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1 A primeira entrevista A primeira entrevista em psicologia é provavelmente um momentos mais importantes em um trabalho psicotera- ides — is que dizem ico e guarda diversas peculiar speito a sua finalidade e ao contexto no qual se da. A entre- e tem por finalidade um processo psicoterapéutico em lrério particular tem limites ¢ exigéncias de certa forma centes dos exigidos em uma entrevista de triagem institu- D ap a para at nto grupal é diferente da primeira entrevista para um sti mesmo modo, neira entrevi assim como a primeira entrevista com os familia~ s de uma erianga ou de um adolescente é diferente da pri- a entrevista com o proprio adolescente ou com a propria Yo entanto, gt dam entri nas significa- pretendo abordar neste capitulo, JA de inicio é bom lembearmos que, quando falamos em ira entrevista, no necessariamente estamo-nos referin- 1 um tinico encontro, mas a um conjunto de sess6es que Lian Meyer F 20 € Karina Okajima Fukuritsu (orgs) permitirdo que terapeuta e cliente se conhegam e estabelecam 0 “se” e o “como” de um processo terapéutico — isto é, se exis- te a necessidade de terapia, se ela deve ser feita com aquele terapeuta e como poderd ser desenvolvida Isso posto, € hora de colocarmos uma primeita questi quando comega a primeira entrevista? Ela tem inicio ainda quan- do 0 terapeuta esté muito Jonge, no momento em que o clien- te recebe uma indicagio ou quando se decide a procurar tera~ pia para lidar com questdes que o alligem, Naquele momento j comegam as fantasias sobre como poderd ser esse encontro, sobre como poderd ser a pessoa que o atendera. De maneira geral, a psicoterapia ainda nao é uma primeira opcao para quem depara com um sofrimento emocional com 0 qual nao pode lidar sozinho. Antes da terapia, via de regra, so tentadas outras solugdes — do apelo a uma possivel forca de vontade ou a livros de autoajuda ao pedido de socorro a amigos ou auto- ridades religiosas ou médicas, além da possivel busca de solu- gSes magicas que tragam pouca ou nenhuma dor, Para a maioria das pessoas, somente quando essas alternativas nao dao respostas satisfatérias a possibilidade de proceso psico- teraptutico é de fato tomada a sério. Esse caminho de busca de alternativas anteriores a terapia nGo é ruim, pois j4 configura o inicio do processo terapéutico, sobretudo porque denota que a pessoa jé est em contato com seu sofrimento ¢ busca solugdes para transformé-lo em eresci- mento, mesmo que nao se dé conta disso de modo explicito. Alguns individuos que procuram a terapia logo depois de uma indicagdo médica, por exemplo, raramente fazem de fato um proceso terapéutico, pois essa busca costuma apoiar-se em uma expectativa magica, quase sempre frustrada ja na primei- rica, a relagdo pscoterapEutica eo maneja em Gestal-terapia ‘a entrevista ~ quando a pessoa percebe que no hé mégicas em psicoterapia, mas trabalho conjunto e, no mais das vezes, ‘rduo. Tendo a ficar esperangoso ante um processo terapéuti- co quando a pessoa me conta que h4 um bom tempo tem uma indicagao para a terapia. Nesses casos, é enorme a probabili- dade de que ela jé tenha comegado a enfrentar o dificil dilema que vive ¢ tenha encontrado a safda na coragem de se expor a si por meio da exposigao de si a um psicoterapeuta, Fazer terapia é uma aventura tanto para o cliente quanto para o terapeuta. Significa, no caso do primeiro, dispor-se a se defrontar com aspectos de si que ndo conhece bem ou teme, correr 0 risco de aceitar ¢ promover mudangas as vezes muito doloridas na prépria vida, ter de se desacomodar de anacr6- nicas € aparentemente confortveis posigdes j4 conhecidas, em geral conquistadas depois de muita luta. Fazer terapia sig- nifica abrir-se para se conhecer até atingir 0 ponto de abrir-se com curiosidade para desconhecer-se com confianca. Significa propor-se a se flexibilizar de tal modo que possa ampliar 0 diglogo, sempre necessério, entre a mudanga ¢ a permanéncia no modo de ser ¢ de viver, de modo que as permanéncias nao enrijecidas sustentem as mudanas atualizadoras. A pessoa que procura terapia intui isso e, a0 fazé-lo, sente medo. Por isso, precisa de coragem, o combustivel nutridor da terapia e também da prépria vida, Assim, uma vez que a pessoa encontra essa coragem ne- cessdria para se propor a aventura da terapia, resta escolher com quem se daré 0 processo. Como encontrar um terapeuta? O caminho habitual é a indicacZo feita por pessoas confiéveis. Menos comuns, mas crescentes, so as buscas pela internet ou pelo rol de profissionais de um convénio médico. 1 lan Meyer Frazaoe Karina Okajima Fu its (ors) Escolhida a pessoa que poder ser o terapeuta, o préximo passo diz respeito a como entrar em contato com ela. Prepon- dera ainda, ¢ assim ser, creio, por muito tempo, 0 telefone. Mas ha outras possibilidades: as redes sociais, o e-mail, a ida pessoalmente ao enderego para marcar a primeira entrevista. Sobretudo a partir desse ponto, a relago terapéutica ad quire contornos mais consistentes. O cliente jé tem uma fanta- sia mais préxima do real sobre como seré o psicoterapeuta, fantasias mais precisas sobre 0 contetido do primeiro encon- tro; jd avangou um pouco mais no comeso da terapia. O grau dessas expectativas ¢, mais especialmente, quanto tais expectativas estiio calcadas na realidade serao alguns dos pon- tos fundamentais para o sucesso ou o fracasso da entrevista inicial, Se as expectativas do cliente esto distantes da possibi- lidade e das limitagdes de uma intervengio psicoterapéutica — em outros termos, se o cliente espera demais da psicoterapia e/ ou do psicoterapeuta -, no é raro que sua frustrago venga a coragem € o inicio da psicoterapia seja postergado. ‘Vejo trés caminhos mais comuns para 0 primeiro agenda- mento: o terapeuta tem uma secretéria; o terapeuta tem uma secretéria eletrénica; o proprio terapeuta atende ao telefone. ‘No primeiro caso, quando o terapeuta tem uma secreté- ria que se incumbe do agendamento da primeira entrevista, quero ressaltar dois aspectos. De um lado, 0 fato de o tera- peuta perder parte importante do primeiro contato e deixar de perceber alguns aspectos (tom de voz, desenvoltura na fala ao telefone, facilidade ou dificuldade para agendar um horario comum, entre outros aspectos), percep¢do essa que no ha como delegar a uma secretaria, por mais sensivel e experiente que ela seja. De outro lado, nesses casos 0 tera- “4 A clinica, arelagao pscoterapeutica e o manejo em Gestal-terapa peuta recebe o cliente pessoalmente, nao tendo sobre ele uma impressdo anterior provocada pelo contato telefonico, Um meio-termo comum no meio terapéutico, ¢ 0 método de que mais gosto, é a secretaria atender o primeiro telefonema, re- colher os dados do cliente e avisar que o terapeuta ligard tao logo possa para marcar a primeira entrevista, Esse procedi- mento afasta a terapia de uma posigdo mais autoritéria - ti0 comum ao meio médico. ‘Também no caso do segundo caminho, o da secretéria eletrénica, quero apontar dois aspectos, além de lembrar que as vezes 6 dificil compreender as gravacées. Um é certa des vantagem derivada do fato de que certas pessoas no se sen- tem A vontade para deixar recado em secretdria eletrdnica e podem desistir. © outro aspecto, uma vantagem desse recurso, E que ele possibilita ao terapeuta estar dispontvel para receber recados sem o Gnus financeiro da contratagio de uma secreté- ria - a no ser no caso de instituigdes ou de clinicas que con- sgreguem um bom miimero de terapeutas, as demandas de um psicoterapeuta para com uma secretaria tendem a ser tao poucas que no justificam esse tipo de colaboracio. O terceiro caminho, que se dé quando o terapeuta atende a0 telefone (geralmente celular) pessoalmente e o cliente jé de inicio conhece ao menos sua vor, é no meu modo de ver, 0 melhor. J4 no primeiro contato telefénico as pessoas come- cama se conhecer e a verificar a possibilidade de um encontro terapéutico. Aqui valem as observagdes para 0 caso em que 0 terapeuta retorna a ligagao de um possivel cliente: nesse con- tato jd se podem observar algumas caracteristicas da pessoa, suas disponibilidades, dificuldades iniciais e repercussdes ge- radas no terapeuta por essa primeira conversa. 15 an Mayer Frazio e Karla Glejima Fukumitsu (ores) £ fundamental que no contato telefénico 0 terapeuta esteja tranquilo ¢ disponivel para seu cliente, sobretudo quan- do ele retorna uma ligacao. Nada de pressa, nada de chama- das entre uma sesso ¢ outra. E melhor ligar um pouco mais tarde que apressadamente, pois o cliente est atento e sensivel a qualquer pressio que possa vir do terapeuta, Um dos pontos nes quais encontramos 0 maior mimero de estratégias entre os terapeutas ¢ muito comumente jé apa- rece nesse primeiro contato telefbnico diz respeito ao prego do atendimento, £ comum o cliente perguntar sobre o valor das sessdes — quase sempre fator deeisivo para que cle marque uma primeira entrevista ou no. Como a questo financeira pode ser fundamental para a consecugio de uma terapia, di- versos terapeutas preferem nao cobrar a primeira entrevista, argumentando que assim podem ter outras fundamentagoes para verificar se atenderio — ou ndo — essa pessoa ¢ se fario = ou nao ~ um acordo quanto ao prego das sessGes seguintes. Outros terapeutas preferem cobrar essa primeira entrevista, argumentando que se trata de trabalho, devendo este ser re- munerado. Para mim, esse é um dos pontos mais controversos do inicio de terapia, © que obriga cada terapeuta a buscar a melhor solugio para esse problema, Ao longo desses tantos anos em que sou terapeuta, jé tentei todas as possibilidades que minha criatividade permitiu; para cada possibilidade es- colhida, novos problemas se apresentaram, de modo que hoje acredito que, como em muitos aspectos da terapia, 0 profis- sional deve ter uma flexibilidade que the possibilite escolher a cada caso a melhor postura. Ainda assim, penso que € neces- sdria uma postura-padrao, referencial e nao rigida. Nesse as- pecto, quando me perguntam quanto custa a sessio, respondo 16 ‘clinica, arelasto psicaterapdutia e 0 manejo.em Gestalt-terapia que a primeira delas custaré determinado valor ¢ combinare- mos o valor das demais pessoalmente. Acredito que isso da & pessoa um pardmetro sobre o custo de um proceso terapéu- tico a0 mesmo tempo que sinaliza a possibilidade de flexibili- zacao do prego em fungéo das disponibilidades do terapeuta edo cliente, Até aqui estou tratando somente do caso, mais comum, em que o cliente encontra uma indicagdo de terapeuta € 0 procura para verificar se podem trabalhar juntos. Mas ha ou tra possibilidade que néo posso deixar de comentar. E 0 que ocorte com os que recebem indicag&o de mais de um terapeu- ta e resolvem marcar entrevista com todos eles para decidir com quem fatio terapia. Nesses casos, hd ainda duas possibi- lidades: 0 cliente anuncia ja no inicio que vai estar (ou ja este- ve) com outras pessoas, ou deixa para fazer esse antincio no fim da sesséo ~ € muito raro a pessoa nessa situagio nao contar o fato ao terapeuta. £ comum que os individuos que agendam entrevistas com varios profissionais nfio deem continuidade ao processo tera~ péutico. E importante realgar que essa postura é qualitativa- mente muito diversa da postura daquela pessoa que experi- mentou um primeiro contato com um terapeuta, nao conseguiu sentir-se suficientemente bem acolhida, encerrou laramente qualquer poss{vel compromisso com ele ¢ marcou uum primeiro contato com outro terapeuta. O cliente que chega € ainda um estranho que nos procura porque softe. Ele vem porque acredita na possibilidade de ter ajuda ¢ também de confiar no terapeuta que o espera. A pro- cura da terapia é sinal de que o cliente tem esperanca de me- Ihorar sua qualidade de vida. Nos devemos acolhé-lo em sew sofrimento e verificar a possibilidade de, por meio de um pro- cesso psicoterapéutico, ajudé-lo a transformar esse sofrimen- to em crescimento. Receber essa pessoa pela primeira vez exi- ge alguns cuidados com o ambiente e conosco. primeito e mais importante desses cuidados diz respei- to ao tempo: embora a durago média de uma sesso de psi- coterapia seja de 50 minutos, entendo que a primeira entre- vista exige do terapeuta cuidado de prever um tempo mais cléstico para ampliar ou diminuir a duragao desse atendimen- to, dado que esse primeiro contato é um dos mais imprevisi- veis. Costumo deixar para o primciro encontro pelo menos 0 tempo correspondente a uma sessiio e meia. O segundo cuidado basico e concreto diz respeito ao tera- peuta ¢ ao seu ambiente de trabalho, importante que 0 clien- te perceba que 0 profissional se preparou para recebé-lo pela primeira ver ~ 0 terapeuta est4 adequadamente vestido, a re- cepcdo ¢ a sala de atendimento esto cuidadas, ha um banhei ro que ele pode usaz sem pressa, 0 terapeuta esté disponivel na hora aprazada. Além disso, a sala, mesmo sendo do terapeuta, deve guardar espago suficiente para ser também do cliente, pois um dos quesitos para uma terapia bem-sucedida € que este também possa se apropriar daquele espago. Coneretudes realizadas, € hora de refletirmos um pouco mais sobre as necessérias atitudes do terapeuta nessa primeira acolhida, sobretudo aquelas que dizem respeito a ele mesmo, Aquilo a que precisa estar atento a si para permanecer aberto e disponivel, O processo psicoterapéutico como um todo se sustenta em especial em dois pilares, a relagao terapéutica © a compreensio diagndstica, ¢ isso é valido também para a pri- meira entrevista, de modo que darei especial atengio a eles 18 2 clinica, a relacae pscoterapéu 1a.¢ o manejo em Gestat-terapia daqui em diante. Alguns procedimentos paradoxais sio de vital importdncia. Comentarei quatro deles, que me parecem ‘os mais relevantes. © primeito desses paradoxos pode ser traduzido pela busca da postura de nao procurar para poder encontrar, Em outros termos: € preciso que o terapeuta, num primeiro mo- mento, esvazie-se 0 mais possivel diante de seu nove cliente, a ponto de se abrir para se surpreender com ele. Olhar com in- teresse para essa pessoa que chega, deixar-se impressionar por ela sem, a priori, procurar possiveis patologias ou potenciais ainda no desenvolvidos, sem ter um roteiro prévio para a entrevista. Afinal, a condugdo do processo é feita pelo cliente, nao pelo terapeuta. Isso quer dizer que, mesmo tendo uma abordagem que norteia seu olhar para seu cliente, o terapeuta é, em iiltima instancia, um individuo ferido diante de outro individuo ferido, um ser humano diante de outro ser humano, tuma pessoa que se dispde a verificar se pode ajudar profissio- nalmente a outra O segundo paradoxo, que comecei a anunciar anterior nente, vem da expectativa do cliente de encontrar ajuda com © terapeuta. De certa forma, o cliente procura um especialista € precisa encontrar, antes de tudo, um ser humano, Trata-se sem diivida de um especialista, de um estudioso de sua tea, com conhecimentos técnicos e tedricos que poderd colocar a servigo de seu cliente, No entanto, o terapeuta néo tem certeza, a prinefpio, de que scu servigo e seu arsenal te6rico cro titeis Aquele que o procura. A Gnica erenga que um tera peuta pode ter no comeco é a de que somente um ser humano pode acolher outro ser humano em momentos de intensa an- aiistia, de sofrimento ou de impasses paralisantes, O cliente 1 Meyer Frazdo e Karina Okajima Fukumitsu (orgs) procura a técnica, 0 especialista, mas precisa receber primeiro acompaixio, mattiz da empatia tao fundamental para a rela- gio terapéutica, A compaixao, entendida aqui como um “sen- timento piedoso exclusivamente humano de simpatia para com a tragédia pessoal de outrem, acompanhado do desejo de minoré-la” (Houaiss e Vilar, 2001, p. 773), néo significa me- nosprezo pelo outro ou falta de confianga na capacidade dele de transformar sua dor atual em trampolim para crescimento —a compaixdo provém do reconhecimento e do compartilha- mento da condigio humana, as vezes tio precéria diante das demandas da existéncia. O terceiro paradoxo da terapia e da primeira entrevista € 6 fato de que, embora deva receber humana ¢ humildemente seu novo cliente, o terapeuta nao é obrigado a atender essa pessoa em terapia, Acolher para uma primeira entrevista no 6 mesmo que se comprometer a iniciar um processo psicote- rapéutico com a pessoa acolhida. Assim como o cliente nao dé a0 terapeuta garantia de que permanecera em terapia até que se sinta confiante pata tanto, também o terapeuta tem o dever de se perguntar se tem condigdes de firmar com essa pessoa um compromisso que promete ser intenso e duradouro (até mesmo as psicoterapias breves sio suficientemente duradou- ras para obrigar essa pergunta). Uma das perguntas que costu- mo me fazer quando recebo alguém para a primeira entrevista é se a pessoa toca meus sentimentos, provoca-me, instiga-me, se me sinto esperancoso em um trabalho com ela. Dai decor- rem outras questdes: essa comogao é suficientemente confidvel para um trabalho duradouro? Essa esperanga tem mesmo re ago com 0 encontro ou um a priori que introjetei? Meu conhecimento terapéutico 6 bom o bastante para atender essa ‘A clinica, a relagdo psicaterapéutica e 0 manejo em Gestat-trapia pessoa? Algum preconceito meu pode atrapalhar esse traba Iho? Posso mesmo encarar essa aventura? Além dessas questdes, ha outras igualmente importantes, ligadas a fatores mais objetivos, como o pagamento pelo tra- balho e os horarios. Por exemplo, para que um terapeuta acei- te trabalhar por um valor simbélico ou em um horétio mais incomum, como aos sébados, ele precisa se perguntar se pode manter esse compromisso por um periodo imprevisivel. O te- rapeuta que aceita receber um cliente aos sdbados porque precisa trabalhar poderé manter esse hordrio quando sua agenda estiver tio cheia que Ihe permita viajar nos fins de se- mana? Ou diante dessa condigio ele trairé seu cliente ¢ Ihe dird, ainda que de forma delicada, que procure outro terapeu- ta? Claro que nao me refiro a condigdes imprevistveis a prin- cipio - um novo emprego, mudanga de cidade ou de profissio =, mas Aquilo que pode ser antevisto quando se olha para 0 futuro e se fazem escolhas. O quarto paradoxo tem relagiio com uma aparente ansie- dade por parte do terapeuta. A primeira entrevista 6 mobiliza- dora também para ele, nfo s6 para o cliente, sendo preciso aceitar isso. Recebemos uma pessoa que nao conhecemos, que nos traré uma demanda & qual nfo sabemos se poderemos corresponder; nao temos ideia de como aquele encontro nos tocaré em relagao a nossos valores, crengas, esperangas, senti- mentos, formas de lidar com o belo ¢ 0 tragico da vida. Inde- pendentemente dos anos de prética do terapeuta, a primeira entrevista mobiliza, faz-nos viver 0 que Perls, Hefferline ¢ Goodman (1997, p. 45) chamam de “excitagao do crescimen- to ctiativo"= que nfo pode ser confundida com a ansiedade propriamente dita, embora com ela se parega. A excitagao do 1 Meyer Frazdoe Karina Okajima Fuku! crescimento criativo € uma vivéncia de ampliagéo da aware ness ¢ da energia que nos permite nos colocarmos mais ple mente ante uma situacdo; é, por exemplo, o que vive um artis- entagio 's antes de pisar no paleo para uma apr 1a se assemelha a ansiedade porque também aqui ‘© corpo fica mais aceso, mais pronto para a ago, a qual se ¢ ¢ possibilitaré 0 escoamento dessa excitacio. Em sintese, ha no terapeuta que faz a primeira entrevista uma cial que precisa ser suportada, pois ela possi- mobilizagio ‘a que a presenga valha a pena. ansiedade (ai, sim, ansiedade mes- mo) que quero comentas, ainda que de modo sucinto, é a que deriva da necessidade sucesso, ou de fazer uma entrevista boa e conquistar mais um Uma forma de posst c 0 terapeuta possa sentir de fazer inte. A primeira entrevista ndo é 0 momento de mostrar servigo, mas de servit, Em outros termos: 0 terapeuta 130 eve se preocupar em parecer bom ou especialmente compe- tente, mas em estar ~ humanamente — presente. De outra for- ma ainda: ao psicoterapeuta compete facilitar ao cliente a expressio de sua vivéncia ea ampliago da esperanca de transformar essa dor em atualizago com sentido, ¢ isso s6 se 4 com a presenga viva e sensivel de outro sex humano. m quinto t6pico diz respeito a uma pergunta que o tera- peuta deve se fazer em todo esse inicio de trabalho: seré que Esse caminho seria 0 essa pessoa precisa mesmo de terapi melhor para ela? Nao podemos cair na tentagio de acreditar que se alguém nos procura porque necessita de psicoterapia. colher um pedido de mento psicoteraptutico é ajudar a pessoa a verificar se © que de melhor podemos fazer a0 atend de fato esse 6 0 melhor para ela naquele momento. Terapia A clinica, a relagao psicoterape ieoem Ges erapia no é para todo mundo ~ muito menos para todos os momen- tos da vida. Como eu afirmava ao tratar do primeiro paradoxo da relagdo terapéutica na entrevista inicial, 0 terapeuta precisa confiar quando se esvazia para se surpreender cor seu te, pois esse esvaziamento influenciaré a observagao que 0 terapeura faré durante a primeira sesso, provocando certa flutuagao na formagao de figuras ¢ uma posterior ¢ involunté- ria concentragao em aspectos que, a0 mesmo tempo, se real- aro no contato cor inte, num movimento pelo encontram 0 fendmeno que se mostra ¢ 0 observador que esta para ver. Tal movimento permitiré a ompreensio diagnds- tica, um dos pilares dos primeiros atendimentos, na medida em que conduziré o olhar do terapeuta para os pontos cuja nao, do observagio é necessdria para a recomendagio, lém de embasar a cio de um processo psicoterapéutico, tégia teraputica que sera proposta. A compreensio diagnés- tica, por exemplo, possibilitard a proposigao de uma terapia ‘is breve ou mais longa, a frequéncia de sess6es semanais, a necessidade de recursos adicionais (trabal um psiquiatra ou com outro profissional da satide) ete. Além disso, determinaré a melhor poscura do terapeuta diante da- quele cliente especifico. Antes de falar da compreensio diagnéstica propriamente dita, € preciso que atentemos para algo extr como bem nos lembra Yontef (1998, p. 279): evitar diagnosticar. A nossa opgao é fazé- ite Sbvio, ‘Nao podemos de maneira super- , de maneira bem pon- icial ou nao deliberada ou, a0 contra: derada e com awareness completa”. Um passo importante do fapeuta para se abrir & awareness mais completa na com- 2a Meyer Feazto e Karina Okajima Fuku sempre inacabada ao longo da vida, de conhecer hece. £ parte do treinamento do terapeuta buscar ter a melhor nogao posstvel de seu padrao de estar no mundo, de se relacionar e de perceber as pessoas. Grande parte do nosso modo de perceber é dada pelo que herdamos, pelas construgées que fazemos vida afora, pelos va- lores que nos © ria, pelas nossas habi- lidades, pelos nossos horizontes. Algumas pessoas veem muito ras so detalhistas, outras ainda preensio diagnéstica é a tentati ntam, pela nossa b melhor do que ouvem, tém visio ampla; ha pessoas que percebem primeiro com 0 corago e outras que so mais cerebrais. Ou seja, ha uma par- vemos te do nosso jeito de perceber, mais habilidosa, que como natural, competindo a nés redescobri-la ¢ aprimord-la sempre. Mas ha também detalhes da percepeo que nos s4o mais dificcis, chegando mesmo a constituir escotomas, que também exigem atengZo ¢ busca de conscientizagio. Vou levantar agora alguns pontos que me parecem mais sig- nificativos para a compreensao diagnéstica na primeira entrevista. De in disciplinar. E fundamental que o psiedlogo tenha sensibili- dade e conhecimento suficiente para encaminhar seu cliente para avaliagdo médica sempre que perceber que isso pode ser ttil para o cliente ¢ tranquilizador para o trabalho efeti vamente psicoterapéutico, No caso de sofrimentos que cessitem de apoio psiquidtrico para que a psicoterapia seja efetiva, vale a regra de exigir uma avaliacdo médica antes de iniciar 0 processo psicoterapéutico. Nesses casos, muitas ve~ 9, analisemos o trabalho multiprofissional inter- zes, a depender da compreensao diagndstica, é fundamental liente que o psicoterapeuta nao inicie a terapia antes que 0 v4 ao psiquiatra. ‘ nejo em Gestalt-terapia A compreensio diagndstica & um exercicio de observagao fundamentada na abertura perceptiva e na profunda confianga na formagio de sentido do observado e do vivido pelo terapeu- a. Buscamos compreender, entre outras coisas, como: como 0 iente é diante do terapeuta; como ele se relacionas como é seu indo; como ele gesticula; como fala; como ouve; como se movimenta pelos caminhos da vida; como se dé conta de como se repete e como se surpreende; como lida com o tempo © com 0 espago; como ele se desenv. 8; que poten explora e quais evita, e como faz issos que ajustamentos criati- laces vos ele fez, faz e/ou poder fazer; que sabedorias ele tem e reco- nhece, que sabedorias tem e no reconhece, como faz ou nio ses reconhecimentos, que sabedorias nao tem; como ele se la e como se descuida; como lida com os sentimentos; como lida com sua sexual ade; como la com os mistérios da vidas ja com a religiosidades como se aprop valores que o orientam; como sonha e como lida com seus so- u, ou nao, dos 3 como da significado e sentido a sua histéria: como ele se lembra; como lida com as lembrangas; se brinca e como bi ele esté, esteve © n ica esteves como gostaria e como tard de estar. Vale também prestar atencao ao tipo de légica «que orienta sua fala, aos valores que se vo mostrando nas en- trelinhas, as sutis associagdes que se vio fazendo, ou nao, entre jas que a pessoa expde. “Como” é a palavra-chave para a compreensio diagnéstica na abordagem gest ica, € embora esas questdes necessitem de tempo para ser observadas j4 na imeira entrevista algumas se destacam e fundamentam a in- 20, ou nao, da terapia ~e o como dela lém dessas observacdes mais amplas, ha uma, mai ira entrevista: a queixa e wecifica, que é fundamental na pi Lllan Meyer Frazdo e Karina Okajima Fukumitsu (orgs) que o cliente traz & terapia. Como ela é? Como é vivida e re- latada pelo cliente? Que sentido ele dé a ela? Nao que a quei- xa seja decisiva para a terapia, pois esta, embora a considere profundamente, ndo se ocupard primordialmente dela; mas sim do jeito de ser da pessoa. A queixa € 0 meio pelo qual a pessoa chega ao terapeuta, devendo esse caminho ser confir- mado e acolhido. Ela é a ferida que esta exposta, & a dor que evidencia um sofrimento, é 0 modo por intermédio do qual as potencialidades agora disponiveis, mas ainda nao atualizadas, pedem passage, A queixa aponta um sentido para as possi veis e necessarias mudangas; por isso, 0 trabalho terapéutico niio pode se esgorar nela, devendo mover-se em diregio a esse sentido a fim de que a queixa cumpra sua missio e deixe de ser necesséiria por ja ter promovido a satide suficiente agora Se a compreensio diagnéstica for bem-feita, permitira que a primeira entrevista levante questdes e pontos que apa- recerfo na terapia ao longo de muito tempo. Se for capaz de compreender o jeito Ue ser de seu cliente, o terapeuta poderd ajudar a retomada de seu crescimento porque tera uma base mais s6lida para se aventurar na relagdo terapéutica, e tam- bém poderd fazer prognésticos, aventar possibilidades, tragar estratégias e horizontes suficientemente amplos para © pro- cesso terapéutico, Isso, por sua vez, Ihe possibilitars ser um melhor facilitador para as atualizagdes de que essa pessoa precisa agora. O didlogo é o caminho por exceléncia do processo psico- terapéutico desde o inicio, Assim, ainda que seja comum, na le nao pode ser 86 ouvidos; precisa mostrar ao cliente como o compreende sessiio inicial, 0 terapeuta mais ouvir que falar, € como entende a situagao que o traz 4 terapia. Essa demons. ia; a relacdo psicoterapeutica @0 manele em Gestat-teraph ico de compreensio e acolhimento se dé sobretudo pela comunicago verbal e nao verbal, Esta tiltima denota mais cla- mente a presenga do terapeuta, mas o que se diz ao cliente no primeiro encontro é de igual importancia. f preciso que 0 profissional comente o prognéstico que imagina para o traba- tho, Nessa comunicagio sio necessérias clareza e sensibilidade (especialmente para nfo ser invasivo ou ameacador), Funda- mental ainda é verificar se o que foi dito foi de fato compreen- dlido pelo cliente, Em decorréncia disso, essa comunicacio deve ser feita, o mais possfvel, no vocabulirio do cliente. Um posicionamento ético, que jé estava presente em todo © cuidado com a hospitalidade, com a relagao terapéutica ¢ com a compreensao diagnéstica, fica ainda mais realado no cuidado em nio fazer falsas promessas, em néo prometer curas, mas em demonstrar, quando € 0 caso, confianga em que a psi- coterapia seja um recurso sélido e indicado para que o cliente lide com eficacia com as questaes que 0 afligem, Tal postura conduziré também o terapeuta no ultimo passo da primeira entrevista, 0 estabelecimento do contrato terapéutico. Este se dé como conclusio da primeira entrevista, confi- ando a abertura para 0 processo terapéutico. Ele € feito entre o terapeuta ¢ o cliente (ou também entre o terapeuta € 0s responsaveis pelo cliente no caso de atendimento, por exemplo, de criangas, adolescentes e alguns idosos) e estabe- lece as regras basicas que regerdo o trabalho. Embora 0 as- sunto seja mais profundamente discutido neste mesmo volu- ne, gostaria de tecer algumas consideragdes sobre ele. Baseado na alianga terapéutica, isto é, na confianga de que essa pessoa tem savide suficiente para assumir sua parte no trabalho tera- péutico, esse contrato serve para que se esclaregam, entre ou- Lian Meyer Frazdo eKerina Okajima Fukumitsu (orgs) tros, 0 procedimentos a ser adotados com relagio a horétios, a faltas do cliente ou do terapeuta, a reposicao de horatios, a férias ¢ feriados, remuneracdo, a disponibilidade do tera- peuta fora dos hordrios estabelecidos e ao tempo da terapia nos casos de psicoterapia breve. © contrato tem a mesma base de todo o proceso terapéutico: uma profunda aposta no diilogo ¢ na disposigao de os dois participantes, cliente e te- rapeuta, confiarem no sentido ¢ na qualidade da jornada na qual se aventuram a partir de agora. Dessa forma, por ser baseado na confianga, em terapias nao institucionais é melhor que esse contrato seja verbal, no por escrito, preservando assim a confiabilidade miitua, principio pétreo da relagio te- raptutica dialdgica. Para finalizar, alguns comentarios sobre questées espar- sas, a comecar pelo fato de que mesmo o mais cuidadoso ¢ atento dos terapeutas nfo tem garantia de que o cliente aten- dido em primeira entrevista retorne. Hi tantas e tao comple- xas varidveis envolvidas nesse processo de primeiro contato que muitas vezes, mesmo cle sendo bom ¢ terapéutico, a pes- soa no volta. Independentemente do fato de a terapia conti- nuar ou ndo apés a primeira entrevista, o terapeuta deve cui- dar para que esse primeiro encontro seja, por si s6, terapéutico, Para tanto, é preciso que a relacdo possa facilitar o didlogo entre terapeuta c cliente e do cliente consigo mesmo. Como todo dislogo, nenhuma primeira entrevista ser igual a qualquer outra. Embora se possam seguir procedimen- tos basicos, ela é sempre fruto do momento, uma situagdo tera- ptutica nica, pois apresenta varidveis que dependerdo de cada situagio terapéutica, de cada terapeuta e de cada paciente - de cada campo, enfim, Dessa forma, é preciso que o terapeuta 28 , . ‘A clea, arlag3o psicoterapeutics e o manejo em Gestat-terapia considere sempre suas possibilidades e limitagdes e também as possibilidades e limitagdes que percebe em seu cliente. Algo que esta implicito em tudo que discutimos até aqui « precisa ser explicitado é que é de suma importéncia que 0 cliente perceba que esta sendo compreendido como responsé- pela sua vida, como suficientemente competente para lidar consigo mesmo, ainda que de forma que Ihe pareca nao ideal. f por ser capaz de cuidar de si que ele péde buscar ajuda quando se deu conta de que nao conseguiria lidar sozinho com o que vive no momento. Por fim, quero empregar outra palavra que nao esta ex- plicitada no texto mas permeou todas as consideragies. A pri- meira entrevista serve para o cliente perceber se é capaz de despertar e receber 0 amor de que precisa para sair do lugar conhecido e sofrido e rentar encontrar um lugar aquecido e atualizado. Para o terapeuta, é © momento de descobrir se pode, ou nao, aproximar-se amorosamente daquela pessoa; se no se sentir com essa abertura, que consiga a0 menos, delicada e respeitosamente, encaminhé-la a quem possa. Se 0 terapeuta perceber que pode entrar na relagio com espirito amoroso, entio é certo que essa aventura fard sentido. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Hountss, As Vintar, M.de 8. Di neiro: Objtiva, 2001, Punts, F $4 HBv¥Enuane, Ry Goonstan, P. Gestul-teapis, Sio Paulo: Summus, 1997. YoTER,G. M. Process, diflogo ¢ awareness: ensaios em Gestalt-terapia. Sio Paulo: ‘Sommus, 1998, onirio Howaiss da lingua portuguesa. Rio de Ja 29

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