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Copyright ‘Traducic® Titulo original Corpo editorial Dados Endarags Telefone/Fax E-mail Site Hedra zeo7 _ Fernando de Moraes Barros _ Cher Wahrheit und Litge in aupiermoratiwhen Sine André Fernar Brune Costa Juri Pereira Jorge Sallum Oliver Tolle Ricardo Martins Valle Ricarde Vhusse — Dados Internacionais de Catalogagie ablicagan (CIP) Direitos re ados em lingua para o Brasil portuguesa somes EDITORA HEDRA LTDA — BR. Fradique Courinho, 1159 (subsolo) » Paulo SP Brasil (or) 30097-8504 05416-0181 Sa — editora(@jhedra.com.br www hedra.com,.br Foi feito depésito legal. Friedrich Nietszche (Ricken, 1844-Weimar, (goo), fildsofo « filélogo alemao, foi um eritico mordaz Mura ocidental e uum dos perisaderes mais influentes da medernidade. Descendente de pastores protestantes, opta no entanto. por arreira académica. Aos 25 anos, torna-se professor de letras classicas a Universidade da Basiléia, onde se aproxima do compositor Richard Wagner. Serve come enfermeiro- voluntirio Hu guerra franco. prussiana, mas contrai difteria, a qual prejudica a sua savide definitivaraente. Retorna a Basiléia passa a freqtientar mais a casa de Wagner, Em 1879, devido a constantes recaidas, deixa a universidade e passa a receher uma ronda anual. daf assume uma vida erra dedicando-se nie & reflexito & redagio de suas obras, dent se desiacam: O nascimenta da irugédia (872), desir falana Zaratustra (1885-1885), Para além do bern € mat (1886), Pare a gencaloxia da morat (S87) e Qanticrsto (0895). Em 188g, apresenta us primeires sintoras de problemas meniais, provayelmente decorrentes de sililis, Falece em sgn0. Sobre a verdade ea mentira no sentido extrasmoral (ber Wabrhoit und Lage im aufiermoratisehen Sinn) um opuscule que investiga o aleanee efetivo da linguagem, sobre a qual se assenta todo o conheciraento da eivilizacio ocidental. Para Nietasehe, a con do hormem maderno ne poder das palavras se funda no esquecimento de que algo que « evidente quando as criou: elas so apenas uma metifora para as coisas ¢ jamais paderiam enearnar 0 seu significado. Constata-se, portanto, um desacerte entre o conherimento: intuitive e as abstracées conceituais. A obra foi ditada pelo autora um amigo no verso de 1875, mas saiu a lume apenas apés a sua morte, A presente edighe contem ainda uma seleta aportuna de Fragnentas pistamnos Fernanda de Moraes Barros ¢ doutor em filosofia pela Universidade de Sao Paulo (Use) ¢ professor da Universidade Estadual de Samta Crux (vrse), E autor de A maleicda trunsvatorada ~ 0 problema da civilizacao em O auticristo de Nietzsche (Discurso,/Unijui, 2603) © O pensamento musical de Nietzsche (Perspectiva, 2007), SUMARIO Introduce, por Fernando de Moraes Barros 9 SOBRE VERDADE E MENTIRA NO SENTIDO EXTRA-MORAL 23 FRAGMENTOS POSTUMOS 53 INTRODUGAO he, Sobre verdade e mentira na sentido extra-maral é decerto um dos De todos os textos de Nietzsc mais singulares © pregnantes, Ditado ao colega K. von Gersdorff em junho de 1873, 0 escrito é fruto ualidade, mas nao apenas de uma refinada espi também de um importante redimensionamento tedrico-especulativo, A diferenga de ponderagées anteriores, nele o filésofo aler o — a época, pro- fessor na Universidade da Basiléia — j4 nao toma a palavra a fim de earacterizar o despertar da gédia ati dla por novos planos resses, abandona-se agora a novas auto-satisfagées. a. “Tom, © inte- Pensador livre e laico, debruga-se sobre as as: chamadas ciéncias da natureza, comprazendo-se na leitura de textos tais como, por exemplo, Phi- POW losophiae naturalis Theoria de KR. J. Bos Luz a eliminar preconceites e intolerancias, o ntificos talvez espirito contido nos métodos ci ajude a desanuviar as sombras metafisicas que Ss sé acumulam em torne do conhecimento. M até. No w tiomar mento em que aprende a que a si mesma, a verdade talvez termine por revelar alguma nio-verdade A sua base, prestando um 9 INTRODUGAO testemunho inteiramente inesperado sobre si pro. pria. precisamente ssa Suspeita que vigora em Sobre verdade ¢ mentira no sentido extra-moral. Movida pela crenga de que a forma fundamen- tal do pensamento & a mesma de suas manifesta- goes por palavras, desde cedo, a filosofia nao he sitou em identificar discurso e realidade. Conce- bendo o pensar como uma inequivoca atividade de simbolizagio enunciativa, ela parece ter sempre lo atengiio especial a dimen linguagem, tomando enunciados verbais por ver- dadeiros on falsos, em fang > apofantica da o de desereverem cor. retamente ou nado or nde. O que ocerreria, po rém, se a verdade dos enunciados nao passasse de um tipo de engano sem o qual o homem nao pode- ria sobreviyer? E se condigio da verdade fosse a ico mesma da mentira? Revelar-se-ia, entao, 0 at carater dissimulador do intelecto humano e¢, com ele, a suspeita de que entre o “refletir” e o “di zer” nao vigora nenhuma identidade estrutural. E. tamente a essa conclusio que Nietzsche espera conduzir-nos. © caminho encontrado pelo filésofo alemao para abordar @ questao nio se inscreve num regis tro o homem adicional. Negando- » a separa da natureza, sua abordagem procura mostrar tas de que foi para satisfazer as injungées imedi sh s forjaram e& mar sobrevivéneia que os sere FERNANDO DE, MORAES BARROS aprimoraram o conhecimento. Servindo ao desejo de conservagao imposto pela gregariedade, o in- telecto priorizaria nogdes aptas a assegurar a vida em conjunto ¢, pelo mesmo trilho, seria obrigada entido, lé a produzir [alsificagdes. Nesse s Como um meio para a conservagio do individuo, o in telecto desenrola suas principais forgas na dissimulagao; pois esta constitu a meio pelo qual os individuos mais fracos, menos vigorosos, conservam-se, como aqueles aos quais 6 denegado empreender uma luta pels as afiad téncia com chifres ¢ pre No homem, arte da dissimulagao atinge seu cume." Por ser criada sob a pressao da necessidade de comunicagao © sociabilidade, a consciéncia de si nao faria parte, em rigor, da existéncia do indi viduo enquante tal, mas de sua interagdo com o ilo meio e aqueles que o rodeiam, referindo-se aq que nele ha de comum e trivial. Admitir isso, po rém, implica aceitar que os recursos de que o pen- samento se serve para ganhar forma e conteido sao pré-formados pela coletividade, de prte que estariamos fadados a exprimir nossos raciocinios sempre com as palavras que se acham & disposigaio de todos. A esse respeito, Nietzsche escreve: ' Friedrich Nietzsche, Sditliche Werke. Kritische Studie nausgabe, Giorgio Collie Mazzino Montinari, Berlim / Nova York, Walter de Gruyter, 1999, p. 876. ii INTRODUGAO quando justamente a mesma imagem foi gerada mi cf mens [...] entio ela termina por adquirir, ao fim e ao Ih6es de vere herdada por muitas geragécs de ho- cabo, o mesmo significado para 0 homem, coma se fosse imagem exclusivamente necessiria [... ] assim como um sonho que se repete eternamente seria, sem duivida, sentido ¢ julgado como efetividade, # Reincidentes, as experiéneias em comum com © outro terminariam por se sobrepor aquelas que ocorrem com menor freqiiéncia no scio da coleti vidade, Sem ter ac », em principio, a outras pa lavras, o individuo tampouco teria fac rr lidade para liberar aquelas de que dispée para outras aplica goe: somente para falar & pensar como os outros. Com mente partilhadas que possibilitam a conscient Resignado a tal inacessibilidade, ele é livre feito, dizer que séo as palavras comu- i gao do proprio sentir ¢ pensar impele, ao menos, a nei uma relevante conseq a de que aquilo que o homem sente e pensa a respeito de si mesmo ja se encontra condicionado pelas mais elementares estruturas da linguagem, Para Nietzsche, todavia, as palavras nos iludem quando as tornamos a risca e deixamos de perceber, por meio delas, aconte ci mila. nentos que elas mesmas nao podem a: A seu ver, o pensamento tornado consciente seria apenas u produto ac sério do intrincado pro- 2 Id. ibid, p. RRA, FERNANDO DE MORAES BARROS cesso psiquico que 0 atravessa e constitui. Quando 13. de come es é vertida em palavra ano: rieagiio, a atividade reflexiva j4 se acharia circunscrita nserida em esfera da caleulabilidade, e estaria esquemas longamente consolidades de simplt ficagiio e abstragio, com vistas ao nivelamente ser eda identificador do fluxo polimorfo do vir natureza. Visto como um epifendmeno de nossas fun gOes organicas fundamentz adquire, ento, um sentido ligado a um universo infra-consciente bem mais recuado, que engloba . oO pensamento processos vitais cujo sentido ultimo sempre nos escaparia, Ao dispensar uma subjetividade que os estabelecesse e determinass reguladores assumem um significado assoviado a reeénditas operagdes do corpo, nao mais de uma consciéncia pensante detentora de suas representa- goes, que, de resto, nao passaria de um mero vetor e, ta auxiliar ou instrumento diret ©. A esse respeito lé-se ainda: © gue sabe o homer, de fate, sobre si mesme (eed Nao se lhe emudece a natureza acerca de todas as outras coisas, até mesmo acerca de seu c: ai-lo e& po, para trancafialo num consciéncia orgulhosa c enganadora, ao largo dos movimentos intestinais, do velaz fluxo das correntes sangilineas e das camplexas vibragdes das fi bri Ela jogou fora a chave: e coitada da desastrosa INTRODUGAO curiosidade que, através de uma fissura, fosse capaz de sair uma vez sequer da camara da consciéneia ¢ olhar para baixa, pressentinda que, na indiferenga de seu nao- saber, o homem repousa sobre o impiedoso, o voraz, 0 insaciavel, melhor como a Para chegar a compreende linguagem exerce seu efeito dissimulador sobre aquilo que o homem sente e pensa sobre si mesmo, impée-se saber 0 que sao as proprias palavras ide: Questo essa A qual se respo De antemao, um estimulo nervoso transposta em uma imagem! Primeira metAfora. A imagem, por seu turna, remodelada num som! Segunda metafora- Duplo, 0 processo de formagio da palavra com- portaria a seguinte transposigio: uma excitagio ag seguida, a wansposigado de tal im m mental e, em nervosa convertida numa agem num som articulade. Heteréelita, a passagem operaria, em rem a esferas di rigor, com elem entos que perter juntivas, de sorte que uma correspondéncia biu- nivoca entre coisas ¢ palavras sé poderia ser ob- tida pela negagdo da distancia que separa a sensa- do experimentada pelo individuo © o som por ele emitido. Ao acreditar que cada palavra pronunc ido e acertado acerca ada designa algo bem defi > Id, ibid., pp. 877. * Id ibid., p. 879. FERNANDO DE MORAES BARROS do mundo exterior, ele mal pressente que se trata, aqui, de dominios desiguais. jada Mas, precisamente por que a palavra foi para exprimir uma sensagao subjetiva, ela 6 pode referir-se As relagdes entre as coisas € 1 nunea as proprias coisas: Acred: nes saber algo ace das proprias coisas, quando falamos de drvores, cores, neve ¢ Mores, mas, com isso, nada possuimos senie metaforas das coisas s essencialidades gue nao correspondem, em absoluto, originais.’ Todavi as palavras que veicula, o individuo abrevia aquilo , desejoso de encontrar correlatos para que se [he apresenta conforme seus interesses, op tando, de modo unilateral, ora por este, ora por aquele aspecto da efetividade. Niveladora, a lin guagem da qual ele se serve depende da igualagio do nao-igual para adquirir autovaloragao, a que se torharia patente, por exemple, na propria consti t tos: igdo das cone ‘TAo certo como uma folha nunca é totalmente igual a uma outra, € certo ainda que o conceito de folha é for- is di mado por meio de uma arbitraria abstragho dessa ferengas individuais, por um esquecer-se do diferen vel. id. p. 879, * Id. ibid. , p. 880 16 | INTRODUGAO ‘Tomada num sentido univoco e inabalavel, no sentido que lhe foi dado em todas as época palavra mesma passa a ser vista como existindo ad acwernum. |h tituida num tempo addmico, o falante talvez até acreditasse que ela adquire rea lidade num mundo supra-sensivel. Contrariando esse estado de coi as, 0 filésofo alemao empreende a pergunta pela produgdo mesma do signo lingiiis- lico e, ac fazé-lo, termina por colocar a questao acerca das circunsté icias de seu aparecimento Com isso, pretende conduzir-nos a idéia de que, na linguagem, o que vigora nao é a imobilidade de s tido ¢ tampouce uma estrutura invaridvel dotada de significagao idéntica, mas um exército mével dem foras, metonir s, antropo- morfismos, numa palavra, uma soma de relacdes huma nas que foram realgadas poética e retoricamente.? Porque passa ao largo dessa profusio de formas ¢ figuras, a Compressao essen alista da linguagem revela-se, desde logo, uma fonte inesgotavel de Ancias auto-enganos, Tomando acidentes por subs e relagdes por esséncias, ela transpde e inverte as categorias que cla mesma se dedica a engendri ibstituindo ¢ sas por sig ificados, faz crer que as designagées e as coisas se recobrem e, com isso, * Id. ibid., p. 880. FERNANDO DE MORAES BARROS jlude quem nela procura fiar-se;> condicionando o homem ao habito gramatical de interpretar a realidade vendo nela ap incita enas sujeitos e predicados, o a postular a existéncia de um autor por detras de toda ago; enquadrando aquilo que os seres humanos pensam e falam nos padroes da causalidade, tal ce 1cepgiio os impele, em suma, negar 0 carater processual da existéncia. A exigéncia analitiea de um modo de expres o perfeitamente adequado e¢ objetivo, qual um decalque transparente da esfera que designa a efe- tividade, s6 poderia ganhar relevo, no fundo, pela fal cerrada por Nietzsche de combater a idéia de que de cautela eritica, Dai a oportunidade des. se possa obter, por meio das palavras, um acess ao nucleo indivisivel ¢ inquestionavel do existir. A seu ver, a verdade que as palavras nos coloc ram em mios se! a de ordem tautolégica. Através delas, o homem apenas reencontraria aquilo que ele pré- prio teria introduzido nas designagoes, A fim de es- clarecer essa Curiosa especie de auto-ofuscamento, © fildsofo alemao prové o seguinte exemplo: Quando alguém esconde algo detras de um arbusto, * “Q conceito ‘lapis’ — escreve Nietzsche — “é trocado pela lapis.” (Id, Fragmento posture do vero de 1872, 1? 19 [242]; em Samuliche Werke. Kritische Smeienausgabe, € orgie Colli e Mazzino Montinari, Berlim / Nova York, Wal ter de Gruyter, 1999, vol, 7, p. 495). INTRODUGAG volta a procuréi-lo justamente 1a onde o escondeu e além de tudo © encontra, nfo hA muite do que se vangloriar nesse procurar e encontrar [...) Se erio a definigdo de mamifero ¢, ai entao, apés inspecionar um camelo, declare: veja, eis um mamifero, com isso, uma verdade decerto é trazida A plena luz, mas ela possui um valor limitado.® © processo que consiste em definir o conceito de animal mamifero para, a partir de um animal particular, compor 0 enunciado “Veja, eis um ma- mifero”, teria como conseqiléncia a idéia de que © “ser” ma lifer. pertenceria essencialmente ao exemplo individual. © que j4 nao ocorreria no se guinte caso: Denominamos um homem honesto; perguntamos en to? tao: por que motive ele agits hoje dé modo tao her Nossa resposta costuma ser a seguinte: em fungdo de sua honestidade.'” A despeito de figurar como uma_proprie dade acidental do sujeito da proposign, o termo “honesto” da a entender, aqui, que a prépria “honestidade” pertence a esséncia do sujeito em questao, nie s6 como atribute, mas como subs. tancia, jA que foi em virtude de tal termo que a denominagio ganhou sentido, de sorte que a alardeada diferenga entre esséncia e acidente nao ® Id. ibid., p. 883, 48 Id. ibid, p. 880. FERNANDO DE MORAES BA seria nada inconcussa, mas inteiramente easual. © que também revelaria, uma vez mais. a tauto- logia st homem honesto estaria, no fundo, no fato de ele bjacente 4 propria linguagem: o ser do ser honesto, Assim, se pela definigdo geral — animal mami fero, por exemplo — nao se tem acesso ao “verda- deiro em si tampouco cabera ds palavras que se aplicam as propriedades particulares torn-lo aces vel a nés, Antropomérfica, a opasigio entre un versal e particular nao proviria da esséncia das coi- sas, mas de um abuso: Nada sabemos, por certo, a respeito de uma qualidade essencial que se chamasse a honestidade, mas, antes do mais, do imumeras agées i igu gual e passamos a ndividualizadas e, por conse- guinte, de is, que igualar os por omissio do desi- designar, desta feita, como ago > nestas.'" Mas se, por ai, o homem nao faz senao se en redar na trama de suas préprias ficgdes, ndo lhe seria permitido vislumbrar uma dimensao mais ceral, através da qual ele pudesse reencontrar nao a presenga imediata das coisas em si mesmas, mas aquilo que ha de “inexplorado” na palavra? Na tent gunta, Nietzsche espera descobrir e afirmar um va de responder afirmativa emte a per- ' Td. ibid. , p. BBO, 19 INTRODUGAO modo de representacio anterior A propria palavra articulada, que viria A tona sob a forma de uma metifora intuitiva. Acerea desta que poderia ser racterizada como uma ancestral remote e fugi- dia do proprio conceito, ele pondera: Mesmo © conceito, ossificado © octogonal como um dado ¢ tao rolante come este, permanece tao-somente ndo que a ilusie da wrans- > residuo de uma metafora, s 0 artistica de urn estimulo nervoso: posich m imagens, se nfio ¢a mie, ¢ ao menos a avd de todo conceito.” Como inequiveca parédia da compreensio do homem acerca da linguagem, a metdfora intuitiva surge, se nao como a mie, pelo menos enquanto a mae da mae de toda representag&o conceitual. Mas, evitando imvestigar a historia de seus “ante- passados”, a rede humana de conceitos jA niio re conhece as metaforas de origem, como metdforas, © as toma pelas coisas mesinas. F. justamente por proceder dessa maneira que a linguagem renuncia ria A oportunidade de tomar para si ou ras fungde: soterrando o poder criador ¢ inaudito que traz con sigo. A esse propésito, o filésofo alemao escreve ainda: en A partir dessas intuigdes 2m caminho regular da acesso & terra dos esquemas fantasmagerieos, [... 0 he por meio mem emudece quando as vé, ou, entae, fal 8 1d. ibid., p, 882. FERNANDO DE MORAES BARROS de metaforas nitidan ente proibidas ¢ combinagdes con ceituais inauditas, para ao menos carresponder criativa- mente, mediante o desmantelamento e a ridiculariza- eao das antigas limitacgdes conceituais, 4 poderosa intui gao atual.? Em vista disso, quem procurasse na linguagem um nove 4mbito para sua agde”,"* seja por meio de metaforas proibidas, seja por meio de arranjos conceituais imédites, cncontraria tal senda, “em linhas nae: Sao precisamente as gerais, na arte. s conseqiiéncias dessa accitagdio que irao impelir Nietzsche, mais tarde, a tentar assegurar a lin guagem nfo um fundo sonoro supra-sensivel, mas uma musicalidade atinente & propria palavra. E também por ai que se compreende o motive pelo qual a chamada linguagem dos gestos terminara por converter-se, como expressio derradeira e ca do € p nie xist par schiano, na propria “elogiiéneia tornada miisica”. Razdes bastantes para que a ponderagio contida em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral possa ser vista como a semente a partir da qual nasce e cresce a orientagao filoséfica exigida pelo Nietzsche da maturidade. EF, nao 56, Ao mostrar que a ilusao faz parte dos pressupostes da vida, seu autor faz ver 'S Id. ibid., p. 889. p. 887. 1 Td. ibid., p. 887. INTRODUGAO. 22 | que nés também, a despeito de nossas portentosas verdades, mentimos para viver. SOBRE VERDADE E MENTIRA NO SENTIDO EXTRA-MORAL SOBRE VERDADE E MENTIRA no sentido extra-moral T Em algum remoto recanto do universe, que se desigua fulgurantemente em inumerdveis sis- temas solares, havia uma vez um astro, no qual animais astuciosos inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais audacioso ¢ hipéerita da “histo- ria universal”: mas, no fim das contas, foi apenas um minuto. Apds alguns respiros da natureza, 0 astro congelou-se, ¢ os astuciosos animais tiveram de morrer. Alguém poderia, desse modo, inventar uma fabula ¢ ainda assim nao teria ilustrado sufi cientemente bem quao lastimavel, quéo sombrio e efémero, quia sem rumo e sem motivo se des taca o intelecto humano no interior da natures houve eternidades em que ele nao estava presente; quando cle tiver passado mais uma vez, nada tera ocorrido. Pois, para aquele intelecto, no ha nenhuma missao ulterior que conduzisse para além da vida humana. Ele é ao contrario, hu mano, sendo que apenas seu possuidor ¢ gerador 0 mo se os eixe toma de maneira tao patética, c 26 | SOBRE VERDADE MENTIRA mundo girassem nele. Mas se pudéssemos pér-nos de acordo com o mosquito, aprenderiamos entao que ele também flutua pelo ar com esse pathos ¢ sente em. si o centro esvoagante deste mundo, natureza, nado ha nada tao ignobil e insignificante que, com um pequeno sopro daquela forga do conhecimento, nao inflasse, de siibito, como um saco; e assim como todo carregador de peso quer ter seu admirador, 0 mais orgulhoso dos homens, o filésofo, acredita ver por todos os lados os olhos do universo voltados telescopicamente na direcaio de seu agire pensar! curioso que isso seja levado a efeito pelo inte lecto, precisamente ele, que foi outorgado apenas ome instrumento auxiliar aos mais infelizes, fra- geis © evanescentes dos seres, para conservé-los um minuto na existéncia; da qual, do contrario, sem essa outorga, eles teriam todos os motives para fu- gir to rapidamente quanto o filho de Lessing* 4 Friedrich Nietzsche, Cher Hakrhett und Liige an ausser Werke. Kritische Studie nausgabe, Giorgio Collie Mazzino Montinari, Berlim / Nova York, Walter de Gruyter, 1999, pp. 873-890 2 ‘ido por Nietssche como um “erudito ideal” (Cf, B. Ni moralischen Sinne. Fan Séertlic etzsche, Fragmento péstumo do inverno de 1869 ¢ da pri 70, n® 2 [12 m Samtliche Werke. Kritis che Smudienausgabe, Giorgio Colli « Mazzino Montinari, Ber lim / Nova York, Walter de Gruyter, 1999, vol. 7, p. 44), Gorthold Ephraim Lessing (1720-1781) pandera, muma re mavera de 1 NIETZSCHE Aquela auddcia ligada ao conhecer © sentir, que se acomoda sobre os ollos ¢ sentides dos homens qual uma névoa ofuscante, ilude-os quanto ao va- lor da existéncia, na medida em que traz em si a mais envaidecedora d valorativas so- apreciagde: bre o proprio conhecer. Seu efeito mais universal é engano — todavia, os efeitos mais particulares tam- bém trazem consigo algo do mesmo carter. Como um meio para a conservagio do indivi duo, o intelecto desenrola s1 forcas na dissimulagao; pois esta constitui o meio pelo fax isso de uma mar ind vidualista ¢ ainda por cima nociva, en ciedade nao confiard mais nele ¢, com isso, tra lo. N tanto ser ludibriados quanto lesadas pelo engano. tara de exch so, os homens nao evitam Mesmo nesse nivel, o que eles odeiam fundamen talmente nao é o engano, n as conseqiiéncias ruins, hostis, de certos géneros de enganos. Num sentido sermelhantemente limitado, o homer tam bém quer apenas a verdade. Ele quer as conseqiién cias agradaveis da verdade, que conservam a vida; frente ao puro conhecimento sem conseqiiéncias cle ¢ indiferente, frente as verdades possivelmente prejudiciais e destruidoras ele se indispée com hos- ulidade. las cony , inclusive. E mais até: como ficam aque- ngdes da linguagem? Sao talvez produtos do conhes nento, do sentide de verdade: as desig- nagdes © as coisas se recobrem? Entao a lingua sas realida gem é a expressdo adequada de tod: des? Apenas por esquecimento pode o homem al guma vez chegar a imaginar que detém uma ver dade no g 1 ora mencionado. Se ele nao espera contentar-se com a verdade sob a forma da tauto logia, isto 6, com conchas vazias, entdo ira permu- lar etername! te ilusdes por verdades, O que é uma NIETZSCHE palavra? A reproduciio de um estimulo nervoso em sons. Mas deduzir do estimulo nervoso t ma causa fora de nds ja ¢ 0 re lado de uma aplicagao fals © injustificada do principio de razto. Come pode- jamos, caso tdo-somente a verdade fosse decisiva na génese da linguagem, caso apenas o ponto de vista da certeza fosse algo decisério s designa ges, como poderiamos nos, no obstante, diz a pedra é dura; como se esse “dura” ainda nos fosse conhecido de alguma outra maneira € niio s6 como um estimulo totalmente subjetivo! Seccionamos as coisas de acordo com géneros, designamos a ar vore como feminina e 0 vegetal como masculino: mas que transposigdes arbitrarias! Quao longe vo. an os para além do canone da certeza! Falamos sobre uma serpente: a designagao nao tange se nao ao ato de serpente: servir e, portanto, poderi também ao verme. Mas que demareagoes arbitra- rias, que preferéncias unilaterais, ora por esta, ora Dis- postas lado a lado, as diferentes linguas mostram por aquela propriedade de uma dada cois que, nas palavras, 0 que conta nunea é a verdade, jamais uma expressio adequada: pois, do coutré rio, nao haveria t “coisa em si” ntas linguas. A (ela seria preci amente a pura verdade sem qua quer conseqiiéncias) também é, para o criador da linguagem, algo totalmente inapreensivel e pelo qual nem de longe vale a pena esforgar-se. ¥ le de- 34 SOBRE VERDADE signa apenas as relagdes das coisas com os homens ©, para expressa-las, serve-se da ajuda das mais ou- sadas metiforas, De antemao, um estimulo ner- ‘i sO (ransposto em uma imagem! Primeira meta- fora. A imagem, por seu turno, remodelada num som! Segunda metifora. E, a cada vez, um com pleto sobressalto de esferas em diregao a uma ou- tra totalmente diferente « nova. Pode-se conce- ber um homem que seja completamente surdo e que jamais tenha tide uma sensagio do som e da mitsica: da mesma forma que este, um tanto es- pantado com as figuras sonoras de Chladni sobre a arcia,? encontra suas causas na vibragio das cordas 2 © texto faz meno ao experimento levado a cabo pelo fi sic alemio Ernst Chladni (1756-1827) que se destina a ve rificar a ocorréncia de certas formas vibratérias e que con vém, aqui, explicitar. Basicarnente, trata-se de cobrir a su perficic de uma placa circular de madeira, vidro ou metal, com leves particulas de areia — em realidade, cortiga em po para, com o auxilio de um arce de violino, provecar vibra gies em lugares especificos na borda do disco assim disposto. Em consegiiéneia das vibragdes, as particulas da plaea ter minam por se dividir em diversas segdes, movimentando-se aqui ¢ acoli, para cima e para baixo, formando tragas limi trofes ¢ linhas nodais entre as areas mais agitadas ¢ as xonas com menor intensidade vibratil. Ao longo de tal proceso, as particulas polvilhadas tendem a espalhar-se em meio as extensdes mais Vibrantes ¢ acumularse | onde a vibra menor, de sorte que, de acorda com a forma do disco e conforme local em que nele é provocade 6 movimente vi bratério, diferentes figuras sonoras vém A superficie, Aqui e jurara que agora nfo pode mais ignorar aquilo que os homens chamam de som, assim também sucede a todos nés com a linguagem. Acreditamos saber algo acerca das préprias coisas, quando fa- lamos de arvores, cores, neve e flores, mas, con isso, nada possuimos senda metiforas das coisas, que nao correspondem, em absoluta, as essenc o melhor mesmo ¢ recorrer as palavras do préprio fisico ale mao, Em sua principal obra, f aciustica, ele diz: pod Pode-se servir, inclusive, de plas ‘As placas m ser de vidre ou de um metal bastante sonoro {...) as de madeira, mas, nesse caso, as figuras nao serio regulares, ja que a clasticidade nia éa mesma nos diferentes sentidos, Normalmente, sirvo-me el encontra-las facilmente de placas de vidre, ja que ¢ pos sols a iesma espessura e porque sua transparéncia permite enxergar os locais nos quais so tocadas, com os dedos, por debaixe”. (Erust Chladni, Die Akustit, Leipzig, Breitkopt u, Hiriel, 1802, p. 118-19). Mais adic sobre as placas circalares, ele esclarece: “No que tange aos ti ate, especificamente pos de vibracie de uma placa cire diametrais on circulares|. jar, as linhias nodais sao ou .] Exprimirei o mimero de linhas PO: sicionande o ntimero atinente as linhas nodais nas diregdes diametrais antes do trago qu nodais da mesma forma que os das placas retangulare: separa os dois nimeros por mim indicades, ¢, depois de trago, © niimero de linbas no: dais paralelas 4 borda, sendo que estes tiltimo em algarismas romanos, A: a serio escritos im, por exemplo, 2/0 ira indicar fipo de vibragdo no qual nado ha sendo duas linhas diame trais; 0/1 ag [...] 2/0.em que duas linhas diametr: [figura 99) é, dentre tod: vale ao som mais grave” je que n@o apresenta sendo mina linha circular am no centro se erur as figuras possiveis, aquela equi 33 SOBRE VERDADE EB MENTIBA lidades originais. ‘Tal como o som sob a forma de figura.de-2 reia, assim se destaca 0 enigmatico da coisa em si, uma vez como estimulo nervoso, em segu a como it gem, ¢, por fim, como som.* De qualquer modo, o surgin “nto da linguagem nao (lbid.p. 156-157.) * As figuras de Chladni sto oportunas a Nietzsche, porque servem para indicar, a partir do Ambito sonore, a tmpossibili dade de expressar adequadamente a “verdadeira™ realidade do mundo. Assim como tais figuras se incumbem de editar cépias dos sons noutre meio — na areia, no caso, assim tam bém se relacionariam as palavras cont as coisas, a saber, a par tir da transposigao de um estimulo nerves em imagem ¢, de is, em som. O homem, inflexivel em relagio ao enigmatico “x” por detras do que fala © escuta, contemplaria em vio os desenhos sonoros sem neles descerrar qualquer passagem ao legitimo “ser” das coisas. Afinal, come di ietesche alu res: “Nie podemos pensar as coisas tais como elas sao, pois nao deveriamos justamente pensi-las. ‘Tudo permanece as sum, tal como : iste é, todas as qualidades revelam uma ma térin indefinida ¢ absoluta. A relagio aqui se dé como aquela que as figuras sonoras de Chladni estabelecem cam as vibra goes” (F, Niewzsche, Fragmento péstumo do verio de 1872 e inteio de 1875, n° 19 [140], Em Sa@miliche Werke. Kritische

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