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Breve Histo da Neuroci Do que trata o campo da neurociéncia cognitiva? De onde surgiu? Para onde esta indo? Comecamos este livro com uma breve historia das pessoas e das idéias que levaram ao novo campo da neurocién- cia cognitiva, aquele que tem suas raizes na neurologia, na neurociéncia e na ciéncia cognitiva. A neu- rociéncia cognitiva, atualmente, representa um hibrido de disciplinas, de maneira que um estudante da mente deve estar atento a ter conhecimento em varias areas para entender completamente os t6pi- cos nela estudados. E esta rea muda rapidamente. Ao final deste capitulo, apresentamos a curta e muito recente histéria da neuroimagem. O imageamento do cérebro tornou-se um ponto central no estudo da mente nos ultimos anos. PENSANDO SOBRE AS GRANDES QUESTOES Vocé pensa sobre grandes questdes, como o sentido da Vida ou o significado do significado? Ou voce é do tipo que nao se preocupa com tais questées? Se voce é do se- gundo tipo, nao leia este livro (muito embora seria me- thor que vocé o lesse). Este livro é para aqueles que se preocupam com o que representa a vida, a mente, o sexo, © amor, © pensamento, o sentimento, o movimento, a tengo, o lembrar, 0 comunicar e o ser. Melhor, este li- vyro trata do estudo cientifico destas grandes questde: Entdo, prepare-se para aprender sobre uma fantéstica histéria que ainda esta sendo escrita. © campo cientifico da neurociéncia cognitiva rece- beu este nome no final da década de 1970, no banco tra- seiro de um taxi da cidade de Nova York. Um de nés, Mi- chael S. Gazzaniga, estava com o grande fisiologista cog- nitivo George A. Miller, a caminho de um jantar de con- fraternizagao no Hotel Algonquin. O jantar era oferecido por cientistas das Universidades Rockfeller ¢ Cornell, que estavam se esforcando para estudar como o cérebro* dé origem & mente, um assunto que necessitava de um *N. de. Agui, apalavra “cérebro” ¢ utlizada de forma mais ampla, para expressar muitas vezes o encéfalo ou, até mesmo, 0 sistema nervoso como um todo, nome. Desta corrida de taxi surgi o termo neurociéncia cognitiva, que foi aceito na comunidade cientifica. Agora a questdo é: O que isto significa? Para respon- der a essa intrigante questo, precisamos voltar atrés ¢ olhar nao somente para a hist6ria do pensamento huma- no, mas também para as disciplinas cientificas de biolo- gia, psicologia e medicina Para compreender as propriedades miraculosas das fungGes cerebrais, vocé deve ter em mente que foi a Mae Natureza que as criou, endo uma equipe de engenheiros racionais. Apesar da Terra ter sido formada ha aproxima- damente 5 bilhdes de anos, ¢ da vida ter surgido ha cer- cade 3,5 bilhdes de anos, os encéfalos humanos, na sua forma final, apareceram ha somente 100.000 anos. O en- céfalo dos primatas apareceu ha aproximadamente 20 milhdes de anos, e a evolugdo tomou seu curso para construir 0 encéfalo humano de hoje, capaz de todo 0 ti- po de facanhas maravilhosas — e banais. Durante grande parte da historia, os humanos esti- veram muito ocupados para ter chance de pensar sobre 0 pensamento. Embora nao se tenha dtivida de que o encé- falo humano possa exercer tais atividades, a vida exigia atengao a aspectos priticos, como a sobrevivéncia em ambientes adversos, a criagao de melhores maneiras de 20)» cazancs, ve wancin viver, inventando a agricultura ou domesticando a mais, e assim por diante. Entretanto, logo que a civiliza- do se desenvolveu a ponto de que o esforco diario para sobreviver no ocupasse todas as horas do dia, nossos ancestrais comegaram a dedicar mais tempo construindo teorias complexas sobre as motivacGes dos seres huma- nos. Exemplos de tentativas de compreender 0 mundo e nosso lugar nele incluem Oedipus Rex (Edipo Rei), a anti- ga peca do teatro grego que lida com a natureza do con- flito pai-filho e as teorias mesopotamica e egipcia sobre a natureza da religido e do universo, Os mecanismos ce- rebrais que possibilitam a geracao de teorias sobre a ca~ racteristica da natureza humana prosperaram no pensa- ‘mento dos ancestrais humanos. Ainda assim eles tinham um grande problema: nao possuiam a habilidade de ex- plorar a mente de forma sistematica por meio da experi- mentacio, Em um trecho de um didrio de 1846, o brilhante fil6- sofo Soren Kierkegaard escreveu: Um homem deve dizer simples e profundamente que no compreende como a consciéncia leva 3 existéncia ~€ perf tamente natural, Mas um homem deve grudar seus olhos em um microseépio e olhar e olhar ~e ainda assim nao ser capaz de ver como esté acontecendo ~€ridiculo, e€ parti- cularmente ridiculo quando se supde que isto € sério... Se as ciéncias naturais estivessem desenvolvidas nos tempos de Séerates como estio agora, todos 0s soistas seriam cien- tistas. Haveria microscépios pendurados do lado de fora das lojas para atrair fregueses e teria uma placa dizendo: “Aprenda e veja através de um microscépio gigante como ‘um homem pensa (, lendo esta placa, Sécrates teria dito: ‘Assim se comporta um homem que ndo pensa’)”. prémio Nobel Max Delbruk (1986) iniciou seu fascinante relato sobre a evolucao do cosmos no livro Mind fiom Matter? com esta citacao de Kierkegaard. Del- bruck faz parte da tradigo moderna que se iniciou no sé- culo XIX. Observa, manipula, mede e comeca a determi- nar como 0 encéfalo faz 0 seu trabalho. O pensamento te6rico é algo maravilhoso e produziu ciéncias fascinan- tes, como as teorias da fisica e da matemitica, Contudo, para entender como um sistema biolgico funciona, é necessario um laboratério, e experimentos tém de ser realizados. Idéias derivadas da introspeccao podem ser logiientes e fascinantes, mas elas so verdadeiras? A fi- losofia pode acrescentar perspectivas, mas estariam cor- retas? Somente o método cientifico pode guiar um tépi- co por um caminho seguro. Pense sobre a tiqueza de fe- némenos a serem estudados. Pegue a percepeao de faces, por exemplo. Alguns dizem que o cérebro tem um siste- ma especial para reconhecimento de faces. Esse sistema especializado foi identificado porque pacientes com cer- tas lesdes cerebrais tinham dificuldade em reconhecer faces de todo o tipo. Cientistas imediatamente debate- ram sobre a possfvel existéncia de um sistema especiali- zado. Nao, alguns disseram, 0 dano seria com a percep- ao de objetos em geral, nao com faces em particular. Eles mostraram pesquisas que sugeriam que pessoas com dificuldades em reconhecer faces também tinham problemas em reconhecer objetos ou faces de animais. Mas eis que surge um novo caso. Um paciente, com grande dificuldade em identificar objetos do dia- nao tinha problema para identificar faces! De fato, se a face era composta de frutas arrumadas de modo a pare- cer uma face, o paciente dizia que via uma face, mas no reconhecia que ela era feita de frutas! Incrivel, mas real. Parecia, entdo, que um sistema especial no cérebro reco- nhecia faces; esse seria ativado para produzir a percepcio em nossa consciéncia por meio da configuracao de ele- mentos. Este processador especial de faces néo sabe ¢ rio se importa com os elementos que as compdem: des- de que os elementos estejam de acordo, uma face é per- cebida. O que poderia ser mais fascinante do que estudar como 0 cérebro faz tais coisas? AHISTORIA DO CEREBRO Um problema Ihe é dado para ser resolvido. Sabe-se que uma fatia de tecido biolégico pensa, lembra, presta atencio, resolve problemas, deseja sexo, pratica jogos, escreve novelas, expressa preconceito ¢ faz milhdes de coutras coisas. E proposto que voce descubra como isso acontece. Antes de comecar, vocé pode fazer algumas perguntas. O tecido trabalha como uma unidade, com todas as partes contribuindo como um todo? Ou ele € cheio de processadores individuais, cada um deles ten- do suas fungdes especificas, resultando em algo que pa- rece funcionar como uma s6 unidade? Lembre-se que, a distancia, a cidade de Nova York parece um todo inte- grado, mas na realidade ela € composta de milhdes de processadores individuais, que sdo as pessoas. Talvez as pessoas, por sua vez, sejam feitas de unidades menores, mais especializadas. Este tema central ~ se o cérebro funciona como um todo, ou se partes dele trabalham independentemente, constituindo a mente - é o que alimenta muito das pes- quisas modernas. Como veremos, a visio dominante mudou nos tiltimos 100 anos, ¢ continua a mudar. Tudo comegou no século XIX, quando os frenologistas, lidera- dos por Franz Joseph Gall e J. G. Spurzheim (entre 1810 € 1819), declararam que o cérebro era organizado com cerca de 35 funcSes especificas (Figura 1.1). Essas fun- ‘gOes, que variavam de funcdes basicas cognitivas, como a linguagem e a percep¢ao da cor, até capacidades mais efémeras, como a esperanca e a auto-estima, eram con- veanocencicocunva +f Figura 1.1. Esquerda: Franz Joseph Gall. Um dos fundadores da frenolo- ia no incio do século XIX. Direita: 0 hemisfério direito do encéfalo, por Galle Spurzheim, em 1810. cebidas como sendo mantidas por regides especificas do cérebro. Além disso, se uma pessoa usava uma das facul- dades com mais freqiiéncia que as outras, a parte do cé- rebro que representava esta funcdo devia crescer. De acordo com os frenologistas, esse aumento do tamanho de uma regio cerebral causaria uma distor¢do no cranio. Logicamente, entao, Gall e colaboradores acreditaram que uma andlise detalhada da anatomia do cranio pode- ria descrever a personalidade de uma pessoa. Ele cha- mou esta técnica de personologia anatomica (Figura 1.2). Gall, médico e neuroanatomista austriaco, nao era tum cientista, pois ndo testava suas a melhor par- te de seu esforco foi direcionada para a andlise do cortex cerebral, particularmente da sua superficie, e para enfa- WETS rman ts tizar a idéia de que diferentes funges cerebrais s4o loca- lizadas em discretas regides cerebrais. O fisiologista experimental Pierre Flourens questio- nou a visio localizacionista de Gall (Figura 1.3). Um grande nimero de pessoas rejeitou a idéia de que proces- samentos especificos, como a linguagem e a meméria, eram localizados em regiGes circunscritas do encéfalo, € Flourens tornou-se seu porta-voz. Ble estudava animais, especialmente passaros, e descobriu que lesGes em areas particulares do cérebro nao causavam certos déficits du- radouros de comportamento. Nao importava onde fizes- se a lesdo no encéfalo, 0 passaro sempre se recuperava. Ele desenvolveu, entao, a nogao de que todo 0 cérebro participa no comportamento, uma viséo conhecida pos- teriormente como campo agregado. Em 1824, Flourens escreveu: “Todas as sensagdes, todas as percepc6es, e to- das as vontades ocupam o mesmo espaco nestas estrutt- ras (cérebro). As faculdades de sensagio, percepso & vontade so, essencialmente, uma 6 faculdade”. Trabalhos realizados no continente europeu e na In- glaterra ajudaram a retomada da visio localizacionista Na Inglaterra, por exemplo, o neurologista John Hugh- lings Jackson (Figura 1.4) passou a publicar suas obser- vac6es sobre o comportamento das pessoas com lesdo cerebral. Uma das principais caracteristicas dos escritos de Hughlings Jackson foi a incorporacao da sugestao de experimentos para testar suas observacées. Ele notou, por exemplo, que durante 0 inicio das convulsées, al- guns pacientes epilépticos moviam-se de modo caracte- ristico, e parecia que as convulsdes estimulavam um, ponto correspondente do corpo no cérebro; assim, mo- Figura 1.2 Esquerda: Uma analise do presidentes Washington, Jackson Taylor e Mckinley, por Jessie. Fowler; Phrenological Journal junho 1898, Centro: 0 mapa frenol6gico das caractristicas pessoais no canio; American Phrenologcal Journal, 1850. Direita:A publicaco de Fowler e Wells Company sobre compatibilidade matrimonial em conexSo com a frenologia, 1888. 2)» carmen, ve wancin Figura 1.3 _Esquerda: Pierre Jean Marie Flourens (1794-1867), que apoiava a idéia que depois se chamou de campo agregado. Direita: A posigSo de um pombo destituido de seus hemistérios cerebrais como escrito por Flourens vimentos t6nicos e ¢lénicos dos miisculos, produzidos pelo disparo epiléptico anormal dos neurénios no encé- falo, progrediam de maneira ordenada de uma parte do corpo para outra. Esse fenémeno o levou a propor uma organizagao topografica no cértex cerebral: nesta visio, um mapa do corpo era representado em uma area corti- cal particular. Hughlings Jackson foi um dos primeiros a observar essa caracteristica essencial da organizacao cerebral. Embora Hughlings Jackson também tenha sido o pri meiro a observar que lesdes no lado direito do encéfalo afetam processos visuoespaciais mais do que lesdes no lado esquerdo, ele nao afirmou que partes especificas do lado direito do encéfalo estavam intimamente ligadas a essa importante funcdo cognitiva humana. Hughlings Figura 1.4 John Hughlings Jackson, neurologista inglés que foi um os primeizos a reconhecer a vsso localizaionsta Jackson, um neurologista clinico muito observador, no- tou que era raro um paciente perder totalmente uma fungi, A maioria das pessoas que perdiam a capacidade de falar apés um acidente vascular cerebral, por exem- plo, ainda conseguia falar algumas palavras. Pacientes in- capazes de direcionar suas mos voluntariamente para locais especificos do corpo ainda podiam cogar nesse lu- gar caso sentissem coceira. Quando Hughilings Jackson, fez tais observacées, ele concluiu que muitas regides do encéfalo contribuiam para um dado comportamento. ‘Nessa mesma época, na Franga, talvez 0 mais famoso ca- so de neurologia da hist6ria foi relatado por Paul Broca (Figura 1.5). Em 1861, ele tratou um homem que havia softido um acidente vascular cerebral; 0 paciente podia entender a linguagem, mas nao conseguia falar. Consis- Figura 1.5. Esquerda:Piere Paul Broca. Direita: As conexdes entre 0s centros da fala, no artigo de Wemicke sobre afasia,B = area motora da fa la, de Broca; A entro sensorial da fala, de Wericke; Pc = drea relacionada a inguagem. tente com as observacdes de Hughlings Jackson, entre- tanto, 0 paciente podia murmurar algumas coisas - co- mo o som “tam”. Esses pacientes em geral falam auto- maticamente; assim, enquanto apenas dizem “tam, tam, tam...” em resposta & questo “quem é vocé?”, podem, facilmente contar de um a dez de maneira normal. ‘Acexata parte do cérebro que estava lesionada no pa- ciente de Broca era o lobo frontal esquerdo. Denominou- se, posteriormente, esta regiao de drea de Broca. O impac- to de seus achados foi enorme. Aqui havia um aspecto ex- clusivo da linguagem que estava prejudicado por uma le- sfo especifica. Esse tema foi escolhido pelo neurologista alemao Carl Wernicke. Em 1876, quando tinha apenas 26 anos, ele relatou 0 caso de uma vitima de acidente vascu- lar cerebral que podia falar quase normalmente, diferen- temente do paciente de Broca, mas o que ele falava nao fazia sentido. O paciente de Wernicke também nao com- preendia a linguagem escrita ou falada. Ele tinha uma le- so numa regizo mais posterior do hemisfério esquerdo, na érea e ao seu redor, onde os lobos parietal e temporal se encontram. Hoje, essas diferencas sobre como o encé- falo responde a doengas focais ja sio bem-compreendi- das. Todos os neurologistas, em todos os hospitais, sa- bbem dessas coisas. Contudo, ha pouco mais de 100 anos, as descobertas de Broca e Wernicke fizeram “tremer a “Terra”. Filésofos, médicos e os primeiros psic6logos assu- miram um ponto de partida fundamental: doencas focais causam déficits especificos. Naquela época, os investiga- dores eram limitados em sua habilidade para identificar as lesdes dos pacientes. Os médicos podiam observar 0 local do dano ~ por exemplo, uma lesao penetrante pro- vocada por uma bala -, mas eles tinham de esperar 0 pa- ciente morrer para determinar o local da les4o, A morte podia levar meses ou anos, e, em alguns casos, geralmen- te ndo era possivel realizar a observagdo: 0 médico perdia contato com o paciente apés sua recuperagao, e, quando este finalmente morria, médico nao era informado e as- sim no podia examinar o encéfalo e correlacionar a leséo cerebral com os déficits de comportamento da pessoa. Hoje, o local da lesao cerebral pode ser determinado em ppoucos minutos com métodos de imagem que mapeiam e fotografam o encéfalo vivo. Vamos aprender sobre essas t6cnicas conforme avancarmos na leitura deste livro. (Co- ‘mo uma observacao histérica interessante, 0 encéfalo do paciente famoso de Broca foi preservado. Mapeamentos recentes do encéfalo deste paciente revelaram que a leso era muito maior do que aquela descrita por Broca.) Como acontece na maioria dos casos, os estudos em humanos levaram a questdes para aqueles que traba- tham com modelos animais. Logo apés a descoberta de Broca, os fisiologistas alemaes Gustav Fritsch e Eduard Hitzig estimularam eletricamente pequenas partes do encéfalo de um cdo ¢ observaram que este estimulo pro- duzia movimentos caracteristicos no animal (Figura 1.6). Essa descoberta levou os neuroanatomistas a uma andlise mais detalhada do cértex cerebral e sua organi: Ao celular; eles queriam apoio para suas idéias sobre a importancia de regides localizadas. Como essas regioes executavam diferentes fung6es, conclufram que deviam olhar de modo diferente o nivel celular. Seguindo essa légica, os neuroanatomistas alemaes, comegaram a analisar 0 encéfalo utilizando métodos mi- croscépicos para ver tipos de células em diferentes re- gides cerebrais. Talvez o mais famoso no grupo fosse Korbinian Brodmann, que analisou a organizacao celular do cértex e caracterizou 52 regibes diferentes (Figura 1.7). Brodmann usou tecidos corados, como aqueles de- senvolvidos por Franz Nissl, que permitiram que ele vi- sualizasse diferentes tipos de células em diferentes re- gides cerebrais. Como as células diferiam entre as re- ides cerebrais, essa divisdo foi chamada de citoarquite- ténica, ou arquitetura celular. Logo, muitos anatomistas agora famosos, incluindo Oskar Vogt, Vladimir Betz, ‘Theodor Meynert, Constantin von Economo, Gerhardt vvon Bonin e Percival Bailey, contribufram para este traba- Iho, € muitos subdividiram 0 e6rtex ainda mais do que Brodmann havia feito. De maneira mais ampla, esses in- vestigadores descobriram que varias dreas cerebrais des critas pela citoarquitetura realmente representavam re~ funcionalmente diferentes. Por exemplo, Brodmann foi o primeiro a distinguir as reas 17 e 18, distingao essa que provou ser correta em estudos funcio- Figura 1.6 Esquerda: 0 fisiologista e ana- ‘tomista Gustav Theodor Fritsch (1838-1907) Centro: 0 professor de Psiquatra Eduard Hitzig (1838-1927). Direita:llustracSo org: nal de Fritsch e Hitzig do crtex de um cachor- ra, por Fritsch eHitzig, 24 = sarzanos ve mann al2 at igura 1.7. As52 areas distintas descritas por Brodmann, baseadas na estruturae no aranjo celulares. Adaptada de Brodmann (1909). nais subseqiientes. A caracterizacio da area visual pri- maria do cértex, area 17, como sendo distinta da area 18, demonstrou 0 poder do estudo da abordagem pela ci- toarquitetura, como vamos ver melhor no Capftulo 3. No entanto, a grande revoluc4o na nossa compreen- sdo sobre o sistema nervoso estava ocorrendo mais a0 sul da Europa, na Itélia e na Espanha. L4, uma luta inten- sa ocorria entre dois brilhantes neuroanatomistas. Estra- nhamente, foi o trabalho de um deles que levou a com- preensao do trabalho do outro, O italiano Camillo Golgi desenvolveu uma colora¢ao que impregnava neurénios individuais com prata (Figura 1.8). Essa coloracao per- mitia a visualizacao completa de um tinico neurdnio. Usando 0 método de Golgi, o espanhol Santiago Ram6n y Cajal descobriu que, ao contrario da visio de Golgi ¢ outros, os neurénios eram entidades tinicas (Figura 1.9). Golgi acreditava que todo o encéfalo era um sincicio, ou uma massa continua de tecido que compartilhava um tinico citoplasma! Cajal estendeu seus achados e foi 0 Figura 1.8 Esquerda: Camillo Golgi (1843-1926), co-vencedor do Prémio Nobel em 1906, Direta: Desenhos de Golgi de diferentes tipos de células ganglionares em cachorro e gato. Figura 1.9 Esquerda: Santiago Ramén y Cajal (1852-1934), co-ven cedor do Prémio Nobel de 1906. Direita: Desenhos de Cajal das aferén- clas no cértex de mamiferos. primeiro a identificar ndo somente a natureza unitéria do neurénio, mas também a transmissio de informagao elétrica em uma tinica direcdo, dos dendritos para a ex- tremidade do ax6nio (Figura 1.10). Muitos cientistas genuinamente brilhantes estive- ram envolvidos na hist6ria inicial da doutrina neuronal. Por exemplo, Johannes Evangelista Purkinje ~ um tcheco educado em Praga, & época ainda controlada pelos ale- mies, que teve de viajar para a Pol6nia para conseguir ‘uma posicio na universidade (Figura 1.11) - descreveu ndo somente a primeira célula nervosa, mas também in- ventou 0 estroboscépio, descreveu fendmenos visuais comuns e encaminhou uma série de outras descobertas. ‘Até mesmo Sigmund Freud entrou na histéria do neu- rénio (Figura 1.12). Como um jovem cientista, ele estu- dou anatomia microscépica com o grande anatomista ale- mao Ernst Briicke. Freud escreveu um ensaio sobre seu trabalho subseqtiente e independente acerca do lagostim. Na realidade, algumas das biografias de Freud sugerem que ele também defendeu a idéia de que o neur6nio era uma unidade fisiolégica distinta e separada. Hermann von Helmholtz, talvez um dos mais fa- mosos cientistas de todos os tempos, também contr! buiu para os primeiros estudos sobre o sistema nervo- Corpo celular Figura 1.10 Uma célula bipolar da retina wevrocciacocumua © 25 Dendritos + SS Corpo celular Figura 1.11. Esquerdda: Johannes Evange- ~ lista Purkinje, que descreveu o primeira neu P28 ‘Gnio no sistema nervoso.Direlta: Uma célu- \ yAsialo la de Purkinje do cerebelo, Figura 1.12 _Esquerda: Sigmund Freud (1856-1939). Direita: Do seu trabalho com © lagostim, Freud publicou esta lustracdo co: ‘mo um exemplo de anastomose de fbras rervosas, um conceito que Cajal mostrou es tar errado. Figura 1.13 Esquerda: Hermann Ludwig von Helmholtz (1821-1894) Direita: 0 aparelho de Helmholtz para media velocidade de conduco nervosa, 26 _sxztmcn ve wancon ‘Autores: Vocé assumiu a tarefa de estudar uma va~ riedade de assuntos em neurociéncias do ponto de vista historico. O que motivou esse interesse? MG: Duas coisas. Uma foi a minha graduacao ne Universidade de Chicago, uma organizacao batista on- de os professores judeus ensinaram 0 catolicismo a es- tudantes ateus. No existiam livros-texto (ou quase ne- hum), somente resumo de artigos originais. Em histo- ria, por exemplo, lemos Lénin e Martov na Revolucéo Russa. Em quimica, lemos Lavoisier. Eu sempre pensei {que as pessoas que criaram novas idéias podiam ensinar mais efetivamente que autores de livros. A segunda in- fluéncia foram as aulas de Harry Patton aos estudantes de medicina na Universidade de Washington. Ele ensi- nou brilhantemente sobre reflexos - experimento por ‘experimento, Apés a sua aula, vocé entendia que 0 ca- minho mais curto para 0 “reflexo do martelinho” en- volvia apenas uma sinapse, mas a evidéncia que levou a ‘esta concluséo foi feita de maneira brithantemente cla- ra, Patton ensinou nao somente 0 que sabemos, mas, ‘mais importante, como sabemos. ‘Autores: Voce est agora muito ligado ao mundo moderno dos livros, TV, revistas e conferéncias freqen- tes. Tudo isso leva a uma imagem sobre quais s80 0s as- suntos importantes em neurociéncias e como eles se tor- naram importantes. Voce est sugerindo que a inv ‘cdo dos trabalhos originais e a historia das idéias levam 2 uma diferente interpretacao do presente do que aquela ‘que a maioria das pessoas conhece? Se for, poderia dar um exemplo? (MG: Hé tanto para ser dito... Para comecar, consi: deremos 0 experimento de Otto Loewi em “Vaguss- toff”. No tempo em que Loewi fez seu experimento crucial, existia a suspeita de que os nervos podiam ati- var os misculos ou outros nervos liberando uma pe- quena quantidade de uma substancia quimica ~ mas nao existia prova disso. Loewi desenhou um experi- mento simples na sua propria casa apés ter tido a idéia ‘enquanto estava dormindo. Sabia-se naquele momen- to que 0s coracdes dos vertebrados, de sapos até ma- miferos, podiam continuar a bater se removidos do corpo e colocados em uma solucdo adequada, Embora Entrevista com Mitchell Glickstein, PhD. Dr. Glickstein é professor de neuroanatomia € neurociéncias no University College, Londres, Ele escreveu extensamente sobre a histéria da neurociencia, 1s coracdes tenham um suprimento de nervos, eles po- dem continuar a bater mesmo quando estes nervos 80 cortados. O maior dos nervos autondmicos, 0 ner ‘Yo vago, dé inervacao ao coracao e causa diminuicso das batidas cardiacas. Se o nervo vago é estimulado tletricamente, o ritmo do coracao e a forca das bati- das diminuem. Todos esses fatos eram conhecidos na epoca de Loewi. O que ndo se sabia era como vago ‘gia. Loewi estimulou a preparacso de um nervoxcore ‘Gao de um sapo em uma taxa muito alta, causando a Giminuicso do ritmo cardiaco. Ele coletou o fluido de dentro do coragao logo apés a estimulacao elétrica Entao, injetou este fluido no mesmo coracao - ou em lum segundo coragao ~e isso produziu o mesmo efeito dde diminuigdo do ritmo cardiaco e da presséo. Quando 0 fluido era removido sem que 0 vago tivesse sido est: mulado, nao havia efeito no coracdo ou no segundo coragéo. Loewi concluiu que alguma coisa devia estar sendo liberada quando 0 vago era estimulado, © era esta substncia quimica que causava a diminuigdo do ritmo e da forca. Ele a chamou provisoriamente de va~ gusstoff, significando exatamente “material do vago". Alguns anos depois, Loewi e outros demonstraram que a substancia era 0 neurotransmissor acetilcolina. Loewi primeiramente acreditou que 0 vagusstoff = acetilcolina - era especifico. Sir Henry Dale, Welter Feldberg (um estudante de Loewi) e Marthe Voot (afi tha de Cecile e Otto) demonstraram que a acetilcolina & também um neurotransmissor nas jungdes neuro- musculares voluntarias. Consideremos agora a auto-observacéo. Wollaston (1824) descreveu sua propria hemianopsia transitéria (perda parcial da visao) e a hemianopsia mais perma: ente de dois conhecidos, quando 0 conceito ainda rem existia, e sua descrigao foi colocada no Boston Me: dical and Surgical Intelligencer como uma curiosidade (depois disso, eles descreveram um menino na Filadélia {que via uma chama de vela de cabeca para baixo!). Wol laston foi um dos génios ingleses do século XIX, trabar lhando em uma época em que as pessoas podiam fazer contribuigdes a diversas ciéncias. Ele inventou um tipo de prisma para 0 trabalho optico e também desenvol so (Figura 1.13). Ele foi o primeiro a sugerir que os in- vertebrados seriam bons modelos para entender os mecanismos cerebrais dos vertebrados. Helmholtz também fez grandes contribuicdes para a fisica, a me- dicina e a psicologia © fendmeno de um famoso cientista fazer contribui- es significativas para distintas areas pode ser algo do pasado. Nao que tais coisas nao acontecam nos dias de hoje, elas somente nao sdo facilmente reconhecidas. A ciéncia hoje € um enorme empreendimento, e cada sub- NEUROCIENCIA COGNITIVA © 7 veu uma técnica para puxar fios muito finos para usar em instrumentos de preciso. Antes do trabalho de ‘Wollaston, crina de cavalo havia sido utilizada. Wollas- ton fez uma simples auto-observacao. Ele notou que as vvezes tinha um ataque de perda parcial da visdo. A per- da visual era semelhante em ambos os olhos; metade do campo visual nao podia ser visto. E era sempre a mesma metade em ambos os olhos. Wollaston deu este exem- plo: ele foi ver seu amigo - chamado Hughlings Jackson =e olhou o nome na placa da porta de Hughlings Jack- son. Ele disse que s6 conseguia ver a palavra “son” Wollaston estava cego na metade esquerda de cada campo visual em ambos os olhos. A meia-cegueira tran- sit6ria de Wollaston (agora chamada hemianopsia, lite ralmente “metade da visio sem ver”) era transitéria, mas ele sabia de outros dois individuos que tinham a meia-cegueira permanente. Ambos os tipos de hemi ‘nopsia agora so bem conhecidos dos médicos. Sir Isaac Newton, em seu texto sobre dptica, especulou que cada, nervo éptico era dividido de tal maneira que 0 nervo, 6ptico ligado ao lado esquerdo de cada retina ia para o lado esquerdo do encéfalo, ¢ 0 nervo éptico do lado di- reito ia para 0 lado direito do encéfalo. As implicacoes, das sugestdes anatémicas de Newton nunca foram reco- ‘nhecidas, e Wollaston nao parecia saber de sua existén- cla, Suas observacoes eram raras, e seus exemplos, n3o- Usuais. Foi s6 apés outros 70 anos que essas duas contr buigoes foram completamente integradas. A especula- {80 de Newton sobre o curso da fibra do nervo éptico, foi verificada, os médicos comecaram a reconhecer 0 fa- ‘to.de que a hemianopsia era muito comum e relaciona- da com a anatomia. Consideremos a natureza transcendente e interna- ional da ciéncia. Ela ndo envolveu somente os alemaes, ino século XIX. Foi um rapaz de baixa estatura, Cajal, de tum pats com pouca tradicao cientifica, quem colocou a neuroanatomia no curso certo por cem anos. Esses so alguns exemplos de por que eu uso recur- 505 hist6ricos. Eles ajudam a enfrentar 0 absurdo que & ‘uma pessoa de 35 anos com cinco pés-doutorados, bri Ihante nos Ultimos cinco anos de pesquisa e um pouco confusa nos cinco anos anteriores, que nao sabe nada so- bre como tudo 0 que sabemos chegou a ser conhecido. Se vocé quer ensinar sobre ciéncia, nao é uma mé escolha ensinar como n6s chegamos aqui. disciplina tem seu proprio quadro de herdis e vil6es. Es- ses guardides de um determinado tema relutam em dei- xar estranhos entrarem em seus debates Shepherd (1992) recontou a fascinante historia de Camillo Golgi e a comparou com a de Cajal. Nascido Autores: Com certeza, tudo isso é verdadeiro ‘muito mais. Por exemplo, voc® poderia comentar a dou- trina neuronal de Cajal? Embora ele seja amplamente creditado como seu fundador, nao seria realmente 0 ca- 50 de a idéia “estar no ar” e muitas pessoas estarem f lando sobre isso naquele momento? Apesar de Cajal ter sido, inquestionavelmente, um brilhante anatomista — talvez o mais brilhante que tenha existido —, ser que ele simplesmente nao cristalizou e divulgou, com muito sucesso, a idéia vigente na época? MG: Cajal foi mais que isso. Vocé pode melhor apre- ciar Cajal pela leitura de seus contemporaneos (Golgi, Dogiel, Kélliker). Quando Cajal comesou seu trabalho, a visdo dominante era a de um sincicio vago. Golgi pensa- va que havia anastomoses entre as colaterais de um axénio e que o encéfalo era uma rede fusionada, Re- centemente, dei uma aula sobre Cajal no Instituto Cajal um verdadeiro desafio. Foquei-me na visita de Cajal a Inglaterra em 1894, Eu tinha todos os documentos rel cionados ao seu convite, seu aceite e seu grau honora- rio em Cambridge. (Ele foi preso rapidamente em Cam- bridge, um episédio a parte muito divertido.) A raz8o pela qual eu passei um dia no Instituto foi para apresen- tar um assunto em particular - a descoberta das espi- nhas dendriticas. Golgi certamente as viu, mas deixou- a de fora de suas figuras. Kolliker revisou a questao em seu livro (1896) e concluiu solenemente que eram um. artefato. Cajal escreveu um artigo brilhante no qual le- vantou a questao sobre por que os dendritos deviam parecer, mas nao os axdnios. Por que o método de Gol- gi e suas variantes (baseadas em merciirio) os mostr ‘vam? Para provar sua validade, ele disse que aquilo te- ria de ser mostrado por um método independente. Ele tentou com 0 método de azul de metileno e conseg impregnar (corar) as espinhas, da mesma forma que 0 método de Golgi corava. Eu fui a Madrid para olhar seus desenhos. Como Cajal disse: “Elas esto la com azul de metileno; elas esto realmente Id. O problema est acabado”. Mas existiam outros, Waldeyer, por exemplo, ‘cunhou 0 termo neurénio, mas contribuiu muito pouco. Concordo com Cajal, que disse que o que Waldeyer fez foi ".. publicar minha pesquisa em um jornal médico se- ‘manal”. Quantos livros escritos ha cem anos ainda so Aiteis hoje? ‘Autores: Bem, somente o tempo ird dizer se este irs se juntar a0s outros. Obrigado. ST perto de Mildo, Golgi, filho de um médico, recebeu seu diploma de medicina aos 22 anos de idade, na Universi- dade de Pavia, na Itilia. Contudo, ele ficou de fora das, pesquisas das grandes universidades alemas — um fato que o perseguiu durante toda sua carreira. Mesmo as- GGAZZANIGA, RY, MANGUN “wos wieeblea eae Maa Aone art Concer cia ere Lee ate eye mento durante um longo periodo de tempo. Seria bo- slang oallior S's easy Se yeh deta arta ee eae ete comemians St a eee cauce Sea Peer eea Eonar acunonoize tages Sra tein a sa Wa ee yc anne aeaineoa eer rer cane Bees eats once aan ates eens rae sie odes eam Ua ee eae cee saree eer ne, detalhou a variedade de forcas atuantes no traba- SP SURREAL eae ont tenon Rte ac nccierauere Eye ahe ta toineral cote ae Pee sari ines pavewosmeemte ies Bee aaa vie noletan eine Figura A Esquerda: Anton van Leeuwenhoek. Direita: Um ‘dos microscépios originais usado por Leeuwenhoek, composto por duas placas de bronze que sustentavam a lente. Interladio ton, por exemplo, inventou a maquina a vapor em 1807; Hans Christian Orsted descobriu 0 eletromag- etismo, Mais interessante para 0 nosso campo foi Leopold Nobili, um fisico italiano que inventou o precursor do galvanémetro - 0 aparelho que pe tiu as bases para o estudo de correntes eletricas em tecidos vivos. Muitos anos antes, em 1674, Anton van Leeuwenhoek, na Holanda, usou um microsco- pio primitivo para observar tecidos animais (Figura ‘A). Uma das suas primeiras observacdes foi uma se- ‘

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