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CULTURAS E ARTES DO POS-HUMANO Da cultura das midias 4 cibercultura Lucia Santaella Copyright © Paulus 2003, Diresao editorial Paulo azagla Coordenaczo editorial Vali José de Cato Revisto ta de Casa Carvalho veamldo Bezeta Lopes Produgio editorial GWM Artes Graicas Papel (Chamois Fine Duras 70m? Impressao e acabamento PAULUS Dados Internacionals de Catalogacao na Publicacao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP Brasil) Santa, Luca ultras ares do pos humana : da cura ds ids @ brute Luci Sante; eorderacio Var José. de Casto, — S30 Pau: Paks, 2003, ON 978.85349.21015 1. Avtes=Hitona 2, Cbemética 3. Culture Hateria 4, Comunicasbo de masa Cato, Val Jost de. 4. Tal, ee Indies para catlogo sistematico: 1 Ares ¢ dtr Sella Histria 2. Cultura artes; Sacco: Hits cop-206 4709 4 edicso, 2010 © PAULUS ~ 2003 us Francisco Cruz, 22 104117-091 = Sao Paulo (Bras) Tel: (19) 5087-3700 — Fax: (11) 8579-3627 ‘vent paulus com br editorl@pauius.com br ISBN 978-85-349-2101-5 Sumario INTRODUCAO. 1. Da convivéncia a convergéncia das midis 2. Sob 0 signo da revolucao 3. Computador: a midia das micias. 4. & doerrealidade no Jogo das controversies 5. A proosta do lio, Capitulo (© QUE £ CULTURA. 1, Na cultura, tudo ¢ mistura 2. proliferaglo dos sentidos de cultura 2.1 — Um termo eusivo 2.2 ~A concepcao humanisa ea antropologica 2.3 Cultura cilizagto 3. A cultura na antiopolagia, 3.1 ~ Os precusores. 3.2-Hetder ea modesnidade 3.3 — A escola de BO nn 3.4 ~A antropologia brtanica 3.5 ~O estruturasma de Levy-Strauss. 3.6 ~ Areas da antropologia cultural 0s tacos da core A cultura coma fenémeno hstérico A cultura como fenémeno regional. Os packdes cuturas ‘As funcdes dos elementos cultura. As confiquracoes 13 Coe Estabildade e mudanca na cutura Os sstemas cultura A aculteraca0, A centinvidade da cutra A simbolcidade de cultura 4. Da semidtica 20s estudos cultural Capitulo 2 CULTURA MIDIATICA 1 As tansformagées da cultura no século XX. 2. dinmica da cultura misitica 3. Pos modernidade, globalzacao € revolucéo cial Capitulo s UMIA VISAO HETEROTOPICA DAS MIDIAS DIGITAIS, 10s csposivos de analse da cultura e da comunicagéo 2. Da pds-modernidade & cutura gloalizade 3. Acra digital. 4. Aceufoia e dsforia frente aa cinerespace opitula 4 ‘SUBSTRATOS DA CIBERCULTURA 1. Da cultura de massas cultura das midias a cultura das midlas a bercutura Digitalizacdo: esperanto das maquinas. Internet: rede das redes Interface: janela para ciberespago. Hipermidia: de Platdo a sacha Clbetespaco: alucinacao consensual ‘A cbeveultura 9. Anteligdnca coetiva, 10. 05 agentes inteligentes 11. ATV interatva 12. Uma era pés-midhatica? Capitulo 5 FORMAS DE SOCIALIZAGAO NA CULTURA DIGITAL, 1. Novos ambientes camurieaionai.s.suse 2. As comunidades virtua. 3: Linguager e constuicao do siyeto cut 4. As formacoes psicossociais nas eras culturas. opitulo 6 ARTES HIBRIDAS. 1. As passagens entre magens 2. As paisagens sinicas das instalacoes 3, 0 hibricismo digital Capitulo? PANORAMA DA ARTE TECNOLOGICA, 1. Das técricas as teenclogias 2. Arte madema e a desconsinugio do passado, 3, Aemergéncia das teenalogaseletrtnicas 4, A semi e tecoadiversidade das artes 5, No alvorecer da era digital 6, Tendencias da cberarte Copitulo 8 (© CORPO BIOCIBERNETICO E © ADVENTO DO POS-HUMANO, Modelos das relacdes entre @ maquina @ 0 corpo fnuman A cibernética de segunda ordem e o bioconstruimmo.. Da analogie cbemetica para 0 hibricism do cibor, 3.1 ~ As ferinstas ea politica do corpo 3.2 - Gorg no imaginato fimico 40 wislonarisme ciberpunk 0 advento do pés-humana. 5.1 ~ Reldade Virtual 5.2 ~ A ade das redes 5.3 ~ Prottica€ Nanotecnologia 5.4— Redes neurais - 5.5 ~ Manipulagao genética, 5.6 ~ Vids Artic. As malta realidades do corpo. 6.1 ~ ©.corpo remadelado 6.2 ~ 0 corpo prottica 6.3 ~ 0 corpo esquadrinhado, 6.4 ~0 corpo plugad Imersao por conexao. Imes através ce avatares. Imesio hors. Telepresence, Ambiente viruais. 65-0 compo simulado 6.6 - 0 campo cégtalizado, 67-0 cexpo molecular. 7 Entve a utopia ea distopia INTRODUGAO, rma primeita edigio, ainda bastante modesta, do livto Galtura das Médias, oi publicada em 1992. Para uma segunda cdicio, de 1996, o liveo foi subscancialmente aumentado e hoje (2003) encontra-se em sua quatta edicio, Conforme jé esté sugerido no subtieulo, pode-se, de Fato, afirmar que o presence livro sobre as culturas ¢ artes do pés-humano, que agora passo is maos do leitot, é uma espécie de segundo volume do livro Cultura das Midias, especialmente na forma expandida que este reecheu em sua segunda edigio. Comecei a escrever Cultura das Middias na Universidade Livre de Berlim, no inverno germanico de 1986-87. A experiéncia que 1 tive da dinamica cultural méleipla, fervilhante e, sobrecudo, |hibrida — na coexisténcia de escratos culturais distintos (eruditos, alternacivos, mussivos) que ricamente se rogavam ¢ se entremeavam sem alarmes e sem choques —, ¢rouxe-me a imagem concretamente vivida do significado da pés-modernidade, um conceito que, fa Epuca, estava provocando candentes debates em yérios patsee € efeitos também no Brasil. Foi dessa experiéncia que comecou ase insimuar em meu espirito a impressto de que algo diferente estava acontecendo no universo da comunicagio € da cultura, algo que estava destinado a teazer profundas transformagdes na hegemonia da cultura de massa. CCULTURAS & ARTES Da POs-HuMARO InTRoDUCRO 12 1. DA CONVIVENCIA A CONVERGENCIA DAS MIDIAS Desde o final dos anos 70, quando escrevia os livros Arie e cul- ‘ura: equtincas do elitismo (1982) © Converginci sropicaliomo (1986), j& colocava em discussio a impossibilidade de sepatagdo entre as culturas eruditas, populares e massivas, pois os processos de caldeamento € mesclagem por que elas passavam pareciam evidentes. Entreanto, essas miscuras no chegavam a colocar em crise a domindncia (no Brasil avassaladora) da cultura de massas. Por isso mesmo, a impressio que trouxe de volta de Rerlim era a de que algo distineo stava acontecendo © me pus como tarefa compreendé-l. Depois de poucos anos, embora nio conseguisse ainda perce- ber com nitidez do que realmente se tratava, decidi dar a esse “algo discinco” © nome de “cultura das midlias”. Por isso mesmo, ‘no preficio da primeira edigio, em 1992, no consegui muito bem me explicar. Mais tarde, em 1996, na incrodugao da segun- dla edigio, quando a culeura das redes comecava a emergir no Brasil, avancei um pouco mais na certeza de que a cultura de ‘massas ¢ a inddstria cultural eseavam decididamente fadadas a passar por mutacdes que trariam consequéncias pata toda a nossa compreensio das formacdes socioculturais dai para a frente, Entretanto, devo confessar que, mesmo nesse momento, ado tinha pesfeita clareza do significado exato que estava dando para a expressio “culeura das mfdias”, Sabia que se tratava de formas culcurais com uma L6gica distinta da culeura das massas, mas ‘do podia ainda precisar sua nacureza com exatidio, Foi a leitura, em 1997 (um pouco tardia, devo também confessar), do livro Culturas bfbridas, de Canclini (publicado em 1990, com tradu- «io brasileiea de 1997) que ttouxe uma primeira luz para preci- sar minhas ideias. Depois disso, a explosio cada vez mais impressionance das redes ¢ a emergéncia indisfarcdvel da ciber- culeura permitiran-me chegar a uma nogio mais clara do sentido que, no inicio ainda obscuro, desejava imprimir para a expresso “cultura das 1 Hoje, com as ideias mais ajustadas, gragas, evidentemente, a arengio nfo apenas & realidade empfrica, mas também a realidade dos livros para os quais a curiosidade pela questo tem me condu- vido, posso definir com bastante preciso 0 que tenho entendido por cultura das midias. Bla nfo se confunde nem com a cultura de massas, de um lado, nem com a cultura digital ou cibercultura de oucro. E, isto sim, uma culcura intermedidria, sicuada encre ambas. Quer dizer, cultura digital niio brorou diretamence da cultura de massas, mas foi sendo semeada por processos dle produ- (Go, discribuigdo © consumo comunicacionais a que chamo de culeuca das m{dias”. Esses processos sfo distintos da légica mas siva € vieram fertilizando gradativamente o terreno sociocultural para o surgimenco da cultura digital ora em curso. Para compreender rais passagens, que considero suis, tenho utilizado uma clivisio das eras culcurais em seis tipos de formagbes: 2 cultura oral, a cultura escrira, a cultura impressa, a culcura de massas, a cultura das médias € a cultura digital. Antes de tudo, deve ser declarado que essas divisdes estio pautadas na convicgio de que os meios de comunicagio, desde 0 aparelho fonador acé as redes digitais atuais, embora, efetivamente, nilo passem de meros canais para.a transmissio de informagio, os tipos de signos que por cles citculam, os tipos de mensagens que engendram € 0s tipos de comunicagio que possibilitam sio capazes no x6 de moldar © pen~ samenco € a sensibilidade dos seres humanos, mas também de pro- piciar 0 surgimento de novos ambientes socioculeurais. Outro aspecto a ser explicitado diz respeito ao fato de que, nfo obstante as divisdes acima indicadas das seis eras culturais, refiram-se, de fato, a eras, prefiro também chamélas de forma- Ges culturais para transmitir a ideia de que no se trata af de pperfodos culturais lineares, como se uma era fosse desaparecendo com 0 surgimento da préxima. Ao contririo, hi sempre um pro- cesso cumulative de complexificagio (essa ideia voltaré varias vvezes no decorter deste livro): uma nova formacio comunicativa e cultural vai se integrando na anterior, provocando nela reajus- shmenna © Tefuieionalteated, A (cero ait alpwed Aenean waneic. 13 CCULTURAS E ARTES DO POS-HUMIANO InTRODUGAO 14 sempre desapatecem, por exemplo, um tipo de suporte que & substieuide por outro, como no caso do papiro, ou um aparelho que € subscituido por outro mais eficiente, o caso do telégrafo. E certo também que, em cada periodo histérico, a culeura fica sob © dominio da técnica ou da tecnologia de comunicagio mais receate. Contudo, esse dom/nio nao € suficiente para asfixiat os Princfpios semisticos que definem as formacées culcurais pree- xxiseentes. Afinal, a cultura comporta-se sempre como um orga- nismo vivo ¢, sobretudo, inteligente, com poderes de adaptagio imprevisiveis ¢ surpreendentes. ‘A divisto em sels eras pode parecer excessiva, mas, se niio as levarmos em consideragio, acabamos perdendo especificidades imporcantes ¢ reveladoras. Por exemplo: a culeura impressa 030 nnasceu diretamence da cultura oral. Foi antecedida por uma rica cculeura da escria no alfabética. A meméria dessas escritas trouxe grandes concribuigGes pam a visualidade da atte moderna. Ela sobrevive na imaginacao visual da profusio dos tipos grificos hoje existences, Sobrevive ainda nos processos diagraméticos do jornal, na visualidade da poesia, no design atual de paginas da tueb, Enfim, de certa forma, ela continua viva porque ainda se reserva na meméria da espécie, Assim também, embora a gran- de maioria dos autores esteja vendo a cibereultura na continuida- de da cultura de massas, considero que o reconhecimento da fase tansie6ria entre elas, a saber, o reconhecimento da cultura das midias, é substancial para se compreender a prépria cibercultura, Com bastante imptecisio, muitos tém se tefecido a todo 0 complexo context atual sob o nome de “culcura mididtica”. Essa genctalizagao cobre o cerritério com uma cortina de fumaga. E claro que cud € infdia, até mesmo o aparelho fonador. (Quais si0 ¢las, como se inserem na dindmica social, em quais delas o capital ‘sta sendo investido, como impéem sua Idgica ao conjunto da cultura? Sio todas questdes irrespondiveis se no fizetmos 0 esforgo de precisar nossos conceitos. A confuséo conceicual é pro- porcianal & confusio dos modos como nos aparecem os fatos que pretendemos compreender. O cultivo da ambiguidade © 0 espraiamento das neblinas de sentido é uma tarefa da poesia que nos traz maneiras de sentir € ver que, sem ela, seriam impossi- veis. Porém, quando se crata de interpretar fendmenos cuja com- pplexidade nos desafia, a paciéncia do conceito & imprescindivel. Isso nfo significa recusar 0 carter congenitamente polissémico los nossos discursos, fruto da natureza complexa e contraditéria Lanco das nossas mentes, de um lado, quanto daguilo que chama- mos de realidade, do outso. Justamente concririo, porque sabe~ ‘mos que hé uma imprecisio congénita em tudo que dizemos, nossos csforcos, tanto de observacio empitica quanco de clareza conceitual, «levem se redobrar se pretendemos crazer alguma contribuigio para 4 compreensio menos superficial da complexidade que nos rodeia. Isso posto, passo a explicitar que fendmenos tenho designado com a expresso “cultura das midias”, Fenémenos, alids, que s6 pude melhor compreender apris-ceup, quando a cultura digital ou cibercultura decididamente se impds. Por volta do inicio dos anos 80, comecaram a se intensificar cada vex mais os casamentos € miscuras entre linguagens e meios, misturas essas que fiancionam como um multiplicador de midias. Estas produzem mensagens hnibridas como se pode enconcrar, por exemplo, nos suplemencos literdrios ou culturais especializados de jornais e revistas, nas revistas de cultura, no radiojornal, telejornal etc ‘Ao mesmo tempo, novas sementes comecaram a brotar no po das midias com 0 surgimento de equipamentos e disposi- tivos que possibilitaram o aparecimento de uma cultura do dis- ponivel e do transit6rio: fotocopiadoras, videocassetes e aparelhos paca gravagio de videos, equipamentos do tipo walkman e walk- talk, acompanhados de uma remarcivel industria de videslips ¢ videogames, juntamente com a expansiva indiistria de filmes em video para serem alugados nas videolocadoras, cudo isso culmi- nando no surgimento da TV a cabo. Essas tecnologias, equipa- mentos e as linguagens criadas para circularem neles cém como principal caracteristica propiciar a escolha consumo individua- lizados, em oposigéo 20 consumo massivo. Sio esses. processos comunicatives que considero como constitutivos de uma cultura es 15 (CULTURAS € ARTES DO POS-HUMANO 16 das mnidias. Foram eles que nos arrancaram da inércia da recep de mensagens impostas de fora e nos ereinaram para a busca da informaclo € do entretenimento que desejamos encontrar. Pot isso mesmo, foram esses meios ¢ os processos de recepcio que cles engendram que prepararam a sensibilidade dos usudtios para a chegada dos meios digitais cuja marca principal esté na busca ispetsa, alinear, fragmencada, mas certamente uma busca indi- vidualizada da mensagem e da informacio. A proliferacao mididtica, provocada pelo surgimenco de meios cujas mensagens tendem para a segmentacio ¢ diversificagiio, ¢ a hibtidizagio das mensagens, provocada pela misenra entre meios, foram sincrénicas aos acalorados debates dos anos 80 sobre a po maodernidade. Por isso mesmo, em contraposigio a alguns autores que consideram a pés-modetnidade como a face idencificat6ria da cibercultura, tenho concebido as discussdes sobre 2 pés-moderni- dade como sinais de alerta criticos para um perfodo de mudancas profundas que se insinuavam no seio da cultura e que, naquele ‘momento, anos 80, estavam sendo encubadas pela cultura das midias € pelo hibridismo tanto nas acces quanto nos fendmenos comunicativos em geral que essa culeura propicia. Embora sem estabelecer as distingées da cultura das midias em relagio & cultura de massas, de um lado, € a cultura digital, de oucto, no capitulo sobre “A cultura da vireualidade real”, no ‘6pico sob o tfeulo de “A nova midia e a diversificagio da audigacia de massas”, Castells (2000: 362-367) descreve em detalhes os processos que, a meu ver, consticuem a cultura das médias. Uma passagem, citada pelo autor, exttaida de um artigo de F. Sabbah, escrito em 1985. € capaz de sincetizar a perfeigio 0 perfil idenei« ficatGrio dessa formagio culeural, como sc segue: “Em resumo, @ nova midia determina uma audiéncia segmen- tad, diferenciada que, embora maciga em termos de nimeros, Jno é uma audiéncia de massa em tetmos de simultaneide- {de € uniformidade da mensagem recebida. A nova midia n30 6 mais midia de massa no sentido tradicional do erwvio de um InTRODUGAO numero limitado de mensagens a uma audiéncia homagénea de massa, Devido 4 multiplicacao de mensagens e fontes, a propria audiencia torna:se mais seletiva. A audiénca visada tende a escalher suas mensagens, assim aprofundando sua segmentagéo, intensificando 0 relacionamento individual entre 0 emissor e 0 receptor” Enfim, culeura de massas, culrura das midis e cutcura digital, embora convivam hoje em um imenso caldeirto de miscuras, apresentam cada uma delas caracteres que Ihes so proprios € que precisam set distinguidos, sob pena de not perdermos em um labirinto de confusdes. Uma diferenga gritante entre a cultura «las midias € a cultura digital, por exemplo, est no faco muito evidente de que, nesta Giltima, eseé ocorrendo a convergéncia das midias (ver capitulo 4), um fenémeno muito distinto da convi véncia das midias tipica da culeura das midias. £ a convergéncia «las midias, na coexisténcia com a cultura de massas e a cultura clas midias, estas diltimas ainda em plena atividade, que tem sido esponsdvel pelo nivel de exacerbagio que a produgio e circulagio dda informagio atingiu nos nossos dias e que € uma das marcas registradas da culeura digital, Hé uma espécie de discurso consensual sobre 0 carter revolu- cionério ¢ sem precedentes das transformagies tecnolégicas e cul curais que a era digital est trazendo para o mundo, Bsse consenso ‘vem tanto daqueles que celebram quanto dos que lamentam essas transformagtes. A seguir, apresento um breve perfil desse discutso, 2. SOB 0 SIGNO DA REVOLUGAO Nas iiltimas décadas, tem havido uma constatagdo constante dle que estamos atravessando um petiodo de mudangas particular- mente répidas ¢ intensas, Tem sido ftequentemente lembrado que 0 iltimo quarto do século XX nao teve precedentes na escala, Finalidade e velocidade de sua transformagio histérica. A tinica certeza para o furuo é que ele seré bem diferente do que é hoje 7 CCULTURAS E ARTES DO POS- HUMAN InTRODUGAO 18 € que assim seré de maneira muito mais ripida do que nunca. A razio disso tudo, quase todos afirmam, esta na revolugio tecno- l6gica, uma iceia que se tornou rorineita ¢ lugar comum, nestes tempos de cecnocultura (Robins e Webster 1999: 1). ‘© que mais impressiona nao é canto a novidade do fendmeno, ‘mas o ritmo acelerado das mudancas cecnol6gicas ¢ os consequen- tes impactos psfquicos, culturais, cientificos ¢ educacionais que elas provocam, Como diz. Leopoldseder (1999: 67-68), “desen- volvimentos técnicos sempre ocorseram. O que € novo agora é nipida sucessio de seus saltos quanticos”, ‘Mesmo paises em desenvolvimento como © Brasil, com todas as contradigies © exclusées que Ihes séo préprias, niio estdo fora da revolucto digital e da nova otdem econémica, social e cultural mundializada que ela inseaura com todas as consequéncias que ‘taz tanto para a vida cotidiana, com os novos tipos e formas de trabalho € profissio que introduz e as diversas modalidades de lazer e entretenimento que permite, quanto para as formas de registro e sintese da realidade, para as suas utilizagées cientificas, artiscicas e educacionais. Com o desenvolvimento das tecnologias da informdcica, espe- cialmente a partir da convergéncia explosiva do computador das celecomunicagées, as sociedades complexas foram crescente- mente desenvolvendo uma habilidade surpreendente para arma- zenar € recuperar informasSes, tornando-as inscancaneamente disponiveis em diferentes formas para quaisquer lugares. O mundo estd se tornando uma gigantesca rede de troca de infor- ‘mages, Por volta de 1988, um tinico cabo de fibra ética podia transportar ¢r@s mil mensagens eletrénicas de cada vez. Por volta de 1991, 80 mul; em 2000, tcés miles. Cada ves se produz mais informaco, surgem mais empregos cuja carefa informar, mais pessoas dependem da informagio para viver. A economia mesma esta crescentemente se sustentando da informagio, pois esta penetra na sociedade como uma rede capilat, como infra-estrutura bésica e, a0 mesmo tempo, como geradora de conhecimentos que se convertem em recursos estratégicos. De fato, como afirma Hayles (1996b: 259, 270), a informagio © tormou a grande palavra de ordem, circulando como moeda oorrence. Genética, assuntos de guerra, entzetenimento, comuni- cagies, produgio de gris e cifras do mercado financeiro estio centre os setotes da sociedade que passam por uma revolugio pro- vocada pela entrada no paradigma informacional. Uma diferenca significante entre informagio e bens duriveis esté na replicabili- dade, Informagio nfo € uma quantidade conservada. Se eu he Jou informacdo, vocé a tem e eu também. Passa-se af da posse para o acesso, Este difere da posse porque 0 acesso vasculbia padres em lugar de presengas, E por essa razio que a era digital vem sendo também chamada de eulcura do acess. Diferentemente da cultura das midias, que € uma cultura do dlisponfvel, a culcura do acesso, na era digital, coloca-nos niio s6 no sefo de uma eevolugao técnica, mas também de uma sublevagio cculeutal cuja propensio é se alastrar tendo em vista que a cecno- logia dos computadores cencle a ficar cada vez mais barata, Domi- nada pelo microebip, essa tecnologia dobra aproximadamente de poder a cada 12 a 18 meses. A medida que cresce seu poder, scu preco declina € seu mercado aumenta. Esse crescimento € um indicador fundamental porque a produgio, 0 arquivamento e a circulagio da moeda cotrente da informagio dependem do com- putador ¢ das redes de telecomunicagio, estes, na verdade, 0s randes pivés de toda essa histéria. 3, COMPUTADOR: A MIDIA DAS MIDIAS Foi em janeiro ¢ fevereito de 1996 que escrevi um artigo sob © titulo de “O computador como midia semiética” (Santaella 2000a: 209-238). Nessa mesma époce, 0 artigo foi apresentado para discussio em um grupo de estudos internacional de semio- ticistas ¢ especialistas em informética, rcunidos em Dagstubl, Alemanha. Foi nessa reunizo que me inteirei, pela primeira vez, dos mecanismos de funcionamento da www em conversas com 19) CCULTURAS E ARTES DO POS-HURHANO. INTROBUGAD 20 alguns especialistas norte americanos entusiasmados com a novidade. esse momento, mal podia pressentir que 0 computador nio seria apenas uma mfdia semidtica, mas a midia das mfdias semicticas Como diz Lunenfeld (1999b: 3, 7), em um periodo de tempo impressionantemente curto, © computador colonizou a produgéo cultural. Uma méquina que estava destinada a mastigar ntimeros, ‘comecou.a mastigar tudo: da linguagem impressa it miisica, da foto- {srafia a0 cinema. Isso fez da “cibernética a alquimia do nosso tempo © do computador seu solvente universal, Neste, todas as diferentes midias se dissolvem em um fluxo pulsante de bits e dyter” © momento explosivo para isso se deu quando 0 computador se uniu as redes telecomunicacionais que resultou em algo Gnico ‘na histéria das midias teenol6gicas. Os cérebros dos computadores, antes fechados em bancos de dados com acesso limicado, desloca- fam-se pata as periferias, para a exeremidade inferior da hiecar- uia, para o terminal do usuério, para o recinto do cliente, assim como se deslocario a qualquer momento pata a cela dos televisores. A alianga entre computadores ¢ redes fer surgi © peimeito sistema amplamente disseminado que dé ao usuétio a oporeunidade de ctiar, disteibuir, receber ¢ consumir concetido audiovisual em um 86 equipamento. Uma méquina de calcular que foi forcada avira maquina de escrever ha poucas décadas, agora combina as fungies de criacio, de distribuigio e de recepgio de uma vasca variedade de outras midias dentro de uma mesma caixa, Rosnay (1997: 106-107) nos diz que o catalisador para o desenvolvimento das redes foi a conjungio de duas ideias simples: « informagio distribuida em rede ¢ o hipertexco (ver capitulo 4). Essas duas aplicagdes jd existiam isoladamence, mas sua associagio cxiou uma nova rede viva dotada de propriedades emergentes. A distribuicdo da informacio por servidores interconectados ja esta- va. em uso no mundo cientifico, mas nfo havia qualquer meio pritico que permitisse navegar de um para 0 oucto, permanecendo no interior dos documentos do trabalho em curso. Paralelamente, alguns idealizadotes de programas informéticos, principalmente na Apple, ttabalhavam no aperfeicoamento de hipertextos que ppucessem ser ucilizados facilmente pelo grande pablico, A infor roagdo apresentava-se sob forma de pilhas de carcies dotados de pponteiros. Nesse caso, bastava clicar em um deles para passar para ucros cartes que continham informagbes ligadas 4s anteriores. Foi a associagio do conceito de servidores de informagio ligados can uma tela dealeance mundial (a eed) e o hipertexto que produziu um efeito de bola de neve, A partir de um documento presente em lum setvidor, 6 usuario tem a possibilidade de navegar de um cexto (e de um servidor) para outro ao clicar nos ponteiros, verdadeiras encruzilhadas de informacéo que, de forma limitada, estio inter conectadas umas as outras. Por tudo isso, Lunenfeld (1999c: xix) deve estar com a tazio quando diz que no importa 0 quanto as midias digitais podem, primeira vista, assemelhar-se as médias anal6gicas — foro, cinema, video etc. ~, aquelas slo fundamentalmente diferentes destas, Por isso mesmo, os ce6ricos da comunicagio, cultura € sociedade devem fazer um esforgo para criar modelos de andlise adequados «essa emergéncia que transcendam os modelos que eram aplicé~ veis a midias anteriores € que transcendam principalmente os refides sobre consumo € recepgio, tipicos da era celevisiva. Questdes resultantes da maneira como o computador esta recodificando as linguagens, a5 midias, as formas de arte e estéticas anteriores, assim como criando suas propias, a rela- (0 entre imersao e velocidade, a dinamica frenetica da www, com seus sites que pioocam e desaparecem camo flores no deserto, a vida ciborg, 0 potencial des tecnologias vs. a vibi- lidade do mercado, os mecanismos de distribuiceo, a dinamica social dos ususries, a contertualizacie dasses noves procescos de comunicagao nas sociedades do capitalismo globalizado 80 alguns dos ternas que aparecer na ponta do iceberg, de xando entrever as complexidades que af rider, Realmente, essas complexidades tém chamado a atengfo de muitos estudiosos, inclusive no Brasil, onde alguns tém langado alarmes criticos em relagéo as consequéncias filosoficas, psiquicas

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