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ENTRE O TEATRO E A VIDA AUGUSTO BOAL Eu vou falar do Teatro do Oprimido como um teatro limite, como um trabalho que esta dos dois lados da fronteira, entre a ficg4o e a realidade. E vou fazer isso de uma forma aberta, inconclusa, misturando a leitura de alguns trechos de um artigo que esta em esbogo com o relato de algumas experiéncias que-podem alimentar 0 nosso debate’. Vocés olhem para mim como se cu fosse um pintor rabiscando um quadro futuro. Nas linhas gerais vocés imaginem a pintura possivel. Eu vivi muito tempo na Frang: francesa o meu gosto pelo jogo de palavras: “O teatro como vida questo que quero discutir aqui. Semanas atrés, Richard Schechner ~ que é o diretor da revista The Drama Review ¢ amigo meu ha 40 anos — me pediu que escrevesse alguma coisa sobre 0 livro novo que ele vai lancar a respeito da performance. Ele compreende nesse termo aquelas formas teatrais (ou ages humanas com formato teatral) que surgem no cotidiano em situagdes nas quais a realidade se teatraliza, como uma inauguragdo de um banco, um discurso presideneial, uma partida de futebol, uma luta de boxe, uma sesso da Camara dos Deputados. E 0 conceito inclui também o desfile de uma escola de samba, a sessfio de macumba ¢ até mesmo os espeticulos de teatro, Tudo & performance. Performances seriam todas as atividades humanas organizadas de modo espetacular ¢ realizadas por “atores” que esto conscientes da organizagao, ainda que possam ignorar seus significados e razdes. E uma nogéo muito aberta que nos faz ver, por exemplo, que mesmo num espetéculo teatral de palco existe a presenga de acontecimentos tinicos, inreprodutiveis singulares — tal como aqueles que costumam aparecer na vida. E que também nos permite observar como a vida poucas vezes é original, como ela esta sujeita a gestos estabelecidos, a formalismos verbais. a movimentos pré-determinados, muito semelhantes aos que fazem os atores no paleo, E a vida reduzida a “teatro” que nos conduz a certos crimes como o de lesa-amor, que ocorre quando repetimos com pessoas diferentes as mesmas palavras, os mesmos gestos, o thesmo carinho mecanizado. Por outro lado, € nessa terra de ninguém onde o teatro é vida e a vida & teatro que surge a possibilidade de uma intervengao revitalizadora, umas das coisas a que se propde 0 Teatro do Oprimido. Infelizmente, a mecanizagio do comportamento humano vai muito além das situagdes de performance. Suas raizes so mais fundas © se expressam em muitas agdes inconscientes e banais, feitas segundo uma rotina ritualisticamente pré-estabelecida. E isso iio causa maior embarago até que cheguem os tempos de crise. Em épocas criticas (como essa que estamos vivendo agora) nossas vidas se assemelham a tios depois de uma tempestade. Vemos flutuar sobre as 4guas turbulentas inimeros destrogos que nos lembram ¢ talvez.corresponda a uma certa heranga cultural ea vida como teatro” é a "Nessa palestra, Augusto Boal leu a primeira versio do artigo “O teatro como vida e a vida como teatro” publicado no livro O Teatro como Arte Marcial, Rio de Janeiro:Garamond, 2003 e contou a historia de uma experiéncia teatral desenvolvida com empregadas domésticas, relatada no mesmo Volume com o titulo “A mulher no espelho”. A sintese aqui apresemtada, entretanto, guarda algumas diferengas significativas das duias labaragdes posteriores, 0 que justifiea sua publicayao. (N.O.) de um sentido anterior, das solidez perdida, das casas e existéncias desagregadas, a vida despedagada que passa boiando nervosamente, sem a serventia de antes. Dias atras na televisdo, o presidente Bush foi a Televisio, sentou-se ao lado de uma bandeira de seu pais, como manda o ritual desse tipo de performance, ¢ visivelmente neryoso ~ diante da ameaga do uso terrorista do antraz — - pediu calma aos norte- americanos. Intranqtiilo, pediu tranqitilidade, Ele estava fora da sua habitual rotina de presidente mas obedecia rigorosamente A rotina das manifestagées excepcionais da presidéncia. Pediu que os seus concidadaos voltassem a vida de todos os dias & qual ele proprio nao poderia voltar. ses rituais profanos e performaticos, esses diluidores das crises profundas devem muito de sua existéncia ao fato de serem estratificagdes da correlagdo de forgas entre pessoas e grupos. Formalizam desejos, vontades ¢ objetivos sociais e sua utilidade pratica advém de nao podermos ser originais o tempo todo. Nem eu, ao fazer essa conferéncia, Sem rituais ¢ sem performances a vida seria impossivel. Se estivéssemos obrigados a ser originais sempre, estariamos condenados ao caos. Nao saberiamos jamais 0 valor de cada um dos nossos atos, nem as suas conseqiléncias. Na medida, porém, em que internalizamos os habitos necessérios a nossa vida social (0 que nos permite 0 convivio 0 didlogo) vamos cristalizando valores para cada um dos nossos atos. Surgem hierarquizagdes ¢ seleg6es para cada situagdo que se nos apresenta, egras de conduta ¢ frutos proibidos. A vida social comega a impor suas regras que canalizam a violéncia, organizagies decorrentes de correlagdes de forga: quando essas regras se estratificam podem se tornar exatamente 0 contrério daquilo para o qual foram criadas. Assim, quando uma realidade & apresentada no teatro ~ sendo o fenémeno teatral uma tealidade em si mesma —a violéncia que existe na realidade ¢ transposta, transfigurada € inevitavelmente algo dela permanece na sua representago teatral. Se a vida social consiste numa estrutura de violéncias, 0 teatro no est isento dessa estratificagio e correlagdo pré-determinada. Porque o teatro ¢ a transubstanciagao cénica de um momento da vida social, contendo todas as suas contradigies e conflitos. O grande desafio de um teatro mobilizador é, portanto, lutar contra as violéneias estabelecidas socialmente ou materializadas no proprio ato teatral — 0 que acontece, por ‘exemplo, sempre que os espectadores se tornam receptores totalmente passivos das imagens que Ihe sto apresentadas, aceitando uma aparéncia de vida que flui independentemente deles. sucesso do Teatro do Oprimido em todo o mundo ~ ¢ essa idéia eu devo a meu filho Julian Boal — se deve justamente ao fato dele apresentar imagens da realidade que podem ser transformadas, remodeladas, recriadas em outras imagens desejadas, O Teatro do Oprimido retira das representagdes a violéncia estratificada que elas contém. Ele congela aquele rio portador de destrogos. Permite aos espectadores, de forma serena, 0 exercicio da inteligéncia e a criatividade. Todos so chamados a inventar realidades possiveis, libertados da condigdo de meras testemunhas de rituais dados. Os espectadores tornam-se protagonistas, tornam-se inventores. O que precisa ser analisado num trabalho do Teatro do Oprimido ¢ justamente a cortelagdo de forgas estabelecida na sociedade, do ponto de vista da liberdade oferecida aos espectadores. Ao piblico — © nao aos artistas em seu lugar ~ é oferecida a oportunidade de estudar os rituais a0s quais todos esto submetidos em suas vidas. E de, criativamente substituir esses ritos por outros mais adequados a the proporcionar felicidade. Assim sendo, o Teatro do Oprimido transita constantemente entre a vida e a fico, entre a realidade que vivemos e aquela que podemos inventar. Entre 0 passado e o presente para invadir, sobretudo, o futuro. Entretanto, para que uma cena de Teatro do Oprimido possa ser transformada pela criatividade de seus espectadores ~ e desfeita a estratificagao convencional da realidade — preciso que se compreenda a escala de valores morais que orienta a representagio. Existe hoje no mundo e no Brasil uma deliberada confusdio moral que serve para justificar e mascarar certos comportamentos nocivos. Isso que rios parece espantoso e digno de horror & considerado normal pelo presidente Fernando Henrique que aprendeu a operar numa zona cinzenta da amoralidade preconizada por um de seus amig Gianotti de nefasta figura também por acreditar que essa zona cinza deva exiStir que os Estados Unidos ~ sem terem apresentado nenhuma prova verdadeira sobre a autoria dos atentados de Nova Jorque — inicia agora uma campanha bélica no Oriente que promete ser das mais destrutivas da nossa era, Uma sessio de Teatro do Oprimido. ser er que nao so unis essas zonas cinzentas que regulamntantas performances: na hora do “pegs para capar” e do justes de conitas, tud eto, Na hora de se cobrar um milhaio ¢ meio de islets dis hiroe divida externa, 05 centavos contam ¢ nao existem ersais Da tiltima vez que. estive em Sao Paulo contei uma histéria que tenho relatado repetidas vezes desde que aconteceu em 1999. Gostaria de conti-la de nove como exemplo da importincia de se mobilizar as pessoas ao fazer com que o teatro hes devolva a confianga na transformagio da vida Ligado ao trabalho do Teatro do Oprimido no Rio de Janeiro existe um grupo de empregadas domésticas que certo dia nos procurou com o desejo de “fazer teatro dentro de um teatro”. O didlogo que se passou foi mais ou menos o seguinte: - Vocé vive nos dizendo que isso que estamos fazendo € teatro, mas s6 apresentamos na rua, em sindicatos, nas igrejas. Queremos um paleo de verdade, fazer teatro dentro de um teatro”. ~ “Mas para qué?” — eu perguntei - “Nos queremos que a pessoa va até 4 bilheteria, pegue 0 seu bilhetezinho; e queremos que 0 porteiro no sagudo rasgue 0 bilhete e devolva metade para ele; € que depois ele se sente na poltrona e veja o pano subir. Quando acontecer isso vamos acreditar que fazemos teatro.” - “Olha, voeés esqueceram que as pessoas que vir dinheiro para comprar um ingresso”. = “Nao fem importancia, entra de graga. Mas vai até a bilheteria para pegar o bithete” - “Entdo, esta certo: vamos fazer!” — foi a nossa decisio. Alugamos 0 Teatro Gloria, que é bem central ¢ organizamos um festival. Eram seis grupos, divididos em trés dias. As empregadas domésticas se apresentaram no terceiro dia, O festival inteiro teve um enorme sucesso, com espectadores vindo dos baitros, 0 teatro sempre lotado, uma enorme e substancial alegria! Ao fim da apresentagao delas vieram me avisar que uma moga estava chorando no camarim, Ficamos preocupados, imaginando que assisti-las talvez nao tenham cla lamentava alguma coisa errada, mas quando perguntamos o motivo ela disse: = “Desde a tarde, quando cheguei aqui, eu jé estava emocionada. Nés somos empregadas domésticas — e as empregadas sfo ensinadas a serem invisiveis. Nés fazemos a comida e parece que ela vai sozinha para mesa; os pratos ficam sujos e parece que se lavam sozinhos; de manba a crianga acorda, veste-se e parece que ninguém fez nada por ela. A empregada doméstica é um ser invisivel. Somos também ensinadas a ser mudas, no podemos falar. Se, de repente em volta da mesa as pessoas discutem politica, a empregada no tem o direito de dizer o que pensa, Alguém logo orienta: “Ei, vocé néo sabe nada! Tem & que votar nesse outro candidato aqui!’ Mas hoje 4 tarde, quando eu pisei no teatro, um homem no alto da escada me pediu um favor: ‘Chega um pouguinho para ca que eu quero colocar o refletor em cima de vocé!” Ele estava me iluminando para que todo mundo visse © meu corpo. E logo veio um outro que pds um microfone na minha lapela e me disse: “Mesmo com 0 microfone fala mais alto porque a sua voz. tem que ser ouvida lé na iltima fila’. Entfo, eu que sou muda, eu que sou invisivel, de repente, fui ajudada a me tornar visivel, a ser ouvida, para que minhas idéias fossem compreendidas”. E ela continuou: “Eo mais engragado era ver que na platéia, no escuro, estava sentada a familia para qual eu trabalho ha dez anos, Estava calada e ouviam tudo o que cu dizia”. ‘Aj entio eu perguntei: “Mas por que vocé chorou? Nao era pata estar feliz ao mostrar que voeé existia, pensava e se emocionava?” = “Eu chorei depois, quando entrei no camarim e me olhei no espelho. Fiquei assustada.” — ela disse agora sobriamente = Por que assustada? = Eu olhei no espelho e vi uma mulher. Foi a primeira vez, emr muitos anos que isso acontece. Antes, quando eu meu olhava no espellio, eu via uma empregada domestica, Desta vez, nfio. Eu sou uma mulher.” Ela era aquele corpo, aquele pensamento, aquelas emogdes, O teatro deu a ela o poder extraordindrio de entrar em cena, também na vida, nfo para se exibir, mas para dizer © que pensava gostar do corpo que tem. E eu sempre me pergunto: sera que cada um de nds, quando-se olha no espelho, consegue se enxergar verdadeiramente ou s6 vé aquilo que dizem que somos? E: contra essa uniformizagao cinzenta que impede o que nds verdadeiramente somos, € contra os papéis distribuidos pelos dominadores (que nos dizem também como desempenhé-los), é contra as formas morais e estéticas que nos impedem de entrar em cena criativamente que o grande teatro pode nos oferecer sua técnica a servigo da vida. Quando sonha um outro real possivel o espectador transforma as imagens estratificadas da vida social em um dinamismo de amor e desejos que evocam uma sociedade de convivio mais igualitario e menos mecanizado. E no limiar entre o teatro e a vida, entre o ideal e o real que se operam os atos transformadores, a partir de uma superagdo que s6 depende da invengao e produgao criativa dos homens. FRAGMENTOS DE UM DEBATE COM AUGUSTO BOAL PUBLICO — Como vocé avalia a situagdo do teatro brasileiro atual? BOAL — Eu nao posso falar do teatro brasileiro e tenho diividas se alguém pode. Vocés que moram em Sao Paulo talvez possam falar dg teatro paulista. Eu, quem sabe, possa falar um pouco daquilo que vejo no teatro do Rio de Janeiro. Mas no se pode dizer o que é 0 teatro brasileiro em geral. Poucos sabemos do que se passa no Norte ou Sul do pais. Nao gostaria, além do mais, que 0 meu entusiasmo com o Teatro do Oprimido desse a impressio que sou contra outras formas de teatro. Eu mesmo escrevo e dirijo pegas testemunhais, ligadas a minha histéria, Como artista, eu nélo sou um personagem, eu sou varios. E ndo gostaria que © espectador dissesse “paral” e entrasse em cena para me substituir e mostrar © que eu tenho que fazer. Isso quer dizer: eu ndo sou contra 0 teatro de paleo. Acredito que todas as formas de espeticulo so validas. Mas se falasse sobre 0 teatro brasileiro cometeria injustigas, Eu j4 vi, por exemplo, alguns espetdculos da Companhia do Lato, grupo pelo qual tenho uma profunda admiragio ~ mas nfo so as minhas escolhas que constituem 0 teatro brasileiro. Muitas experiéneias diferentes fazem parte disso, varias que eu amo, outras que cu nao gosto. E minha opinidio nao vale mais que a de ninguém. PUBLICO — Eu sou estudante-de direito ¢ quero ouvir um pouco mais sobre o Teatro Legislativo que vocé desenvolveu no seu periodo de vereador. BOAL — Quando entrei na Camara do Rio de Janeiro acontecia uma coisa que sempre me pareceu absurda: cada vereador tinha direito a 25 assistentes, além dos quais ele podia chamar mais 10 do servigo publico. Entio, eu tinha 35 pessoas & disposigao. Fiz, entio, com que a maior parte dos meus colaboradores fosse gente de teatro. Isso catsou um grande escandalo dentro da Camara: as vezes os outros vereadores passavam e nos ouviam cantando e tocando miisica no gabinete. Eles abriam a porta perguntavam: “o que esto fazendo?!”. “Nao esté venido?”, eu dizia, “estamos trabalhando”. Quando sabiamos que algum projeto errado seria vitorioso, que alguma lei estipida seria aprovada, nosso grupo se recusava a participara da votagdo e como protesto nos dirigiamos para a frente da Camara onde encendvamos uma sessao simultinea. Do lado de fora a lei iniqua era simbolicamente reprovada através de um evento teatral em que a populacdo participava. No geral, 0 que mais faziamos era a realizagao de atos politicos junto a comunidades, que deseneadeavam discusses dos problemas. Apés um espeticulo, no debate, alguém anotava as idéias que surgiam. Depois disso faziamos didlogos intercomunitérios, entre grupos diversos, para que pessoas com situagdes de opressao diferentes pudessem criar uma rede de solidariedade. Com base nessas avaliagdes iniciivamos agdes de outro tipo, algumas diretas e urgentes como levar © caso a secretirios ou ao prefeito. Ajudavamos também na abertura de processos juridicos, o que se facilitava pelo fato de eu ser presidente da Comissdio de Direitos Humanos ¢ dispor de uma equipe de advogados. E, num terceiro caso, surgiram 0s projetos de lei, O Teatro Legislativo produz intervengdes politicas, legislativas, juridicas a partir de uma consciéncia despertada pelas varias formas do Teatro do Oprimido. PUBLICO = Na sua opinifio o teatro é um lugar privilegiado para a conscientizagio politica? BOAL — O que eu procurei fazer nos tiltimos anos, em varios lugares do mundo, foi sempre incentivar as pessoas na sua luta necesséria pela transformagao da sociedade. Talvez seja isso que voc’ chama de conscientizagdo e eu prefiro chamar de [uta necessaria. *Algo que ninguém vai fazer por nds. E eu insisto em dizer: a liberdade que ¢ outorgada pode ser retirada, mas aquela que se conquista é mais dificil de se retirar. E essa a que interessa, E nessa luta o teatro ¢ muito itil porque ¢ a soma de todas as linguagens artisticas. O absurdo € que nao seja usado! Dentro de cada um de nés existe 0 ator que atua © 0 espectador que observa; n6s somos teatro. Essa capacidade reflexiva, essa coexisténcia de ser humano com o ser humano, ator ¢ espectador, & 0 primeiro elemento do que eu chamo Teatro Essencial. O segundo esta na linguagem. Na vida de todos os dias, amamos, odiamos, sofremos emogdes variadas. Em relagdo a elas, 0 ator em cena nao faz outra coisa sendio exercitar suas paixdes. Na vida de todos os dias, pensamos, mobilizamos idéias. O ator em cena no faz outra coisa senfio expressar pensamentos pelo didlogo movimento ‘Na vida de todos os dias, usamos a voz de acordo com a pessoa com que estamos falando. A voz muda conforme afetos e desafetos, assim como as inflexdes que 0 ator imprime em cena, A tinica coisa que o ator tem a mais que qualquer um de nés é a conseiéneia do uso da linguagem. O terceiro elemento do Teatro Essencial ¢ esse que se tealiza aqui nesse instante. Quando eu falo e recebo uma atengao muito grande de vocés eu me sinto poderoso porque se.cria nesse espago um outro espago. Seja qual for a forga de cada um de nés, no instante em que subimos em cena ela é multiplicada, Quando voeés, voluntariamente, ficam sentados e diminuem a necessidade de ago, fazem com que sua energia psiquica se concentre no aumento da atengao. E ela se projeta na atuagdo. Nés podiamos estar na praia. Se vocés todos estivessem olhando para cé, cu teria essa forga de teatralidade. Entao, sinteticamente, vocés (¢ todos nés) sfo teatro, falam teatro, produzem teatro. O Teatro do Oprimido € a constatagao desse fato: ser teatro é ser humano, ser humano € ser teatro. As duas coisas so a mesma, Nio existe uma sem a outa, Ensinar isso é uma tarefa importante do artista, Fazer a sua arte, claro, porque da um prazer enorme ser diretor de teatro, escrever uma pega, entrar em cena, A esse prazer nio devemos renunciar nunca. Mas a ele acrescentar um outro prazer — igualmente enorme — que 6 prazer de ensinar a fazer. Como dizia Paulo Freire, sempre que se ensina, alguma coisa se aprende.-E s6 se ensina quando se aprende. A velha liggo transmitida a um novo destinatirio implica um novo aprendizado. & o aprendizado do ensinar a fazer, uma das grandes possibilidades da arte PUBLICO — A televisfio e a cultura de massa so muito influentes na educagéio da sociedade. Até que ponto o teatro consegue combater esse poder to grande? BOAL — Para-essa questo cu eostumo sempre responder a mesma coisa: eu acho que 0 teatro é apenas um instrumento, Como tal, ele no tem poder nenhum. Quem pode ter poder € quem 0 utiliza. Nenhuma chave abre a porta. Quem abre a porta é a pessoa que empunha a chave. O teatro ¢ instrumento de possivel conhecimento e transformagao da realidade. Extremamente poderoso na medida em que nés o tornemos assim. Cada ser humano é capaz, de fazer representagdes do real. E essas representagdes embutem visdes morais ¢ politicas. Nao existe representago que seja amoral e apolitica. E preciso, portanto, m trabalho para modifiear as imagens prontas e criar novas ~ que so as imagens do desejo sempre em movimento de se mudar 0 mundo para melhor. fi evidente que ¢ um desejo poderoso, que pode tornar o teatro poderoso. Mas ¢ preciso que as pessoas possam. PUBLICO — Pelo que me parece, 0 Teatro do Oprimido se filia a trajetéria da luta dos irabalhadores, oriundas de um tempo em que as bandeiras e palavras de ordem cram mais claras porque a chance de uma revolugdo era mais concreta. Mas esse proceso revolucionério foi abortado inclusive pelos erros de Stilin, Entio eu pergunto: qual é a filiagio ideolégica do Teatro do Oprimido? Nao ha o risco dele ficar restrito discussao de migalhas numa época toda financeirizada, em que as gestdes esto amarradas com a lei de responsabilidade fiscal e com o compromisso de pagar dividas? BOAL — Mesmo sendo um movimento teatral democratico, a atuagao mais ampla do Teatro do Oprimido depende do estabelecimento de parcerias, o que vale para qualquer teatro responsavel socialmente. Ao trabalhar, por exemplo, com 0 MST? nfo temos a ilusdo que somos nés que vamos realizar a reforma agraria. O que podemos fazer & apoiar o que deve ser feito: a ocupagao das terras, Do mesmo jeito, nds nunca iremos trabalhar para o inimigo. ‘Nossos interlocutores so grupos de favelas, grupos de Iuta contra a AIDS, movimento sociais que tém uma atuagio muitas vezes ideolégica e com a qual nds estamos de acordo. O que nos eabe fazer ¢ transmitir uma técnica. N6s nfo temos mais a pretensio da bandeira, que sugere a imagem de alguém na frente ¢ todos atrés. JA tivemos um dia. Mas nossas idgias e desejos coincidem com os oprimidds, coincidem com os negros, com as mulheres violentadas, coincidem com uma porgdo de despossuidos — além dos classics camponeses e operitios, Oferecemos uma conseiéncia da linguagem para aqueles com cuja luta nos estamos de acordo. Além disso, no podemos generalizar a dificuldade de enfrentar a situago atual: existem governos mais € menos entreguistas (eu ndo tenho o menor pejo de voltar a usar termos que aparentemente foram banidos). Um governo como o de Fernando Henrique so pode ser nomeado desse jeito: entreguismo. So eles que dizem “isso € coisa do pasado”, ou que “nao existe mais esquerda e direita”, ou “a histéria acabou”. Mas se a historia acabou como explicar as torres derrubadas do World Trade Center? Como explicar as manifestagdes contrarias a0 imperialismo que os Estados Unidos exercem no mundo? ‘Tem muita gente interessada em que nao se produzam esclarecimentos hist6ricos. PUBLICO — Eu gostaria de saber se as técnicas do Teatro do Oprimido tem utilidade no teatro convencional? BOAL ~ A experiéneia registrada num livro como Jogos para atores e nao atores nasceu de anos de pritica no Teatro de Arena. Se considerarmos 0 que eu chamo de Teatro Essencial, nao existe uma separagio rigida entre Teatro do Oprimido ¢ o teatro de paleo. E por isso que as mesmas técnicas podem servir na montagem de espetdculos. Quando eu fiz ‘a Fedra’ com a Fernanda Montenegro, eu utilizava a técnica do Teatro Imagem: eu pedia aos atores que criassem imagens de como cada personagem via sua familia, ou 0 amor — imagens fisicas que influenciaram diretamente a encenagao. Ha dois anos mais ou menos eu trabalhei com a Royal Shakespeare Company. Eu experimentei com eles as técnicas introspectivas do Teatro do Oprimido, procedimentos muito elaborados e sofisticados que sualizar ¢ teatralizar conflitos subjetivos que estilo na cabega das pessoas, Esses conflitos nao podem ser contados, apenas teatralizados. De certo modo, escrevi 0 livro 0 Arco Iris do Desejo — que trata dessas técncias — com os atores oficiais da Royal Shakespeare Company num trabalho sobre as personagens do Hamlet. Eu me lembro da cena em que a Ofélia devolve ao Hamlet os presentes que recebeu dele, O mais comum nas montagens e filmes ¢ que Ofélia seja representada como uma pessoa décil, obediente. Mas nfo é preciso ir muito longe para perceber que 14 dentro do coragéio nenhuma mulher é décil e obediente. Toda mulher tem um vulcio interno, e se ele ndo se manifesta é porque a 2 0 MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, 0 mais atuante movimento de luta pela Reforma Agréria no Brasil, (N.0.) * Fedra, de Racine, montagem de 19822? coergdo do lado de fora é grande demais. A técnica do “Arco ris do Desejo” que di nome ao livro nos ajuda a ver que a relagGo de Ofilia com Hamlet tem varias cores: 0 grande amor que ela tinha por ele, a admiragiio, o medo de perdé-lo, o édio tremendo que ela sentia por alguém que dizia estar apaixonado e que renega subitamente tudo. A partir desse espectro de desejos contraditorios, a cena ficou tao explosiva que quando Hamlet diz: “Vai para convento!” € por estar apavorado com ela, Teatro € essencialmente a dicotomia que nds carregamos: é a linguagem das nossas relagdes e 0 espago estético que criamos. E isso pode aparecer em qualquer forma. PUBLICO ~ Se vocé fosse fazer uma autocritica sobre 0 Teatro do Oprimido, que aspectos ainda precisatiam ser desenvolvidos para uma maior forga de atuagao? BOAL — Nos temos discutido muito a necessidade de fazer avangar as nossas técnicas. Mesmo tendo ido muito longe, percebemos que temos problemas em algumas éreas. O trabalho com o texto ¢ uma delas, Todo mundo sabe que a palavra é uma espécie de invengGo que nflo existe: ela é um isco tragado no papel ou um som feito com a boca e as cordas vocais sem materialidade corpérea, Justamente por ser assim to flexivel ela é uma espécie de caminhfio: pode-se por a carga que quiser na palavra e ela muda de valor. A conotagéo pode ser contréria ao sentido original conforme valores atribuidos pela circunstneia ou entonacdo, Vocé pode dizer para a mulher “eu te amo” e ela sair correndo porque vocé falou “eu te amo” de um jeito que a assustou. Sao caminhées que carregam uma emogfo ou uma histéria, Essa é uma area em que precisamos avanear, em que temos trabalhado as vezes de modo genérico. J faz algum tempo que estamos trabalhando com mais cuidado literdrio junto a nossos grupos de colaboradores. Uma outra frente é a da imagem, fisica, cénica, Ela € também é uma linguagem. Sempre digo que podemos calar a boca, mas nao o corpo. Se a palavra nos exercicios precisa set mais necesséria e rica, assim ‘como as imagens, é porque o conjunto do trabalho se aproxima de uma reflexéo sobre a propria metifora. Faz algym tempo que estamos tentando no contar diretamente as coisas, buscando transposigées menos literais, mais simbélicas. Para falar das coisas de hoje as vezes é preciso essa volta metat io caminhos antigos que precisam ser reabertos. PUBLICO — Minha pergunta € sobre a sua experiéncia com 0 teatro épico de Brecht. Gostaria que vocé explicasse um pouco também sobre o distanciamento do ator para com a personagem. BOAL — Quando eu vim para Sao Paulo ainda trabalhava por aqui um maravilhoso palhago de circo chamado Piolim. Era o ator mais brechtiano que eu ja vi: criava a personagem e a mostrava para o piblico. O Efeito-V ~ que tem em alemio um nome ameagador, Verfremdungseffekt — era praticado por Piolim quando fazia 0 espectador ver que a personagem é um ¢ ele outro, demonstrando a relagio entre um ¢ outro. Quando alguém conta uma piada, seja de que nacionalidade for, sempre ocorre um distanciamento do caso: o japonés que se chama Manuel é um outro. que no eu, é um objeto. Basicamente € isso. Mas a genial invengilo € pegar uma coisa extremamente simples ¢ torné-la uma ferramenta de trabalho, é nos fazer ver algo que passava despercebido na nossa frente e dar- Ihe um sentido novo. Em 1960, olha que o tempo ja vai longe, eu escrevi a pega Revolugdo na América do Sul, Era um momento em que Brecht ainda ndo era muito conhecido no Brasil, mas estava comegando a ser. E nds estudvamos muito sua obra no Arena, ¢ ineorpordvamos varios prinefpios como a interrupeio da ago, a interferéncia da musica narrativa. Foram prineipios que eu re-elaborei & minha maneira, E claro que fui influenciado pelo Brecht nesse momento. Eu nao gosto muito de falar em influéneias porque isso pode dar a idéia que existe uma linha direta, quando na verdade so muitas as influéneias a que estamos sujeitos. Na época do Seminério de Dramaturgia do Arena estudévamos muitos autores, dos gregos aos contemporineos. Tinhamos aulas com professores convidados como Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado, Sabato Malgadi Junto com eles veio Brecht ~ e veio com a forca de um reconhecimento mundial. Mas na conta das minhas influéneias, o importante & que elas foram boas.

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