicano da época, tratara-se de um evento a0 qual a maioria da populagéo assistira “Gestilizada, axOnita, surpresa, sem saber 0 que significava.” caso casttO O ficil sucesso do golpe republicano coloca algumas armadilhas & nossa percep histérica do evento. Po- derfamos imaginar que a Repiblica era inevitével, uma rapa necessiria da “evolugio” da socicdade brasileira ‘Também seria cil pensar que os principais protago- nistas do movimento — na linguagem da época, 2 “classe militar” —aruaram de forma unida e coesa, Se assim tivesse sido, seria fécil explicar a fala de reagio por parte do governo ¢ © modo indiferente com que a maioria da populagzo assistiu aos acontecimentos. Nio é essa a hist6ria que se contard neste liveo. Para termos um quadro mais preciso do que se passou em 15 de novembro de 1889, é preciso, em primeito lugar, ecuperar 0 grau de risco politico envolvide no em- - preendimento-Nae havi ceteza quanco aos resulta- dos do golpe de Estado, principalmente porque nfo havia unidade encte os militares. De faro, apenas uma Pequena fragio do Exércto, ¢ com caracteristicas mui- ‘wespecifica, esteve envolvida na conspirasdo republi- Ogolpede 1889 —owa "Proclamasio da Repaibli- «<2, como passou & histéria— foi um momento-chave ‘no surgimento dos militares como protagonistas no eenério politico brasileiro, A Republica entéo “procla- mada” sempre esteve, em alguma medida, marcada por esse sinal de nascenga (ou, para muitos, pecado origi- nal). Havia muitos republicans civis no final do Im- pério, mas eles estiveram praticamente ausentes da 8. ‘A moctausgio od REROALEA conspiragio. O golpe republicano foi militar, em sua ‘organizagao e execucio, No entanto, foi fruro da ago de apenas alguns militares. Quase nfo houve partcipa- ‘si0 da Marinha, nem de individuos na base da hierar- quia milicar (as “pragas”, como os soldados ou sargen- 03). Mesmo em relagio ao Exército, também estiveram ausentes oficiais situados no topo da hierarquia. Den~ te 0s generais, apenas Deodoro esteve presente. Os oficiais superiores podiaim ser coniados nos dedos, € 0 que mais se descacou entre eles nfo exercia posicio de comando de tropa: trata-se do tenente-corone ‘min Constant, professor de matemnética na Escola Mi- lias Quem foram, entio, os milicares que conspiraram pela Republica ese dirigiram a0 Campo de Santana na manha do dia 15 de novembro de 1889 dispostos a derrubar 0 Império? Basicamente, um conjunto de oficiais de pacentes inferiores do Exército (alferes-alu- nos, enentes € capities) que possula educagio superior ou “cientifica” obtida durante o curso da Escola Mili- tar, entdo localizada na Praia Vermelha, Rio de Janeiro, Na linguagem da época, eles eram a “mocidade mili- Minha versio dos acontecimentos difere em pontos importantes das opiniées disponiveis na bibliografia historica sobre o tema. Em algumas vers6es, Deodoro aparece unindo simbolicamente todo 0 Exército, ou- tras vezes representando apenas os oficais mais ligados a caso casa a tropa, chamados de “tarimbeiros”, getalmente sem estudos superiores ¢ que consticulam a maior parce da oficialidade. Minha viséo de Deodoro, como veremos adiante, € de um chefe militar levado a0 confronto com © governo, motivado pelo que imaginava ser a defesa da “honra” do Exército e por algumas particu- laridades da politica do Rio Grande do Sul, que havia chefiado ha pouco; nio por conviesSes republicanas. Pouco antes do golpe, reuniu-se em torno de Deodoro lum grupo muito pequeno de oficiais de patentes mé- dias. ‘Todas as fontes disponiveis destacam a lideranga que Benjamin Constant, por er sido durante muitos anos seu professor de matemética, exercia sobre a “mocidade militar” formada na Escola Militar da Praia Vermelha, Ele seria 0 “mescre”, “lider”, “catequizador” ou “apse. tolo” desses militares. Para varios aucotes, principal- mente os vinculados 3 cradicio positvista, Benjamin ¢ seus jovens lidersdos teriam sido o principal elemento 1a conspiragio. Minha perspectiva, no entanto, foca- liza nao o “lider” ou “mestre”, mas seus pretensos “liderados" ou “discfpulos”, Ao invés de assistitmos a Benjamin Constant catequizando os jovens da Escola Milicaz, enconcraremos justamente a “mocidade mil tar" seduzindo-o ¢ convertendo-o para. ideal republi cano. Auibuo i “mocidade milicar”, portanto, o papel de protagonista da conspiracéo republicana no interior do Exércivo -10- ‘A pocvangho on sePoBUCR As perguntas que tentaremos responder a seguir si: quem eram esses militares? Por que ze envolveram ‘numa conspiragio republicana? Como o movimento se desenvolveu e levou ao golpe que pés fim ao Império? A “mocidade militar" Benjamin Constant recebeu, nos dias que antecederamn 20 golpe, seis abaixo-assinadbos secretos que posterior- mente ficaram conhecidos como “pactos de sangue’, pois Ihe garantiam solidariedade incondicional até a morte em sua atuacio como representance da “classe militar” contra governo, Um exame dos 173 signaté- fios desses documentos permite-nos ter uma boa nocio dde quem cram seus “lideradas”, Henze eles apenas dois oficiis superiores, em meio a 13 capities, 37 renentes, 120 alunos de escolas militares (incluindo alferes-alunos) e um cuja patente nio foi possivel iden- tificar. Ou seja, 2 maioria de militares em inicio de catreira ¢ esmagadora, Examinando as unidades a que eles pertenciam, temos 1 10 alunos da Escola Militar da Praia Vermelha ou da Escola Superior de Guerra (um desdobramento da anterior, ceiadi em'1869) « 48 da 2 Brigada do Exército, além de 14 nio especificados As duas excolas de formacio de oficiais respondem, dessa forma, por aproximadamente 2/3 do total, ¢ a 2 Brigads, com quase todos os oficiais tendo sido te nso castno formados na Escola Militar, pelo tergo restante. Desse modo, praticamente a totalidade dos que assinaram os “pactos de sangue” é composta de militares que ainda estudavam nas duas escolas superiores de formagao de oficiais do Exército e oficiais das pacentes inferiores (Gencne capi) rectm-gresosdesss icles i- Consegui estabelecer alguns dados biogrificos para tuma parte dos assinantes desses “pacros de sangue”. marcante a predominancia de pessoas oriundas das provincias do Norte do pais (da Bahia 2o Amazonas), excetuando-se uma representacio significativa (raver entte 15% ¢ 20%) de alunos natursis do Rio Grande do Sul, Além disso, podemos ver que 0 membro tipico da “mocidade militar” tinha menos de 30 anos a0 ser proclamada a Republica eestudou na Escola Milirar da Praia Vermelha no periodo posterior a 1874 (quando a Escola foi reaberca apés ter estado fechada durante a Guerra do Paraguai). Muitos ainda eram alunos em 1889; se jd fossem renentes, vexiam sido promovidos pouco antes. E portanto fundamental, para compreen- dermos a formasao desses jovens, conhecer sua expe- riéncia na Escola Miliar da Praia Vermelha. Para a maioria dos estudantes militares, que vinha das provincias menos desenvolvidas do pais, chegar & Corte pela primeira vez implicava néo apenas um deslocamento espacial, mas principalmente cultural Ocorria 0 contato com umm tempo social distinto: mais 2. A Poctangho 04 REPUBUCA “moderno”, “adiantado" ¢ “veloz”, a fazer contraste ‘com um tempo mais “lento” e “atrasado”, quase ainda colonial, das provincias. Através das cartas que o aluno José Bevilaqua, de 16 anos, enviou & familia, em uma pequena cidade do Cearé, logo apés chegar 20 Rio em 1879, podemos ver o quanto a cidade fascinava muitos de sua geragio. Suas primeiras impressBes na Corte sio de deslumbramento. Contou da primeira vex que an- dou de bonde, que foi ao teatro ¢ do fondgeafo, uma “maquina que fala”, “invengio maravilhosa” que o- nnhecera a0 passear pela rua do Ouvidor, rua da moda ¢ coragio da cidade. Ele sintetiza assim 0 novo mundo que descobria: “O Rio de Janciro ¢ 0 Brasil ea rua do Ouvidoréo Rio de Janeiro. Tudo aqui muito bonito.” A preferéncia € clara: o Brasil passa a ter no Rio de Janeiro — ou melhor, na cua do Ouvidor — sew espelho, € a estar mais préximo da Europa que dos sertbes. Afastados da terra natal, a0 ingressar na Escola Militar esses jovens passavam a ter como grupo bésico de referéncia no mais suas farnilias e sim os outros alunos, entre os quais se desenvolvia intensa convivin- cia cotidiana. O inicio era dificil. © novato precisava softer com resignacio o ito dos trotes, durante 0s quais era sistematicamente submetido a situagSes humilhan- tes. submissio, no entanto, aproximava-o dos altnos vveteranos, principais responsiveis pela socializagao dos novos alunos no ambiente cultural da Praia Vermelha. 13. caso cast Havia uma marcante coneentragio de interacbes dentro do préprio grupo de alunos, reforgando seu espltito-de-corpo. £ nocivel, em seus relatos, a palidex dda imagem que os alunos guardam de seus professores ¢ comandantes, em contrase com a vivida lembranga da interasio com colegas. Afastados de suas familias por muitos anos ¢ desde cedo, tinham em seus pares 0 grupo fundamental As interagbes com colegas nos totes, nos momentos de lazer, nos alojamentos em diversas associagbes recreativas ¢literrias criadas e mantidas pelos préprios alunos contribuiam em grande parte para a construgdo da identidade social dos jovens formados na Praia ~ Vermelha. Outros dois poderosos elementos de coesio social ram a mentalidade“cientificists” predominance na cultura escolar ¢ a imporsineia dada a0 mérito pessoal, Esses elementos culeurais oriencaram a ago _politica que levou ao fim da monarquia e instauicio cde um regime republicano no Brasil. A supervalorizagao da cigncia, ou “cientificsmo”, expressava-se na prépria maneira pela qual os alunos se referiam informalmente & Escola — “Tabernculo da Ciencia” —, deixando desde logo evidente a alta estima que tinham pelo estudo das ciéncias. £ importante observar que a Escola Militar foi durante muito tempo 4 tinica escola de engenharia do Império. Ela era co- ahecida por seu alto grau de exigéncia, especialmente devido 20 forte ensino de macemética, ¢ 0s estudos oto ae i | ‘npnocLAMgso bx RePUALCA teéricos mereciam maior atengio do que os estudos priticos. Havia uma elara superioridade no curriculo do estudo das armas chamadas “cientificas” (arilharia ¢ engenharia) sobre os estudos de infantatiae cavalara, que correspondiam aos anos iniciais do cusso. Basta dizet que 05 alunos que seguiam 0 curso supetior ‘completo, decinco anos, recebiam o titulo de “bacharel ‘em mateméticas¢ ciéncias fsicas” Dessa forma, era enorme o fosso entre os oficiais formados na Escola Militar e o restance (a maioria) da oficialidade do Exército, sem estudos superiores, mais ligados & vida na caserna, com a tropa. O curso na Escola Militar nao era obrigatério pars o ingresso no oficialato ¢ a ascensio hierdrquica, De fato, a carreira militar ndo oferecia vantagens ou boas oportunidades para os jovens “cientificos". Na falta de perspectivas consideradas atraentes para a ascensio profissional dentro do Exército, cles passavam a interessar-se menos pela profissio militar (muitas vezes a falta de vocagio era assumida desde o inicio) ¢ mais por seu pertenci- mento a lite intelectual da sociedade brasileira, Era ‘com os membros dessa elite que disputavam, social ¢ simbolicamente, espaco poder. Durante todo 0 Impétio, foi clara a hegemonia dos bacharéis em direito no interior da elite. Enquanto 0 status social dos militares era baixo, 08 jovens bacharéis em direito tinham caminho aberto para cargos e fun- 96cs piiblicas em todos os quadros administrativos Dildo politicos do pais. Os jovens “cientificos” do Exército tinham que lutar para situar-se melhor dentro de uma sociedade dominada pelos bacharéis em direito. [Nos escritos dos jovens milicares “cientificos” da epoca, a oposigéo aos bacharéis em direito aparece claramente. A falta de elementos “cientificos” é apon- tada como o principal defeito da Formacio dos bacha- réis em direito, Euclides da Cunha, por exemplo, entio uum jovem aluno de 20 anos, eritica em um artigo © “criste quadro das nossas academias de direito, onde cestuda-se a sociedade sem as nogées das mais simples leis naturais”, O estudo das citncias, e em especial da matemdtica, era um poderoso elemento simbélico de diferenciagio para os estudances militares da época, um elemento constitutivo de sua identidade social A mentalidade cientifcista predominance nas déca- das finais do século XIX via 0 mundo social como redutivel 20 plano dos fendmenos fisicds e naturais. ‘Através da incorporagso da historia & naruteza, pinci- palmente através da nocio de evolupao, os distintos valores morals, politicos e filosdficas eram vistos como manifestagbes dos diferentes estigios pelos quais passa- vaa humanidade. Essa visio alimentava um sentimento desuperioridade intelectual por parte dos cientificistas, que se consideravaim produtos, naturalmente, do esté- gio mais “adiantado” do desenvolvimento humano. © tipo intelectual caracteristico do cientificismo imperou ma segunda metade do século XIX, encarnado “16+ a pacuagho Ok RERIBUCA cm diversas tendéncias intelectuais: materilismo, po- sitivismo, darwinismo, evolucionismo, monismo. To- dos procuravam descobrir a lei que rege 0 progtesso, que determina a evolucio. Com o positivismo de Comte, por exemplo, ela tomaria 2 forma da lei dos tr8s estados — teoldgico, metafisico ¢ positive —, que explicaria toda a hist6ria ¢ desembocaria na consticui- «fo de uma religito, a da Humanidade. Com Darwin ¢ Haeckel, essa lei seria a da Iuta pela vida e da sobre- vivencia dos mais aptos. Com Spencer, a lei apareceria sob a forma da evolugéo do homogéneo para o hetero- igéneo, da crescente diferenciacio. Aplicadasi realidade brasileira, essasdiferences douttinas ciemtificistas apon- ravam num tinico sentido: a identidade entre o nacio- nal ¢ 0 universal. Desse modo, a situagio hist6rica «specifica do Brasil era pensada como uma crapa de um percurso jd realizado pelas nagées “mais adiantadas’, Para o cientificista, cumpria, pois, apressar a marcha do progresso do pais, de forma a que ele passasse a ‘tomar parte, ativamente, na histéria universal Os eseritos dos alunos da Escola Militar revelam um ambiente intelectual diversificado. Contrariando uma versio comum em nossa historiografia, os positivistas ‘ortodoxos,filiados’ Igreja Positivista, nunca formaram um grupo significativo entre os alunos. O cientifcismo predominante era uma miscura eclética de diversas doutrinas — positivismo, evolucionismo, monismo —,€0 mais importante para os jovens “cientificos” era 7 eso cat A enocuawagho 0a AEPUBUCA seu o espirto geral. Asdiferengas entre os aurores eram minimizadas pelo que afirmavam em comum: a fé no rogresto ¢ na posicéo de destaque devida & ciéncia para se atingir uma visio correta da vida social e da politica. Junto ao cientificismo, avalorizagio do prineipio do —mérito foi outro elemento presente na base da identi- dade social da “mocidade militar” que ajudava a orien- tar sua agfo polftice. O desenvolvimento de valores ‘meritocriticos nos Exérctos profissionais modernos ¢, cspecificamente, nas academias militares foi um fend ‘meno histérico basrante difundido. Idealmente, 0 po- der baseado no parentesco ou na riqueza passava a subordinar-se 20 mérito dos individuos, aferido no parte devido as suas qualidades guerreiras, demonstta- 2 ene diversas vezes nos campos de batalha, Sua posicio durante coda 2 Questio Militar fi a de am sroupier uj vida se mantevevinculada 20 Exécito, que esata schdo ameagado pelos politicos —ou “casacas”, como sSemumava dizez exemplo mais dramstico desse ipo Ge pensamento ovorseria ne dia 15 de novernbro de 232+ A caMagAo D8 REPUBLICA + 1889, quando, dirigindo-se a0 visconde de Ouro Pre- “to, cujo gabinete vinha derrubar, Deodoro afirmou que ‘0 Exército era maltratado pelos politicos, emborafosse 4 tinica instituigao do pais que sabia sacrificar-se pela Pétria. Aludiu em seguida aos servigos que prestara no campo de batalha, lembrando que certa ver, na Guerra ~~ do Paraguai, passara és dias ¢trés noites combatendo rum pantanal, sactficio que ele — Ouro Preto, ali representando todos os “casacas” — no podia avalia. ‘As posigdes de Deodoro ¢ Peloras em defesa da hhonra militar foram partlhadas por alguns oficiais de patentes intermedidcias, entre eles alguns oficais supe- tlores como Cunha Matos, Sena Madureira ¢ Benja- > { min Constant, Os militares dessa geragao participaram EE da Guerra do Paraguai como oficiais subalternos. Du- 4 rante os dezesseis anos do periodo entre o final da guerraea Questio Militar, eles,em geral sofreramcom. ~ promogées lentas, falta de aumento dos vencimentos ¢ 75 0 reduzido orgamento destinado ao Exército. A esse © 5 quadro pouco animador devemos acrescentar a falta de interesse politico dos sucessivos governos que se segui- ram 3 guerra em implementar medidas de reforma ¢ modemnizagio do Exército. Isso abri espaco, especial-~ ‘mente apés a Questéo Militar de 1886-87, ao cresci- ‘mento do movimento radical da “mocidade mili” Surgem nessa época um novo espago institucional — © Clube Militar — e um novo lider — Benjamin Constant. +33. caso caso ‘A Questio Militar marcou o ingresso, na cena politica, do entio major Benjamin Constant Bote- tho de Magalhdes. Pela primeira vez ocorteu 0 en~ contro, em espago piiblico ¢ fora das salas de aula, da “mocidade militar” com o “Ds, Benjamin”, como era chamado pot seus alunos. Esse encontro terd «\ importantes desdobramentos. A partir do final de 1886, a biografia de Benjamin Constant no pode mais set desvinculada de sua relagio com a “moti dade militar”. E no “Dr. Benjamin” que os jovens oficiais “cientificos” irio se fixar na busea por um lider da conspiracéo republicana. Benjamin Constant (1837-91) traziaem sua biogra- fia, porum lado, a marca da auséncia derecursos sociais herdades, incluindo passagens trigicas como 2 morte do pai, a loucura da mée ¢ urna tentativa de suicidio dos tree anos; por outro lado, aexperigncia daascensio social por mério. Ingressando na Escola Militar antes por necessidade que vocagéo, conseguiu concluir curso € receber 0 tio almejado titulo de bacharel em mateméticas ¢ ciéneias fisicas. Nos anos que se segui- sam, ficam claros o afastamento de Benjamin Constant dda carreira militar, sua dedicagio 20 magistério como professor de matemética, ¢ as frustragbes ¢ decepebes «que sofreu na busca por boas posigées docentes. Apesar de sua competéncia intelectual, Benjamin, a0 que pa- rece por falta de backeroundsocial, s6 conseguin ingres- sar como professor em escolas menores. As dificuldades 234. A moctatngho 04 REPUBLICA para obser uma boa posigio no magistério surgiam - pear desea presto como profesor de matemitia _ No inicio de 1866, Benjamin Constant, recebeu = ordem para seguir para o teatro de operag6es na guerra contra © Paragusi. No pouco mais de um ano que permaneceu no Exército em guerra, atuou como oficial ‘de engenhariaem trabalhos de abastecimento, constru- io de trincheiras elaboragao de esbocos topogrificos Pelas cartas que envio sua familia durante esse pperfodo — publicadas, embora com cortes, apenas |, apés sua morte —., fica claro 0 desinceresse que tinha pela carreira militar ¢ as fortes criticas que fazia & condugéo da guerra © aos comandantes do Exército brasileiro, especialmente Caxias. Pica evidence tam- bbém sua filiagio & doutrina positivista formulada por ‘Auguste Comte. Benjamin sempre se concentratia, no entanto, na parte “cientifica” da obra de Comte, vindo a romper com a Igreja Positivista do Brasil em 1882, por discordar da orientacio proselitiste de seus dire- Em meados de 1867, Benjamin pode retomar & Corte por ter recebido uma licenga de saide, que seria seguidamente renovada. Desse modo, no mais reror- nou guerra. Em um manuscrito dessa época existente em seu arquivo pessoal, ele pedia demissio do Exérciro, “deixando a carreira das armas e seguindo outra [0 magistério], a que o suplicante se tem dedicado e para a qual sence mais decidida vocagio”. O requerimento 235+ e150 ASR rio chegou a ser encaminhado, walver porque ¢m junho de 1868 Benjamin Constanc renha sido nomea- + do para uma fungie no Observarério Astron6mico, © 2 quelle permica evicaro retomo a guerra eretomar sua carreira no magistério. Em maio de 1869, morte Set sogro, diretor do Instituto de Meninos Cegos, ¢ Ben- jamin assume seu lugar frente dessa instituicie, onde permaneceria por muitos ans, Benjamin Constant encrou para 9 magistétio da + Escola Militar da Praia Vermelha em 1872, na condi- so de repetidor. Quando @ Questio Militar rebentou, encontrava-se profundamente insarisfeito profissional- mente, especialmente porque nio conseguia que © govern melhorasse sua situacio na Escola Militar, nomeando-o (¢ também @ outros colegas) professor catedritico, nica esperanga que entio possula dé me- Ihorar sua precéria situacio financeira. Uma anotasio fem sua agenda, do dia 13.9.1 886, diz o seguinte: ke Hi mais de 13 anos tive a certera de que» apesat 60 diteito incontestivel 48 suas nomeagbes de lentes ate- dedticos.. 0 capticho (I) [Imperador] tem eriunfado 4 de tudo ¢ de todos. .. Assim violentado em meus : diseicos, requeti, com 05 outros, a0 Parlament®, @ ‘minha nomeagio de lente carediévico. Surgiu a possibilidade de pprestar concusso para ob- ter a citedra, ou de que 2 nomeasio fosse feita por 236. ‘A catngio O8 REFUBUCA vontade do Imperador, mas Benjamin continua a es- crever revoltado, em seu diario, que nao accicaria nem prestar concurso nem a promogio “como um gesto de cleméncia Imperial. .. Nao quero como favor 0 que ‘me competia por diteio. Rejeitarei essa nomeacio se cla se der.” (sublinhado no original] ‘Na mesma ¢poca, coincidentemence, havia a Ques- ar Foi a primeira vez que Benjamin aruou voluntariamente como membro da “classe militar”, ¢ —nio como um professor de matemétics, Vimos que ingressou na carrera militar por necessidade, e nio por vyocagdo, Chegou mesmo a quase pedir demissio do Exétcico, Sempre se considerou — e foi considerado, como demonstra otratamento de "De. Benjamin” que recebia dos alunos — antes um professor que um milicar Bxceto pela curta estada na Guerra do Paraguai, nunca desempenhou qualquer fungio no Exércico além do magistézio, (O que em 1886-87 uniu provisoriamente na mesma pessoa os paptissociais de professore militar—o “De Benjamin” ¢ 0 “major Benjamin” — foi a insatisfacio de ambos com o governo pelo nao-reconhecimento de seus diteitos. Na mesma época em que o Dr. Benjamin se sentia logrado em seu direito & cftedra da Escola Millar — que representava, além do reconhecimento académico, o alivio financeivo tio desespecadamente necessério —, havia uma questéo entre o governo ¢ .a7- 50 caso militares que se viam atingidos em seus direitos ¢ em sua honra, No inicio de 1887 Benjamin Constant era um homem de 50 anos, em sérias dificuldades financeiras, doente — viveria apenas mais quatro anos —, ¢ com uma vida profissional marcada, a seu ver, pela mé sorte Menos de txés anos depois, vemos 0 pacato professor de matemitica metamorfoseado em lider radical do golpe militar republicano, deixando sua casa numa madrugada para unir-se @jovens militares numa aven- tura politica. Dentre todos os destinos que Ihe era possivelescolher, Benjamin tomou a diregio aparente- mente menos previsivel se tivermos como referéncia sua vida até 1887. (interessante é que Benjamin seré levado a desem- penhar © papel com que passou 4 histéria por uma “mocidade militat” formada de jovens que, como cle, apesar de fazerem parce do Exército, também se viam antes como “cientificos” que como militares, O fato de tanto Benjamin quanto a “mocidade militar” ocupa- rem uma posigio periférica na carreira militar é, no entanto, bascante significativo para a compreensio das condigées sociolégicas que possbilicaram esse encon- to. Outras afinidades ficam claras quando colocamos ‘em paralelo as caracteristicas da cultura da “mocidade militar’ e da biografia de Benjamin Constant. Vimos +38 ‘APROCUMACAO OX REPUBLICA que a “mocidade militar” era um grupo relativamente homogéneo em termos de experiéncias profisionais e de valores, com uma identidade social construida em. parte pela oposicio simbélica, fora do mundo militar, 20 mundo dos capitais sociais herdados (¢ nao adqui- tidos por mérito pessoal) —o mundo dominado pelos bachatéis de direito — e, em parte, dentro do mundo militas, pela oposicao ao Exército “tarimbeiro”,ligado A eropa. Varios pontos da biografia de Benjamin Constant encontrain ressondncia sociolégica na cultura da “mo- cidade militar”. Inicialmente, temos © baixo capieal social herdado e o ingresso na carzeira militar antes por necessidade que por vocagéo. A isso soma-se a sociali- zasio profissional na Escola Militar, com as mesmas experincias de afirmagio do principio do méito in- dividual, consubstanciado no titulo de alferes-aluno, E mais, © desinteresse pela parte bélica da carrera, 0 descompasso entre o sentimento de pertencer a uma elite intelectual ¢ a falta de oportunidades sociais, 0 ressentimento com o governo pelas dificuldades na carreira. A explicita filiagio de Benjamin ao positivis- mo em seus aspectos mateméticos e “cientificos” tam- bém deve ser destacada. Vimos como a matemitica ‘ocupava um lugar de honra para a “mocidade militar”. Se Benjamin Constant ngo tinha em sua biografia os clementos socialmente mais valorizados pela elite po- Ittica € social da época, para a cultura da “mocidade +39 caso estan militar” ele era, 0 contritio, possuidor de um verda- deito tesouro biogrifico. Benjamin Constant tinha 0 métito adicional de ter sido, se no o tinico, um dos poucos oficisis superiores da Corte a se apresentar em defesa da “classe militar” durante os episédios da Ques- vo Miliar No inicio de 1887, 0 primeiro encontro entre a “mocidade militar” e seu futuro “lider” jd ocortera, Mas entre 0 professor ¢ 0 golpista, ainda havia uma longa distancia a percortes. A procura de um lider ‘A sucessio de incidentes da Questio Militar havia demonsteado que a unidade militar s6 poderia existir quando estivessem em jogo quest6es ligadas & honta, © do quest6es estritamente politicas. A “mocidade mi- litar”, no encanto, imediatamentearticulou-se para nao dixara preciria entidade social forjada na Questo — a “classe militar” — perder forma e desaparecet. O objetivo era instieucionalizar uma associagio que fe- presentasse a “classe” efugisse a0 contr Ho milicarexistente._ Diversas reunises de jovens oficiais “cientificos’ ocorreram no Rio, culminando na criagio do Clube_ _Militas, em 26 de junho de 1887, sob a presidéncia de Deodoro. A iniciativa da organizagio do Clube tinha +40. a paocuagio ox nePbAUEA partido de oficisis jovens que desejavam ctiar um centro politizador da “classe militar”. Enteetanto, no ‘momento inicial de sua fundasio, ficou clazo que os poucos oficiais mais graduados presentes, inclusive Deodoro, pretendiam que 2 nova agremiacio tivesse atuagio moderada e dentro da legalidade. Apesardisto, E inegével que a cacao do Clube representara ganho de espago politico para o grupo de oficais mais jovens ce radicais, que conseguira na Questio Miliar amplifi- cat sua vor desafiando 0 governo em nome da “classe railcar” ~ Maso objetivo final dos jovens oficiais “cientificos” era a Repiiblica, ¢alcancé-la ficava muito mais dificil sem que surgisse uma nova “Questo” que mobilizasse a “classe”. Deodoro nfo era de forma alguma um _republicano, Muito pelo contratio. No segundo semes- “te de 1888, escreveu uma carta a seu sobrinho Clo- doaldo — envio estudante da Escola Militar de Porto Alegre e, como a maioria de seus colegas, epublicano — que € definiciva a esse respeito: Repiiblica no Brasil & coise impossivel, porque seri verdadeira desgraga. Quem quer Repiiblica, quer que ‘Brasil sea dos gaspares, Cotegipe, Paulino de Sousa ‘xc. Os brasileiros esto eestarfo muito mal educados para “republicanos”. © tinico sustentéculo do nosso Brasil €2 monarquia; se mal com ela, pior sem ela ‘Nao te metas em questées “republicanas’, porquanto ae Repiibica no Brasil e desgraga completa ¢ a mesma cise, os brasileiro nunca se preparario para isso, porque sempre hes fakario educagio e respeito para Apesar de rejeitar 0 regime republicano, a posicio de evidéncia de Deodoro como presidente do Clube Milica, fruto de sua atuagio na Questéo Militar, era incémoda para o governo. No final de 1888, ele foi ‘nomeado para comandara provincia de Maro Grosso, © que equivalia, na pritica, a um descerro mal disfar- © gado, Mesmo contragosto, Deodore nfo péde resis- i fis, sob risco de dar ao governo pretexto para uma 2 acusagéo de insubordinagio. Embarcou para Mato ~ Grosso, deixando Benjamin Constant na presidéncia do Clube Milicar. © O ano € meio que se seguiu a0 final da Questéo Militar foi dificil para 0s jovens oficiais “ciencificos’, ‘que compunham a quase roralidade da possio republi- ~-eana do Exército, O Clube Militar fora dominado, desde seu inicio, por chefes militares que desejavam uma atuagio moderads, nfo radical. Além disso, o fim da escravidio retirarao forve elemento mobilizador da ; campanha abolicionista, na qual 0s jovens “cientficos” ~!aviam atuado de mancira destacada, O imperador, 3 sobre cujo estado fisico sempre se especulava, volrara de uma viagem & Europa em agosto, melhor de sade, desfazendo a impressio de que encontrava-se mori- 142s A mocumgto o& RERUBUCA bundo. Havia Deodoro, que, embora nio fosse repus- blicano, poderia ralvez polarizar novamente uma opo- sigio militar por conta de seus descontentamentos pessoais com o governo ¢ a ciipula do Exércivo. No ‘encanto, © governo tinha conseguido neutraliz-lo, enviando-o para o “desterro” em Mato Grosso. A ‘morte, em 28 de janciro de 1889, de Sena Madurcira, foi mais um golpe a atingir o radicalismo militar. Dos clementos mais ativos na Questio Militar, restava ape- ras Benjamin Constant, com quem os jovens “cient ficos” haviam conseguido estreitarrelagdes. Um evento cextraordinario sacramentou essa aproximacio. = No final de maio de 1888, Benjamin fora promovi _-do a tenente-coronel, apés petmanecer quase treze nos como major. Nos dias de aula, costumava ir & paisana para a Escola Milicar, rocando de roupa © vestindo 0 uniforme militar na casa do porteito, ates, de entrar no edificio. No dia 8 de junho, ao trocar-s, descobriu que os alunos haviam substituido as divisas cde major pelas de tenente-coronel ¢ trocado seu boné por um novo. Ao seguir para a Escola, nova surpresa 0 aguardava. Desde o portio de entrada atéasala deaula, Benjamin teve de passar porentre fileiras de alunos que Ihe jogavam pétalas de rosas. A sala de aula estava ‘completamente lorada, ¢ os alunos deram trés rodadas de vivas e palmas acompanhadas de manifestagées de apreco. Muito surpreso, Benjamin Constant agrade- ceu, profundamente emocionado, 2 manifestagéo. Ao 24a

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