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ao rapido quanto chegou, a chuva parou. As ninfeias se aquietaram, a Agua ficou tranquila, exceto em um ou outro ponto, onde gotas calam. Os sapos trocaram seus esconderijos nos cantos das plantas pelas pogas que se formaram. Acionei novamente 0 perisc6pio, Os anuns-brancos, molhados sob os galhos, ar- repiavam as penas e as penteavam com o bico, Eu no escuta~ va, mas podia imaginar como 0 jodo-de-barro, 0 sabia e © bem-te-vi cantavam. E 0 cheiro de terra molhada, de manga madura e de café sendo coado, em alguma fazenda, para es- quentar 0s pedes. ‘Apesar deo Sol ter se escondido, 0 céu ficou claro de novo e ganhou um brilho que acendia as gotas d’égua nas plantas ¢ cera refletido na terra molhada, nas pogas.e nos pantanos. Consultei o mapa e percebi que estavamos perto da nossa primeira parada, que 0 vovd chamou de “Capao da Tapera’ Retomamos 0 nosso curso, curiosos pelo que encontrariamos. epois de mos um por acuris. No centro, trés com troncos grossos e galhos carregados de flores lilases despontavam entre as arvores e carandés. ‘Ax Canotita Neves Atracamos © Pantandutilus numa pequena enseada e desembarcamos. Atravessei com todo o cuidado a faixa de bromélias espinhentas que cercava o capo. Macacaquinho se enroscou com tanta forga em meu pescogo,arrepiado com a possibilidade de se enganchar naquela macega brava, que precisei pedir a ele para nao me enforcar. No meio do capao, ras. Suas folhas sobrepostas tam- pavam parte do céu, dando-Ihe a aparéneia de uma imensa cabana. No solo coberto por palmas secas nao nascia mato, mas sobre os acuris cresciam figueiras-mata-pau, cujas raizes formavam uma rede estranguladora sobre o tronco das drvores, terminando por jogi-las no chao em alguns anos, Na base das folhas dos acuris, nasciam sementes de di- versas arvores, que foram depositadas por passaros e mor- egos que ali se empoleiraram para comer frutos. Samam- baias e orquideas choronas, chamadas “vanilas’, com mais de dois metros de comprimento ¢ flores amarelas, ajuda- vam a compor os estranhos jardins suspensos, feito coroas na cabeleira das palmeiras. Entre os acuris, avistamos uma tapera que parecia abandonada. Macacaquinho seguiu pela copa das drvores e, curioso como ele s6, subiu no teto da cabana e ali se depen- durou de cabega para baixo. Qual nio foi sua surpresa a0 olhar para dentro! Ele se arrepiou e guinchou mostrando os dentes ¢, no reflexo do susto, deu um salto tao dgil, que, sem que eu pudesse entender como, ele ja'gstava gritando pen- durado no galho de uma érvore proxima dali. Meu coragao havia milhares de palm: disparou. Senti um arrepio ¢ minhas pernas bambearam com a ideia de que aquele fosse o acampamento de algum Pavranauries coureiro ou cagador. E se ficasse bravo por termos invadi- do o capao? E, se resolvesse se vingar, como fugiriamos em nosso submarino, que no era muito mais rapido do que ‘uma tartaruga? Entao, ouvi um barulho dentro da tapera e me escondi atras das arvores, Ali eu permaneci imével, de olho na caba- na, tentando me acalmar e temendo que minha respiragdo ofegante me denunciasse, Isso, sem falar nos carrapatos que passavam das folhas para a minha pele e quase me enlou- queciam de coceira. Uma figura muito esquisita saiu da tapera. Ela se mo- vialentamentee mancava. Era um homem atarracado, tinha cerca de um metro e meio de altura e as costas encurvadas, ‘Tudo nele lembrava um galho velho e retorcido. Uma cabe- leira branca escorria do alto de sua cabega até o chao, e nao vestia roupas, a ndo ser uma tanga esfarrapada. Pude ver que era um bugre por causa da pele morena, dos olhos puxados e das mags do rosto salientes. Dizem que 0s indios demoram a ganhar as marcas da idade. Aque- le devia ser muito velho, tantas eram as rugas que tinha na cara e tio brancos eram seus cabelos. O ancito caminhou em diregao a0 Macacaquinho, que de repente se calou, em- bora a respiragao descompassada denunciasse seu medo. O homem ofereceu o braco e o bugio passou do galho para seu ombro, como se estivesse hipnotizado. Com as duas maos € com cuidado, 0 bugre pegou Macacaquinho por debai- x0 dos bragos ¢ levantou-o, encarando-o de perto, Os dois ficaram se observando por algum tempo. Até que o velho falo Awa Canouna Neves = Macaco tem saudade do qué? Nas maos do velho, Macacaquinho foi se acalmando até ficar relaxado feito um gato em colo de gente. Eu obser- vava a cena escondida, temendo pelo seu desfecho. — No mato é biio, na casa de gente & bao tamém. Vida 6 mais ficil. Mas nos dois a gente pode de ter saudade de uumas coisas. E calmamente, sem tirar os olhos do Macacaquinho, ele completou: — Xd menina, venha c4 océ tamém. Ele me via desde 0 comego? Assustada ¢ com medo, tremendo muito, eu sai do meio das palmeiras ¢ timida- mente apareci de longe — Vamo se achegando, xd menina, seu v6 disse que océs vinha. ui até o velho, e ele estendeu a mao: — Geraldo, as suas orde. O Veio Geraldo em pessoa! O.que falava com 05 bichos e com as plantas, o feiticeiro! — Vamo se achegd prum tereré, xd menina, que essa chu- vinha abafou por demais o tempo. ‘Awa Canouina Neves Bu me sentei num toco na porta da tapera, enquanto le ajeitava as coisas para fazer o tereré. Eu estava surpresa. Como 0 velho nao devia conversar com ninguém hé muito ‘tempo, sua voz parecia agarrada na garganta. Era rouca, mas pausada, tranquila, e num tom baixo, que era até agradavel de owvir. Os antigos contavam que © Veio era um dos Guat, a nagio dos indios canoeiros. Eles viveram na regio da fron- teira entre o Brasil e a Bolivia durante séculos, mas hé algu- ‘mas décadas sumiram e foram dados por extintos. Porém, alguns desses indios reapareceram, como renascidos das ma- tas, e hoje moram no Pantanal, assim como o Veio Geraldo. Diziam que ele lutou na Guerra do Paraguai, e um ferimento na perna o deixou manco, Outros contavam que ele desertou porque enlouquecen com o sofrimento da guerra, e foi viver 1no mato, isolado das pessoas. Se os antigos estavam certos, 0 Veio era muito velho mesmo. A Guerra do Paraguai comegou em 1864, Entao, ele devia ter uns 120 anos. Eu acho que to- das as coisas que diziam sobre ele eram confirmadas pela sua imagem estranha, Meu corpo inteiro cogava por causa dos carrapatos. ‘Vendo aquele homem quase sem roupas, pergunte: Os insetos picam o senhor? ~ Mas qué, pica nada, xd menina! =O senhor conversa com eles, pede para nao picarem? Ele deu uma risadinha rouca e mudou de assunto. — Esse macaco gosta por demais de océs, x menina. Da pra vé que firmaram amizade. $6 que ele queria ter amizade com bugios tamém. Pawranauriees Ele tinha razo, Desde crianga, Macacaquinho nao es- tivera mais com outros de sua espécie. Na fazenda, ele tinha muitos privilégios que macaco algum teria na natureza, como as melhores refeicées, um abrigo seguro e pessoas sempre 0 adulando, Dava para ver que ele gostava de tudo isso. Mas o habito de subir nas drvores a cada manha e a cada tarde para chamar € escutar 0 escarcéu dos bugis na mata além do rio mostrava que cle nao tinha esquecido que era um ma- caco, Enquanto apertava 0 mate na guampa com a mao os- suda, 0 Veio disse: — V6 dé um presente valioso pra xd menina. £0 grande desafio. Océ pense muito nisso! Se algum dia achd respos- ta, conta pro Veio, porque faz. tempo que tento adivinhd esse mistério. Escute: ‘Achei estranho. Que ideia era aquela? O que ele chama- vva de desafio, eu chamava de brincadeira de roda! Eu nunca tinha pensado no significado daquilo que, para mim, era uma coisa para se cantar, para se brincar, e nao para se pensar. © Veio ajeitou a bomba na guampa, empurrando a erva para o canto. a — Olhe, faz, muito do tempo que eu moro nesse meio de mato. Bicho home bicho 6, né? Mas 0 tar de home é ta- mém um bicho diferente de outros. Pode gente vivé longe Ana Canouin Neves de outras gente, s6 no meio da bicharada? Como pode um peixe vivo vivé fora d’gua fria? Como podera vivé sem a sua companhia? —e apontou para mim. ~E, tamém, como poderd vivé sem a sua companhia? — e apontou para o Ma- cacaquinho. Como podia 0 velho me perguntar uma coisa daque- las, se vivia hé tantos anos entre arvores, passaros, peixes ¢ insetos, sem ter uma casa direito, ou uma familia? S6 rece- bendo as raras visitas de um ou outro amigo que sabia onde encontré-lo, como meu avd. Ele € quem deveria responder se pode um homem viver longe de outros homens, ~ Xd menina, uma vez juntei as traia ¢ fui pro Co- rumbi. Tinha arresorvido vive com gente, crid famia. Mas 14 tinha demais de gente, carecia de outros bicho! Daf eu chispei da cidade, voltei pro mato. Até hoje nao sei como a gente pode vivé sem outros bicho e planta, Tamém nao dé pra vivé sem gente. O melhor que consegui foi vivé do jeito que vivo. Entao, océ pense nesse grande desafio: Come pode peixe vive viver fora d égua fria! Caranguso niio é peire! Caranguejo peire &! Veio encheu a guampa com a Agua de corixo que armazenava numa moringa, ¢ a passou para mim. Nao era tao frio quanto o tereré que tomavamos na fa- zenda, com burrito e cubos de gelo, mas refres- cava bem. Enquanto bebia, fiquei olhando para o Macacaquinho. Sem diivida, ele gostava do Veio, porque nao saiu mais do seu ombro. Observei o interior da cabana. A cobertura de folhas de palmeiras foi montada sobre ‘uma estrutura de paus, onde estava dependurado um monte de objetos, como sacos de pano, facdes ¢ cestos. No emara- nhado das folhas de um acuri ao lado, mais quinquilharias: pontas de enxadas, enxades, pas, arames, cordas e baldes. ‘Awa Canoiinn Neves Voltei a guampa vazia para o Veio, que a encheu calma- mente ¢ tomou um gole, Ele assoviou para um lobinho que pressentiu estar por perto e que logo se aproximou, investigou 0 ambiente com suas orelhas enormes e depois partiu. Em segui- da, uma anta veio até nés, nos “conferiu” com sua tromba engra- gada ¢ desapareceu no capiio. Depois, o Veio passou a guampa cheia pra mim, saiu da tapera com umas sementes, chamou um passaro que estava escondido na copa das drvores e Ihe deu co- ida, Em seguida, dew uns cocos de acuri para o Macacaquinho. Desde que comecei a ouvir as histérias que os adultos contavam sobre o Veio Geraldo, eu sonhava em conhecé-Io, Eu queria aprender aquela lingua entendida por bichos e plantas, que servia para falar com todo mundo. Eu ia conversar com © Macacaquinho, com as formigas do chao e com qualquer capim que crescesse em greta de cimento. Eu nunca mais ia me sentir sozinha ¢ ia poder resolver de um jeito muito mais pratico a questao do vovd, de nos sentirmos arraias, plantas aquaticas ¢ jaganas. Se quisesse saber como é ser um deles, bastaria perguntar. —Pra.xd menina vé, 0s turista vém todo ano, saem & noi- te na tar de caminhonete, com ideia maior de va pintada, a preta ou a parda, Dai eu pergunto: alguém vé onga? Qué que vé, vé é nada, Mas eu me entendo com elas. Sei pra onde vao, de onde vém, se passaram solitas ou com fiotes, se sio macho ou fémea. Isso, sem vé elas, s6 lendo os rastro. Eu tenho esse entendimento com elas, que quase ninguém tem, né? Enquanto conversévamos, 0 Macacaquinho estava en- tretido em quebrar, com um pedago de pau, os coquinhos que ganhou. Pavranavens ~ Ontem mesmo, a pintada passou beiradeano aqui com dois fiote. Viero do capao de I4. Elas come e dorme ali. 14 tem demais das ossada de capivara, queixada e macaco, brancas limpinha. La, as arvore tém tronco riscado delas 4afié as garra. Arranham fundo mesmo na carne da madeira, chega a sair goma. Os fiote tamém sobe nos gaio. Da para ver 0s risco das garrinha deles. A mae com duas onicinha foi pros lado de Ia atravessando esse capo, Elas até deixaram um trigirinho de pegadas, oia aqui, Levantamos e ele mostrou as marcas na areia. Havia duas trilhas de patas pequenas € uma central, com pegadas do tamanho de uma mio aberta de homem. = Eu nunca iia notar essas pegadas se 0 senhor no tivesse me mostrado. Mas acho que 0 Macacaquinho iria percebé-las, porque ele tem instinto de bicho do mato. O se- hor viu como ele ficou todo assustado quando ouviu sobre as ossadas de macacos? Rimos, Macacaquinho se agitou e franziua testa, quan- do viu que zombavamos dele. Voltamos a nos sentar, O Veio passou a guampa cheia para mim, — Desde guri, aprecio por demais a conversa dos mais veio. Por isso eu gosto da companhia de arvores. Elas pa- recem muito das sem graca pras pessoa, né? Mas sio veias amigas, e ndo tem nada melhor que prosa entre anciées, ~O senhor quer dizer que as arvores falam? — Mas qué, por demais! Quando caminho por ai, pro- curo minhas amiga pra prosear. Foia, gaio, tronco e raiz contam histérias de inseto, passarinho, ninho, musgo e tre- padeira, se Awa Casouia Neves Eu nao aguentava de curiosidade, Sentia que ele esta- va quase revelando para mim seu segredo sobre a lingua das plantas. Ansiosa, eu perguntei: ~ Mas como é que o senhor fala com elas? Quer dizer, falar € facil. Quero saber como o senhor faz para ouvi-las? E ele calmamente continuou: — Xé menina carece de ser tranquila, de ter muita da pacineia, Quem vive muito, vive devagar. A conversa dessas veias nao tem ritmo de prosa de gente, niio. As vezes, elas le- vam dias, estages, até anos pra responder. Bu escutava tudo maravilhada: —O senhor pergunta coisas para clas? ~ Oia, em ninhos de arara, em ocos de pau, eu vejo ovos sendo chocados, pintinhos crescendo e quando chega a hora deles serem pais, vejo eles voltd pra onde nasceram, Assim eu aprendo sobre moradores de érvores, Ele pegou a guampa na minha mao e ficou alguns minu- tos preparando 0 mate. Quando terminou, tomou um longo gole e prosseguiu: — Marca em tronco conta sobre lenhadores, onga afiano as garra, anta e queixada roendo casca. Rabisco de canivete na madeira conta de algum pedo em viagem de comitiva com saudade da namorada. O assunto que mais gosto sio arvores tombadas e gaio quebrado, Eles falam de tempestade, quan- do os home se abrigam em casa e as arvore ficam solitas. Dai acontecem coisas que ninguém sabe, longe das vista da gente. ~Mas... 0 senhor pode falar com qualquer arvore? Gran- des, pequenas, velhas, novas, de todas as espécies? Ou tem um tipo que é especial? Pasranauriis — Elas jd nascem sabendo falé, xd menina. Mas gosto mais das ancia — drvores de duzentos anos, mais veia que eu. Blas sao as Ginicas testemunha de uma época passada. Entao, era assim que o Veio se entendia com os animais e plantas: pouco pela fala e muito pelos ouvidos, olhos, nari, © maos. As coisas falavam por sinais, que ele sabia interpre tar. Se, por um lado isso me decepcionou, ja que eu esperava conhecer uma lingua magica que unisse todos os seres vi- vos, por outro lado me animou. Nao era algo parecido com a leitura dos sinais © que eu e Macacaquinho faziamos para nos sentirmos como plantas aquiticas ¢ 4guas-vivas? Por ‘meio daquela viagem, 0 vovd nos ensinava uma espécie de Jinguagem dos bichos e das plantas. Quando voltéssemos, eu iria contar para 0 vovd tudo o que aprendemos com o Veio Geraldo, € quem sabe, irfamos contribuir com seus estudos sobre as transmutagoes, ‘Tinhamos que continuar nossa viagem. O Veio nos le- ‘vou até a borda do capao, onde o Pantandutilus estava amar- rado. Agradeci pelo tereré, pela conversa e pelo desafio. Pro- meti pensar naquilo, Ele ¢ 0 Macacaquinho se despediram da mancira deles, conforme seu entendimento. Quando embar- camos, ele me chamou, ¢ eu me virei ~ Sabe, xd menina, pra me protegé de carrapato, ponho casca de laranja no tereré. £ um repelente malin —Entdo o senhor nao conversa com eles? ~ Eu bem que tentei pedi pra nao me picé, mas eles nio me entendero. E eu respondi: ~ Eu acho que eles ndo querem é abrir mao de picar 0 senhor... B fingem que nao te compreendem! s nos deslocamos para o local onde deveriamos pernoitar. No meio do caminho, perce- bemos um movimento na 4gua de uma bafa, como se algo tivesse caido do alto das érvores. Paramos para ver 0 que era. Q Macacaquinho acionou o peri Pasranauriees Que surpresa ele teve ao ver um bando de bugios tomando banho! Pela parede do submarino, eu enxergava a agitagio de rabos e patas dentro d’agua, enquanto, do lado de fora, ‘© Macacaquinho via um pé de inga que tocava a superficie agua com a ponta do galho. A concorréncia era grande no galho, as vezes havia dois ou trés macacos pendurados, passeando entre a copa da arvore ¢ aquele ramo, onde se seguravam para se refrescar. Nos galhos ao redor, o bando fazia algazarra, observando os outros se banhando. Era um grupo grande ¢ o barulho podia ser ouvido la de baixo. Soltei parte da égua do tanque de lastro e o subma- rino subiu lentamente, ficando com a metade fora @agua, Vendo aqueles bugios, 0 Macacaquinho comegou a pular, aplaudir e gritar, numa mistura de alegria e ansiedade para juntar-se a eles. Com 0 rosto apertado contra o vidro, ba- tia na parede do submarino, tentando ser ouvido. Aquele era um momento importante em sua vida, porque era a primeira vez que encontrava outros macacos, desde que se desligou de seu grupo, ainda filhote. Vendo sua agitacio, ocorreu-me que, naquele momento, seu futuro estava em minhas mios. Eu podia abrir a escotitha e deixé-lo ir jun- tar-se aos bugios. Ele poderia viver na mata, brincar com ‘outros macacos e, no futuro, criar sua familia, Mas e se ele fosse rejeitado? E se os outros macacos 0 agredissem, 0 ex- pulsassem do grupo? Ele ja tinha sofrido a perda da mae Como se sentiria se fosse abandonado mais uma vez? Além disso, se partisse, eu perderia para sempre o meu amigo. O sol jé descia no horizonte e eu tinha medo de passar a noite sozinha no mato. so ‘ana Can Neves Machos, fémeas, jovens e filhotes carregados nas cos- tas pelas maes se divertiram por mais de uma hora, quan- do decidiram ir para outro lugar e embrenharam na mata. Eu nao tive coragem de libertar 0 Macacaquinho. E eles ndo 0 escutaram dentro do submarino. Ele ja nao aplaudia nem gritava. Sem ser escutado, sem nem sequer ser notado, observava com desconfianga o bando de macacos que se deslocava pelas copas das drvores distantes. Para protegé- -lo, me desculpei, escondendo o meu medo de que ele fosse desprezado: — Desculpe, amigo, mas eu néo queria perder voce, ¢ tive medo de ficar sozinha, Cansado, Macacaquinho sentou-se no meu colo ¢ apoiou a cabega no meu ombro. Eu o abracei e ficamos ca- lados por algum tempo. Eu estava exausta do dia cheio de novidades. ubmergimos e liguei 0 motor. Se- guimos adiante, até o capao onde famos dormir. Naquele fim de tarde, estavamos cansados e sem forgas para desembar- car; ficamos quietos por algum tempo. Eu sabia o que o Macacaquinho sentia. Ele estava triste por nao ter sido notado pelos bugios. Ele queria conviver com macacos iguais a ele e participar do bando. Depois da morte 62 ‘Ava Canorwi Nevis da mie e da adogao por nossa familia, uns macacos queridos, mas diferentes, ele parecia nao acreditar mais ser posstvel conviver com bugios. Acho que ele pensava: “Seré que sou ‘um bugio? Acho que sou um humano. Afinal, desse grupo eu participo, sou parente também, Mas por que eu sou peludo, tenho rabo ¢ sou menor que todos? E, acho que sou diferente dos humanos também”, ‘A visio do bando de macacos deixou-o num estado de desiinimo em que ele nem piscava os olhos, Seu olhar estava fixo num ponto li fora, mas nao via nada. Devia estar via- jando entre lembrangas distantes e estranhas da infincia, de coisas que mal chegou a conhecer, se emaranhando cada vez mais em tristeza. Ele nao gostava dos lugares por onde passe- avam seus pensamentos, mas nao conseguia se desligar deles. ‘Uma espécie de preguiga o impedia de se desembaracar da- quelas sensacbes. Eu ja havia lido no Guia para nada sobre aquele horario do dia, de nome dificil. Estava la: Aproveite 0 crepiiseulo vespertino, pois raramente somos tite capazes de fazer nada. As propricdades relaxantes do adaranjado misturade wom o rosa co rox do cén agem nas pessoas, nos bichos, nas plantas, mos fungos, ne dgua, mas pedras, nos cheiros, deixando-os calados ¢ meditativos. Pareravsvrnns Durante toda a viagem, nao trocamos palavras, mas nos comunicamos da nossa forma. Eu acho que, &s vezes, podia até adivinhar o que se passava na cabeca peluda dele, Era a primeira vez. em nossa viagem em que eu me sentia realmente s6, ¢ sabia que meu parceiro se sentia ainda mais solitério do que eu. Eu gostaria de vé-lo livre, mas no que- ria perder meu amigo nem queria vé-lo sofrer mais. Gosta~ ria ao menos de ter passado por sua dificil experiéncia para saber o que dizer a ele. Mas ninguém poderia viver aquilo por ele. Cada um tem seus fardos para carregar ligées para aprender. Eu pensava justamente nisso, quando abri 0 Guia ‘para nada, buscando qualquer coisa que tirasse meu amigo daquele labirinto interminavel de pensamentos estranhos. A tarde jd se ia, e eu nao esperava que 0 Guia me dissesse mais do que nada para fazer. Mas, nessas horas, um passo que damos para a frente ja é um comeco de entrada para a alegria. Encontrei o seguinte: Um bom ocak para aproveitar esse horiirio fazendo nada é & flor da éyua, onde mithses de coisas acontecem, dispensando a gente da fungito de fazer quetyiter coisa. Aproveite para enxergar mo estwre, wma atividade supimpe. 63 a Asa Canouiba Neves Dai tive uma ideia e o convidei — Fi, Macacaquinho, vamos ver como os jacarés veem anoite! Ele se virou para mim assustado, como se tivesse es~ quecido que eu estava ali apenas se endireitando na cadeira para tomar um novo rumo. O rumo da nossa aventura. Liberei parte da égua do tanque de lastro, e 0 Panta- néutilus subiu estremecendo com as bolhas de ar. Parou na superficie, onde ficam os jacarés, Nosso submarino botou os, “olhos” logo acima da linha d’gua. Afastamo-nos do fando escuro da bafa, onde estranhos animais noturnos passea- vam ¢ os diurnos se escondiam. Um espetaculo de luzes acontecia logo acima das nos- sas cabegas enquanto nos afundavamos na solidao la em- baixo, ¢ a gente nem sabia! Os pontinhos pilidos da Via Léctea tremeluziam e milhares de vaga-lumes cruzavam 0 céu feito estrelas cadentes. Que bonitos eram os pirilam- pos. Um piscando apressado, outro acendendo longamente alanterna, um terceiro riscando a escuridao ¢ reaparecendo aceitou o convite sem falar nada, ‘num lugar inesperado... Um esverdeado, outro esbranqui- gado, um terceiro amarelecente, tio alto... Iluminavam 0s botoes brancos das ninfeias. As luzes se multiplicavam no espelho d’égua. Lino Guia para nada uma gracinha do vov6 para alegrar 0 Macacaquinho: Dizem que conta estrelas apontando com 0 dedo fuz nascerem verrupas. Pasnanarruss OF am O sapo cururw E wm amante das estrelas. Quantas mit deve ter contado? E ele, quieto em sua poltrona, ja nao estava triste, De- pois de seu choro de bicho, apreciava humildezinho o espe- téculo oferecido de graca para quem quisesse ver. Talvez ima- sginasse que alguma estrela fosse sua mie, brilhando distante no céu dos macacos. Bem, isso fui eu que pensei, Nao sei se 0s macacos vao para um céu sé de macacos quando mor- rem, ou se todos os seres vivos vao para 0 mesmo céu. Acho que devem ficar todos juntos, sendo o céu dos humanos seria mais parecido com 0 limbo: nenhuma planta, nenhum pis- saro, nem meus bichos de estimagao eu reencontraria. Fiquei de perguntar isso para 0 vovd, porque era ele quem entendia dessas coisas. Se bem que ele tinha ideias bem doidas sobre a morte, Costumava falar: Dizem que moreexo & rato velho e que mariposa E bomboleta, idosan Send que, no ange da minha velhice, vow finalmente conseguir ser wre carver! 17 chegada da noite nos animou. No Guia para nada, vové com- partilhava o nosso entusiasmo: Pavranssuriis A noite tom seus cheires: 0 da wrina dos carnivores que saem das tocas, 0 das flores viritadas por moreegos, 0 da transpiragio das folhas. Mew perfume preferide E o bao de noite. Da boca da noite. Distraidos pelo espetaculo das luzes, nem percebemos que as flores das ninfeias tinham comecado a se abrir. Os botées arredondados na base e afinados na ponta pareciam aquelas plantas carnivoras dos desenhos animados que en- golem bichos, mastigam-nos e depois arrotam. De certa forma, era isso mesmo que acontecia. Das flores que comecavam a se abrir, lentamente safam besouros tontos, trocando as pernas. Eles passaram 0 dia engolidos pelas flores, depois de serem atraidos por seu branco lumi- noso na noite anterior, pelo cheiro de frutas € pelo calor produzido pelas flores. lam comer pétalas e acasalar. Visita- vam varias flores por noite. Terminavam cobertos de pélen, fertilizando ninfeias e “besouras’. Aproximei 0 perisc6pi de uma flor e foquei. Dezenas de besouros se levantavam e cafam, se espreguigavam esticando as asas para voat. Pare- iam bébados! O Guia para nada dizia: Os ninfeias sto deveras movimentadas no comeco da noite. EF Ava Canount Neves Se. Suas flores engolem berouros, aps atraitos com o perfume da noite co calor de baile. Muitas coisas acontecem dentro dagueles boties fechados, longe da vista dos outros. E nito adianta tentar entrar na festa. Eles nito deixartio, a nito sor que roti se transforme em besoure. Era noite alta quando o baile estava no auge da ani- magdo. O perfume exalava, soava 0 zumbido dos besouros que chegavam ¢ partiam, Mas eu € 0 Macacaquinho, que ti- nhamos pilotado durante a tarde inteira, estévamos exaustos € precisévamos descansar para 0 proximo dia, Deixamos a festa dos besouros sem sermos notados. tracamos 0 submarino. Enquan- to eu descia as tralhas, 0 Maca- © © caquinho encontrou uma cama, para a gente passar a noite, num ninho abandonado de tuiuitis, na copa de uma enorme pitiva. Sem dtivida, aquela era mais uma surpresa do vov6. Escalei o tronco como pude, segurando-me nas trepadeiras e me arranhando um bocado. Quando finalmente cheguei ao ninho, vi a cara moleca do Macacaquinho, espalhado folgadamente naquela enorme cama de gravetos e palhas, e rindo da péssima esca- ladora de drvores que eu era, Eu estava tio cansada que ndo tive disposi io para me defender de uma “observacio” tao esperta, De tio cansados, nem nos lembramos do jantar. Foi a conta de me ajeitar, fechar os olhos e dizer “é legal a visio dos jacarés... ea dos tuiuiis também’, ¢ cair no sono, Dormi- mos na companhia dos vaga-lumes. ¢ espertamos cedo com a algazar- ra de milhares de aves l4 embai- xo. Debrugamo-nos na beira do ninho para observ4-las em sua primeira refeicao do dia, Os tuiuitis ziguezagueavam na bafa onde atracamos o Pantandutilus. A cada bote, sapos e peixes saltavam, Embora 0 método nao parecesse eficiente, os tuiuitis eram grandes e saudaveis. As garcinhas brancas, que utilizavam outro método, caminhavam cuidadosamen- te, calculando cada passo para nao espantar os peixes. As vezes ficavam iméveis durante varios minutos, um pé le- vantado, & espreita, De repente, atacavam um lambari com bicada certeira. Numa drvore vizinha a nossa, um martim: -pescador observava os peixes, aguardando 0 momento cer- to para mergulhar e captura-los. No horizonte, aves voavam em grandes formagGes, buscando alguma bafa para fazer a refeigdo da manha. Colhereiros cor-de-rosa mal se distin- guiam do céu tingido pelos primeiros raios do sol, a nao ser pelo talho de penas vermelhas na ponta das asas. O dia comegava e, como o resto da bicharada, mos que nos levantar. Foi o Macacaquinho quem tomou a frente, se aprumando em um galho alto para comegar sua cantoria matinal. Roncou a plenos pulmées, vibrou o papo, ficou como “Macacacao”. Comegava a se parecer com um adulto, 0 que em breve seria, E pensar que conheci tio pequeno ¢ indefeso... Mas ele niio estava interessado nes- ses pensamentos. Quando percebi, ele me olhava, a cabe- ga pendendo para um lado, as mos batendo na panga que roncava. Minha barriga também roncava. Apreciar 0 “café da manha” das aves abriu meu apetite e, também, o do meu parceiro, Como a gente nao ia querer peixe cru, deixamos a companhia de nossas amigas de asas. 0 Macacaquinho abriu a mochila e separou duas porgdes: g penca de bana- nas para ele, uma chipa para mim, as mexericas para ele, inha- © arroz de carreteiro para mim. Completou sua parte com tum chumago de folhas novas, que achou ali por perto, e se ‘Ana Canouinn Neves encolheu num canto para comer. Tratei de negociar algu- mas bananas, trocando-as por umas vagens de pitiva que consegui com custo alcangar. Confesso nunca ter me imagi- nado comer com tanta vontade um arroz de carreteiro pela manha, como 0 Lau fazia, Devoramos tudo feito poreos monteiros esfomeados, compensando o jantar que nao ti- vemos na noite anterior. No final da refeigao, preparei um tereré. Ajeitei o mate nna guampa com a mao € coloquei a bomba com cuidado, para que nao entupisse. Enchi com a agua que corria abaixo da gente, que apanhei de cima da arvore, jogando o cantil amarrado em uma corda comprida, Assim aprendi com 0 Lau, Ble me contou que em suas viagens conduzindo gado, jogava a guampa nos corixos, de cima do cavalo, para pegar gua. Ah, nada como tomar um tereré no Pantanal, ¢ ai da mais em cima da arvore, com aquela paisagem ao meu redor. Ficamos algum tempo ali, apreciando a planicie com seus campos inundados, suas baias negras circundadas por anéis de plantas aquaticas e os capdes como manchas ver- des volumosas. © Pantanal parecia um pano alegre como aqueles dos vestidos da vov6. Parecia a cauda aberta de um pavio. staria tudo muito bom se nao fosse pelo meu corpo, que co- gava por causa dos carrapatos, que nao entenderam os meus pedidos e me ataca- ram no capao do Veio Geraldo. O Macacaquinho nao havia sofridy muitas picadas, porque tinha 0 corpo protegido por pelos. Ao me ver cogando, desesperada, ele veio para o meu ombro,ondese sentou para procurar parasitas na minha cabera. Depois checou meus bragos, costas e pernas, retirando os bichinhos e enfiando-os nna boca. Ele até me ofereceu um carrapato para comer; néo aceitei, mas agradeci. Era muito solidario, o meu amigo. Quando 0 Macacaquinho terminou sua vistoria médi- a, comecamos a juntar nossas coisas. Era hora de voltarmos para casa. Vové poderia passar a manhi entretida na cozinha ou com seus bichos, mas certamente se lembraria da gente na hora do almogo. Nao comer da sua comida era desfeita grave, podia até iniciar a terceira guerra mundial. Por una- nimidade, decidimos almogar em casa, Para isso, era preciso nos apressar e comegar as atividades da manha. Macacaquinho desceu da dryore com a rapidez dos bugios. Enquan- to eu descia sem jeito nossa tralha, ele desatracou 0 submarino. Embarcamos nossos equipamentos de viagem e partimos. Debaixo d’égua, nos despedimos dos colhereiros tuiuitis do angulo oposto ao que os vimos no inicio da ma- nha. Agora, eram suas pernas que observivamos pelas pa- redes do submarino. A agitagio das aves terminando o seu café da manha parecia um balé aquitico, com muitas patas sagaricando na lama do fundo, cabesas coloridas mergulhan- do em sincronia, além de um festival de canelas finas, por entre as quais nadavam peixes desorientados. Um martim- -pescador quase se esborrachou no vidro da nossa nave, sem perceber que nossa bolha nao era de ar. idicaga i obral nos levaria direto para ca- Viajamos por dua: recéo ao ponto indicado no mapa, onde encon- trarfamos a calha do rio. Foi quase impossivel 9 local, porque tudo ao redor estava jinalmente a m mudou e sentimos que nos apro Entramos numa zona de aguas avermelhadas. Atraves amos a ma la acompanha 0 rio Abobral. re Me Awa Canounla Naves Sumiram 0s insetos, girinos e pequenos cardumes de lambaris que nos cercaram durante toda a viagem. Passamos a ver es- tranhos peixes negros e arraias enormes se arrastando no lodo do fundo, As plantas aquaticas foram substituidas por tron- cos submersos. Em vez de macacos, peixes se alimentavam dos frutos que pendiam das copas das érvores. Sucuris ¢ jacarés descansavam nos galhos onde antes havia passaros. Tudo des- cansava na penumbra criada pelas arvores e pelos milhdes de plantas aquaticas chamadas lemnas, que cobriam a superficie com um tapete ainda mais delicado que os tecidos de salvinias. De repente, um barranco. E tudo mudou de vez. Tinhamos entrado na calha do rio! Novamente, vimos o brilho azul do ccéu sobre nossas cabecas, ¢ o tapete de plantas aquaticas foi substitufdo por camalotes isolados. Antes da nossa partida, eu imaginava que descerfamos 0 rio a toda velocidade, e que seria dificil controlar o submarino. Que nada: o rio fluia em uma velocidade quase imperceptivel, devido ao aguaceiro que o fez transbordar ¢ invadir as matas em suas margens e campos. Era um cenério completamente diferente do que conhe- cemos no dia anterior. Nos campos inundados, tinhamos nave- gado a poucos centimetros da superficie, Agora, a linha d’égua se encontrava muitos metros acima, Além da superficie, via- ‘mos manchas brancas tremulantes que pareciam ser nuvens no tis muito distantes. As praias, que na seca ficavam lotadas de jacarés toman- ccéu, ou gargas em pleno voo, ou tui do sol, desapareceram submersas. Eram as corimbas que as ocupavam agora, vasculhando o fundo em busca de comida. Os cardumes desses peixes se pareciam com rebanhos de vacas Paxransuneus pastando. Era curioso seu jeito de comer. Sugavam uma boa porgdo de detritos, engoliam o lodo e depois cuspiam a arcia eas pedras. Os pacus se escondiam entre a raizama das Srvores, nos barrancos. A todo momento, cardumes de piranhas e doura- dos passavam por nés sem cara de bons amigos. Nao achamos muito simpética a sua recepgao aos visitantes, Seré que néo gostavam da nossa presenca? Eramos intrusos em seu mundo misterioso? Se resolvessem nos engolir, bastaria abrirem a boca. Mas, entre medonhos peixes, uma imagem me alegrou, Um, equeno surubim com jeito de filhote veio vasculhando com a boca o fundo do rio, até topar o Pantangutilus. Passou da lama para um galho, depois para 0 vidro do submarino, ¢ dali nao se desgrudou, Nao nos via? Nao nos estranhava nem tinha medo? Hoje, muitos anos depois, penso nisso. Acho que o bagri- nho nao nos viu como menina e macaco nem como submari- no, Ele nos considerou a continuacao da superficie lamacenta quevasculhava antes, como se fossemos de areia, ou um tronco afundado, Ele nos viu como parte do rio. Aqueles peixes que nao nos receberam com boas-vindas talvez nem tenham nos visto como visitantes. Nao se assustaram com nossa presen- {52 porque nos viram como parte do rio, quem sabe? Um rio é feito de agua, terra, lodo, galhos submersos, folhas podres, peixes, seres microscépicos, ariranhas, aves, bolhas de are... de um submarino, um maceco, uma menina? ‘Nunca saberemos a verdade sobre esses acontecimentos. Te- ‘nho minha prépria versdo da hist6ria:fizemos parte do rio, fomos rio. E, mesmo sem saber naquela época explicar o que eu hoje explico com palavras, naquele momento eu me senti como 0 rio. =. Se a barrigas brancas dos jacarés que tomavam sol sobre os camalo- tes, quando algo se mexeu numa Arvore da mar- gem. Percebemos um vulto grande misturado galharia que beirava a superficie. Do fundo do rio, nao enxergavamos bem fora d’égua, mas eu juro que algt nos espiava da copa das érvor A coisa pardacenta se mexia tranquilamente. Ou era 0 vento que criava formas na superficie d’égua? Ou eram as folhas das arvores que balangavam? Eu tentava adivinhar que era: uma cabega... orelhas... dois olhos... Em seguida, via milhares deles! Depois, tudo parecia nao ser nada, Mas no podia ser nada! O Macacaquinho, que hé algum tempo cutu- cava com 0 dedo o vidro do submarino, tentando descolar 0 bagrinho, o abandonon e voltou sua atencao para o espectro indefinido, abrindo bem os olhos, os ouvidos e as narinas. Eu confiava em seu instinto. Se ele estava alerta, alguma coisa havia. E era grande. Emergimos para checar. Mas, antes de vermos a coisa, a coisa deve ter visto primeiro o periscépio ¢ as bolhas, e sumiu. Ou nada esteve ali: no lugar havia apenas a copa de um ingé, uma figueira com frutos, a mata de tons palidos e verdes, as sombras, Decidimos nos esconder e esperar a coisa reaparecer, caso nao fosse uma ilusao de ética. Submergimos, Imediata- mente vimos, além da superficie, o espectro nos mirar, como se tivesse voltado para o mesmo galho! © Macacaquinho fi- cou inquieto dentro da nave. Liberei o lastro, ¢ 0 submarino emergiu tao rapidamente que saltamos d’égua como uma bolha gigante. E tudo o que vimos na copa das rvores fo- ram folhas agitadas pelo vento, os frutos da figueira, os ga- Thos vazios. Nada mais. A coisa, se é que existia uma coisa, nos enganou de novo. Quando o submarino se estabilizou, e submergimos, cla pareceu voltar para o mesmo lugar de an- tes, Ela nos vigiava, Ela parecia ler nossos pensamentos. Ela parecia adivinhar nosso plano de surpreendé-la. Ela cagoava da gente, acho. ejal4 0 que fosse aquilo, ainda hoje into uma estranheza quando me lembro dela. A coisa que, no fundo, eu acreditava ser uma onga—eu queria com toda a minha forca que fosse uma onga—, pare Prornivsurns um fantasma que um animal, Eu ouvi durante toda a mi- nha infincia meus avés o Lau contarem historias de ongas no Pantanal, do tempo em que o indio era s6 mais um cho entre os outros, eo mundo parecia a festa no céu. Para ver onga, bastava querer, pois elas passeavam a solta pelos campos e beiras de rios. Um dia, chegaram os fazendeiros, Thadas nuns restos de mato, acuadas, sem ter para onde ir, foram se reproduzindo menos, envelhecendo e por fim sumindo. Hoje em dia, umas poucas vagam por ai. B “a’ onga, como dizem os caboclos ~ como se fossem todas uma tinica entidade, admirada e respeitada pela prépria nature- za, Mas, como sao sensiveis, elas perceberam que um bicho mais feroz chegara a floresta, o bicho-homem. Agora fo- ‘gem da nossa ameaga. Quer dizer, eu nao son uma ameaga. Enquanto escrevo esta histéria, muitos anos depois de ter feito a viagem com 0 Macacaquinho, temo que a visio fantasmag6rica tenha sido um mau pressigio de uma época em que seremos abandonados pela onga. Num mundo va- zio, ela nos lembrara da bagunca que o ser humano fez. O calafrio que senti naquela manba volta a percorrer minha espinha, numa sugestio: ja naquele tempo, ela havia se can- sado de ser vigiada e perseguida? E vivia nos observando com seus muitos olhos? Espero que a gente nunca precise se despedir das ongas. ” quela sensagéo nos acompa- nhou rio Abobral abaixo. Jé era hora de chegar em casa. Seguimos entre peixes enormes, camalotes floridos, jacarés nas praias de areia e ingiés tombados na bei- ra do rio. Do rio, passamos pela mata ¢ saimos no campo inundado, onde a paisagem tornou a se iluminar. Nas érvores das margens, conversavam os bugios. Estavamos proximos da Acuri Alto. Nos brejos, as jacaniis passeavam sobre as sal- vinias em busca de gravetos para fazer seus ninhos. As flores roxas dos aguapés eram visitadas por todos os tipos de tos, O sol brilhava a pino, Dai, passaram florestas de ninfeias, © verso avermelhado de suas folhas flutuantes, cardumes de se trairas ¢ lambaris, camalotes, o céu em flashes, manchas de luz, bolhas de ar, o som da hélice, aquele universo entre 0 ia, nosso rastro de pocira submersa, a Agua acas- tanhada... A Acuri Alto, a fazenda, tudo estava em sua or- dem cotidiana. Lau carpia, vovd trabalhava na oficina e vové pre- parava o almogo das gentes e dos bichos. Ao ver pela janela da cozinha nossa nave emergindo das Aguas, yov6 soltou um grito que o Lau ouviu do fundo do terreno. ‘Awa Carotid Neves = Minha Nossa Senhora, acode! Bos dois homens correram para acudi-la, ~ Ave Maria, uma bolha gigante saiu da égua! ~ Alas, Madre de Dios! Queda tranquila, senora! Eo vové: —Aqualina, s40 08 guris. Vieram para o almogo de sub- marino, — Mas, Manu, vocé botou os meninos dentro daquela geringonga, aquela invengdo maluca sua e do Jacques? Per- deu 0 juizo? ~ Minha “Aqualinda’, eles nao sairam a Ja loca. Bu dei um mapa aos pis. Nao se apoquente, minha velha. Ela nem esperou o vové terminar para correr até nds, {que desembarcivamos do submarino. ~Meninos, onde voces foram? Vendo que estavamos bem, num segundo vové ja esta- va curiosa sobre nossa aventura, O vové explicou: —Foram passear...e jé voltaram! — Ai, Manu, nao sei como ainda no desisti de vocé! Que falta de juizo. Vocé dew a janta pra eles, Lau? Vendo a falta de jeito do pedo, ja que no haviamos jan- tado com ele nem sequer passado em sua casa, vovd descon- fiou da histéria de jantar com o Lau. —Meu Deus, essas criangas passaram a noite no tempo! —Foram por ai ~ emendou vovd ~,conhecer o fundo do Pantanal, 0s campos alagados, tudo o que nao se pode ver daqui de cima. E 0 que nem Macacaquinho antes po- dia ver, £6 certo, seu bugio? O que sé os pids viram, agora Paxravauriu a gente vai também conhecer. Ah, se 0 velho Jacques es- tivesse aqui... Os olhos do vov6 brilhavam de orgulho ~ de nés, da sua maquina, de si mesmo, da amizade com o velho Jacques. Era como se dissesse: “Vé, amigo, a geringonca funcion: E vov6 disse, ainda meio confusa: — Meu Deus, andaram por esses fundos ai... Um dia, vio contar que teve uma cheia tdo grande no Pantanal que © povo navegava até de submarino. E 0 pessoal vai rir, falar que os antigos cram uma gente muito potoqueira, ou vai achar que és6 um modo de dizer. Ainda hoje, no Pantanal, nos anos de aguas altas ¢ emendadas, ouve-se os caboclos falarem sobre umas tais cheias de “surubimarinos’, que aconteceu depois de nossa viagem? Assim que chegamos a fazen- da, comegamos a contar nossa aventura. Vové se divertiu durante dias com minhas palavras e as macaquices do Macacaquinho. Passamos 0 resto das férias conversando sobre isso onde quer que estivésse- mos: a cavalo, de barco ou na oficina, Nessas férias, vovd fez uma homenagem ao velho Jac~ ques. As paisagens que descrevemos, ele as desenhou em fo- Ihas de papel, com riqueza de detalhes, incluindo as minho- cas no chao, as cigarras nas arvores, os caramujos nas plantas aquiticas e as larvas de mosquitos na égua. Pintou as ilustra- Ges em aquarela de pigmentos tirados de frutos, de folhas, de flores esmagadas e de terra, e dependurou-as num varal, Pasctansurines que amarrou em duas arvores. Deixou-as ali para o vento ler as figuras, levando as paisagens que visitamos para o ve- Iho Jacques, onde quer que ele estivesse. Quando ja estavam brancas de tanto ser lidas pelo sol, pela chuva, por passaros e cupins, uma ventania levou as folhas embora. Além disso, vov6 acrescentou um verbete no Guia para nadé Nos iltimes dias, a guria macacon, 0 macato meminon, eos dois camatotearam, vegetaram, bickaram, bolharam, riaram. Feliz de minha nein, que nko gastaré sua vida simplermente mutherando, e do mecate, que nito passard sew tempo 55 bugiando. ‘Anos depois, foi inaugurada a torre de madeira, ea vov6 finalmente pOde apreciar a planicie como se estivesse no topo de uma montanha. Tinha quatro andares ¢ uma cadeira que funcionava como um elevador, movido pela propria pessoa sentada, a0 puxar uma corda. Como 0 Macacaquinho, que subia nas drvores todas as tardes para chamar os bugios na outra margem do rio, ela passou a subir, a torre a cada final de dia para observar as casinhas das fazendas, o rio longe na planicie e seus bichos. Ela alimentou até o fim as aves que descobriram na torre um excelente lugar para fazer ninhos. ‘Awa CanounaSNieves © Guia para nada virou mais um experimento do vovd. Depois de escrever muitos verbetes, quando ja estava bem velhinho, v Manu resolveu devolver as palavras e sensagbes, para o lugar de onde vieram. Dizia que as havia pegado em- prestadas, mas que jé haviam passado tempo demais num livro. Entao, arrancou pagina por pagina do Guia para nada € as mergulhou na baia da Acuri Alto. Colocou mudas de aguapé ld dentro, que cresceram a medida que os papéis se dissolveram, e se multiplicaram a custa de seus nutrientes, O livro foi incorporado aos aguapés, ¢, por algum tempo, © vové pode consultar seus escritos nas folhas dessas plan- tas, Até que veio uma grande cheia, a baia transbordou e as, mudas feitas de palavras pelo vov6 se espalharam Pantanal affora, por lagoas, corixos e cantos onde ninguém imaginou chegar, e desceram 0 rio, indo para locais desconhecidos. Lau se mudou para o Pantanal paraguaio, Uma vez 0 visitei. Foi numa bela manha de setembro, Era seca ea paisa- gem estava diferente daquela que eu conheci durante vérias férias escolares, na Acuri Alto. Ele me recebeu na varanda de sua casa e sorriu largo. Apresentou-me a esposa e aos filhos, que jé aprendiam o oficio de tocar boiada, Bateu em minhas costas com forga, dizendo: “Fica para o jantar, guria?”, se lem- brando daquela noite, ha tantos anos, em que nao jantamos em sua casa, E caiu na gargalhada, © Macacaquinho ainda ficou por uns tempos na fazen- da, Na minha auséncia, fazia companhia go vov6 na oficina ¢ continuava sentando a mesa na hora das refeigoes. Diziam que, em pouco tempo, ele ia aprender a falar a lingua das pessoas, e que estava se tornando gente. Porém, antes disso, Paxtansurnes ele ficou adulto, atravessou o rio e foi viver com os outros macacos semelhantes a ele ~ os bugios. Se ele entrou para ‘um grupo, se teve filhotes, se viveu solitério ou se viajou para lugares distantes, ninguém sabe. © Macacaquinho se diluiu na paisagem, como tudo o que é do Pantanal. O que aconteceu comigo? Bem, iniciei este livro contan- do 0 que fago hoje em dia. A aventura que vivi e a amizade que surgitt entre mim ¢ 0 Macacaquinho marcaram minha vida, fizeram com que me tornasse bidloga e nunca mais qui- sesse me separar de bichos, plantas, pedras, ventos, Aguas... ‘Agora, gostaria de revelar uma ultima coisa a vocés, Quando voltamos da viagem de submarino, e antes de o Guia para nada ser dilufdo no Pantanal, eu também escrevi umas palavras nele: E nite é que 0 vows tinka raziie? Sea gente se esforear de verdade para ser outras criatwras, podemos até esquecer quem somos e mos confundir com cas. Afinal, dentro da lagarta, tem a borboleta na qual ele int se transformar. Quanto de cada bicho ¢ de cada planta temos dentro de nés? Quem stbe se somos Mantas, bactérias, fumgos ow animais que sonham ser gente? awa CanouniNeves Se caranguejo no E peixe, ow se caranpusjo peixe 6, ew nko sei. Ew sei é de outras perguntas: macaco é gente? Gente é planta aguitiea? Gente pode ser botha dear ow rio? O v8 Mann aha que é wma planta aquatica. Eu athe que o vos é wm aelho ¢ wm vegetal. O Macacaguinho ache que é gente. Ruem sabe mew amigo € macato ¢ menine ao meso tempo? A maioria das pessoas avredita que isso é wm problema. Eu, nito. Penso que cles we sprovinads » anal cada tise, “9 Pow fim: ew niko tenho wma resposta para o dilema do Veio Gorath. Tenko, sim, muitas dinidas. Corto mesmo, para min, ficow wier coisa: a partir de hoje, estou decidida a nit me afastar dos bickos e das plantas, nem munen deiver depp que sow wm deles. e sf PAdmirel o seu submarine que dettobre a intr Tide & vide de viecho« de ee A

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