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Maria pA Goria GOHN, TEORIAS DOS _ MOVIMENTOS SOCIAIS PARADIGMAS CLASSICOS E CONTEMPORANEOS ‘Manta 0 Gidria Gorin na Sociedade. aqui aoresenta I | | ‘ partiinantes de organizaebes néc-governamenta atuam na area social (saw o7e05.15.01507.9 ., iia Fas Lao i TDD 47 — i 421600 ty fai aise Postal 42,335 04218970 ~ Seo Put, SP § (11) e141922. (i) o0s.a2rs onic pug «venta: wv yotacombe ahi yclaeyolncen br Monae: vndimeisolacore.te Tals ios renryads Nahas ore di Mids romite or hedjae fone Writ mies erica reeds ns peciea EAs) rts on eur se ot aie im priser Sra WIN, 97RAS-4s019979 ati 2007 HINGOWN LOYOLA, S50 Paulo, Brasil, 1997 SUMARIO APRESENTAGAO. a PRIMEIRA PARTE 0 PARADIGMA NORTE-AMERICANO CAPITULO 1. AS TEORIAS CLASSICAS SOBRE AS ACOES COLETIVAS .... 1A Escela de Chicago eos interacionistas: movimentos soctats como roagées puicolégicas as estraturas de privagdes socioeeondmicas ‘2 Sogunda teoria sobre os movimentos sociais no paradigma classico: sociedade de maseas— Fromm, Hoffer, Kornhauser ‘3 Terceira teoria scbro os movimentos sociais no paradigma elssico: comportamento coletive sob a ética do funcionalismo — Persons, ‘Turner, Killian e Smelser ox wown * '5~ Quinte tcoria scbre-os movimentos sociais no paradigma classico: a3 teorlas organizecionais-comportamentalisias — Selzinick, Gusfield, Messinger i th ‘CAPITULO II, TEORIAS CONTEMPORANEAS NORTE-AMERICANAS DA ACAO COLETIVA E DOS MOVIMENTOS SOCIAS... 1 "Teoria da Mobilizagio de Rocursos: Olson, Zald ¢ MeCarthy... 2~Principais eriticas a teoria da Mobilizacao do Recursos 5~A preacupagdo cam as causas das mobilizagies: Anthony Obersehall 61 4A abordazem histérica no paradigma nor‘e-americano: Charles Tilly 2s seqiiéncias historicas e a andlise dos recursos comun; oe CAPITULO Ill. TEORIAS SOBRE MOVIMENTOS SOCIAIS NA ERA DA, GLOBALIZACAO, A MOBILIZACAO POLITICA - MP... 1 Reformulagio da teoria da Mobilizagao de Recursos ¢ a busca de novos caminhos: a énfase no processo politico, a redeseoberta da ‘cultura e da psicologia sosal. : =O debate da MR com o paradigma eureperpou dos Novos Movimentos Sociais na eonsteugdo da MP... 8 Frames de agées coletivas: o conceita roereri 4 ~Ciclos de protesto ¢ a Sidney Tarrow.. = Debates, eriticas e polémicas a teoria da Na MP. SEGUNDA PARTETE OS PARADIGMAS RUROPEUS SOBRE OSOS MOVIMENTOS SOCIAIS CAPITULO IV, © PARADIGMA DOS NOVOS MONOVIMENTOS SOCIAIS ..... 121 1 ~ Caracteristions gerais.. i yan 2— As matrizes Ledricas dos Novos Movimententos Socials: Weber, Marx, Habermas, Foucault, Guatiari, Goffman 1... 132 3A corrente francesa: Alain Touraine @ 0.a¢ acionalismo dos atores ceoletivos.. sens 4 A corrente italiana: Alberta Meluce ea énPinfase na identidado eolctiva 153 5 ~A corrente alems: Claus Offe oa shardagegem noomarxista 163 CAPITULO V. © PARADIGMA MARXISTA NA ANANALISE DOS MOVIMENTOS SOAS... cs rl 1 Coracteiatins gers as abordayens laltsias © a neomarsata 171 2 Os fundamentos dos cldssioos.. 176 '3~Analises contempordneas neomarxistas ds dos movimentos sociais 189 4 As ubordagens histéricas eontamporineasyas na abordagem marzista 201 TERCEIRA PARTE fE 0 PARADIGMA LATINO-AMMERICANO ‘CAPITULO VI, CARACTERISTICAS E ESPECIRCIDAJADES DOS MOVIMENTOS LATINO-AMERICANOS 5... oo 2M 1 ‘Tyajtétia dos eetudos antaroee: as tenvoria da ede d munginalidade e da dependéncia na Ameriérice Latina... 212 = Hipoteses sobre « porque do uso dos paradadigimas europeus ‘has posquisas sobre os movimentes scciaisils.... 24 1 Rxtudos sobre 0s movimentes soiais na Amenériea Latina depeis de 1970 218 4 Oque win paredigma taorien latino-amorieaicano sobre ot mevimentes 1wlnis deve ennsiderar em tormos doe eategegorias historicas or] CAPITULO Vil, UMA PROPOSTA TEORICO-METOLDDOLOGICA PARA A ANAUSE DOS MOVIMENTOS SOCDCIAIS NA AMERCA LATINA 241 ~ Goino ontondtos veoricamente: o desenhoho de um objeto de estuda. 242 H+ Linn propata metodoliaica para a analisdse dos movimentos sociais: __blomenton © categorias hasicas: s senna OOS Principais categori2s tesricas 4 Rass de um movimento social 5 Formas de expressie dos movimentos soiaisestagorias e Ups CAP{TULO VII MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL NA ERA DA PARTICIPAGAO: 1978-189 1-Primoiras abordagens nes anos 70 © 80 no Brasil: breve Iistriagrafa dos exudes sobre os movimentoe setts 2--Prinipas categoria tecrieasulizedas na predi0 bras ros ance 1 _Oondre as luton ews iniorpretagios anata dead do 60 265 CAPITULO IX. MOVIMENTOS SOCIAIS E ONGs NO BRASIL NA ERA DA GLOBALIZACAQ ao 295, 0 midels de denanvolimientobraibre os ans 90 =0 cenario das lutas e movimentos sociais nos ancs 90: nova pratioas civ... 3—Prineipais mudaneas aearridas nos movisnents sociais brasiteiros ‘a partir da eriso de mobilizagio he = 820 CONSIDERAGOES FINAIS ui 327 1 —Coneits de movimentseodal na biblogratia eral das nse seins. 82 2—A.globalizagio e a reconstrugio dos paradigms sean. 388 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS..... meee 3 : ns AS, ANEXO, MAPEAMENTO DO CENARIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NO. BRASIL - (972-1991 ens 379) "ciclo — Lutas pela redemocratizacio do pats » acesso a servicas: pilblieoe: 1972-1984 3 2 ciclo ~ Institucionalizagio de movimontos: 1985-1989 .... 381 icky — Finergéncia de novos atares © desmobilizagan dos movimentes populares urbanos. Creseimento dos movimentos populares rrarais; 190-1997 APRESENTACAO ‘Apés mais de duas décadas de estudos e pesquisas sobre a \ematica/problomatica dos movimentos sociais, elaboramos este jiwro com quatro objetivos basicos. Primeiro: sistematizar as prin- cipais teorias ¢ 05 paradigmas correspondentes sobre os movi- Imentos sociais na producdo das ciéneias sociais contempordnea. ‘Sogundo: realizar um estudo comparativo entre estas teorias apre- sentando suas diferengas, semelhangas e 0 debate que elas tém desonvolvido entre si. Terceiro: caracterizar as linhas gerais do paradigma explicativo que tem sido utilizado para 0 ostudo dos movirnentos sociais na América Latina, apresentando algumas: inadequagées no uso das teorias correntes, a partir da earactel tragao dos cenarios sociopoliticos e ecandmicos das lutas sociais latino-americanas. Quarto: delinear algumas tendéncias que es- tao sendo construidas ao redor da teratica/problematica dos mo- Vimentos soeiais no Brasil a partir de transformagoes ocasionadlas pela globalizago da economia, da politica (¢ dos Bstados-nagoes) © das relagoes socioculturais em geral. ‘Varias foram as motivagoes ¢ razdes para a realizagio deste livro. Inieialmente destacamos a quase completa auséncia de textos na literatura brasileira que tenham se dedicado a0 estu- do das teorias a respeito dos movimentos sociais. Com a exce~ cao de alguns artigos — que trataram certas questoes tedrieas nao eomo abjetive ou objeto principal, mas como referéncia & jnatria paradigmatica que informavam suas analises —, a mao ta dos trabalhos tem omitido a questao tedrica, Os trabalhos 9 10 Teorias dos movimentes soctais publicados tém se dedicado a estudos de casos, abordando movi- mentos de ambito local, regional ou nacional; uns poucos se dedicaram a estudos comparativos; outros mapearam univer- sp das lutas, movimentos e organizacbes em determinado perio- do de tempo na historia; a maioria entretanto adotou recortes delimitados do tipo: relacao com a igreja, com os partidos politi- cos, com o Estado ete. Em sintese, a producéo brasileira sobre os movimentns soeiais nas wltimas duas décadas caracterizou-se por trés pon- tos. Primeiro — uma grande vitalidade de estudos de natureza mais emnpitico-deseritiva, eentrados nas falas dos agentes. Em- bora pouco analitieos cles conferiram as ciéneias sociais no Brasil grande dinamismo e renovagao. Segundo — uma certa divisao dos estudos nas areas académicas ¢ a localizagéo da maioria deles nos programas de pés-graduacdo no pafs. Assim, a antro- pologia estudon os movimentos indigenas; a politiea, a socio- logia urbana e 0 planejamento urbano pesquisaram sobre os movitnentos sociais populares; o direito ¢ 2 arquitetura acom- panharam as questoes ligadas & terra ¢ & moradia ete. Tercciro — a utilizacdo tedrica do paradigma europeu, em suas varias vertentes, para a andlise dos dados da realidade. O resultado, por um lado, foi a utilizacdo acritica de teorias elaboradas no exterior para a analise dos movimentos sociais no Brasil, ena América Latina, muitas vozes ineorporando categorias que se ‘opdem no debate tedrico; por outro lado, 0 quase completo silén- cio sobre 0 paradigma norte-amerieano, assim eomo 0 seu deba- te com os curopeus, nos anos 80. Destaque-se ainda a infima importaneia dada neste debate & producao e & propria existen- cia dos movimentos na América Latina e no chamado “Terceiro Mundo”, A partir des anos 60, em varias regides académicas do mun- do ovidental, 0 estudo dos movimentos soeiais ganhou espaco, donsidade e sfatue de objeto cientifico de anélise e mereceu va- rina veorias. Tudo isto ocorren porque, em parte, os movimentos junharam visibilidade na propria sociedade, enquanto fendme- ‘how histidrieos concreios. De outra parte houve o desenvolvimento do Woorias pobre © social, e as toorias sobre as agdes coletivas Aunhuram novos patamares, em universos mais amplos, cons- Apresentacao n (riindo uma nova teoria sobre a sovicdade civil, A este respeito Molucei (1996) observa: “Nos ltimos trinta anos a analise dos movimentos sociais desenvolveu-se dentro de um setor autdno- mo da formacao e pesquisa tedrica dentro das ciéncias sociais, 0 aumento e a qualidade do trabalho na area tém sido favore- cidos, Nao incidentalmente a autonomia relativa ao eampo con- oittual desenvolveu-se paralelamente ao aumento da autono- mia de formas nao-institueionais de ago coletiva em sistemas complexos. A area dos movimentos suciais € aguca unt setor ou ubsistema do social” (1996: 3). Simultaneamente, 0 Estado, objeto central de investigagio de grande pareela de cientistas sociais, passou, no plano da rea- idade concreta, a ser deslegitimado, criticado, e com a globali- yagio perdeu sua importancia como regulador de fronteiras na- jonais, controles sociais ete. Ocorreu um deslocamento de inte- esse para a sociedade civil, e nesta os movimentos sociais foram as acdes sociais por exceléncia. Entretanto, apesar do interesse dos cientistas sociais, e da ocorréneia de cielos ofetivos de 500m de diferentes movimentos sociais, cinco grandes questées permaneceram na produgio aca- ‘démica, ecmo lacunss ou como problemas nao resolvidos, embo- ra tenham estado presentes na literatura e alimentado grande parte do debate a sen respeitn. Blas sao: 1. O proprio conceito de movimento social: afinal, o que sdo osses movimentos? 2. O que ‘0s qualificam como novos? 3. O que os distinguem de outras ages coletivas ou de algumas organizacoes sociais como as ONGs? 4. ‘© que ocorre de fato quando uma agdo coletiva expressa num movimento social se institucionaliza? 5. Qual o papel des movi- mentos sociais neste final de século? Sabemos que para alguns analistas eles sao fendmenos-chave para 0 século que se apro- xima. Para outros eles fariam parto do passado, uma problema tica superada e equacionada por meio da institucionalizacao das préticas sociais. Soriam portanto um tema do passado e nao mais do presente ou da agenda do futuro; outros argumen- tam que eles nao teriam realizado o papel que Ihes atribufram, de transformadores das relagies sociais, de agentes do processo do mudangas sociais. E, entre o futuro e o passado, como eles se situam de fato no presente? 12 Teorias dos movimentoz sociais Varios analistas tem afirmado que a teorizacao sobre os movimentos sociais é a parte mais dificil, na qual se encontram as grandes lacunas na producéo académica. Por qué? Porque, concordando com Melucci, eles sao “parte da realidade social na qual as relagies sociais ainda nao estao eristalizadas em estru- turas, onde a ago 6 a portadora imodiata da tessitura relacional da sociedade ¢ do seu sentido” (Melucci, 1994: 190). Ou seja, os movimentos transitam, fluem e acontecem em espagos ndo-con- soltdados das estruturas e organizacées sociais. Na maioria das vezes eles esto questionando estas estraturas e propondo no- vas formas de organizagao a sociedade politica, Por isso eles so inovadores — como jé nos indicava Habermas nos anos 70 —e ‘sao lumes indieadores da mudanga social. Citando ainda Melucci, “eles sio uma lente por intermédio da qual problemas mais gerais podem ser abordados, ¢ estuda-los signifiea qustionar a teoria social ¢ tratar questies epistemoldgicas tais como: 0 que 6 a acao social? (Melucci, 1994: 190). sto livro contém trés partes. A primeira aborda o paradig- ma norte-americano sobre as aches e os movimentos sociais ¢ tom trés eapitulos. O capitulo I trata das teorias classicas ameri- canas sobre a apao coletiva; o segundo ¢ sobre a teoria da Mot lizacao de Recursos (MR) e 0 terceiro sobre as teorias de Mobi zagao Polftica (MP) contemporanea. A segunda parte aborda a produsao tedrica européia e abrange o capitulo IV, sobre a teo- ria dos Novos Movimentos Sociais (NMS) e 0 capitulo V, sobre 45 teorias marxistas de andlise dos movimentos. A tereeira parte deter-se-a na andlise do paradigma latino-americano. Ela se com- Ge de quatro capitulos, 0 sexto analisa a realidade latino-ame- icana do ponto da vista da produeao de estudos cobre o8 movi- ments ¢ de suas diferencas historicas; o sétimo explicita a nossa proposta tedrico-metodolégica de andlise sobre os movimentos Aoeiais; @ 0 oitavo trata especificamente dos movimentos sociais no Brasil na era da participagao (1978-1990). O capitulo IX abor- da o Brasil nos anos 90 ¢ as tendéncias atuais dos movimentos socials na era da globalizacao, Esta ultima tematica sera reto- mada nas consideragdes finais do livro. Analisar os paradigmas a respeito dos movimentos sociais ‘mplicn abordar protiminarmente duas dificeis questies: o pré= Apresentagiio 13 prio conceito de movimento social ¢ as teorias a seu respeito. Quanto a primeira, poucos autores se dedicaram a definir ou a coneeitnar o que entendem por movimentos sociais. Acrescente- ye a esta lacune a profusio de tipos ¢ espécies de movimentos wociais que tém sido tratados da mesma forma, além da nao- diferenciagéio entre movimentos propriamente ditos, Iutas, pro- tostos, revoltas, revolugies, quebra-quebras, insurreigdes ¢ ou- tnas formas de agées coletivas. Em relagao a segunda qnestaa, hd varias teorias dos movimentos sociais, ¢ cada uma tem tido um entendimento sobre o que eles sao e a que tipo de manifes- agi social se referem. Para alguns trata-se de fendmenos em- piricos, para outras sao objetos analiticos, tedricos. Neste livro buseamos explicitar as toorias, destacando os conceitos ca- togorias utilizados. Desde logo afirmamos que nao hé um con- coito sobre movimento social mas varios, conforme o paradigma utilizado, Para nés um paradigma é um conjunto explicative em que encontramos teorias, conceitos e categorias, de forma que pode- mos dizer que 0 paradigma X constréi uma interpretacdo Y sobre determinado fendmeno ou processo da realidade social. Kista explicacao deve diferir da de outros paradigmas. T. Kuhn (1962), fisieo responsavel pela difusao mundial do termo, afir- mou que na ciéneia um paradigma surge toda vez que é dificil envolver novos dados em velhas teorias. Certamente o Ieitor jé terd se perguntado sobre os eritérios de subdivisao dos paradigmas apresentados acima para a orga- nizagao deste livro. O uso de um eritério geografico-espacial foi um recurso pedagégico utilizado nao para definir o paradigma om si mas apenas para localiza-lo diferencialmente, enquanto corrente tedrico-metodolégica composta por teorias formuladas ‘a partir de realidades especificas. A América do Norte, a Europa ¢ a América Latina possuem contextos histéricos espectficos, ¢ lutas e movimentos sociais correspondentes a eles, Este € 0 dado importante que aglutinara as explicagdes. Os pesquisadores de cada um destes blocos adotaram posturas metodolégicas para realizar as andlises de suas realidades naeionais, locais ou regio- nais. Na Europa e na América do Norte estas posturas geraram teorias proprias. Na América Latina as posturas metodologicas 4 Toorias dos movimentos sociais foram hibridas, geraram muitas informagoes, mas 0 conheci- mento produzido foi orientado basicamente pelas teorias cria- das em outros contextos, diferentes de suas realidades nacio. nais, como 0 caso a ser analisado da teoria européia dos Novos Movimentos Sociais. Com 0 decorrer do tempo, o intereambio entre pesquisado- res de diferentes paises fez com que a produgao sobre as teorias se alterasse. Hla toi se internacionalizando em funcdo da globali- zacho da economia ¢ das tendéncias gerais dos processos sociais nos anos 90. Varios anslistas passaram a estudar multiplas rea- lidades nacionais ¢ a recorrer & andlise comparativa para en- tender as diferencas e semelhangas entro os processos. Uma das tarefas enfrentadas foi a de separar o que sto tendéncias gerais © © que sao especificidades das realidades nacionais, impregna- das por hébitos culturais, Estamos enfatizando as difereneas nos contextos histdricos para explicar os critérios adotados aqui quanto a nomeagao dos paradigmas. Certamente, eada um dos paradigmas possui cate- gorias de andlise diferenciadas que constroem universos explica- tivos proprios. Assim, 0 paradigma norte-americano possui, em suas diferentes versdes, explicacdes centradas mais nas estru- turas das organizagdes dos chamados sistemas sociopolitico & econdmico; as categorias bésicas de suas andlises sao: sistema, “organizaeao, acdo coletiva, comportamentos organizacionais, in. tegracao social ete. A partir dossas categorias cle desenvolveu varios conecitos e nocdes analiticas, tais como, privagio cultural, eseolhas racionais, mobilizacao de recursos, institucionalizagao de conflites, ciclos de protestos, micromobilizagies, frames, opar- tunidades politicas ete. Na Europa, a0 falarmos sobre paradigmas, temos de usar © plural porque ha duas abordagens teoricas bem diferenciadas: 4 marxista ¢ a dos Novos Movimentos Sociais. Cada uma delas se subdivide em uma série de correntes tedrieas explicativas, A marxista centra-se no estudo dos processos histéricos globais, ‘ili contradicoes existentes e nas Iutas entre as diferentes clas. oe sovinis, As categorias basicas construidas por seus analistas lo! elanves sociais, contradigoes, lutas, experiéneias, conseién- Apresentagho 1s ola, conflitos, interesses de classes, reproducdo da forga de tra- hulho, Estado ete. As nogées ¢ conceitos desenvolvidos sA0: expe- riéncia coletiva, campo de forcas, organizacdo popular, projeto politico, cultura politica, contradigoes urbanas, movimentos s0- ciais urbanos, meies coletivos de consumo ete. O paradigma dos Novos Movimentos Sociais parte de explicagdes mais conjuntu- rais, localizadas em Ambito politico ou dos microprocessos da vida cotidiana, fazenda recortes na realidade para observar a politica dos novos atores sociais. As categorias basicas deste paradigma sao: cultura, identidade, autonomia, subjetividade, fatores sociais, eotidiano, representagoes, interacao politica ete ‘Os coneeitos ¢ noces aneliticas criados sao: identidade coleti- va, representacoes eoletivas, micropolitiea do poder, politica de grupos sociais, solidariedade, redes sociais, impactos das inte- ragdes politicas ete ‘Nos anos 80 o paradigma norte-americano desenvelveu um intenso debate com uma das correntes européias — a dos Novos Movimentos Sociais —, 0 que levou a alteragoes nas duas aborda- jens. O resultado foi a criagéo de uma nova corrente tedrica en- volvendo americanos ¢ europens, que passou a predominar na ‘América e na qual a grande énfase esta no processo politico das mobilizagoes € nas bases culturais que Ihes dao sustentacdo (om vez da énfase nas bases econdmicas, earacteristica da abor- dagem norte-americana entre os anos 70 ¢ parte dos 80). Estrutu- ra das oportunidades politicas foi a eategoria-chave desenvolvida, 0 paradigina latino-americano concentrou-se, em sua qua- se totalidade, nos estudos sobre os movimentos sociais libertaries ‘ou emaneipatérios (indios, negros, mulheres, minorias em ge- ral); nas Intas populares urbanas por bens ¢ equipamentos calctivos, ou espago para moradia urbana (nas associacoes de moradores ¢ nas comunidades de base da Igreja), nas lutas pela terra, na drea rural. As teorias que orientaram a produczo fa respeito foram as dos paradigmas europeus, tendo predomi- naneia nos anos 70 a vertente marxista e nos anos 80 a abor- dagem dos Novos Movimentos Sociais. Os estudos baseados nas teorias marxistas desiaearam certas categorias: hegemonia, con tradigées urbanas ¢ lutas sociais, Os estudos que aplicaram 0 paradigma dos Novos Movimentos Sociais as categorias da au: 6 Meorias dios movinsentos socieis tonomia e da identidade tiveram maior destaque. Mas houve certa releitura daquelas teorias, resultando também na criacdo de outras categorias de andlise tais como: novos sujeitos histd- ricos, eampo de forga popular, cidadania coletiva, espoliacéo ur- bana, exclusdo social, descentralizacao, espontaneidade, redes de solidariedade, setor terciério privado e ptblico ete. ‘As novas eategorias esbogam, delineiam e ao mesmo tempo podem ser 0 suporte para a elaboracio de um paradigma pro- prio ¢ espeeifico para a América Latina, ainda a ser construfdo em sua plenitude, mas que esté presente no debate ineipiente que se observa nas entrelinhas dos trabalhos e congressos aca~ démicos. Este debate tem suscitado varios dilemas. Um deles se refere a énfase na estrutura (dada pelos marxistas em relacdo fas classes speiais) versus a Gnfase no ator social (dada pelos europeus dos Novos Movimentos Sociais). Este debate ja ocor- reu na segunda metade dos anos 80 entre americanos € euro- peus, resultando em outro dilema: qual 0 objetivo ¢ 0 signifiea- do basieo dos movimentos — construir estratégias (americanos) ou identidades (europeus)? Nos anos 90 os amerieanos abando- naram 0 dilema e construiram outro eixo paradigmatico: a es- tratura das oportunidades politieas, responsavel pelo surgimento dos varios ciclos de movimentos sociais, em diferentes contextos @ lugares histiricos Na América Latina a controvérsia se deu quanto a opcao paradigmatica, colocando de um lado estruturalistas e de outro interacionistas. Os primeiros postulavam ser necessario antes mapear as condicgées estruturais, causas, conseqaéncias ¢ in- fluéneias dos movimentos, a partir de uma andlise que enfocasse as desigualdades sociais, as discriminagées, a repressdo ¢ a ex: ploragao, dando-se atencao também as ideclogias, frustragdes, queixas, reclamacées e demandas, assim como as possibilidades de conseientizagao e organizacao dos grupos e movimentos. Este tipo de andlise enfatizava o potencial de transformagao dos movi- mentos sociais. Os segundos enfatizavam os conflites politicos, ‘as estratégias de mobilizacao, as relacoes de poder, o papel das liderangas, as aliancas, a funcao das aces estratégicas ete. Destacava-se a capacidade dos movimentos de construir identida- des politicas por meio de processes discursivos postulava-se a Apresentacie " impossibilidade de entender as agées politieas como dedugies iretas das estruturas econdmicas. Outro dilema presente no paradigma latino-americano diz ruspeito controvérsia quanto ao terreno onde se deslocam os tnovimentos sociais. Uns advogam a énfase nos fatores sociopo~ [iticos e outros nos politico-econdmicos. Os primeiros se filiam & corrente dos Novos Movimentos Sociais e destacam 0 processo ide construgdo da identidade politica dos movimentos ¢ seu po- {oncial de resisténcia (cultural). Os segundos enfatizam a quos- tio do poder politico segundo as concepedes do paradigma mar- tista, Na América do Norte, as teorias que resultaram das dis- ‘uissdes com os europeus nos anos 80 —e que levaram a reforma- jueao da teoria da Mobilizacao de Recursos — também deram prioridade méxima ao procosso politico, em especial ao jogo de poder entre a sociedade civil e as estruturas governamentais, osultando deste jogo as estruturas das oportunidades politicas, hy sorem abordadas no capitulo III. Situar os problemas gerados pela globalizagao da economia na diseussao do paradigma latino-americano ¢ dos movimentos hociais no Brasil se faz necessério em virtude das conseqtién- ‘cas que tem acarretado no cendrio da organizacao da populacéo ‘om goral. O estimulo que as politicas econémicas neoliberais téin dado ao setor informal da economia levou ao surgimento de oxtonsas redes produtivas comunitériag nos paises latine-ame- ticanos, onde a méo-de-obra é farta mas tem alte custo social (quando utilizada na economia formal). A economia informal provoca a reducao deste custo por varios fatoros, destaeando-se tt quase completa eliminagdo dos custos sociais. Bla opera com tam grande eonjunto de trabalhadores quo nao tém seus direitos sorinis respeitados. Opera ainda eom trabalbadores nao-sindi- ttalizados, por isso esta livre das presses sindicais. Mas este sotor tercidrio, tao contraditorio, tem tide também grande pre~ tenga de ONGs — Organizagées Nao-Governamentais. Blas de- senvolver projetos com as populagées demandatérias de bens ¢ servigos, Organizando-as em movimentos sociais. Para entrar fein operagdo, tais projets necessitam de verbas, qualifieacao, waliagdes para que gankem continuidade etc, Ou seja, a agao toletiva de pressio e reivindicacdo, antes presente na maioria Is Teorias dos movimaenios soviais dos movimentos sociais latino-americanos, converteu-se nos anos 90 em agdes voltadas para a cbtencdo de resultados, em pro- Jetos de parceria que envolvem diferentes setores ptblicos privados. Para complicar o cenario, a globalizacdo e as mudan- ¢as na conjuntura politica do Leste Europeu levaram a altera- goes nas politicas da cooperacdo internacional. As agendas das instituigoes internacionais deixaram de priorizar o desenvolvi- mento de projetos na América Latina — por considerarem que a transicao para a democracia ja se completara — e mudaram © sentido de seus programas. Em vez de auxilios ou subsidios ‘econdmicos, passam a fornecer apenas suporte téenico para os movimentos ¢ as ONGs nacionais. Estes devem demandar sub- sidios financeiros @ seus governos e, fundamentalmente, gerar receitas proprias. Neste contexte, 0 panorama das lutas sociais se alterou completamente, a mobilizacao cotidiana € 0s atos de protestos nas ruas diminufram © a militancia decresceu. Os movimentos ¢ as ONGs que sobreviveram se qualificaram para a nova conjuntura em termos de infra-estrutura e do uso de madernos meios de comunicacao, como a Internet. A tecnologia chegou aos movimentos sociais e a institucionalizagao de s9- tores © areas das demandas ¢ lutas é uma necessidade impe- riosa para a sua sobrevivéneia. Toda esta discussao sera apre- sentada na terceira parte deste livro, onde assinalamos que uma teoria consistente para explicar os movimentos sociais lati no-americanos esta ainda por se construir. O que temos so esbocos explicativos. Destacamos ainda nesta apresentagao a forma como orga- nizamos a andlise das teorias. Privilegion-se 0 aspecto hist6ri- co, tanto na ordem de apresentacio do desenrolar das diferen- tes teorias como na anélise das obras de alguns autores. Embo- ra tenhamos tentado abranger a quase totalidade dos prinei- pais autores de uma dada abordagem, alguns foram destacados © apresentados mais detidamente por terem um papel emble- matico dentro de determinada teoria. Nao é nosso objetivo fazer uma Sociologia dos autores ou um quadro teorico explieativo do conjunto de suas proposighes. Ao contrario: 0 recorte € dado pelas teorias © os autores netas se inserem enquanto exemplos. Mas, em alguns casos, acompanhar a trajetoria de producao de Apreventagiio 19 (uterminado autor foi uma forma de acompanhar as mudangas dh problemética, na pritiea ¢ no debate tedrico. Assim como os juovimentos, que se apresentam em ciclos e apresentam énfa- ios particulares a cada momento hist6rico, as categorias cria~ (jay para sna andlise e os conceitos produzides também sa0 datados historicamente. Outro aspecto que nos levou a destacar luns autores foi a propria busca de diferenciacao nas expli- fugdes tedricas dentro de um meomo paradigma. Accim, a lite votura americana se refere muitas veres ao paradigina dos Novos Movimentos Sociais como um todo. Ocorre que entre Touraine, Molueci e Offe (para citar apenas os autores mais conhecidos daquole paradigma) existe grandes diferencas tedrico-meto- dolgicas. $6 a andlise individualizada permite destacé-las. Avresconte-so a isto o fato do grande parte da literatura utili- jada nao ter sido traduzida para o portugués e ser de dificil Jices80 no Brasil dado seu custo, falta de divulgacao ou de domi- nlo de idiomas estrangeiros pelos estudantes. Este livro tem também grande preoeupacao em ser um veieulo didatico para ¢studantes universitérios ¢ interessados na tematica dos movi- inentos sociais em geral. Por isso esta repleto de referéneias bibliogréficas. Sempre procuramos explicitar a posigéo de uma {ooria ou autor por meio do destaque de seus principais argu- inentos, das eriticas existentes, do debate gerado e, finalmente, da nossa posi¢&o a respeito. Consideramos que devemos infor- mar o loiter de forma que este tenha acesso a argumentos & referéncias bibliograficas que Ihe possibilitem construir sua propria opiniao. Nos anos 90 08 movirnentos sociais téin sido diagnosticados por alguns autores como estando em declinio, em erise, como pertencentes ao passado etc. Mas se consultarmos 0 mereado feademico editorial veremos que nunea houve tantas publica ‘@es como agora. O que se passa? Um deslocamento entre a (woria ¢ 2 pratica? O diagndstico de erise estava equivocado? A produgao atual é apenas meméria de ex-militantes sobre tem- pos passados? Os movimentos estao se transformando em novos fenémenos ¢ 0s analistas continuam a vé-los como movimentos? Achamos que estas indagacdes contém, em si mesinas, parte das respostas. Os movimentos sociais séo fondmenos historieos 20 Teorias dos movimentos sociais: decorrentes de lutas sociais. Colocam atores especificos sob as Iuzes da ribalta em periodos determinados. Com as mudangas estruturais e conjunturais da sociedade civil ¢ politica, eles se transformam. Como numa galaxia espacial, sa0 estrelas que se acendem enquanto outras estéo se apagando, depois de brilhar por muito tempo. Sao objetas de estudo permanente. Enquanto ‘a humanidade nao resolver seus problemas bésicos de desigual- dades sociais, opressio ¢ exclusio, havers Intas, haveré movi- mentos. E devera haver teorias para explica-los: esta é a nossa principal tarefa e responsabilidade, como intelectuais e cidadaos engajados na luta por transformacdes sociais em direcao a uma sociedade mais justa ¢ livre. Finalmente, 0 dltimo ponto decisive para que este livro se tornasse realidade. Ele era um projeto acalentado desde 1985, quando desenvolvernos uma pesquisa na Faculdade de Arquite- tura da Universidade de Sao Paulo ¢ a apresentamos como tese de livre-dooéncia em 1987 naquela mesma universidade. Na oca- sido chogamos a produzir alguns papers introdutorios a respei- to (alguns deles foram incorporados ao capitulo V do livro Movi- ‘mentos sociais e Iutas pela moradia, Gobm, Loyola, 1991). Mas foi somente em 1996, a partir de um programa de estudos e pes- quisa como Visiting Scholar na New School for Social Research, em Nova York, com 0 apoio do CNPq — para o qual manifesto meu agradecimento —, que pudemos ter condiges de avesso a material bibliografico e de tempo fisieo para realizar todas as leituras © anélises necessérias. Contei neste trabalho com a gentil eolahoragao do Prof. Andrew Arato, do Departamento de Sociologia da Graduate Faculty of Political and Social Science, da New School, a quem expresso minha gratidao, Agradeco também a UNICAMP por me ter concedido 0 afastamento para meus estudos no exterior; a Edigdes Loyola pelo imprescin- divel apoio editorial que tem me propiciado desde 1992. O PARADIGMA NORTE-AMERICANO Nai iui key AS TEORIAS CLASSICAS SOBRE AS ACOES COLETIVAS A aboridagem classica sobre os movimentos sociais nas cién- ‘elas sociais norte-americanas esta associada 20 préprio desen- ‘olvimento inicial da sociologia naquele pais. Embora ela tenba Ultrapassado suas fronteiras, e seus autores nao sejam de nacio- ‘nilidade exclusivamento americana, foi nos Estados Unidos que ‘ola mais se desenvolveu, tendo hegemonia neste pais por varias dvcadas ¢ de la se espalhando para outros paises. A importéneia do seu estudo nos dias atuais tem dois motivos: como meméria histoviea das primeiras teorias dos movimentos sociais ¢ acoes (letivas; © como busca das referéncias ¢ matrizes tebricas de Viirios eoneeitos que estao sendo retomados nos anos 90 pelo pré- prio paradigma norte-americano. Existe certo consenso em considerar o periodo da abordagem ‘lassica como aquele que predominou até os anos 60 deste s6- culo, Ela nao foi homogenea, houve diferentes énfases, que nos Joya a considerar cinco grandos linhas, e suas caracteristicas comuns sao: 0 nticleo articulador das andlises é a teoria da acao jovial, ¢ a busea do compreensao dos comportamentos coletives © nela a meta principal. Estes comportamentos, por sua vez, ‘ram analisados segundo um enfoque sociopsicoldgico. A énfase ‘na acao institucional, contraposta & néo-institueional, também fora uma preocupagao prioritaria e urn denominador que dividia 10s dois tipos basicos de acao: a do comportamento coletivo insti- 2B 24 0 paradigma narte-americano institucional. A agao nao-institucional era definida como aquela nao guiada por normas socials existentes mas formada pelo encontro de situacdes indefinidas ou deses- truturadas, entendidas como quebras da ordem vigente. Estes brocessos oeorreriam antes que os érgaos de controle social, ou do integracdo normativa adequada, atuascem, restaurando a or. dem antiga ou criando uma nova, que absorveria os reclamos contidos nas agitagdes coletivas. Durante todo o proceso o que. se ubservava eram tensées, descontentamentos, frusiragdes @ agressées dos individuos que participavam das ages coletivas (v. Coben/Arato, 1992: 495). Os autores cléesicos analisavam os movimentos em termos de ciclos evolutivos em que seu surgimento, crescimento e propa. acho ocorriam por intermédio de um processo de eomunicagio Que abrangia contatos, rumores, reagGes circulares, difusio das idgias ete. /As insatisfagdes que geravam as reivindicagSes eram vistas com respostas as. rapidas rudangas sociais ea desorgani- zagao social subseqtente. A adeso aos ™movimentos seriam res- postas cegas e irracionais de individuos desorientados: pelo proces- so de raudanca que a sociedade industrial gorava. Nessas abordas gens dava-se, portanto, grande importancia & reaco psicolégica dos individuos diante das mudancas, reacao considerada oomo comportamento nao-racional ou irracional, Assim, 03 comportamentos coletivas eram eonsiderados pela abordagem tradicional norte-americana como fruto de tensoes sociais. A idéia da anomia social estava sempre muito presente, assim como explicagies centradas nas reagées psicolégicas as frustragies e 20s medos, ¢ nos mecanismos de quebra da ordem social vigente. Estes elementos, aliados as ideologias homoge- neizadoras, eram preeondigdes importantes para a emergéncia dos movimentos sociais. O sistema Politico era visto como uma Sociedade aberta a todos, plural, pormeavel. Mas os movimentos Soriais nao teriam a capacidade de influenciar aquele sistema dovido a suas caracteristicas espontancas ¢ explosivas. Somen. te os partidos politicos, 03 grupos de interesses @ alguns lideres teriam tal capacidade. Cohen o Arato destacam que a abordagem cléssica trabalhava com uma. concepcao de demoeracia elitista @ pluralista em que se observam: eleigées livres, competicao @ As teorias clidssious sobre as asies coletivas 25 participagao ativa de minorias por meio de partidos e grupos de interosses. Toda acdo coletiva extra-institucional, motivada por fortes crengas ideolégicas, parocia ser antidemocrética ¢ amea- gadora para o consenso que deveria existir na sociedade civil, Podemos dividir em cinco grandes correntes tedricas’@ abor- dager cléssica sobre a agao coletiva, e em trés delas os movi- mentos sociais sao especificados, Embora apoiada em varios estudos anteriores, sabemos das dificuldades que toda classifi- cacao envolve, Buseamos apenas sistematizar a produgio ante- rior, Observamos que nas primeiras fases do periodo classico norte-2merieano encontramos varios trabalhos sobre as “agaes coletivas’: Zald (1988), Tilly (1983), Tarrow (1994), entre on- tros. Mas eles nao se referem aquelas acdes em termos de “mo- vimentos sociais”. Assim, as cinco grandes correntes que lista- remos a seguir foram agrupadas por nés; a trés delas chama- mos teorias dos movimentos sociais; as outras divas, acdes cole- tivas, porque seus formuladoros, originalmente, assim as carac- terizaram. Blas séo: 1— A Escola de Chicago ¢ alguns interacionistas simbo cos do inicio deste século. Como um dos produtos desta corrente temos a primeira teoria sobre os movimentos. sociais, no trabalho de Herbert Blumer (1949) A segunda corrente desenvolveu-se ao longo dos anos 40 e 50, com as teorias sobre a sociedade de massas de Erie Fromm (1941), Hoffer (1951) — também militante de movimento social — e K. Kornhauser (1959). Este Ultimo exereeu forte influéncia sobre algumas produ- ‘Wes posteriores; ele caracterizava os movimentos como formas irracionais de comportamento ¢ 0s considerava antimodernos. A terceira corrente predominou nos anos 50 com um forte acento em variavois politicas e esta presente nos trabalhos de 8. Lipset (1950) e Heberle (1951). Ela ar- ticulava as classes © relagées sociais de producéo na busea do entendimento tanto dos movimentos revolucio- narios como da mobilizacao partidaria, do comportamen- to diante do voto ¢ do poder politico dos diferentes gra- 0 paradligna norteamericeno pos ¢ classes sociais. Fla gerou a segunda grande teoria especifiea sobre os movimentos sociais, expresia nos trabalhos de Heberle. A quarta corrente foi uma combinagao das toorias da Escola de Chicago com a teoria da agao social de Parsons © se fez presente nos trabalhos de Goffman (1959), ‘Turner e Killian (1957), N. Smelser (1962) e David Aberle (1966). Eles analisaram desde formas elemon tares de comportamento coletivo até a construcio das a¢oes coletivas em grande escala, retomanda 0 approach psicossocial e deixando de lado os vineulos entre as estruturas e a politica, tao caros a corrente anterior, A. tereeira grande teoria sobre os movitnentos socisié na abordagem dos classicos decorre desta correntz, nos trabalhos de Smelser. A quinta ¢ tiltima corrente da abordagem classics, de. nominada organizacional-institucional, o3t4 represen- tada pelos trabalhos de Gusfield (1955) e Seliinick (1952). Teve grande influéneia nas teorias que substi- tufram 0 paradigma lassie, mas néo gerou, em sua 6poca, nenbuma teoria espeeifica sobre os movimentos sociais, Nos anos 90 foi retomada por alguns pesqui- sadores dos movimentos sociais, entre eles 0 priprio Gusfield. Observa-se que 0 recorte feito entre as diferentes correntes: nao é temporal, pois as teorias coexistiram no tempo, mas foi construfde segundo as énfases principais. A seguir passamos a caracterizar as diferentes teorias. 1 - A Escola de Chicago e os interacionistas: movimentos sociais como reagées psicolégicas 4s estruturas de privagées socioeconémicas Resgatar a producdo tedrica existente sobre os movimentos sociais passa, necessariamente, por um momento fundamental do constivuicdo da sociologia como disciplina de investigacao clentifica: a Escola americana de Chicago. Sabemos que a Es- As torias eldssioas sobre as apbes coletious a cla de Chicago durante quarenta anos (1910-1950) teve grande importaneia na valorizac3o da sociologia como campo auténomo de investigagao. Fundada em 1892 por W. I. Thomas, a Escola de Chieago gerou grande producdo no campo das relacées soci- is, dando origem & chamada tradicao do interacionalismo, Esta produgao emergi. num contexto histérico mareado por grandes transformacses sociais, impulsionado pela idéia de progresso. A Feeola tinha uma orientagao reformista: promover a roforma social de uma sociedade convulsionada em direcao ao que se entendia como seu verdadeiro caminho, harmonioso ¢ estével. Inicialmente seus tedriens principais foram W. I. Thomas (1966), Robert Park (1952) e George H. Mead (4écadas de 30 € 40), Outros representantes importantes foram Everett C. Hughes (1958) © Herbert Blumer (1939). A partir do desenvolvimento da psicologia social surgiram varios outros te6ricos, alguns dos quais continuaram a ter importneia apés 1950, como Erving Goffman (1959), Kurt Lang (1961) e Ralph Turner (1969), O nexo fundamental que nos leva a um interesse pela Es- cola de Chicago como uma das matrizes de producao tedrica explicativa sobre os movimentos sociais é dado pela concepgao de mudanca social e pelo interesse particular de seus mestres pelos temas do “desenvolvimento de comunidade” e pelos proces- sos de participagao e educacao “para o povo”. A participacao dos individuos na comunidade teria um sentido intogracionista, ou seja, por meio daquela participacdo, ¢ utilizando-se de alguns me- canismos educativos, acreditava-se que era possivel ordonar 03 processos sociais. A sociologia deveria buscar formular leis cienti- ficas para descobrir como a mudanga social ocorria. Deveriam ser utilizados estudos comparativos ¢ investizacdes sobre as condi- oes particulares ocorridas onde se desenvolviam processos inte- racionistas, destacando-se aquelas relacionadas com a participa~ cio criativa dos individuos. © elemento da criatividade, visto como inerente aos individuos, era um dos pressupostos bésicos da Escola, Isto implicava unir estudos institucionais (decorrentes do método comparativo) ¢ estudos psicossociais (decorrentes das andlises sobre as atitudes humanas, comportamentos e reagoes). A interagao entre o individuo ¢ a sociedade era 0 enfoque basico. 28 © paracigma norte-americena % A mudanca social passava, portanto, pela perspectiva da reforma social. A sociologia enquanto ciéncia forneceria 0 eonhe- cimento. Como a reforma era nocosséria para o progresso, con- cluia-se que a socivlogia também era titil para esta reforma, Os agentes basieos neste proceso de mudangas cram as lideran- cas. Isto ocorria porque o bindmio individuo-socledade tendia a privilegiar, a0 final do proceso, o primeiro termo e, conseqionto- mente, a individualizacdo. Para Park. a sociedade era uma ques- tao de comunieacao e esta eontinha a possibilidade de maior consciéneia, Portanto, a necessidade era de lideres bem forma- dos, que estimulassem a mudanea por meio de seus proprios exemplos, da realizactio de suas préprias vidas ¢ das relagées que estabeleceriam com os outros. A transformacao passava pela cooperacdo voluntaria, vista como resultado natural da interacdo grupal. Em suma, as liderancas seriam mais exemplos demonstra- tivos que agentes de provaveis sublevacbes. Na realidade seriam ites reformistas, detentoras de um conhecimento eientifico itil. ‘Thomas chegou a propor “o desenvolvimento de téenicos sociais para que 0 conheeimento fosse traduzido om programas de acio prética. Quando as leis, que eram muito esperadas, fossem desco- bertas, esses técnicos poderiam ajudar a guiar a sociedade para seu ideal democratico”. As liderangas teriam de desempenhar o papel de reformadores sociais até que nao fossem mais neces- sdrias. Isto porque, em sua trajetéria de atuacéo, deveriam criar instituigoes novas As instituigdes e a educagao tornariam possiveis a autodi- rego do povo e sua cooperacdo. Observamos que estes pressu- postos estiveram bastante vivos e presentes nas concepgies sobre 8 mudanga social preconizadas pelos movimentos sociais popula- res nos anos 70 e parte dos 80, que seguiram a direcao da Teologia Ga Libertagao, na Igreja Catéliea da América Latina. — A participacao ativa e a interacio eram elementos indis- pensiyois no cotidiano do trabalho dos lideres. Nao se admitia que as liderancas nao fossem engajadas ou que nao falassem e vivessom as necessidades dos grupos sociais considerados me- nos avangados, dentro do mareo referencial evolucionista que a ‘As teorias eldssicas sobre as aghes coletivas 9 ‘eoncopeao mais ampla do grupo abrangia. Nao s6 08 atos volun: Wiirios tinham grande espago. Também as aches espontaneas. As: possoas deveriam descobrir por si mesmas 0 comportamento qwrreto no eontexto da experiéncia social. O conflito também era niderado natural e inevitavel, decorrente do choque entre as qulturas © a diferentes realidades. Mas ele deveria ser traba- \hudo. Por quem? Pelos lideres, € claro. Surgem entdo os movi- Iontos sociais ‘Tais movimentos seriam o resultado dos conflites gerados ntre as multidées. Mas este resultado deveria ser equacionado polos Iideres, como focos dinamizadores de mudangas sociais. Jy lideres nao seriam causas — estopins — dos movimentos, thas sim agentes apaziguadores,) Suas tarefas seriam desmo- bilizar o eonflito, dissolver 0 movimento. Como? Transforman- (lo-os em instituicdes sociais por meio do equacionamento das demandas em questao. ‘As mudancas sociais seriam 0 climax deste processo: cho- que © eneontro de grupos resultando numa acomodagao em ins- ituicdes por meio do controle obtido por lideres. Os lideres, para sor efieientes, deveriam compreender sens seguidores, inte- lurar-se suficientemente ao movimento ¢ ser edueados o bastante para tanto, Ou seja, ¢ lider era um instrumento basico da mu- danga, da acomodagao, da reforma, Os problemas surgiam quan- do 0s movimentos sociais nao conseguiam ser controlades por ous Lideres, dando origem a deseaminhos na diregao do movi- mento. A solugao seria buscar, cada vex mais formar liderangas rosponséveis. ) Resnmindo os pontos bésicos da teoria da mudanca social dla Bscola de Chicago, diriamos que a edueagao e a criagao de instituigdes sao seus eixos bésicos. Os movimentos cram vistos como agdes advindas de eomportamentos coletivos conflituasos ‘A educago, como um processo mais informal, que ocerria na propria vida urbana — a eidade moderna e seu contexta de luta pela sobrevivencia seria a grande escola de conflitos e rises, ‘Como na fabula: para aprender seria preciso queimar 2s patas a0 tentar apanhar as castanhas. A solugdo de quaisquer proble- mag estaria na eriatividade. © paradigma norte-emerigana A criatividade 0 individualismo eram eoerentes com o desenvolvimento do processo, e parte dele. Bstes pressnpostos tiveram grande repercussao nas politieas de desenvolvimento comunitario do pos-guerra ¢ estiveram na base de varias pro- posias de educacio popular na Amériea Latina nos anos 70 ¢ les sero retoma it ‘ 2p. Hes sero retorades nos anos. 90 polaspoiticas neoliberais Do ponto de vista metodelégico, a Eocola de Chicayy fore: se Saran aaah mecisecemal ay partir de dados histéricas e documentais. Entretanto, dentro dos objetivos de nosso trabalho, foi Blumer o grande tesrico a aplicar as anélises do interacionismo simbolico para 0 estude dos movimentos sociais; Alguns autores 0 consideram 0 pioneiro na analise dos movimentes s Dada a importancia de seu trabalho, sua originalidade quando surgiu e se desenvolveu (anos 20 e década de 30), devido a sua importaneia e contribuigao para as décadas seguintes e em razio da rotomada de seus trabalhos nos anos 90, iremos nos deter de forma mais prolon- gada em suas formulages sobre os movimentos sociais. 1.1 ~ Blumer — o grande teérico dos movimentos sociais na abordagem classica do Paradigma norte-americano Blumer definiu os movimentos sociais comeempreendimen- tos coletives para estabelecer uma nova ordem de vida) Eles surgem de uma situacao de inquietagdo social, derivande suas Agdes dos seguintes pontos: insatisfacdo com a vida atual, dese- ip € esperanca de novos sistemas o programas de vidal Bsta teoria, denominada das caréneias sociais, sera retomada nos anos 80 © 90, apds intenso debate entre os pesquisadores do assunto. Também Habermas retomou a tese central de Blumer a0 retratar 2 importancia dos movimentos sociais como possi- veis criadores de uma nova ordem social. Para Blumer, “no inicio um movimento social ¢ amorfo, or- tanizado pobremente, e indefinido; o eomportamento coletivo & Primitivo eos meeanismos de interacdo sao elementares. Com 0 tempo os movimentas se desenvolvern ¢ adquirem as caracte- As teorias cléssicas sobre as agées coletivas 31 Hinlleas de uma eociedade: organizagio, forma, corpo de costu- ‘nus e tradigdes, liderancas, divisao de trabalho duradoura, va- Joros © regras sociais — em resumo, cultura, organizagao ¢ um hovo esquema de vida” (Blumer, 1951; 199). Observa-se que 0 hindmio comunidade-sociedade esta presente nesta formulacao: » movimentos sociais seriam uma certa transicao entre estas dias formas de organizacao social. Os movimentos foram divididos por Blumer em trés eatego- ‘lis: genéricos, espeeificos e expressivos. Os primeiros ineluiam bp mnovimentos operario, dos jovens, das mulheres e pela paz. Dovemos recordar que ele produzit: essas Cormulacdes nos anos 0 deste séeulo. Portanto, naquola época, tais movimentos j& linham algum destaque. O background da primeira categoria ill movimentos seria constituido por mudancas graduais © per suasivas nos valores das pessoas, 03 quais poderiam ser deno- winados tendéncias eulturais. Isto porque cada tendéncia cul- fural tem, atrés de si, um desejo de mudanga que esté na ca- hoca das pessoas, em suas idéias, particularmente em relacéo ‘I concepgio que tém de si proprias, de seus direitos e privi- Wiwins, o que pode levé-las a desenvolver novas crencas e pontos lo vista ow a ampliar os ja existentes, numa emergéncia de novas escalas de valores a influenciar a forma como as pes- fons passam a olhar para si proprias. Maiores preocupacoes tm a satide, eom a edueagao, com a emancipacao da mulher, 0 aumento do cuidado com as criancas e 0 prestigio da ciéneia, (odos £80 citados por Blumer como resultados do proceso aci- ta descrito, Kem resumo, os movimentos sociais seriam 0 resultado de inuidancas que operariam num Ambito individual, ¢ no plano peicologieo. Tais mudaneas provocariam as motivacies para 0 jurgimento dos movimentos sociais genéricos, classificados na primeira categoria j4 assinalada. O proceso de criacao e de- fenvolvimento das motivacdes, apesar de vir do exterior — por ser de ordem cultural —, assenta-se em bases interiores, individuais. As novas concepgdes dos individuos a respeito doles proprios chocar-se-iam com suas reais posigves na vida, orando insatisfagio, disposicao e interesse pela busea de novas diregies.

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