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Direito, economia e mercados / Armando Castelar Pinheiro, Rio de Janeiro: Elsevier, 2005 - 28 reimpressio Capitulo 1 Onde a Economia Encontra o Direito A Importincia do Estudo Conjunto do Direito eda Economia Arrelagio entre economistas e juristas sempre foi marcada por diferencas no raro intransponiveis, tendo sido alvo de piadas e acidas recriminagées miituas. Alids, as trogas sobre advogados e economistas, distorcendo a ima- gem do profissional do dircito ou do ecanomista, proliferam ndo apenas nos Estados Unidos e na Europa, como também entre nds. E comhecida, por exemplo, a aversio que John Maynard Keynes tinha por advogados: certa vez, durante a reunido de Bretton-Woods, o ilustre economis- ‘a britinico teria afirmado que os advogados eram os tnicos na face da terra que transformavam a poesia em prosa ¢ a prosa em jargéo! Em outra ocasio, afirmou que o Mayfair (0 navio que conduziu os pionciros colonizadores 20 Novo Mundo) deveria ter atracado “packe with Jauyen”, nutna referéncia mui- fo pouco elogiosa 4 quantidade de advogados existentes naquele pafs. Mesmo assim, curiosamente, o pai dos economistas liberais, Adam Smith, foi professor de Jurisprudence, tradicional matéria de Direito, ainda que tampouco ele tivesse ‘uma opinio muito enaltecedora sobre a profissio, Shakespeare, ao que parece, também tinha pouco apreco pela categoria. Na peca Henrique VI, um dos rebel des, Dick, 0 Acougueiro, sugere que sejam liquidados todos os advogados! Me- nos radical, mas ainda no sévulo pasado, uma charge no The New York Times ‘mostrava a seguinte justificativa dada por um profissional do Direito: “Sou um membro da profissio legal, mas nao um advogado no sentido pejorativo”. Os economistas igualmente sio alvo facil de piadas para os advogados. Uns alegam que economistas so como “profetas do pasado” ou “engenhei- ros de obras feitas", jé que ndo é incomum ouvirmos a critica de que eles estariam sempre prevendo 0 passado e tratando de temas do dbvio ou do incompreensivel. Outros alegam que economistas sao futurdlogos que inva- riavelmente se equivocam em suas projegdes do futuro. Em defesa da catego- ria dos economistas, mas ainda em tom de ironia, jé se sugeriu que a tinica coisa que nao se ensina na faculdade de Economia é tolerar os tolos. vc, xu ner ELOEV HE ‘Todos conhecemos outras piadas com evidente sentido de diversao; no entanto, o conflito entre as duas profissées é sério e merece reflexao. E certo ‘que, na opiniao dos juristas, foram os economistas (e, na opiniao dos econo- zistas, 0s juristas) que alargaram as divisdes e diferencas entre as duas profis- s6es. George Stigler faz um alerta sobre a dificuldade de comunicagio que existe entre as duas disciplinas -Enquanto a ficiéncia se consi no problema fundamental dos economists, a Justga€o tema qe orteia os professores de Direito(.)€ profunda a dferenca ‘entre uma disciplina que procuta explicar a vida econdmica (, de fato, toda aago rationale outra que pretende alcangar-a justia como clemento regulador de todes osaspectos da conduta humana, Essa diferena significa, basicamente, que 0 €co- nomista €0 advogado vivem em mundos diferentes efalam diferentes linguas.” Mais recentemente, foram os planos de estabilizagio econdmica que au- mentaram ainda mais o fosso entre advogados € economistas. E corrente a critica aos economistas que trabalharam para governos que, nos seus dife- rentes planos de estabilizacio da moeda e programas de desenvolvimento, sistematicamente desprezaram as liberdades piblicas ¢ 0s direitos individuais.* £ comum dizer, por exemplo, que os economisias do governo sempre geram emprego para pelo menos uma profissio ~ a dos advogados! Estes, por outro ado, sho vistos por aqueles como interesseiros ¢ desprovidos de espitito civi- co, quando buscam na Justica forgar o governo a realizar pagamentos total- mente fora do alcance das contas ptiblicas, ou entulhando o Judiciério com disputas j4 pacificadas pelos tribunais superiores, prejudicando todo 0 pafs em busca de gordos honoratios. ‘Oembate entre Direito e Economia no Brasil cresceu na década de 1980 com avalanche de planos econémicos e com a Constituigio de 1988, que abriu para © Poder Judiciério novas (¢ importantes) fronteiras. Além disso, alguns dispositi- vos legais “abertos”, no sentido de sua vagueza e abrangéncia, nao raros no Direi- to, foram celebrados na nova Carta, tornando a sua interpretagio cada vez mais ampla. Da conjungio entre dispositivos abertos alguns dos quais dando a entender ser dever do Estado provér servigos piiblicos universais ao cidadao ea crescente hegemonia do Poder Executivo resultou o que ha de mais nefas- to no.sistema moderno: um enorme déficit nas contas pablicas, tanto interno como externo, sem a contrapartida do crescimento econémico, ‘José Eduardo Faria resume as diferengas num paradoxo complexo € quase insohivel: “Na realidade, para neutralizar o isco de crises de governabilidade, no cabe a0 sistema judicial pér objetivos como disciplina fiscal acima da ordem juridica. Zelar pela estabilidade monetiria € Fangio do sistema econdmico. Como o papel do sisterna judicial € aplicar o direito, le 96 esté preparado para decidir entreo legal eoilegal. Evidentemente o sistema judicial mio pode ser insensfvel ao que ‘corre no sistema econémico. Mas sé pode tradurir essa sensibilidade nos limi- tes de sua capacidade operativa. Quando acionado, o maximo que pode fazer € [julgar se decisdes econdmicas sio legalmente validas. Se for além disso, a Justia ‘exorbitard, justficando retaliagbes que ameacam sa autonomia. Como os juizes poderio preservi-a, se abandonarem of limites da ordem jufdica? Tor isso, {quando os tribunais incorporam elementos estranhos ao direito, eles romper sua logica operativa ecompromietem os marcos legais para ofuncionamento da propria econoria,”* _Além disso, nao se pode ignorar que os sistemas juridico € economico esto. umbilicalmente ligados ao sistema p E 0 nosso sistema politico privile- > gioura coifisio reinanite entre Direito e Economia. Por exemplo, até por consi- derar os nossos tribunais superiores ndo como Cortes da federagdo com a fun- Go de controlar o sistema constitucional, mas como simples tribunais de justi ga de terceira ou quarta instincia as partes, o sistema judicial brasileiro apre- senta uma disfungio intrinseca grave. Num sistema democratico, resolver (€ reformar) tal estrutura de solugio de conflitos ¢ imperativo ¢ urgente. Inspirado em preceitos do século XIX, nossos tribunais ainda tendem a entender e interpretar os confflitos de modo arcaico. De acordo coi Wald, precisamos de uma economia de mercado inspirada com dircito, e um direito {que considere as regras do mercado, na exata medida em que, "se houver um mercado sem direito, terernos uma selva selvagem. Se, a0 contrério, tivermos uum direito sem o funcionamento do mercado, haverd a paralisagao do pais, ¢ nao haverd desenvolvimento”. Além disso, segundo esse autor, o velho brocardo pereat mundus (Faca justiga ainda que 0 mundo perega] nao pode se eg amare por & cava da ekisténcia dos mercados ¢ da economia “Cy de nada “adianta, pols quefemios que a justica prevalega paraque o'mundo sobreviva, se desenvolva ¢ progrida”.* (© Judiciério tem 0 condéo de aumentar o déficit das contas do Estado, sobretudo quando julga sem considerar a extensdo no plano econdmico, situa- ‘Go que se agigantou em especial no Supremo Tribunal Federal (STF). © pro- blema parece ser insokivel: se, por um lado, é preciso garantir que a justica seja ‘feita no plano individual, por outro, nio se pode chegar a ponto de falit_o esmo p ta “Exiado (ea sociedade) para tanto. O mesmo prof, Jose Eauardo Faria aqui “Porisso, tendo em vista a seguranga do direto, nao se pode cobrar economica- _mente da Justiga aquilo a que ela nao tem condicoes de atender juridicamente. Insist era angumentos de ordem fiscal em detrimento de argumentos juridicos, como tem feito o governo para pressionar 0 STF, complicar as coisas. O que 0 responséveis por essa pressbes tém de entender € que crises de governabilidade 6 Dio, arama Meads ELSEVIER nao surgem apenas quando os tribunais agem sem “realismo econémico”, Elas também irrompem quando a Justiga, ao abandonar a logica do legal versus ilegal, abre caminho para a justaposico de suas esferas de competéncias com as dos sistemas econdmico e politico. Como verso e reverso de uma mesma moeda, a ‘erosio da certeza juridica decorrente dessa indiferenciaco entre os Poderes 6a nnegagio aos mercados da seguranca legal que tanto reivindicam."* ‘Também na esfera microccondmica se observam diferencas eriticas entre economistas ¢ operadores do Direito, porém com uma inversio das posicées, com os primeiros defendendo o respeito as leis, aos contratos e aos direitos de propriedade, e os segundos relativizando-o para fora da légica do legal versus ilegal a que se refere José Eduardo Faria. Uma pesquisa baseada em uma amos- twa com 741 magistrados brasileiros, das justicas estadual, federal e do Traba- tho, realizada por Armando Castelar Pinheiro, revela que a maioria deles cons dera que as decisdes judiciais no Bras io ocasionalmente baseadas mais nas visdes politicas do juiz do que em uma leitura rigorosa da lei, enquanto 20% dos juizes acreditain que isso ocorre com frequéncia e 4% que se trata de um fenémeno muito frequente’’ £ nas decisdes envolvendo a privatizagio que a 10 politica do magistrado influencia mais acentuadamente 6 comportanie 10 do juiz: de acordo com 25% dos enirevistados, nesses casos a “politizagao das decisdes € muito freqiente, € para 31% deles €algo frequehie. Em disputas sobre a regulagio de servigos pilblicos © contratos de trabalho © crédito, os tumam se referir a e38¢ posiconianento como um reflexo do papel de promo- ver a justica social que cabe aos jufzes desempenhar, Perguntados se levados @ optar entre duas posigbes extremas — respeitar sempre os contratos, inde- pendentemente de suas repercussdes sociais, ou tomar decisées que violem 05 contratos, na busca’ da justica social. (73,1%) respondeu que optaria pela segunda alternativa, Essa ampla maioria std coma proporgao elevada, mias minoritaria, de magistrados para os quais “o compromisso com a justica social deve preponderar éobre a estrit aplicagio da lei”? A proporgio de juizes que conor sis ip io (“o juiz tem um papel social a cumprir, e a busca da justica social justifica decis6es que violem os contratos”) também varia conforme a area a que se refere a causa, e € mais forte em disputas que envolvem direitos do consumi- _dor, meio ambiente ¢ disputas trabalhistas e previden ‘05 magistrados posicionaram-se majoritariamente a favor respeitar contratos quando se trata de causas comerciais. = pt 1 One + Loni Ean iio? (© contraste entre essa posigio dos magistrados e o que, em geral, apren- dem os economistas sobre como funciona o Direito é significativo. F interes- sante observar, também, que so os juizes e os membros do Ministério Pabli- co ~ que, em tese, deveriam ser os guardides maximos da lei ¢ da inviolabilidade dos contratos - 0 grupo das elites brasileiras que propugna com mais convicgao que a Justiga se afaste da mencionada Wica do legal versus ilegal ‘A Tabela 1.1 reproduzas respostas de uma amostra estratificada de represen- tantes de varios segmentos da elite brasileira aquela pergunta feita por Pinheiro (208) ao, magia em pesquisa raids por Bolivar Lamon Amasry de Souza.® Como se vé, 0 respeito aos contratos, independentemente de suas conseqiténcias distributivas, € 6 Valor predominante entre as elites brasileiras ‘As respostas dos iiérnibros do Judicidrio €o Ministerio PUB]iGo Gestoanrinceira mente da concedida por outros segmentos, mesmo em grau, ainda que néo em sentido, dos representantes sindicas, religiosos ¢ membros de ONGs Tabla Ls Ope cnr pani ocmprimenare conte e whup dung socal, Segunloo pone devimadercis Quesdo:"Naaplcagod et exit senicment na tens er contrat qe pec ite aber, oon de sogenonwameto prepa ge reco scrmendrin Condrand acon gee ge none urscne sos oetvonepe Foon dsr pugs poate | A. Os contratos devem ser sempre respeitadas, independentemente de suas repercussies 3 iste un papel socal compris, ea bse da jac justi dese qu vo- tedveaane om in dn das poise) concord mai Concorde | Concorde | Ovtas scatome | noccome | ropes [Grandes empresiron Liderangas do segmento de ypequenase medias empresas irigentes de enidades de {epresentaio sindel Senadores deputdos federais [Execuvos do governo federal | Membros do Judicirio « do Miniter Piblico [imprensa | [Relgiosose ONG | 8 Inelecuais 20 Trout 48 Fonte: Lamounier e Souza (2002). 8 Dine, Famomia« Mercats ELSEVIER ‘Scja qual for a origem histérica de tais diferencas, etalvez exatamente por ‘causa delas, é inegivel que atualmente se compreende a necessidade de am- pliar as fronteiras entre uma e outra ciéncia humana como ponto de partida para encaminhar o debate.’ Quer pela justificativa.da estabilidade econdmi- a, hoje reconhecida como imprescindivel a um sistema legal @ficiente, quer por meio da-estabilidad® das nofinas ¢ do respeito a0s contratos, igualmente -reconhecidos como fut ol ecoiTOitico, € preciso pér-maas a obra cimar as duis reas, Por Sbvio, ainda restam muitas arestas a ser aparadas, eas difcilades de comunicagao a que se refere Stigler mostram a extrema dificuldade com que confhuem os significados ¢ os insti- twtos juridicos, assim como os conceitos da teoria econdmica, Esté claro que, para os juristas, o mundo mudow, € muito. Além disso, confirma-se a impressio comum de que os advogados nao exercem mais 0 papel que antes thes era reservado. Desde que Bolimbroke criou, € Montesquicu sistematizou, a tripartigio dos Poderes, a administracio da Jus- tiga passou a ser funcio do juiz que julga, do promotor que representa a sociedade, ¢ do advogado que defende os interesses de seus clientes. Por certo, este modelo nao pode mais se aplicar nos dias de hoje."® ‘Ao menos no que se refere ao advogado, garantiu-se a ele, no passado, 0 papel de intérprete da lei, dos direitos e dos deveres. A figura incontrastavel do bom orador e do habil negociador perdurou por pelo menos 15 séculos, ¢ ‘esté definitivamente superada. Reconhece-se, contudo, que 0 advogado é imprescindivel para assegurar que 0s interesses de seus clientes nao sejam lesados, defendé-los se houver prejufzos e servir como intermedidrio em ne- gociagdes mais diflceis. Hollywood imortalizou as sintéticas frases Talk to my lauyer ou ainda See you in court como sindnimos da importancia instrumental do advogado, profissional essencial para a preservagio de direitos fundamen- tais objetivos e subjetivos, um dos elementos mais importantes da democra-

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