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FABIO LEITE A QUESTAO ANCESTRAL AFRICA NEGRA Casa das Africas A Capitulo 2 A dimensao mais histérica do homem No capitulo anterior procuramos apresentar a pluralidade de elementos vitais, os quais vitalmente unidos, configuram 0 homem natural, sua sintese. Convém agora examinar al- gumas caracteristicas mais diferenciais desses elementos e seus destinos apés terminados os processos que estabalecem o fim da existéncia visivel. Essa apreciago permitira perceber, segundo entendemos, a existéncia de uma proposi¢ao material de imortalidade para o ho mem natural, naquela sua dimensio mais passivel de se tornar histérica. Para tanto, exami- naremos trés componentes vitais, 0 corpo, “duplo” o elemento por nés chamado de principio vital de imortalidade. Outros elementos antes apontados dentro das informagdes referidas aos Ioruba, Ese e Okan, nfo serio abordados pois jé estio relacionados com os demais. Quanto & questio do sopro ou fluido vital, doagio do preexistente, ela serd apre- ciada de maneira suméria, pois sua manifestacio individualizada, 0 “duplo”, relaciona-se de forma mais decisiva com a problematica que nos preocupa, a de procurar encontrar, no homem natural, a sua condicio vital de imortalidade e, potencialmente, de historicidade. Essa temética assume importincia decisiva para a tentativa de penetrar na explicagio pro- posta pelas trés sociedades acerca da controvertida figura do ancestral. 0 corpo Para as trés sociedades, o destino do corpo apés o fim da existéncia visivel é 0 da corrup- gio pelo apodrecimento e a sua transformagio em outros elementos que se integram 3 terra, Porém, embora o corpo seja o elemento constitutive do homem que mais tende a apresentar 03 efeitos desse processo observagio, a proposta de sua aniquilagio total pra~ ticamente nio existe. De fato, algumas proposig&es evidenciam a existéncia de uma idéia de sua continuidade apés a morte, embora os dados relacionados com essa problemitica sejam realmente escassos. © apodrecimento do corpo e sua integragio 4 terra parecem configurar uma mu- taco, a qual, mesmo ao final, guarda de certa maneira algo da individualidade anterior. Entre os Toruba, Verger (1973) registra a utilizacio de um pouco da terra de uma sepultura ara integrar a representacio material do morto respectivo, Isese. Embora essa pritica esteja ligada a outro principio vital, Emi, nada anula a possibilidade de existir também uma outra relacio com o corpo transformado pela morte. Essa rela¢io parece bastante evidente, pois tal representagio material € moldada de maneira a lembrar feigdes humanas. Se assim for, a proposicdo é a de reconstituicdo da pessoa no plano fisico, guardando Isese caracteristicas de dois principios vitais, Ara (0 corpo) e Emi (“sopro vital”,“duplo”,“sombra”). Para os Agni, uma cova nio pode ser utilizada mais de uma vez, nao sendo atribuidas pelo “Mestre do Cemitério” a certos individuos, principalmente a aqueles que se dedicam 4 apropria~ io de certas energias alheias, utilizando-se para tanto, nesses casos, de um artificio: esse dignitirio escolhe deliberadamente uma sepultura antiga, sem vestigios aparentes. Retirada a terra aparecem os 0:50s, diz-se entio que o solo recusa-se a receber 0 corpo. Esse ato re~ pete-se mais duas vezes, em outras duas sepulturas também escolhidas previamente. Na terceira vez, 0 corpo € considerado definitivamente rejeitado pela terra do cemitério, sen- do entio depositado em outro sitio, distante da aldeia, o qual passa a ser considerado mal dito e a ser cuidadosamente evitado. Quanto aos Senufo, as informacdes obtidas referem- se apenas 4 concepgio de que a terra de uma sepultura é diferente, dai talvez certos atos das ceriménias funerarias ocorrerem no espaco dado pela cova do individuo, fatos que pudemos observar pessoalmente.? Por outro lado, as trés sociedades fazem representar seus mortos através de estatue- tas, propondo assim uma espécie de reconstituigdo do corpo. Entre os Ioruba, hi o exem- plo de Isese, antes citado, colocada no local privativo dos cultos aos mortos das familias, onde so realizados sacrificios periodicamente. Os Agni Samwy do reino de Krinjabo fa- Ziam simbolizar seus mortos através de representacdes materiais, sendo particularmente fa- mosas as hoje infelizmente desaparecidas estatuetas Mma, feitas a imagem da pessoa falecida ¢ reproduzindo inclusive as suas escarificagdes. Quando ha morte entre os gé- meos, uma pequena estétua do gémeo falecido é feita e entregue ao irmio sobrevivente, quem a leva sempre consigo, Entre os Senufo, existem representasdes dos ancestrais mais antigos, ligados 3 histéria distante, como 0 caso das figuras de madeira simbolizando ca- gadores ¢ fundadores de niicleos nas épocas em que tiveram lugar os processos de seden- tarizagio. No sub-grupo Fodonbele, existem as estatuetas Kpondosian, de forma humana, representando ancestrais e utilizadas como piles com os quais a terra percutida ritual mente ao longo de certas ceriménias secretas dos cultos a0s mortos. Outra proposta de continuidade do corpo apés a morte é dada pela ingestio ritual de certas de suas partes. Nio possuimos dados a respeito quanto aos Agni e Senufo, porém entre os Ioruba de Oyo ¢ Abeokuta esse fato foi registrado.t E bem verdade que esses poucos exemplos esto ligados a explicagées transcenden- tes da dimensio da realidade imediata proposta pelo corpo, mas no deixam de conter, en- tetanto, uma proposi¢ao de continuidade desse elemento constitutive do homem apés a sua morte. Thomas (1968), em pesquisas realizadas em paises da Africa Negra, obteve apenas 38% de respostas afirmativas 8 idéia de aniquilagio total do corpo apés finda a isténcia visivel. Dos 42% de respostas contrarias a essa idéia, 11% referem-se & concepcio de aniquilacdo parcial e 31% a de nenhuma aniquilagao, Nesses tiltimos resultados devern estar envolvidas outras proposicées, como a de continuidade total do corpo apés a morte Possibilitada pelos processos de mumificacao aplicados a dignitarios de notivel importin- cia. E possivel ainda que nesses indices esteja contida a idéia de continuidade do corpo e 38 dada pelos 0ss0s, mas nés nao possuimos informagSes mais significativas a respeito. Quanto 3 mumificagio, nés nfo a relacionamos com as sociedades em causa, ainda que hipotetica~ mente, uma vez que a ‘nica informagao obtida sobre tais processos apareceu entre os Baule, 20s que nao incluimos aqui para fins de exemplificagio no obstante suas origens hhistéricas comuns ’s dos Agni ® © corpo € elemento constituinte do homem cujo significado social nio pode ser negli- genciado, Durante a existéncia visivel € um elemento de referéncia histérica, sendo fator de individualizagao, de trabalho e de reprodugio da sociedade quando serve de veiculo para a tomada de conscigncia das fiangSes sociais do sexo. Esté ligado também aos proces- $08 inicidticos, visando introduzir 0s individuos na sociedade de maneira étima, como se veri, B ainda utilizado como elemento de reconstituigio de certos modelos ancestrais li- gados 3 explicacio da realidade, permitindo a realizagio de dancas e gestualisticas ances trais, assim como a manifestagio de mascaras e atores travestidos. Porém, nio obstante a ampla dimensio social proposta pelo corpo, as caracteristicas que 0 definem nao possibi- Jitam consideri-lo como 0 elemento vital mais hist6rico do homem e capaz de ligé-lo decisivamente 4 sua configuragio ancestral. 0 “duplo” e os comedores de alma Conforme visto anteriormente, o principio configurador da vida em um corpo, relacio- nado com a nogio de sopro ou fluido vital — Emi, Woa Woe e Neri entre os Loruba, Agni e Senufo, respectivamente ~ é elemento primordial doado pelo preexistente, particularidade que estabelece a dimensio espiritual dessa vitalidade e, de certa maneira, a dimensio espi- ritual ¢ até mesmo divina do préprio homem durante sua existéncia visivel. Nés nio temos condigdes de indicar com seguranga 0 que ocorre com esse prin- cfpio vital apés a morte do corpo mas, segundo parece, pode tornar-se enti elemento constitutivo de um novo homem ou reintegrar-se 4 massa originéria. Tal concepgio € vé- Jida sobretudo para os loruba, segundo os quais Emi deixa a sepultura nove dias apés 0 en- terro “para tornar-se a sombra de um recém-nascido” (Verger, 1973: 62). Mas Verger re~ gistra ainda que Emi pode “ir para nao importa qual familia” (1973:62). Quanto aos Agni e Senufo, os dados obtidos na bibliografia ¢ na pesquisa de campo permitem considerar esses dois destinos eventuais como possibilidades significativamente aceitaveis. Ocorre, entretan- to, que tais principios vitais posstuem uma caracteristica comum as trés sociedades: consi- detados inextinguiveis devido a sua origem divina, individualizam-se fortemente, manifes- 39. tando-se entio sob a forma de “duplo” ¢, nessa condigio, sio atingiveis e aproprifveis. Assim, consideramos oportiino apresentar alguns dados referentes a essa individualizagio, a qual aproxima mais significativamente o “duplo” das priticas sociais. Entre os loruba, Eiji, o “duplo”, guarda apés o falecimento certas caracteristicas de sua natureza, Segundo Verger (1973), transforma-se em terra apés trés dias do enterro ¢ um pouco dessa terra faz parte dos elementos com os quais so elaborados Isese, representa- es individualizadas dos mortos da familia, servindo para determinados cultos destinados aos ancestrais. Nessa reconstituicdo dos mortos, isese, estando ligado a Emi, aparece como “um pouco do poder de Olédimaré que permanece na casa” (Verger, 1973: 64). Mas Ejiji € um elemento frégil, sendo sobre ele que recaem as aces negativas de terceiros, as quais podem levar 3 morte do corpo mesmo durante a existéncia visivel: de fato, quando Ejiji abandona definitivamente Ara, o corpo, Emi deixa de integri-lo, configurando-se assim. um cadaver, segundo indica Verger (1973). Para os Agni Wea Woe, 0 “duplo”, pode aban donar 0 corpo se 0 desejar, eliminando a vitalidade de Aona e destruindo a unio existente entre este ¢ Ekala. Mas Wea Woe & também um elemento vulnerivel, podendo ser apro- priado por pessoas habilitadas a fazé-lo, mesmo que 0 individuos estejam vivos. Quanto aos Senufo, as mesmas caracteristicas se aplicam a Neri, ainda que também seja considerado um elemento temido, capaz de a¢Ses vingativas O“duplo”, nas trés sociedades, aparece como um elemento vital ambiguo: é uma energia fortemente individualizada ligada & capacidade de vida do corpo, mas dele depen- de o término da existéncia visivel, o que em principio conduz & idéia de sua possivel ani- quilagio. No entanto, essa idéia se aplica a0 “duplo” somente enquanto relacionado com 0 individuo tomado isoladamente, De fato, tratando-se de energia aproprivel, continua exis- tindo, quando isso ocorre, sob a forma de forga adicionada a outra pessoa, que assim faz aumentar sua propria vitalidade, Nesse sentido, o “duplo” nao parece elemento aniquilivel. A dualidade e ambigitidade da nogio de “duplo” em varias sociedades afticanas — das quais as que cxaminamos nio sio excegdes — expressam-se nas respostas obtidas por Thomas (1968) a propésito desse elemento constitutive do homem, demonstram a forte divisio das opinides. A possibilidade de sua destruicdo atingiu 30% de respostas afirmativas. Para 0s outros 50%, a proposigio de destrui¢io parcial do “duplo” atingiu 9% e de nenhu- ma destruigio, 41%. Nesses indices devem estar contidas as hipéteses antes indicadas: 0 “duplo” € elemento considerado aniquilével em relagio ao individuo isolado; mas nio 0 € quando estabelece relagdes com terceiros que dele podem se apropriar para beneficio pré- Prio, ¢ assim continua existindo mesmo quando despojado de sua configuragio origindria. A dinmica proposta pelo “duplo” indica a oportunidade de que algumas outras consideragdes a seu respeito venham a ser apresentadas. Comecemos pela possibilidade de seu auto-dominio. Para tanto utilizaremos alguns dados obtidos em Gomon e Ores-Krobou, ocalidides da Costa do Marfim.* Em Gomon ocorre periodicamente uma celebragio de miilkiplos objetivos conhe- Cida pelo nome de Dipri,? envolvendo toda a comunidade e 20 longo da qual excepcionais 40 demonstragdes de “forga”®’ podem ser vistas, no Ambito individual e coletivo. Dipri esta relacionada com 0s ancestrais fundadores pactuados com a terra em um momento crucial através de um sacrificio especifico, o de Bidyo, filho do chefe da familia ocupante, reunin- do-se anualmente os membros da localidade para celebrar essa alianga ¢ esses ancestrais, as divindades propiciadoras do pacto, as colheitas obtidas ¢ 0 novo ano agricola.A ceriménia é extensiva 20s proprios instruments de trabalho € nela a proposicio bisica € a de os ha- bitantes de Gomon constituirem um grupo coeso, cuija unio permita o bemn-estar social. Dessa forma, Dipri 6 umn rito agrério mas também uma ceriménia fineriria destinada 2 celebrar Bidyo, veiculo possbilitador de fertilidade, ¢ os demais ancestrais. Marca 0 fim de tum ano agricola ¢ © inicio de outro, sendo também um momento de purificagio das pes- soas ¢ de toda a coletividade proporcionado por Kporu, divindade aquatica protetora de Gomon, habitante do riacho sagrado situado perto da localidade. E também o momento de manifestagio da forca dos habitantes de Gomon, sob o patrocinio de Kpont, provando assim que a trama ancestral integrante da explicagao do mundo proposta pelo grupo ¢ um fato presente, que renasce a cada vez juntamenite com as novas colheitas e com a purifica- cdo da comuidade. © contexto social da manifestagio de Dipri ¢ dos mais expressivos, © ue fandamenta a importincia a ela atribuida e a transforma no evento coletivo mais con- tundente de Gomon em um momento de sintese. Nos chegamos a Gomon na tarde do dia anterior 20 evento pois jé sabiamos que esse dia a estrada que corte a floresta e dé acesso a localidade é fechada perto dos limites urbanos ao cair do sol e no sentido oeste-leste, de onde vinhamos.’ Esse fato é devido a proposicio segundo 2 qual o oeste é 0 Ingar onde habitam os mortos, e quem deseje par- ticipar de Dipri deve chegar— se vier do oeste — até 0 momento aprazado, evitando-se assim verhham pessoas acompanhadas de “forgas” que nio pertencem 3 comunidade, pois podem interferir nos atos que se desenrolario no dia seguinte. Essa proposicio parece guardar tal significado que, nao obstante a estrada ligar duas localidades, fica interditada ¢ s6 se passa por ela, no sentido oeste-leste, ap6s 0 cair do sol, endo motivos muito impor- tantes e pagando multa. Ap6s as apresentagdes de praxe, inclusive ao guardido da terra, vvenerivel pessoa com mais de cem anos de idade ~ a diplomacia negro-africana é bastante complexa — pudemos permanecer em Gomon. Durante todo 6 resto do dia ¢ até por volta de meia-noite, pudemos observar a grande movimentagdo da aldeia preparando-se para o evento, todos vivendo um clima de ruidosa alegria. Jovens reunidos ~ mogas ¢ ra- pazes organizados por grupos de idade ~ percorriam os espagos principais de Gomon, correndo e cantando refrées alusivos ao acontecimento, Jevando nas mios varas e galhos finos, Esse ato € destinado a convidar as pessoas a participarem do acontecimento. Segundo um depoimento obtido, os grupos representam a unilio ¢ a conffaternizagio que devem marcar a festa; as varas e galhos, assim como os incessantes deslocamentos dos jovens, simbolizam a forga e a intensidade dessa participacio. Um palanque instalado em local privilegiado abrigava um significativo néimero de tambores, inclusive 0 tambor Odo, © qual somente pode ser percutido nessa ocasiio sagrada ou em momentos extremamente 40 {graves para a comunidade. Os meninos, sempre participantes e atentos, slo os encarregados de preparar as varas destinadas aos jovens, reunindo-se as vezes em pequenos grupos a fim de também declamar e cantar fatos importantes da historia de Gomon e de seus ancestrais, como no caso da pequena cangdo que um deles nos deixou registrar, e que, de acordo com sua prépria tradugao, seria Dipri “uma coisa antiga, uma coisa dos antepassados, no & uma coisa de hoje”. Por volta de meia-noite o siléncio caiu sobre Gomon, mas pudemos ouvir ao longe uma ou outra exclamagio, as veres um breve toque de tambor pequeno, acionado em surdina. Soubemos depois tratar-se das mulheres mais velhas que, na noite, dedicavam-se a expurgar a localidade de forcas negativas. Antes do amanhecer, um ato de sliplica ao preexistente ~ Nyate — foi feito pelo guardiio da terra a fim de exorcizar a morte, Ainda muito cedo, ocorreu um sacrificio no riacho sagrado, constituido da oferen- da de um galo ¢ de um ovo destinado a Kporu. © acesso a esse espaco nos foi vedado, mas diz-se em Gomon que nesse dia, e somente nele, é possivel encontrar-se e apanhar caulim no leito do riacho Kpont,a fim de ser utilizado durante as solenidades. Apés esse sactificio, © tambor Odo voltou a soar de vez em quando, assinalando 0 inicio de novos atos. Os chefes de familia, reunidos com varios de seus membros, devem participar de uma refeicao comunititia, simbolizando sua unio, dirigindo-se em seguida a0 riacho Kpont para as ce~ riménias de purifica¢io em suas Aguas. Nés pudemos ver varios desses grupos, formando cortejos, as pessoas vestidas com roupas brancas dirigindo-se solenemente em diregio 20 tiacho, precedidos cada um de uma pequena orquestra constituida de tambores indivi~ duais, sinetas ¢ instrumentos de sopro chamados Kroko, feitos com presas de elefante. Os Kyoko pertencem as divindades de Gomon que séo advertidas, pela miisica, da chegada de seus protegidos. Ao seu retorno, pintadas com caulim, virias pessoas ja se encontravam tocadas pela energia de Kpons, tendo caido em transe. Apés 0 retorno 4 localidade, os che- fes dessas familias fazem oferendas de inhame a seus ancestrais ¢ as manifestagdes puiblicas de "forga” tem inicio. Os tambores de fala — Attungbanye!® ~ comegam a saudar os presen tes, as divindades e os ancestrais, juntando-se a Odo e outros tambores, estabelecendo um ritmo s vezes hesitante, is vezes vertiginoso, mantido praticamente durante toda essa parte das ceriménias."* E a0 som desses tambores que as pessoas iniciadas nos segredos de Dipri, sobretudo homens, provocam ferimentos a faca em si mesmos e os fazem fechar em se~ guida. Os golpes sio dirigidos, na maioria das vezes, contra o ventre, mas atingem também outras partes do corpo. Segundo afirmado, Kpont interditou as mulheres, devido & sua fun- io materna, ferimentos no ventre. Mas observamos e fotografamos uma mulher, vestida de branco ¢ com o rosto pintado com caulim, que encostando no grande tambor Odo, costuzou a lingua diversas vezes para depois exibi-la e mostrar a auséncia de ferimentos. Alias, € possivel afirmar que o objetivo bisico € 0 de fazer cicatrizar os ferimentos apés 2s Timinas penetrarem no corpo. Os cortes sio tratados logo em seguida com uma mistu- a de érvas, caulim ¢ ovo cru usada pela propria pessoa ou por terceitos, aplicada muitas vezes com a boca, estancando-se o sangue e fechando-se o corte a seguir, como vimos acontecer intimeras vezes. Um homem, entrevistado no momento mesmo dos aconteci- 42 mentos, declarou-se capaz de nao apenas fazer o mesmo como também de transformar- se em pantera. Outro acrescentou ter a “forga” de cortar 0 préprio sexo e depois reim- planti-lo sem nenhum dano, enquanto um terceiro afirmou poder dar-se tiros de espingarda na axila esquerda sem majores problemas. Tudo foi entusiasticamente confir- mado por um grande ntimero de pessoas — formam.-se grupos, is vezes muito numer0sos, para observar as demonstragdes dos iniciados ~ que rodeavam o entrevistador ¢ entrevis- tados num didlogo dificil, devido ao rnidoso clima de excitagio e euforia ¢ & presenga dos tambores. Outra testemunha, velho iniciado nesses segredos, afirmou-nos posteriormente que realmente essas coisas acontecem em Gomon, sendo “antes” muito mais extraordi- nirias. As demonstragdes continuaram durante grande parte do dia ¢ nesse perfodo pu- demos observar ¢ fotografar ainda outros fatos:;pessoas passando pelos primeiros ritos inicidticos dessa forma de agio migica — onde o*uso de 4gua lustral contida em vasilhas depositadas sobre morteiros de piles pareceu conter significado prioritirio —; transes vio- Ientos, considerados incipientes pelos préprios informantes, que apontavam a necessidade de iniciacio;" e vimos também um sacrificio dirigido 3 “forea” da propria pessoa, em que uum galo foi degolado com os dentes e seu sangue fora depois sorvido por ela.A partir das quatorze horas 0s acontecimentos foram cessando até haver uma pausa. Depois dela tive- ram inicio as demonstragées coletivas de “forca”, constituidas essencialmente no confron- to de poderes: os iniciados dos quarteirdes Ente e Loc, tradicionalmente oponentes nas competic&es magicas ao longo de Dipri, organizam-se em dois grupos, um em cada ex- temo da rua principal da localidade. Esses grupos devem caminhar, sob 0 comando de seus chefes — os seus homens “mais fortes”, 0s Soponyire, ocupantes desse cargo institucional mente —, um em direcGo ao outro, franqueando as barreiras, obsticulos, animais fantisti- cos ¢ toda espécie de perigos virtuais criados por ambos os lados e oferecidos 4 visio des- ses iniciados, Fatalmente, um dos grupos € vencido, embora isso nem sempre seja aceito Pacificamente, Terminada a prova, vencedores e vencidos desfilam triunfalmente por Go- mon conduzidos pelos seus lideres, retinem-se sob a arvore sagrada a0 som dos tambores para ali trazidos ¢ executam a danga de guerra Ambra.*® Finalmente, ocorre um ato de pu- rificagio geral no riacho Kporu, onde todos se lavam. Depois, a comunidade passa a aguar~ dar a purificagao da propria terra, feita pela chuva, sob a qual deixamos Gomon e 0s ami- gos que ali fizemos... As mesmas demonstragées de “forga” foram vistas em Ores-Krobou, localidade vi- zinha a Gomon, por ocasiio de celebracdes do mesmo tipo e ocorridas na mesma época.'# Nessa ocasido, infimeros atos dessa espécie puderam ser observados, principalmente os ferimentos a faca seguidos de cicatriza¢io.A cicatrizacio, em poucos minutos, de um fe- rimento produzido no cotovelo com um facio foi fotografada em todas as suas fases, in clusive 0 momento da imposi¢io da boca para aplicagio de certos elementos, bem como, a exibicio triunfal do brago curado, feita por um velho iniciado, Esse mesmo homem, an teriormente apresentado como 0 “mais forte” de Ores-Krobou, fez duas demonstragdes espontineas em outra ocasiao, Nés estivamos almogando com o chefe da localidade ¢ um 8 grande ntimero de pessoas, pois era jé 0 momento antecedente a pausa que ocorria por volta das quatorze horas, necessitia & alimentacio vedada aos iniciados, 0s quais nesse dia no comem nem bebem, a menos que nao desejem participar das demonstragdes de “for- 5a” ou, entio, estejam dispostos a correr riscos, como a nio-cicatriza¢io dos ferimentos.!5 O velho iniciado aproximou-se com as mios sobre o ventre, retirou-as e apareceu um corte, no qual se via algo saindo de dentro. A pergunta feita, respondeu que se tratava de um pouco de entranhas. Em seguida, empurrou tudo para dentro de si ¢ o ferimento fe- chou-se em poucos minutos com a aplicagio de um ovo cru e folhas mastigadas retiradas da boca. Restou no corpo uma cicatriz de aparéncia recente ¢ naa terra uma boa porcio de sangue. A outra demonstrasio, feita a seguir, nos levou muito perto de vislumbrar algo fundamental para melhor compreensio da materialidade da “fora” de alguns iniciados: trata-se de um talisma que se encontra guardado dentro da pessoa, em seu ventre. Esse ve~ Iho iniciado, tendo primeiro expulsado lentamente da boca um ovo inteiro, imitando com os labios os movimentos de postura das galinhas, colocou os dedos na garganta e co- megou a puxar um fio parecido com um barbante, colocando pata fora cerca de 40 cm. © fio estava completamente esticado e com uma das pontas perdendo-se visivelmente na garganta, foi forgado varias vezes para fora, mas ndo saiu, como se estivesse preso, sendo entio engolido. Com um sorriso vitorioso ¢ alguns pasos de danca, o “homem mais forte” de Ores-Krobou retirou-se. Infelizmente, obtivemos apenas quatro fotos desse mo- mento inesquecivel. ‘A nossa intengio ao apresentar esses dados nao é a de buscar uma anilise de seu significado mais abrangente de um ponto de vista social ~ enunciado 0 mais sucintamente possivel no inicio da exposicdo —, mas sim o de registrar alguns aspectos relacionados com a problematica proposta pelo “duplo”. Com efeito, os atos observados em Gomon e Ores-Krobou revelam que os iniciados sio capazes de praticé-los quando se encontram em estado de transe. Esse estado, no entanto, é bem configurado. No dia de Dipri a divin- dade protetora das localidades faz expandir suas energias, sendo capaz de atingir os iniciados, capacitando-os a, por sua vez, desencadear suas forgas vitais mais significativas € apropriadas para a ocasiao, Para isso, entretanto, os individuos ~ caso no tenham adqui- Fido “forga” por um proceso natural, vindo ja 0 mundo com essa qualidade, fato consi- derado possivel segundo se aceita em Gomon, onde obtivemos esse dado — deve sub- meter-se 2 certos processos iniciticos, os quais permitem tornar-se potencialmente capazes de entrar em interagio com essas energias. Diz-se entio serem portadores de Seke, uma “forca” diferencial, tornando-os os Sekepuone da localidade. Para que um Seke- ‘Puone interaja com outras energias ¢ forgas, deve fazer aflorar Egeu, elemento integrante de sua vitalidade e personalidade capaz de controlar sua “forga” ¢ dirigi-la, indicando-lhe, 10s eventos de Dipri, quais ferimentos pode produzir em si mesmo e em quais partes do corpo, quis ervas e outros recursos deve utilizar para fazer cicatrizat suas feridas quase instantaneamente. Quando Egeu aflora, 0 individuo passa a ser um Kponpuone, nome derivado de Kpon, emissio sonora simbolizadora dos ruidos produzidos pelas sacudidas 44 do corpo ocorridas nos momentos iniciais da manifestagio de Egew. Dessa maneira, os Sekepuone, portadores de uma enexgia vital especifica, Seke, transformam-se em certos momentos nos Kponpuone, isto é, em “homens fortes” sob o estado de transe propiciado por Egeu, permitindo a interagio com outras energias desencadeadas por Kpomt. Nesse estado, podem entio praticar sem perigo suas demonstracdes de “forga”. Esse foi o transe tipico observado em Gomon ¢ Ores-Krobou. Tal manifestacio especifica de exterioriza~ cio de energias vitais explica também as transformagées pelas quais as pessoas iniciadas se dizem capazes de produzir nelas mesmas, como no caso do homem-pantera jé referido: sio seus “duplos” os detentores dessa capacidade. O mesmo ocorre também com relagio as barreiras, obsticulos e animais fantisticos manifestados nas confrontagées finais. Jogando com 0s “duplos”, principio vital capaz de transformar-se, as vis6es sio criadas ¢ vistas pelos “duplos” dos adversérios, os quais por sua vez criam outras, assim até o desfecho, onde vencem 0s “mais fortes". Devemos mencionar essa possibilidade de manipulago do “duplo”, capaz de atingir uma instincia tio desenvolvida que os “homens fortes”, quando em ago, permanecem, no ambito da observa¢io imediata, praticamente em atitude co- mum — como no caso do velho iniciado de Ores-Krobou, o qual quase exibiu o talisina guardado no interior do ventre ~, em forte contraste com outros individuos, cujo estado de transe é mais aparente, marcado pelo enrijecimento do corpo, passos largos e pesados, olhar fixo e distante. Finalmente, cabe introduzir um outro dado. Embora Dipri seja um momento de confraternizacio de toda a comunidade, ela constitui uma boa ocasido para o-exercicio de aces desestabilizadoras. De fato, Angre, uma outra energia, capaz de ser manipulada por individuos habilitados, pode manifestar-se nessa ocasio particularmente especial onde os duplos estio soltos: nada impede que um manipulador de Angre — parti- cularmente um Angrepuone Hun, considerado como produtor de aes nefastas pela co- munidade** — dirija entio sua “forca” para prejudicar um Kponpuone e, vencendo seu “du- plo”, acarrete 3 pessoa visada toda espécie de problemas: como nao ser capaz de ferit-se corretamente, oti de escolher quais ervas e outros recursos devern ser aplicados nos feri- ‘mentos para cicatrizi-los, provocando a doenga e até mesmo a morte caso outros inicia~ dos mais experientes nio percebam o fato ou nio consigam anular o processo. Os dados apresentados demonstram a potencialidade do “duplo” e a possibilidade de seu dominio por parte dos préprios individues, revelando sua dindmica. Quando, po- rém, 0 controle do “duplo” — possivel gracas a uma qualidade natural ou a uma iniciagio especifica — nao se realiza, os individuos ficam a mercé daquelas pessoas capazes de expro- prié-lo, os “comedores de alma”. Essa temitica remete o problema a uma segunda consideragio, a da manipulario do “daplo” em um contexto que envolve o relacionamento de “forga” entre pessoas. . Em primeiro lugar, parece necessério distinguir a figura social dos “comedores de alma” daquela que institucionalmente se lhe opée. Por raz6es de maior objetividade na exposigio serio adotadas, com reservas ¢ a contragosto, as palavras “bruxo” “magico”, respectivamente, e apenas para distingui-las, segundo a terminologia de Rouch (1973). 45 Na verdade, as duas categorias jogam com 0 dominio de certas forgas e energias, sejam as suas prOprias, inerentes & sua vitaidade, desenvolvidas ao longo de anos de apren- dizado pritica, sejam energias ou forgas estrangeiras 4 sua constitui¢ao, como divindades ‘ou seres elementais dos quais se servem. Assim, tanto 0 “bruxo” como o “magico” sio considerados “homens fortes” na comunidade e seus métodos parecem nao se diferenciar substancialmente. O que estabelece uma diferenca fisndamental entre os dois tipos é, ¢s- sencialmente, 0 papel institucional desempenhado no interior da sociedade. Os “bruxos” agem em proveito préprio, apropriando-se de “duplos” alheios a fim de aumentar sua pro= ria vitalidade ou para neutralizar alguém, por vontade propria ou a pedido de terceiros. Eles sio os “comedores de alma” por exceléncia. Ja os “migicos” dedicam-se, nessa dimen- sao dos jogos de forca, a defender a comunidade de toda agZo nefasta ¢ a afastar as influén- cias devidas as priticas dos “bruxos” e 3s manifestagdes negativas de divindades, e até mes- mo de ancestrais, descontentes por intimeros motivos possiveis. Dai o “migico” ter como um de seus papéis sociais relevantes a purificagdo coletiva da comunidade em diversas determinadas situagées. © “magico”, agindo ao nivel individual ou coletivo, é o principal adversirio do “bruxo”. Mas nada exclui a possibilidade de que os “mégicos”, em uma configuracao abrangente, venham a ser também “comedores de alma”. Registre-se, aliés, que as duas categorias podem até mesmo manter um relacionamento profissional, ocor- endo a troca, venda e compra de certos conhecimentos especificos e, ainda, a participacio comurn em certos rituais, conforme registra D’Aby (1960) entre os Agni. Um dos pontos comuns existentes entre “bruxos” ¢ “migicos" é o de ambos pos- suirem a capacidade de um 6timo dominio de seus “duplos”, manipulando-os e acionan- do-os para a realizacdo dos atos desejados. Assim o dominio do préprio “duplo” constitu uma espécie de auto-possesséo. Na possessio, o “duplo” de uma pessoa iniciada nessa arte é,¢m determinadas fases do processo, substituida por uma “forga” estrangeira 4 personali- dade, como uma divindade que se manifesta ela mesma ou utiliza o seu proprio “duplo” para tanto. Tal parece ser uma das dimensdes mais expressivas do fendmeno da possessio."” J na auto-possessio 0 “duplo” do individuo é dirigido por ele mesmo. Segundo parece, “braxos" e “magicos” utilizam-se desses dois métodos. Mas ambos sao, sobretudo, grandes manipuladores de “duplos”. Rouch, apresentando dados acerca de “magicos” e “bruxos” entre os Songhay-Zar- ma do Niger, considera 0 “magico” lun personagem estranho e solitirio, temido mas indispensivel, senhor dos gestos, das pa- lavras, das arvores ¢ das pedras, guardiéo da ordem espiritual da aldeia e capaz de con- ciliar as divindades aos homens que ousain solicité-lo, Esses “videntes” permanentes sio, sem intermediério, os senhores de seus “duplos” [...] que envviam, sob 2 forma de abu- ft, a0 encontro das divindades aliadas ou para tomar conhecimento, no espaco € no tempo, da marcha de certos empreendimentos [...]. Quer se trate de adivinhacio (eomincia, jogos de cauris, profecia direta) ou preparagio de um “Korte” (“encanto 46 migico”),a trajet6ria € sempre a mesma: por suas palavras, seus gestos, o magico [...] su- blima seu duplo [...] 0 envia a busca dos materiais necessérios a seu trabalho, ou sim- plesmente o projeta ao lado do duplo do cliente para saber o que este niio diz ou talvez mesmo aquilo do qual aquele nfo tem consciéncia. (Rouch, 1973: 533-534) O método utilizado para essa manipulagio do “duplo” constitui-se, segundo esse autor, baseado nas narrativas tradicionistas da civilizagio Songhay, no deslocamento do “duplo” do “magico”, fazendo-o sair de si e colocando-o no espago em relagio aos pon- tos cardeais e em relagio a sua “corrente iniciética”, uma pega em metal recebida de seu iniciador engolida pelo “magico” o qual “vomitari por sua vez alguns dias antes de sua morte.” (Rouch, 1973: $33). Essa corrente referida por Rouch parece se constituir em elemento sintetizador da “forga” desses individuos. E, ainda, eles podem em determinadas circunstincias, de confionto piiblico ¢ institucional desse tipo de poder, fazer o objeto sair pela boca. Esse ato constitui-se em momento patticularmente perigoso, pois nessa ocasilio o“duplo” da pessoa pode ser subjugado por outro mais “forte”. Tal talismna parece tratar- se de um elemento catalizador das energias vitais do individuo iniciado na arte de manejar © proprio “duplo”, confiandindo-se com a sua propria energia, por isso € conservado em seu interior, em suas entranhas, onde também se mantém protegido. Esse foi o objeto que estivemos perto de ver em Ores-Krobou, conforme assinalado anteriormente, mas infe- lizmente nao obtivemos sucesso. Um depoimento obtido por nés em Gomon na ocasiio das celebragdes de Dipri,estabelecia que a “forca” contida nesse objeto poderia ser trans- mitida voluntariamente pot um iniciado de alto nivel, quem guardaria, no interior do ventre, um objeto — nfo foi informado de que material — sintetizador de sua “forga”. Pou- co antes da morte, tendo escolhido seu sucessor dentre aqueles por ele iniciados, vomita esse objeto, o qual é entio engolido por aquele, completando-se assim a transmissio do poder. © possuidor desse objeto, pegando-o com a boca no momento de sua expulsio, é senhor de uma “grande forga”; tem 0 poder de cura mas também o de criar imagens apa~ vorantes ¢ barreiras de todo tipo, sendo capaz ainda de se transformar em pantera, serpente outros animais. Assim, os dados de bibliografia e os de pesquisa de campo confirmam que nos estigios mais avangados do dominio do “duplo” hé um elemento material catali- sador ¢ desencadeador de energias adicionado 4 pessoa. Quanto a0 “bruxo”, Rouch considera que est “muito perto do migico mas, em lugar de utilizar seu poder para defender ou guiar os outros homens, ele 0 usa para causat © mal, roubar ‘duplos’ cuja perda acarretard a morte de suas vitimas.” (1973: 535). Esse autor considera ainda que “bruxo” possui, assim como o “migico”, “a arte de dirigir seu ‘du- plo’ [...] e é esse ‘duplo’ que se constitui, de fato, no verdadeiro agente da feiticaria. E ele que parte a caga de outros ‘duplos’.” (1973: 536). Referindo-se as técnicas de controle do “duplo” por parte dos “bruxos”, Rouch acrescenta que estes conseguem fazé-lo sair pelas axilas ou pelo Anus, permanecendo o corpo em letargia enquanto o “duplo” vai 4 busca de outros “duplos”, dos quais, se nfo forem suficientemente “fortes”, conseguem se apro- 47 Priar, geralmente alterando as condisdes psicolégicas das vitimas através de estratagemas, tornando-as mais vulneriveis: o“duplo” cacador transforma-se em objeto, pessoa ou ani. mal, ¢ se a vitima os tocar é imediatamente presa de panico perde o controle de sea pré- prio “duplo”, o qual & entio aprisionado, Existe ainda a posiblidade de apropriagi de “duplos” durante o sono das pessoas, quando aqueles, incontrolados, saen doe corpos adormecidos ¢ se distanciam. Nao estando sob dominio, tornam-se presas Ficels para os “comedores de alma”. Essa mobilidade externa do “duplo” explica, segundo Rouch (2973), por que as vezes, em certos locais ermos, cintilaySes podem ser vistas na escusedac da noite: sio os “duplos” de “bruxos” deslocando-se no espaco 3 procura de russ vtimas ® Uma vez dominado, o “duplo” capturado é escondido pelo “bruxo” durante algum tem- Po. hi a possibilidade, indicada por Rouch (1973), de que seja devolvido, caso “migi- co” 0 consiga. Desencadeia-se entio, em siléncio, uma verdadeira batalha de forcas opo- nentes ¢ dirigidas, ravada no espaco paralelo dos “duplos”. Caso © “duplo” aprisionado io seis devolvido dentro de um certo prazo, sobrevém a morte do corpo despojado dessa energia ¢ © “duplo” € partilhado entre os “bruxos” da contfiaria por eles formada ou entie & doado a principal divindade do “bruxo” aprisionador, sendo “comido” on qualquer das hipéteses. ‘Torna-se possivel indicar ainda alguns dados referentes 3 manipulagio de “duplos”, abordando desta feita os Agni ‘Um tipo social diferenciado ¢ consticuido pelos Bayie (ou Bayifee) que, segundo D’Aby, possuem o poder de se “transformar em animais para prejudicar o- oatras he. mens” (1960: 35). Ese autor nada mais acrescenta a prop6sito dos Bayie mas, de qualquer ‘mancira,registra-se assim a existéncia de uma capacidade de metamorfose do homem, 0 gual, segundo parece, remete o problema 3s qualidades do “duplo”. Esse autor abordande 8 questio dos “bruxos” — os Tilimafoe ~ entre os Agni, apresenta informacées unm pouco crab miensas através das quais se constata ser a apropriagio de “duplos” bem conhecida, embora os individuos envolvidos com tais priticas guardem ciosamente o segredo de suas técnicas, D'Aby cita um relato formulado por um tenente da administracio colonizadora, datado de 1914, onde algumas informagées foram registradas: Os chetes bruxos tém a sua disposi¢io os pequenos bruxos ¢ feiticeiros, duas categorias de individuos em principio oponentes, visto que os primeiros Jangam maleficios e os tl- fimos tém a missdo de os descobrir e entregi-los a vindita popular. Na realidade, essa hostilidade ¢ aparente e mio se manifesta a nio ser que o bruxo chefe o deseje.A cada trés noites, em média, os bruxos de cada tribo se retinem todos em um local do mato sob a presidéncia de seu chefe. Este pede a0 pequeno bruxo [.--] 0 nome de uma pes- soa, homem, mulher ow crianga, que é preciso “comer”. Dado 0 nome, ele, por proces S88 que ninguém mais conhece, faz a metamorfose do individuo condenado em um frango, que sactifica. Faz cozinhi-lo e 0 distribui a todos os Presentes, que o comem [.-]. D'Aby, 1960: 57-58) 48 Esse depoimento, embora nio informe mais sobre a técnica que permite aprisionar certas energias de uma pessoa e transplanté-la para um animal, é bastante valioso pela sua antigtiidade e por introduvir, ainda uma vez, a idéia de possibilidade de metamorfose de forgas constitutivas, sua internalizagio na energia vital de um outro ser e a continuidade de «ua existéncia pela ingestio. O relato indica também a possibilidade de categorias opo- nentes — chamadas de “bruxos” e “feiticeiros” ~ agirem de comum acordo na dependén- cia das circunstincias, constituindo ainda suas confrarias. Sogundo D’Aby, os ‘comedores de alma” podem atuar distincia, Sendo capazes de manipular seus “duplos” ou de, pelo menos, atingir os “duplos” de outras pessoas através de técnicas infelizmente nio suficientemente descritas por esse autor. Mas D’Aby cita, entretanto, um caso antigo e notério entre os Agni por envolver dois “homens fortes” de reconhecida competéncia.!” Trata-se de uma demonstrago pitblica de forga magica ocor- rida em 1928 na localidade de Aby, entre os Agni Samwy, e observada por ele. Diante de ‘am desafio, nascido de uma provocagio, os oponentes iniciaram, longe um do outro, os atos destinados a atingir o adversirio. Um dos disputantes, finalmente vencido, perdew completamente 0 controle de suas faculdades ¢ chegou a tal estado de debilidade fisica que o chefe da localidade, antevendo a possibilidade de sua morte, resolveu interferir e obrigou 0 “bruxo” vitorioso a pér fim a0 processo. © “bruxo” vencido abandonow a al- deia poucos dias depois por considerar sua derrota insuportivel. Quanto 4 existéncia de confrarias de bruxos, D’Aby as considera herméticas, diz que seus atos “no podem ser observados a nio ser através de suas manifestagdes exterio~ res” (1960: 57). Essa “manifestacSes exteriores” sio as conseqiiéncias observaveis da acio dos““bruxos”, indo do envenenamento & morte absolutamente inexplicivel enquanto fe- némeno natural. Mas as conftarias de bruxos, além das caracteristicas magicas que aproxi- ‘mam seus integrantes, permitindo inclusive a troca de informages e segredos, ligam-se também a uma proposta de manutengio do conhecimento diferencial, do qual sio depo- sitirias. De fato, segundo D’ Aby, seus chefes velam para que os segtedos de sua arte no venham a ser difandidos, acrescentando, no caso da “descoberta ¢ apreénsio de certos de seus membros, estes devem, tanto quanto possivel, dar-se a morte pot envenenamento de preferéncia a revelar os segredos da organizacio [...]” (1960:59). Nao obstante os “comedores de alma” dedicarem-se & apropriagio de “duplos”, po- dendo assim ocasionar a morte do corpo, a dimensio mais fundamental colocada por essa figura social relaciona-se, no universo da interaglo de forcas vitais, com a possibilidade de aumento ou diminuigio de energias. Na realidade, esses “homens fortes”, em tiltima ins- tincia, procuram, com 2 aplicagio de seus conhecimentos, acrescentar 3 sua constitui¢lo vital mais uma parcela da “fora” do préprio preexistente, em geral tomado como a fonte primeira doadora de um tipo muito especial de energia que se manifesta no homem. De certa forma, hé uma grande interacio, mesmo que indireta, entre eles ¢ a divindade cria- dora, Sua agio consubstancia, portanto, uma proposta que, abordada desde uma perspec- tiva extremamente abrangente, referida & dinmica das energias universais, escapa 4 nogio 49 de bem ou de mal, tomada em sentido ético estrangeiro 4 sociedade onde essas energias se manifestam. Com efeito, mais do que os métodos utilizados — inclusive aceitos pela so~ ciedade como realidade integrante de seu universo de valores ~ sio as suas conseqiiéncias as geradoras de inquietacio na comunidade. No entanto, os “comedores de alma” nio devem ser relacionados, em nosso entender, com situacdes excepcionais eventualmente vividas pela sociedade, como no caso de interferéncias desestabilizadoras dos valores ¢ cexplicagdes ancestrais provenientes da ago estrangeira, sobretudo aquela dos colonizadores € seus agentes, eligiosos ¢ outros, quando as atuacdes magicas dos “homens fortes” podem ser solicitadas em um momento de anomia como se fossem vilvulas de escape. Isso — embora possa ter acontecido — seria um engano proveniente de interpretago mais periférica pois, a0 contrario, do ponto de vista aqui adotado, considerado mais decisivo ~ previlegiando os valores propostos pela sociedade enquanto instrumentos integrantes dos processos civilizatérios —, esses agentes sociais configuram-se como legitimos depositarios de um conhecimento especifico integrantes de parte desses mesmos valores. Na explicagao dessa realidade, “bruxos” e “migicos” contribuem para tornar mais objetiva a proposta de que as forcas vitais sio elementos indissociéveis da elaboragio continua do mundo. A problematica colocada pelo “duplo” é, certamente, das mais complexas e os dados que apresentamos podem, se tanto, apenas aflorar algumas de suas insténcias, as quais, ndlo obstante tal limitagio, parecem permitir situd-las com algum fundamento no contexto que nos preocupa, aquele em que os elementos vitais constitutivos do homem indiquem em que medida sua formagdo ontolégica guarda uma dimensio ancestral. Nessa ordem de idéias, o “duplo” aparece como principio configurador da vida individualizada e pelas suas caracteristicas mais decisivas pode ser considerado indestrutivel, configurando-se como uma das manifestagdes de um principio mais genérico ¢ abrangente ligado as propriedades vitais e espirituais de origem divina, o chamado “sopro vital”, energia doada pelo preexis- tente. E entretanto vulnerivel e atingivel, sendo um dos veiculos capazes de desencadear 08 processos finalizados com a morte do corpo. Em determinadas circunstincias, pode fazer diminuir ou aumentar energias, tornando as pessoas mais “fracas” ou possibilitando que elas sejam “fortes”, isto é, pode, pela iniciagio e priticas diferenciais, ser manipulado ¢ utilizado pela vontade de quem detenha os conhecimentos necessirios para fazé-lo, chegando quase a manifestar-se como elemento inteligente. O “duplo” é, assim, uma das concepges mais ricas propostas pela explicagio africana definidora do homem natural e um dos elementos mais dindmicos da personalidade. Entretanto, embora sua natureza esta~ beleca a existéncia de certas priticas sociais, algumas de significado nio negligenciével, 0 “duplo” relaciona-se mais decisivamente com aquela instincia ontol6gica do homem que so estabelece sua vitalidade material e, em certo sentido, até mesmo espiritual, devido 4 sua origem divina. Mas embora tratando-se de elemento vital, talvez inextinguivel, o “duplo” do transparece como a dimensio do ser humano mais capaz de fazer configurar sua con- digo hist6rica ¢ sua potencialidade ancestral. 0 principio vital de imortatidade Nés-vimos em paginas anteriores deste capitulo que dois elementos vitais constitutivos do homem natural, nao obstante a sua importincia, nio caracterizam a instincia ontolégica mais decisiva e capaz de integri-lo a sociedade a seus processos, nem estabelecem sufi- cientemente a dimensio ancestral da personalidad. Um terceiro componente vital, entre~ tanto, retine mais expressivamente tais caracteristicas e, ainda, estabelece a idéia de imor- talidade do homem. Trata-se de Ori, Ekala e Pile, nomes sob os quais € designado entre os oruba, Agni ¢ Senufo, respectivamente. Em primeiro lugar, ese principio vital define, como vimos, as qualidades morais ¢ in telectuais do homem, estabelecendo ainda a nogio de destino. Dessa forma individualiza fortemente a personalidade social propriamente dita. Por outro lado, as trés sociedades con- sideram esse elemento indestrutivel e inextinguivel: entre os Joraba, apés 2 morte do corpo, reencarna-se nos recém-nascidos da mesma familia ou integra-se na massa ancestral referida a0 seu grupo social. Para os Agni vai ao pais dos ancestrais do grupo ou reencarna-se, poden- do entretanto, em certos casos, fizé-lo em outro grupo familiar. Quanto 20s Senufo, o des- tino desse principio vital ap6s a morte é, substancialmente, o mesmo proposto pelos Toruba. A questio da existéncia ¢ indestrutibilidade de um principio vital extremamente diferenciador, ligado 4 dimensio mais histérica do homem, revestiu-se de menor ambigiti- dade nas jé citadas pesquisas de Thomas (1968). De fato, dentre os dados obtidos por esse autor, 76% de respostas estabeleceram a idéia de nenhuma destrutibilidade apés a morte, 17% a de destruigio parcial e apenas 7% a de destruicio total. Nas trés sociedades foi constatada 2 excepcional importincia atribufda a esse prin- cipio constitutive do homem natural. Toruba Entre os Ioruba as pessoas realizam regularmente cultos especificos a seus préprios Ori,a “cabeca interna”. Para Abimbola (1973), uma parte dos sactificios ¢ extensiva a Ese, confor- me vimos anteriormente. Essa pritica se estende até mesmo ao dominio do politico, como ocorre no reino de Oyo, onde uma das principais ceriménias anuais— Odun Oran — envolve © culto do Ori do rei, o Alafin, fazendo configurar acontecimento de expressiva importincia social, pois a “cabeca interna” do soberano é considerada a principal do reino e, assim, a sr celebragao institucional desse Ori assume proporcées abrangentes: o destino da sociedade io se desassocia daquele do Alafin. Verger assinala que essas oferendas 4 cabeca ~ ato co nhecido pela designaao de Ibo Ori — si anualmente feitas nas localidades Ioruba pelo rei, e no dia seguinte “todos os dignitarios e pessoas tituladas do local fazem seu proprio ibori ¢ seu exemplo € seguido pelos diversos chefes de familia” (1973:63). © culto de Ori é tio vital e necessério que mesmo as divindades o praticam. Uma narrativa loruba, indicada por Verger (1957) ~ na qual é saudado o poderio excepcional de Ogun, o deus-ferreiro — diz que a divindade faz 0 culto de seu Ori utilizando-se, para o sacrificio, de um elefante. Ori tem um destino preciso apés a morte do corpo:"“A cabeca (ori), ela, se alguém morre, torna-se Egiin” (Verger, 1957: 508). Isso esté relacionado & proposicio Ioruba onde fica estabelecida uma distinc entre mortos em geral e aqueles mortos fortemente indi- vidualizados no interior de um grupo. Estes diltimos so os ancestrais propriamente ditos, Egun, elemento caracterizador do parentesco e dos lagos de sangue configurados no m- bito da familia ¢ da sociedade através das priticas histéricas. Ori é, pois, um principio vital que institui a imortalidade do homem. A proposigio de imortalidade de Ori esti ligada a duas dimensdes especificas de sew destino, apés a morte do corpo: a da sua reencarnagio, real ou simbélica, e a da sua trans formagiio em ancestral. Parece ser nesse sentido que Verger afirma residir Ori “alterna tivamente na terra [...] e no pafs dos mortos” (1973: 62). Em ambos os casos esse destino esti relacionado com um grupo social especifico. Quanto 4 proposicio de reencarnacio de Ori, Verger indica: Emi, 0 “sopro vital”, “alma”, pode “ir para nao importa qual familia. A cabega (ori), ela, se alguém morre, torna- se Egén e volta 4 mesma familia quando ha um recém-nascido” (1957: 508). Essa primeita ptoposigio acerca de Ori pode ser percebida concretamente entre os Ioruba pois “nume- rosas criangas sf0 chamadas Babattindé (0 pai voltou) ou lydtiindé (a mie voltou); sio aceitas, a0 seu nascimento, como a reencarnacio do avé ou da av6 recentemente falecidos” (Verger, 1973: 62). Ainda na instincia da possibilidade de reencarnacio, uma das provas da imortalidade de Ori e de sua capacidade de retornar a0 convivio dos homens com uma personalidade especifica, ¢ dada pelos tristemente célebres Abiku, as “criancas que nascem para morrer”. Os Abiket sio filhos de uma mesma mie, filecidos sucessivamente em tenra idade, e sio considerados como reencarnagées sucessivas da mesma pessoa. Mas, em nio se reencarnando, Ori transforma-se em Egun apés a morte do corpo, € nessa condicio integra-se na massa ancestral diferenciada referida ao seu grupo social. De acordo com Verger, os mortos das familias [oruba manifestam-se a seus descendentes por intermédio de uma entidade chamada Egan; é o espirito dos mottos que voltam 3 terra [...]. Egiin serve de intermediario com os espiritos do outro mundo. Aparece junto de certas familias apés a morte de um de seus membros ou a0 longo de certas ceriménias feitas para honrar sua meméria; vem, também, trazer a béngio dos ancestrais nos casamentos de seus descendentes. (Verger, 1957: 507) 52 Equn fortemente individualizado e pode manifestar-se materialmente. A propési- to, Verger diz de suas aparicdes: oferendas de alimentos ¢ de dinheiro Ihes sio feitas (...]. Eg fala com voz rouca € profiunda; danca de boa vontade a0 som dos tambores bata, de preferéncia, ou, & sua falta, dos tambores obgon. O contato de sua roupa pode ser fatal para os vivos, assim os ma~ - tiwo, membros da sociedade Egiin, os acompanham sempre, munidos de grandes varas (isan) para afastar os imprudentes. O vento provocado por suas roupas quando danga ro dopiando é, 20 contrario, benéfico. (1957: 507) A propésito ainda da individualizacio de Egun, Elbein dos Santos considera que: a adoracio dos ancestres masculinos toma toda sua significago pelo fato de os espiritos de alguns mortos do sexo masculino, especialmente preparados, poderem tomar uma forma corporal ¢ serem invocados em circunstincias determinadas através de ritos bem definidos. Sio os Egtin ou Egdngtin, antepassados conhecidos, que levam nomes pré- prios, estio vestidos de maneira que os singulariza e sio cultuados pelos membros de sua familia e seus descendentes. (Elbein dos Santos, 1976: 105-106) Outro aspecto da individualizagdo de Egun é proposto pela modalidade de nomes Ioruba denominada Orile, destinada a perpetuar a meméria histérica da familia e referida a narrativas especificas, 0s Oriki. So justamente esses Oriki, com suas formas de saudacio, as declamagdes de Fgun a seus familiares durante suas manifestag6es. Finalmente, cabe acrescentar possuiram os ancestrais ainda um outro tipo de representagio individualizada, as estatuetas Isese antes referidas, alvos dos cultos prescritos pelo costume. Transcendendo esse nivel, Egun representa e revive ainda certos modelos ligados & realidade social. Para tanto, ocorrem suas-manifestagées materiais onde: Grandes festas so organizadas para celebrar sua vinda e muitas vezes, a0 longo dessas reunides, Egin realiza “milagres”: dissimula-se no centro de uma praga sob uma grande roupa e sai tendo assumido diversas formas para grande alegria das pessoas reunidas, ‘Transforma-se, assim, sucessivamente em camaledo (agemo), crocodilo (oni), piton (ere), anciio (sambala), mulher jovem (awele), etc. (Verger, 1957: 508) ‘A importincia de Egun deu origem aos cultos diferenciais a eles propiciados, pro- movides por dignitdrios habilitados para tanto. Essas pessoas constituem-se em confrarias especialmente preparadas para estabelecer um relacionamento profundo com os ancestrais, as técnicas promovedoras dessa intimidade so ciosamente conservadas ao abrigo do conhecimento comum, sendo consideradas verdadeiras “sociedades secretas”.” Essa im- portincia mais abrangente, ligada a contexto social mais amplo, manifesta-se mesmo na 53 instancia das préticas politicas. sso é registrado nos reinos de Ket ¢ Oyo, onde um dos principais dignitérios da corte, Alapini, é 0 principal sacerdote do culto Egun. Agni Os Agni realizam certas ceriménias destinadas ao culto do Ekala pessoal estando 0s indi- viduos ainda vivos. Assim, as pessoas dedicam um dia da semana ao seu Ekala, normal- mente 0 dia que corresponde ao de seu nascimento e, nessa ocasifo, tomam banhos purifi- cadores, passam caulim no corpo e fazem oferendas, até bastante simples, como apenas uma porgdo de Nowf, massa de bananas misturada com éleo dendé e gemas de ovos. Nesses dias evitam trabalhar e até mesmo conversar, a fim de nio correrem o risco de al terat-se e, assim, perturbar Ekala. Ekala possui nomes privativos, isto é nomes sio atribuidos a ele e no propriamente a0s individuos. O nascimento de uma pessoa marca a emergéncia de um novo Ekala, 0 gual recebe um nome atribuido segundo o dia desse nascimento de acordo com o sexo. Dessa forma Ekala e pessoa se confandem, Os Agni classficam as pessoas em duas grandes modalidades, estabelecidas segundo as caracteristicas de seus Ekala, Trata-se dos individuos Ese Kpili e Bféwoa. Essas modalida- des propdem por sua vez dois destinos possiveis para Ekala apés a morte do corpo, seja sua insergio individualizada no pats dos ancestras, Ebolo seja a reencarnagio, esta aparecendo sob formas diferenciais. © Ese Kpili € um individuo portador de um Ekala capaz de continuar sua trajetbria em direcio a Ebolo uma vez finda a existincia visivel. Pode também, em outra circunstin- cia, voltar ao seio da familia reencarnando-se em um de seus novos membros. Por tais mo- tivos, as ceriménias fisnericias dos Ese Kpili sio completas, cumprindo-se todos os atos exigidos. Jé o Efewoa possui um Ekala ao qual é vedado ir para o pais dos ancestrais, Seu destino apés a morte do corpo € sempre o de reencarnar-se, mas essa reencarnagio é aleatéria, podendo voltar o Ekala para outra familia. Por tais motivos, as ceriménias faneririas para os Efewoa no sio completas. Nelas, o Efewoa normalmente nao é sepultado com ataiide, mas depositado diretamente na terra, 4 diferenga dos Ese Kpili. E ha 0 costume de colocar-se sobre a testa do cadiver uma folha especifica, que se considera que tem 0 poder de obrigar esse Ekala a reencarnar-se na mesma familia. Ainda no quadro das ceriménias fimerérias, quando se trata de um Bfewoa no existe o primeiro periodo de luto, € 0 ato Blesa-Alee, a “ceriménia de lavat as mos”, um rito de putificagio ligado a problemitica da morte, é diferente dos demais. A possbilidade de reencarnagio de Ekala no interior da mesma familia 6 proposta elas criancas que, em certos casos, recebem o nome do avé paterno ou de sua irma mais velha falecidos, Nessas circunstincias, consideram os Agni tratar-se de reencarnaces do mesmo Fkala. Dentro da mesma concepgio, entretanto, quando © pai de uma crianga fa- 54 lece pouco antes do nascimento desta, ela pode receber o nome de seu progenitor, juntan- do-se a esse nome um sufixo indicative do sexo para 0 caso das meninas. Registre-se, alias, serem essas designacdes indicativas de reencarnagio de Ekala instituidoras de uma das modalidades de nomes existentes entre os Agni. Outro fator indicativo de reencarnagio de Bkala consubstancia-se nos Abawo, categoria representada pelas criangas de uma mesma mie que morrem em baixa idade e sucessivamente.* Nesses casos, é considerado tratar-se sempre do mesmo Ekala, havendo uma modalidade especifica de nomes ligados a tal circunstincia. A reencarnacio desse tipo aparece como bastante negativa, 0 mesmo acontece no caso do Ekala de um “comedor de alma”, pois isso conduziria o individuo a continuar exercendo tais priticas. Devido a esses fatores uma das primeiras providéncias tomadas logo apés a morte de uma pessoa 6 a confirmago da qualidade de seu Bkala,feita pelos jogos divinatérios, para que fique em evidencia se ha ou nao dircito formal a funerais, ¢ quais atos devem integrar as ceriménias. Essa possibilidade de configuracio absolutamente diversa do destino de Ekala apés a morte do corpo manifesta-se ainda em outras instincias. Um exemplo é encontrado entre os Agni Samwy, que faziam representar seus mor- tos através das estatuetas Mma. Essas estatuetas propdem, como sugerimos antes, a idéia, ainda que simbélica, da continuidade do corpo apés sua morte. Mas as Mma eram, princi: palmente, uma das sedes de Ekala, e 0 local onde eram depositadas, o Mmaso, constitufa ‘um espago sagrado onde habitavam os Ekala da comunidade — concentragio essa conhe- ida pelo nome de Mwome — ali cultuados ¢ lugar onde se desenrolavam certos atos funda mentais das cerim6nias funerérias, Embora essas representagées ¢ locas diferenciados re- feridos aos ancestrais da comunidade tenham desaparecido2 sua existéncia, ainda que no passado, permite perceber a nogio de indestrutibilidade atribufda a Ekala, bem como a de seu destino apés a morte do corpo, segundo suas caracteristicas. De fato, as estatuetas Mia, dotadas de todos seus atributos.e cumpridas todas as ceriménias fanerérias, exam privativas dos Ese Kpili, mas os Efewoa falecidos com pouca idade nao tinham esse direito. Nesse filtimo caso, o Efewoa era representado pela “metade de uma noz de coco seca, cuida- dosamente polida, pintada em negro, sobre a qual se haviam tragado, com caulim, alguns riscos longitudinais” (D’ Aby, 1960: 68). J4 no caso de morte em idade adulta, o Efewoa possuia o direito 4 estatucta Mma mas nfo aos fianerais completos, alterando fundamental- mente o sentido dessas ceriménias e, conseqtientemente, a condicio vital de Ekala. Esses dados permitem considerar que os Agni definem Ekala como um principio vital imperecivel do homem natural, sintetizando a idéia de sua imortalidade, Suas carac- teristicas ¢ a importincia a ele atribuida estende-se mesmo ao dominio das praticas poli- ticas, pois Fkala esti intimamente ligado & natureza do poder entre os Agni, como se vera oportunamente. 35 Senufo Quanto aos Senufo, existem varias priticas destinadas ao culto aperfeigoamento de Pile durante a existéncia visivel. Para isso, o individuo faz regularmente oferendas rituais a seu Pile e, nessas ocasides, procura nao falar nem deixar sua residéncia. Segundo um depoi- mento por nés obtido em territério Senufo, nos dias de culto ao Pile a pessoa prefere que suas refeigdes sejam preparadas por suas irmis, a fim de evitar que eventuais energias ne- gativas possam atingir a alimentagio, acarretando prejufzos a esse principio vital. Para os Senufo, o homem, embora considerado um ser natural dotado de energia divina, deve ter sua personalidade aperfeigoada, mesmo naquelas suas dimensées mais primordiais, a fim de integrar-se na sociedade de maneira étima. Isso ocorre através dos processos de socia~ lizago, com suas fases cruciais de iniciagZo, particularmente aquelas nas quais os indivi- duos sio recolhidos em espagos especialmente destinados a esse fim, Nessas fases, um dos objetivos basicos € o de fazer emergir plenamente a chamada “personalidade profunda” configurada em Pile. Diz-se, nesses casos, ocorrer a “morte” da personalidade anterior, pro- pondo-se entio uma espécie de renascimento configurador do ser natural-social propria~ mente dito. E Pile o principio vital acionado pelos dignitérios iniciadores durante essas fase com tal objetivo, segundo indicado por Holas (1957). Essa nova configuragio do Pile € acompanhada da imposigio de um novo nome revelador das caracteristicas mais signifi- cativas da personalidade, entio afloradas. Esse sera o nome a ser pronunciado em determi- nadas fases das ceriménias fianerdrias da pessoa O Pile € considerado um principio vital indestrutivel, podendo ter dois destinos apés 0 término da existéncia visivel: reencarna-se em um novo membro da familia ou in- tegra-se no pais dos ancestrais. A possibilidade de reencarnacio é indicada pela modalidade de nomes atribuidos a criangas cujos nascimentos ocorrem em circunstincias especiais. E 0 caso das criangas que sobrevivem tendo nascido apés 0 falecimento sucessivo de seus irmios, recebendo entio © nome de Nalourego, “0 que voltou"”. Essa proposta de reencarnacio pode configurar duas possibilidades. Em primeiro lugar, a da reencarnago tipica, aquela do parente proxi- mo falecido. Mas pode referir-se também a hipétese de reencarnacées consideradas nega- tivas, aquelas de um mesmo Pile instalando-se sucessivamente nos recém-nascidos de uma mesma mic para abandonar os corpos algum tempo depois, como constatado entre os Io ruba e Agni. Nés nio possuimos dados referentes a essa Giltima possibilidade ¢ aos Senufo, © que permitiria avaliar com maior seguranga se a modalidade Nalourogo marca 0 apare~ cimento de um Pile diverso daquele referido as criangas “que nascem para morrer”— ou seja, 0 Pile de um ancestral plenamente configurado — ou se hi uma decisio do Pile itine~ rante de permanecer normalmente em um corpo ou, ainda, se é obrigado a fazé-lo por forca de certas técnicas destinadas a esse fim, como ocorre entre 0s loruba e também entre 0s Agni. Mas, de qualquer maneira,a idéia de imortalidade e de reencarnacio do Pile pare~ ce configurar-se socialmente através dessa modalidade de nomes. 56 lta t | I | A insergio dos individuos apés a morte do corpo em uma massa ancestral referida 20 seu grupo social é proposicéo bastante tipica da explicago Senufo da realidade. Sem nos determos por ora em dados que comprovam a condigo material-hist6rica dessa pro= posta, podemos indicar entretanto algumas de suas manifestagdes mais gerais. Em primeiro lugar, os ancestrais possuem um nome especifico para os designar — Kubele — ¢ 0 lugar geral onde habitam — Kubelekeaa ~ constitui um espaco especifico a nio ser confizndido com 0 Niel, o espago primordial por exceléncia, Kubelekaa é a xéplica da aldeia, o lugar onde os ancestrais se instalam apés a morte do corpo fisico e cumpridos os ritos funeririos. Por outro lado, sua manifestacio na comunidade terrestre ocotte, no sen tido aqui adotado, no ambito da familia e no ambito da comunidade. No primeiro caso, essa manifestagio & dada pelos cultos aos ancestrais da familia, cujas representagdes mate- riais sio colocadas em lugares especificos, Kukpala, onde ocotrem os atos rituais de estilo. Existe ainda Kukpagele, o monumento pertencente aos ancestrais da comunidade, razio pela qual seu significado ganha sentido mais abrangente. Ainda na instincia das manifesta ‘GGes reais ou simbélicas desses antepassados diferenciados, 6 possivel apontar a existncia de um tipo de mascara, pertencente 4 familia das miscaras Wabele, cuja importincia na re- produgio dos modelos ancestrais de explicagio do mundo, promovidos por dignitirios das chamadas “sociedades secretas”, é das mais significativas. Esse tipo das Wabele & pintado em cor branca que, conforme indicado por Holas (1978), € a cor dos “espectros que voltam”. Nés gostariamos de fazer referéncia, ainda, a alguns dados por nés obtidos nas pes~ quisas de campo realizadas entre os Senufo, dados esses relacionados com a manifestacio, em um objeto, de certas instincias da formacio ontolégica do homem. Essa manifesta¢o, em outro contexto, adquire dimensio ainda mais abrangente do ponto de vista das priti- cas hist6ricas, assunto a ser abordado mais adiante. Nés obtivemos esses dados na aldeia de Penyakaha, onde habitam representantes do sub-grupo Nafara, na qual localizamos representagées materiais da personalidade, indivi- dualizadas em certas pedras que simbolizam pessoas vivas ou filecidas, cada una possuindo a sua. Tais pedras acham-se espalhadas pela aldeia e podem ser encontradas isoladas, enter- radas em frente as entradas das habitagSes mas com uma das superficies aparentes, fazendo- se passar praticamente despercebidas ao estrangeiro menos avisado. Nesse caso, podem referir-se a pessoas vivas ou falecidas. Mas sio encontradas também reunidas em um can- teiro, quando entio se referem apenas as pessoas ainda vivas. Assim que uma crianga nasce, uma pedra € colocada no canteiro da familia, coberta por uma vasilha de barro emborca- da, Ao lado dessa vasilha € colocada outra, também emborcada, sob a qual se encontram certas folhas ¢ cascas de arvores. Na ocasiio em que a crianca atinge a idade de cinco anos, a primeira vasilha é retirada e disposta ao lado da pedra que cobria, com a boca voltada para cima. Isso é feito para a vasilha receber Agua de chuva ou entio sacrificios de 4gua, inclusive em circunstincias necessérias & protecio especial como, segundo nos foi citado, no caso de viagens longas. Nessa ocasiZo a outea vasilha é retirada do canteiro, quebrada ¢ abandonada no mato, sendo a crianga lavada ritualmente com um banho especial de pro- 37

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