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Os “Camara” - Suas Origens e Fixacdo no Ceara Eduardo Bezerra Neto As fontes de referéncia que permitem acompanhar os fei- tos dos Camara na historia de Portugal e do Brasil sao bastan- te variadas. Nao cabe neste breve trabalho apresentar uma lista completa de publicagdes 6 trabalhos inéditos, referentes 4 familia, mas apresentar téo-somente algumas fontes que sao essenciais para aclarar as origens dos Camara do Ceara, seus vinculos ascendentes e descendentes. No Archivo Heraldico Genealdgico do Visconde Sanches de Baena, Lisboa, Tip. Universal, 1872, encontra-se uma refe- réncia que situa a origem dos Camara nas Asturias, de onde se transferiram para Portugal. Este registro, todavia, esta a merecer um estudo mais atento quanto @ sua fundamentagao histérica. O mesmo autor também se refere ao brasao de ar- mas da familia. De modo semelhante, os Camara compdem diversos ver- betes na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Edito- rial Enciclopédia Ltda., Lisboa, s/data. Em especial, o volume 5, p. 557, registra a origem do patronimico e apresenta o braséo da familia. Seguem-se biografias de Camaras que se distingui- ram na histéria de Portugal e do Brasil. O primeiro estudo sistematico da familia tem por autor Henrique Henriques de Noronha, reputado como um dos mais sérios genealogistas portugueses. Viveu na segunda metade do século XVII e primeira metade do século XVIII. Os Camara fo- ram incluidos na obra que escreveu em trés tomos, que tem um longo titulo, comum nas producées literdérias da época: 37. “Nobillario Genealogico das Familias que passdréo a viver a esta flha d’a Madeira depois do seu descobrimento, que foi no ano de: 1.420.” O manuscrito, que data de 1700, foi editado pela Bibliotheca Municipal do Funchal, 1947. O Nobilidrio abran- ge as nove primeiras geracdes do cla e se refere tanto aos que permaneceram na Ilha da Madeira, quanto aos que se pas- saram para a Ilha de So Miguel. Em trabalho de téo grande extenséo, 6 natural constatar a existéncia de lacunas em di- versos ramos do desdobramento fami Os feitos dos Camara no Arquipélago dos Agores, nos dois séculos iniciais de sua colonizacdo, encontram-se mii dentemente referidos na obra do Padre Gaspar Fructuoso, inti- tulada Saudades da Terra, que conta com diversas edicées, sendo uma delas da Tipografia do. Didrio dos Acores, Ponta Delgada, 1924-1931. A obra data do século XVI, foi composta em quatro livros, dos quais 0 quarto, que trata da Ilha de Sao Miguel e dos Camara que a governaram, abrange trés volumes. Sao Miguel é o ponto de origem dos Camara do Rio Grande do Norte, do Cearé e dos demais Estados onde os descendentes vieram a se fixar. No Nordeste, a referéncia primeira é © trabalho do nota- vel historiador Luis da Camara Cascudo, sob o titulo Camaras. Possuo cépia datilografada, onde estéo transcritas notas ma- nuscritas do autor € margem do original copiado. Parece-me que permanece inédito. Camara Cascudo cedeu por emprésti- mo a Fernando Camara o texto original, gragas ao intermédio do historiador Raimundo Girdo, que na época, década de ses- senta, exercia as fungdes de Secretaério de Cultura do Ceara. E natural que contenha enganos. Contudo, algumas imprecisées no texto nao lhe tiram o mérito fundamental de ser 0 mais abrangente estudo sobre a familia. Ainda sobre os Camara do Rio Grande do Norte,. existe um breve estudo de Adauto Miranda Raposo da Camara, inti- tulado “Camaras e Miranda-Henriques”, publicado no n° 9 da Revista Genealdgica Brasileira, 1944. Sobre os Camara do Ceara a fonte maior de referéncia 6 o Album. Genealégico das Familias Camara e Saraiva Ledo, tra- balho ainda inédito de Francisco Fernando Saraiva Camara, ge- nedlogista de grandes méritos, conhecedor profundo néo ape- nas dos Camara, mas também dos Saraiva Leo, seus troncos genealdgicos. O trabalho de Fernando Camara se destaca pela riqueza dos detalhes que contém, pela criteriosa fidelidade as fontes documentais e pelo vasto acervo fotografico que pa- cientemente coletou ¢ identificou. Em escritos posteriores, Fer- Ir. 38: nando Camara acrescentou detalhes novos aos registros do. Album Genealdégico, ampliando, largamente, as informagées so- bre © tronco cearense e sua descendéncia. . José Bonifacio Camara, organizador da mais completa bi- blioteca particular atualmente existente ‘sobre temas do Cear: também emprestou a sua contribuigao ao estudo da familia, através de diligente pesquisa sobre os descendentes do Dr. José Bonifacio Camara, seu avé e homénimo. Oswaldo Lamartine de Faria, profundo conhecedor do meio, da gente e dos costumes do Rio Grande do Norte, embora nao pertencente ao cld, realizou a meu pedido acurada pesquisa bibliogratica no Rio de Janeiro, cabendo-lhe destaque entre os pesquisadores que tém coligido informacées sobre as raizes dos Camara. Ainda como referéncia, existem apontamentos tomados por mim em pesquisas diretas sobre assentamentos paroquiais de Aracati, Russas e Quixeramobim, referentes aos Camara do Ceard, onde as ligagdes com os troncos norte-rio-grandenses estado claramente documentadas, juntamente com outras rela- goes familiares que convergem para os Camara. A pesquisa tem sido complementada por outras fontes, notadamente do- cumentos pessoais, depoimentos relatives a tradicao oral fa- miliar, bem assim, pesquisa bibliogrdfica em fontes cearenses. Embora sejam variados os estudos e as fontes documen- tais, isso ndo significa que todos os vinculos estejam suficien- temente delineados. Existe, ainda, um vasto campo de trabalho a desafiar a nova geragao de pesquisadores. Hd um aspecto positive que deriva dessas limitagdes quanto aos fatos conhe- cidos. Cada lacuna que se evidencia representa uma 4rea para novos estudos. Por essa forma, abrem-Se espagos para pes- quisas pioneiras, que podem ser assumidas pela geragdo atual dos estudiosos da familia. E propésito desta breve andlise relacionar apenas certos momentos de maior destaque na histéria familiar dos Camara. Em oportunidades futuras cada um dos periodos referidos po- deré ser examinado em maior profundidade e maior abran- géncia. A ampliacgéo da abrangéncia dos futuros estudos depen- derd, em grande parte, do esforgo coletivo. Em genealogia néo hd informacées mais importantes nem menos importantes. Aplica-se a ela a imagem dos fios de um tecido. Nenhum 6 mais importante do que o outro. Mas qualquer fio que esteja faltando revela que o tecido néo est4é complete. Assim ocorre com os estudos genealdgicos. Sdo0 sempre o produto de peque- 3g nas informagées que se ligam ponto por ponto, ou, mais pre- cisamente, pessoa por pessoa, compendo conjuntes cada vez maiores. ORIGEM EM PORTUGAL As referéncias contidas na obra de Sanches de Baena em relagéo aos Camara nao parecem ser suficientemente funda- mentadas. O passado mais recuado da familia ainda esta a re- querer um estudo mais diligente. Jé em relag&o ao bergo histérico da familia, primeiramente a Ilha da Madeira e depois o Arquipélago dos Acores, a do- cumentagao 6 mais acessivel. O tema, em si, admite amplo desenvolvimento, néo comportando a sua inclusdo no presente trabalho. Cabe, téo-somente, uma sintese, que tem por ponto de partida o navegador Jodo Goncalves Zarco. Joico Gongalves Zarco nasceu na segunda metade do sé- culo XIV na Vila de Matosinhos, situada no norte de Portugal, a9 km da cidade do Porto. A data exata do seu nascimento permanece desconhecida. Sabe-se, porém, que iniciou-se na vida maritima ainda muito jovem. Teve por primeiras missdes guardar a costa do Algarve contra os ataques dos mouros. Em 1415 participou da tomada de Ceuta. Ai foi armado cavaleiro pelo Infante D. Henrique, filho do rei D. Joao § de Portugal. A amizade pessoal com o Infante D. Henrique e a paixio pelo mat so as marcas dominantes da vida de Jodo Goncalves Zarco, Fez parte do grupo pioneiro de navegadores, que sob a lideranga de D. Henrique langaram as bases da grande epopéia dos descobrimentos portugueses. Em 1418 encontra-se o registro de que o Infante D. Henrique Ihe deu o comando de uma nau, mandando-o, junta- mente com Tristéo Vaz Teixeira, procurar “umas ilhas" a respeito das quais jd se tinha referéncias. Nessa viagem Jodo Goncalves Zarco encontrou, de fato, uma ilha, & qual deu o nome de Porto Santo. D. Henrique cuidou logo de assegurar a posse da desco- berta, designando para povod-la Jodo Goncalves -Zarco e Tris- tao Vaz Teixeira, dando-lhes por companheiro um criado de sua casa, Bartolomeu Parestrelo. Na segunda viagem para Porto Santo Jodo Gongalves Zarco descobriu outra Ilha, de grande extensdo, a qual, por ser co- berta por uma vegetacdo luxuriante, veio a receber o nome de ilha da Madeira. Em 1.° de julho de 1419 0 navegador desem- 40 barcou na ilha, no lugar da costa que havia designado de Sao Lourengo. Prosseguindo a viagem de circunavegagdo da ilha, encon- trou adiante uma caverna, povoada por lobos marinhos, dando ao local o nome de “Camara de Lobos”. Esse acontecimento viria a servir de origem ao futuro nome do navegador e de seus descendentes. Casando em Portugal com D. Constanca Rodrigues de Sa, tilha de Rodrigo Anes de Sé e de Cecilia Colonia, e irma de Joao Rodrigues de Sd, retornou em seguida a Ilha da Madeira, dando inicio ao empreendimento da colonizagao. Nao ficou, todavia, inativo em relagéo aos principais acontecimentos do seu pais. Aproveitando a madeira das areas abertas no povoa- mento, construiu navios, que enviou ao Infante D. Henrique. Também Ihe € atribuido o feito de, pela primeira vez, armar navios com canhdées. Tornou-se, assim, o precursor da artilha- ria naval, Em 1437 participou da expedigao contra Tanger, onde, todavia, 0s portugueses nao obtiveram sucesso. O rei D. Afonso V de Portugal dividiu a ilha da Madeira em duas Capitanias. A do Funchal fol concedida a Jod0 Gongalves Zarco. Por carta de 1.° de novembro de 1450 foi-ihe concedida @ “mercé” de Capitéo Governador e Donatario do Funchal. A doag&o foi confirmada por carta de 15 de novembro de 1451. E a 4 de julho de 1460, estando a Corte portuguesa em Santa- rém, D. Afonso V concedeu-lhe braséo de armas. Jodo Gongal- ves Zarco passou, entéo, a chamar-se Jodo Gongalves da Ca- mara de Lobos ou, na forma simplificada, Jodo Gongalves da Camara. Com o ato de outorga do brasaéo de armas comega, realmente, a historia da familia Camara. A tradig&o guarda que a mudanca do nome de Jodo Gon- galves, de Zarco para Camara, deve-se ao Infante D. Henrique. Certamente ele concorreu, de modo decisivo, para que o rei concedesse brasao de armas proprio ao navegador, seu amigo de tantos anos, dando ensejo 4 mudanga de nome. Repetindo a expressdo de Henrique Henriques de Noronha, Joao Gongalves da Camara “morreu provecto de annos e jaz enterrado n’a Egreja de Nossa Senhora d’a Conceicao que hoje 6 Convento de Freiras de Sancta Clara, a qual elle fez para seu enterro.” Essa longevidade serd marca genética que ira se perpetuar in- clusive nos descendentes brasileiros. at Sete foram os filhos de Jodo Gongalves da Camara e sua mulher D. Constanga Rodrigues de Sd. O segundo chamou-se Rui Goncalves da.Camara, que comprou a Capitania da Ilha de Sao Miguel e para la se transferiu com toda a sua familia e. agregados. O rei D. Joao II de Portugal confirmou-lhe dita Capi- tania em 2 de agosto de 1483. Foi casado. com Db. Maria de Bettencourt, “a qual morreu em Sao Miguel n‘o anno de 1491, fez morgado d'os seus bens que tinha n’esta Ilha, a qual chaméo a Agua de mel, e deixou por Administra- dor d’elle a seu sobrinho Gaspar de Bettencourt”, retomando aqui, uma vez mais, a maneira de dizer de Henrique Henriques de Noronha. Nao existe evidéncia documental de que sefa esta a ori- gem do morgado que chegou até ao primeiro Camara que se passou da Ilha de So Miguel para o Rio Grande do Norte. A. citagdo sugere, apenas, uma pista para pesquisa posterior. O fato concreto a constatar 6 que os descendentes de Joao Gongalves da Camara de Lobos continuaram a saga do povoa- mento de Portugal insular, primeiro na Ilha-da Madeira e de- pois no Arquipélago dos Acores. Em todos esses lugares se distinguiram na defesa ¢ no governo dos nucleos de povoamen- to, entre os quais se inclui a Ilha de Sao Miguel, onde nasceu e foi-morgado Manuel Raposo da Camara, tronco do cla nor-, destino. ESTABELECIMENTO NO RIO GRANDE DO NORTE As raizes da familia Camara no Brasil partem de Manuel Raposo da Camara, 0 morgado da Ilha de So Miguel, Arquipé- lago dos Agores, que veio a se fixar no Rio Grandé do Norte no inicio do século XVIII. O morgadio era uma instituigdo origiriada no direito feu- dal. Constituia-se em um conjunto de bens iméveis, urbanos ou rurais, que nfo podiam ser vendidos e que sé se transmi- tiam de primogénito para primogénito..A sua instituigao foi mo- tivada pelo empenho em manter elevado o nivel de vida das familias de origem nobre, embora beneficiando apenas o filho mais velho e, conseqtientemente, em prejuizo dos demais irm&os. A mesma palavra “morgado” aplicava-se ao conjunto de bens e, igualmente, designava o titulo do Senhor dos bens constituidos sob as normas do morgadio. ~ Pela’ legislacdo' da época nao era qualquer Gonjunto de bens que podia ser constituido em morgado. A renda minima 42; anual deveria ser de 2.400$000 se o morgado se situava em Lisboa, ou 1.200000 sendo nas Provincias. Apenas para efeito de comparagdo, considere-se que 0 Capitéo-mor das Capitanias tinha direito ao soldo anual de 400$000. Igual quantia era paga ao Ouvidor, a titulo de. pro- vento anual. Por conseguinte, a renda minima de um morgado rural representava trés vezes o valor dos vencimentos que se pagava as duas mais elevadas autoridades das Capitanias no Brasil colénia. Na realidade, 0 morgado do primeiro Camara a vir para o Rio Grande do Norte rendia bem mais que o minimo. determinado pela legislagdo. © fato de ser senhor de um morgado fornece suficiente evidéncia para se ligar Manue! Raposo da Camara a familia dos governantes do Arquipélago dos Agores. Gaspar Fructuoso se refere com muito entusiasmo aos feitos de Rui Gongalves da Camara, Jofo Rodrigues da Camara, Rui Gongalves da Ca- mara( de mesmo que o anterior) e Manuel da Camara, que, fo- ram, respectivamente, o terceiro, quarto, quinto e sexto Capi- taes da Nha de Sao Miguel, nos séculos XV e XVI. Estes, por sua vez descendiam de Joao Gongalves da Camara de Lobos. Manuel Raposo da Camara foi, com seguranca, uma pes- soa de boa origem, para quem a colonizacdo do Brasil se apre- sentava como um desafio que valia a pena enfrentar. Ele veio para o Rio Grande do Norte trazendo capital préprio e na co- lénia continuou a receber as rendas do seu morgado, como também o fizeram seus descendentes. Luis da Camara Cascudo encontrou documento de julho de 1718 no qual Manuel Raposo da Camara consta como mem- bro do Senado da Camara de Natal. Este € um segundo fato significativo, visto que os Senados das Camaras reuniam sem- pre os “homens bons” de cada vila ou cidade. Entenda-se. por “homens bons” os mais abastados e de maior destaque social. A pesquisa de Camara Cascudo levou-o, ainda, a desco- brir o registro, em 1719, de uma carta de doagdo de: “chaos concedidos ao tenente Manue! Raposo na Ri- beira desta Cidade, pagando foro anual de 160 réis.” Cinco anos depois, ou seja, em 1724, o sargento-mor Joao de Souza Nunes se declarava: “senhor e possuidor de humas moradas de casas terreas citas nesta Cidade junto a \greja de Rosdrio dos Pretos, compradas a0 capitao Manuel Raposo.” “ Camara Cascudo descobriu outros registros de transagdes em 1742, mas néo os transcreveu. Nao obstante, as duas refe- réncias anteriores demonstram que o morgado era possuidor de terras rurais e urbanas préximas a Natal e na cidade. Uma indagagéo que surge naturalmente ao se examinar a origem da familia é: teria sido Manuel Raposo da Camara o antepassado Unico de tados os Camara do Nordeste? Em ter- mos de descendéncia conhecida 6 o Unico a ter sido objeto de pesquisa genealégica, até o presente. Mas no foi o Unico Ca- mara a vir da Ilha de Sao Miguel para o Rio Grande do Norte. No ja citado trabalho de Camara Cascudo esta referido que teriam vindo irés irmaos. E o autor chegou a identificar em Natal o tenente Miguel Raposo, que em 1738 aforou terras pagando 160 réis anuais. Esse Miguel morreu vitivo a 10 de fevereiro de 1760, declarando-se no registro de dbito que tinha 66 anos. Se a idade tiver sido precisa, nasceu em 1694. O outro irmao pode ter sido Antonio Raposo, que teve a patente de capitéo e cuja mulher, Teresa, faleceu a 24 de julho de 1790, com idade declarada de 50 anos. Além dessas breves referéncias nada mais se sabe. In- clusive a relagao precisa de parentesco nao esta documentada. Este 6 um dos campos abertos 4 pesquisa futura. Manuel Raposo da Camara casou com Dona Antonia da Silva no ano de 1718, em Sao José de Mipibu, localidade rela- tivamente préxima a Natal. O nome da esposa é bastante sim- ples; todavia, quando mencionado nos documentos da época, sempre vinha precedido pelo “dona”, muitas vezes por exten- so. Esse “dona” 6 outro sinal indicativo de prestigio social e econdmico. No trabalho de Camara Cascudo consta 0 ano de 1738, 0 qual suponho ser engano de cépia. O filho Antonio nasceu em +721; Vitorino, o mais velho, deve ter nascido em 1719 ou 1720. O casamento deve ser, portanto, de 1778. Examinando a documentacao em que figurava como parte, Camara Cascudo deduziu que D. Antonia da Silva deve.ter sido uma mulher “enérgica, forte, decidida, exemplar da fidelidade ao marido e da ignorancia as letras”. Séo essas expressdes tex- tuais do historiador. Séguindo a regra geral, naqueles. recuados anos do inicio da colonizacéo do Nordeste, sendo mulher era analfabeta, sem perda da sua dignidade. D. Antonia da Silva faleceu, ja vidva, a 25 de julho de 1785. O assentamento de dbito esta assim redigido: 44, “Faleceu da vida presente D. Antonia da Sylva, mu- ther viuva, de idade de cem anos, pouco mais ou me- nos.” Os cem anos declarados no assentamento paroquial nao devem impressionar, As idades declaradas eram, quase sem- pre, aproximagées- da idade real. Entretanto, para merecer 0 honroso centenério no livro de ébitos, deve ter, seguramente, vivido muito. Quanto a Manuel Raposo da Camara, tendo sido Vereador em 1718, jé era adulto, visto que menores nfo eram admitidos na .vereanga de uma cidade. Sendo o primogénito e admitindo- -so ter sido irm&o de Miguel Raposo, deveria ser, pelo menos, um ano mais velho do que este. Teré nascido, portanto, por volta de 1693. Ao casar em 1718 teria, entéo, cerca de 25 anos. Camara Cascudo situa a morte do morgado em 1783, por- quanto ao fazer seu testamento em 23 de outubro desse ano D. Antonia da Silva j4 se declarava vitiva. Ao falecer, Manuel Raposo da Camara estaria com 90 anos. Dentro da ordem natural das relagdes de idade entre nu- bentes, D. Antonia da Silva deveria ser mais nova do que o marido. Nasceu, muito provavelmente, por volta de 1695. Ao falecer deveria ter também cerca de 90 anos; provavelmente um pouco mais, visto que a declararam centenéria. O seu testamento contém algumas informagtes interes- santes, de carater pessoal e social, que Camara Cascudo co- piou em parte e convém transcrever: “Declaro que fui casada com Manuel Raposo da Ca- mara, ja falecido, de cujo matriménio tenho ainda vivos os filhos seguintes — Vitorino da Silva, Antonio da Camara, Quitéria, Marcelina, Rosa, Josefa e Maria. Declaro que meu marido tinha na Ilha de Sao Miguel uma vinha que herdou por heranga de sua av6, que por sua morte me coube. Declaro que na mesma Ilha tem um Morgado que por morte de meu marido ficou para meu filho Vitorino com a obrigagéo de der anual para alimentos a mim dois moios de trigo, e a cada irmao, meus filhos, um moio, © que nunca deu, e que os ditos meus filhos procuraréo e cobraréo por minha morte. Pego e rogo a meu filho Antonio da Camara e a meu 45 neto Goncalo Soares Raposo da Camara que por ser- vigo de Deus e por me fazerem mercé queiram ser meus testamenteiros.” As pecas do testamento sao importantes porque la estado mencionados os filhos do casal e porque oferecem uma idéia bastante clara do patriménio da familia na Ilha de Sao Miguel- Come visto, atém do morgado Manuel Raposo da Camara foi proprietaério de uma vinha. O morgado, em si, era grande, conforme se deduz da renda que gerava. Um moio de trigo era equivalente a 60 alqueires e um alqueire correspondia a 13,8 litros. Vale dizer, um moio de trigo era representado por 828 titros. No caso de trigo em grao, um Iitro equivale em peso a cerca de 780 gramas; no caso de farinha de trigo, um litro pesa, praticamente, 1 kilo. Transposto para as medidas atuals, o testamento de Dona Antonia da Silva estabelecia que a ela [he tinha cabido uma parcela nas rendas do morgado correspondente a 1292 kg de trigo, se 0 pagamento era feito em gro, ou 1656 kg. se 0 pa gamento era feito em farinha de trigo. A cada irmao cabia 646 kg. na primeira hipdtese, ou 828 kg. na segunda. € natural presumir que ao senhor do morgado ainda de- veria restar uma parcela superior aquela devida a mae. E é va- lido admitir que se o testamento estabelecia a cobranca das parcelas devidas aos irmaos 6 porque, de fato, existia trigo su- ficiente para a partitha. Uma outra dedugéo que transparece do testamento 6 que Vitorino, o irm&o mais velho, sucessor no senhorio do morgado, deveria estar vendendo o trigo recebido em renda, sem fazer a partilha que Ihe cumpria realizar. Pelas declaragdes do testamento se deduz que quando vivo Manuel Raposo da Camara deveria receber de suas pro- priedades na Ilha de Sao Miguel trigo em quantidade superior a 8 toneladas anuais. Também deveria receber renda pela pro- dug&o de vinho. punha, portanto, de meios para desfrutar de excelentes condicdes de vida, considerados os padroes da €poca, visto que além das rendas que !he vinham de Sao Mi- guel tinha, por acréscimo, a produgéo do rebanho e da agri- cultura de alimentos em suas terras na Capitania do Rio Gran- de do Norte. Tendo examinado pessoalmente a documentacéo relativa ao Gbito de Dona Antonia da Silva, Camara Cascudo acrescenta alguns detalhes interessantes: O testamento foi aberto no dia de sua morte. Lé se encontra que um seu sobrinho, alferes An- tonio José Barbosa, 0 escreveu “por a testadora nao saber ler 46 nem escrever”. Uma das testemunhas do documento é Manuel Esteves da Camara, nao havendo, todavia, a indicagéo do grau de parentesco. Existe, também, o registro de que a morta "se- pultou-se perto de seu marido”. O testamento nao contém os nomes por extenso dos fi- Ihos do casal, o que, alids, era comum, tanto nas notas dos escrivaes das Camaras, quanto nos assentamentos paroquiais. E preciso consultar diversos documentos para se. formar uma idéia mais precisa dos nomes. Outro detalhe, 6 que cita apenas sete, quando, de fato, os filhos foram oito. A segunda geragao dos C&maras foi composta por: Vitorino da Silva Camara, An- tonio da Camara e Silva, Manuel Raposo da Camara, Marcelina do Espirito Santo, Josefa Raposo da Camara, Rosa, Quitéria e Maria. Sendo o primogénito, Vitorino da Silva Camara tornou-se morgado apés a morte do pai. O testamento da mae ja indica essa condic¢éo. O Bardo de Studart, no seu Diciondrio Biobiblio- grafico Cearense, vol. 2, paég. 26, declara que casou com Dona Joana Maria de Jésus Monte, nascida, como o maride, no Rio Grande do Norte. Dele, seguramente,; eu descendo. E disponho de fortes indicios de que Miguel Alves de Melo Camara, o tronco dos Camara de Quixeramobim, também. Este detalhe serd discutido adiante. Antonio da Camara e Silva nasceu no Rio Grande do Norte, mas veio a casar no Aracati. Encontrei 0 assentamento do ato, que se realizou no dia 26 de julho de 1757. No registro consta 6 nome de seus pais: Manoel Raposo da Camara (com “o") 6 Antonia da Silva (sem o “dona"). A nubente se chamava Maria Torres de Vasconcelos, natural de Russas, filha de Manuel Frazio Caldeira e Francisca de SA Gomes. Camara Cascudo encontrou o assentamento de dbito de Antonio, que ocorreu a 9 de margo de 1808, com 87 anos feitos. Nasceu, por conseguinte, em 1721. Daqui se deduz que Vito- rino, 0 irmao mais velho, deve ter nascido- em 1720 ou 1719. Manuel Raposo da Camara, de mesmo nome que o pai, nao consta no testamento de Dona Antonia da Silva. Deve ter falecido antes de 1783. Sobre sua existéncia, 0 assentamento de batismo de sua filha Felipa 6 rico em detalhes. “Felipa — filha legitima de Manuel Raposo da Cé: mara, do Rio Grande do Norte e de sua mulher D. Maria “Anunciagéo de Ramos, da cidade de Paraiba, moradores nesta freguesia. Neta paterna de Manuel a7 Raposo da Camara, da Ilha de Sao Miguel e de sua mulher D. Antonia da Silva, natural da cidade de Na- tal, @ materna de Gongalo Soares Raposo da Camara, do Natal e de sua mulher D. Ana Maria do Nascimen- to, natural da Paraiba e moradores nesta freguesia, nasceu no 1.° de maio de 1767.” Ao batizar o filho José a situagio muda um pouco. Jé 0 vamos encontrar casado com a segunda esposa. “José — nasceu a 20 de setembro de 1779, filho legi- timo de Manuel Raposo da Camara e D. Constanga de Albuquerque. Neto paterno de Manuel Raposo da Ca- mara, natural da Ilha de S40 Miguel e de Dona An- tonia da Silva, da freguezia de N. S. da Apresentagado de Natal, e neto materno de Manuel de Melo e Albu- querque e de Dona Angela de Souza.” Mais uma vez se deve a Camara Cascudo as transcrigdes. E é bastante curioso notar na primeira delas que Manuel casou com a filha de seu sobrinho. Pessoalmente presumo que de- veria ser um dos filhos mats novos do primeiro casal Camara, Marcelina do Espirito Santo casou com Ambrosio Manuel de Albuquerque, filho de Manuel de Melo Albuquerque e D. Angélica de Souza, que s&o os pais da segunda esposa de Ma- nuel Raposo da Camara. Em nota a ldpis Camara Cascudo ano- tou a data de casamento, a 26 de abril de 1759. Mas nao solu- cionou o problema da transcrigféo do nome da esposa de Ma- nue! de Melo Albuquerque, que aparece uma vez como “An- gela” e outra como “Angélica”. Marcelina do Espirito Santo faleceu em Natal a 24 de ou- tubro de 1805. O registro de 6bito Ihe atribui a idade de 50 anos. Teria, entéo, nascido em 1755. Essa idade nao procede. Ela néo poderia ter nascido cerca de 34 anos depois do irmao Antonio e seria extraordinério que Dona Antonia da Silva esti- vesse dando & luz depois dos 50 anos. Na mesma ordem das cotsas extraordinarias, Marcelina teria casado aos 4 anos de idade! Josefa Raposo da Camara chegou acs 85 anos. Faleceu “de palma e capela”, na tradicional expressfo de CAmara Cascudo para dizer que era virgem. A data do 6bito foi 5 de dezembro de 1809. Nasceu em 1724, o que faz sentido em rela- Gao aos demais irmaos. 48

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