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série rincipios 4 Rosemary Arrojo Oficina de traducaéo AM Cuec mel od ene ae série rincipios Rosemary Arrojo Oficina de traducao A teoria na pratica Rosemary Ario Dirtr etre Ferman Paiste dior GarorS: Mendes Ros [iors aitente—_—_Tatana Cort Pr ‘Goordenaeraderevisio any Pics att secre Rodis Anine Paitor Antonio Pass Diagramador Caster Camaro Capwe projet griien Hamam de Melo Tro Design aloraieeletrniea Maer K Masks eto aero Diectores examin Abani San Yous Cape Preparadora de esto Lene Booed Siva {IP-BRASIL. CATALOGACAO-NA-TONTI. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DM LIVROS, 0 moj Rosemary ‘Ona dead: teria Rosemury Am Se —S> Plo Aiea, 2007 5p (Sie Pips: 34) loch bibigrai coment ISON 978-081 12814 | Tinto emer. LT Se ores SON 9785 08 112814 ano) ISBN 97885 08 112921 (ores) 2007 Sedo 1 impessio womens acaaaaero (ences es Todos os dicios secraos pel ‘Ny Ouviam Ales de ia 800 Sio Palos Divas: (11) 39901775 Venda ie (11) 399041776 srweradc com br-woaticat ‘endear com 1. Abre-se uma nova oficina 7 Oficina de tradugio ou sranslation workshop? & 2. A questo do texto original significado/earga e o tradutor'transportador 44 “Pierre Menard, autor del Quijote”, uma lgdo de Borges sobre linguagem e tadugdo. 43. ‘A obra “visivel” de Menard e 0 sonho de uma linguagem nio-arbitriria 14 ‘A obra “invisivel” ea missio impossivel de Menard 19 O texto origina redefinido 22 2. A.questdo do texto literdrio 8 0 preconceito da inferioridade ou da impossibilidade 28 Uma teria liteivia menardiana 28 Repensando o literitio 90. (Quando ameixas no sio simplesmente ameixas 34 A tradugao de textos literitiosredefinida 38 4. A questo da fidelidade 37 (© conceit de fidelidade eo textopalimpsesto. 37 ‘Uma Cleépatra melindeosa 38 autor, o texto eo letor'tradutor 40 A fidelidade redefinida 42 5. Ateoria na pritica 46 “Aporo”, de Carlos Drummond de Andrade 48 “Um inseto cava", 48; "Que fazer, exaust, em pas bloqueada?”, 48; “Eis ‘© poema: maquina de significagio sa “Insect”, versio de John Nist_ 54 ‘Uma nova versio de “Aporo” 58 6, Exercicios de tradugio. 88 “Poema de sete faces” versus “Seven-sided poem” 59 [oJ um anjo toro", €1; “As casas espa os homens", 63; “pemas bancas pretasamarels”, 64; “0 homem aris do bigode", 64; "Mundo mundo vasto mundo”, a8; “...] comovido como o abo", 66 “The rival” versus “Rival” 67 “Ifthe moon smile, she would resemble you", 68; “And your ist gifts ‘making stone out of everything", 70; “The moon, oo, bases her subjects", 172; "No day is safe om news of you", 78; "The tval”: tlo, 74 7. Recado a0 tradutor/aprendiz 76 8, Vocabulério critico 79 9. Bibliografia comentada 81 Diciondrios 94 Obras sobre tradugio #2 Obras sobre teorias textuais @9 Outros. 86 ‘A Maria José Arrojo Este livro é parte de um projeto de pesquisa patrocinado pela Pontificia Universidade Catélica de Sao Paulo 1 Abre-se uma nova oficina Provavelmente 0 leitor nunca tenha ouvido falar numa oficina de traducao. Se consultar dicionérios, ou se perguntar a outros falantes de portugues, perceberd que oficina de traducdo nao existe como expresso ja cons- truida e consagrada pelo uso. ‘Teremos que entendé-la, portanto, metaforicamente «, para construir esse sentido figurado, partimos do subs- tantivo concreto oficina. Segundo dicionérios da lingua, oficina pode ter as seguintes acepgdes: “lugar onde se trabalha ou onde se exerce algum oficio”; “laboratério”; “casa ou local onde funciona 0 maquinismo de uma fé- brica”; “lugar onde se fazem consertos em veiculos auto- méveis”; e, em sentido figurado, “lugar onde se opera transformagdo notavel”. Ja que temos, por assim dizer, permissio de liberar nossa imaginagdo quando tentamos entender uma meté- fora, vamos relacionar os possiveis significados de oficina & nossa metaférica oficina de traducdo, delineando, a0 mesmo tempo, seus objetivos. Em primeiro lugar, pretende-se que esta oficina erie tum espago ao offcio e & pritica da traducdo, onde a teoria 8 teré um papel importante, na medida em que poder nos auxiliar a entender 0 que acontece quando traduzimos ¢ também a enfrentar 0 constante processo de tomada de decisdes envolvido em toda traducéo. A imagem da ofi- ia sobrepomos, entio, a imagem do laboratdrio, onde se poem em pratica € se testam as {6rmulas e os conceitos aprendidos da teoria. Além disso, como oficina pode ser “casa ou local onde funciona o maquinismo de uma fabrica; lugar onde ‘estdo 0s instrumentos de uma indiistria, arte ou profissio”, nossa oficina de tradugdo pretende mostrar também 0 outro lado do processo de traduzir, os instrumentos € os meca- rnismos dessa atividade que, coincidentemente, pode ser considerada uma “inddstria” (em seu sentido mais amplo), “arte” ou “profissio”. E, ja que analisaremos e comentaremos alguns textos ‘em inglés ou portugués e suas respectivas verses para uma dessas linguas, nossa oficina, um pouco pretensiosamente, também estard tentando “consertar” as traducSes e as so- lugdes que consideramos inadequadas. Por fim, mais 2 nivel do inconsciente, hé ainda o desejo, alids sempre presente em toda decisao de escrever e publicar um livro, de que esta oficina também possa ser “um lugar onde se opera transformacio notdvel”, mesmo {que essa transformacdo seja, em nosso caso, simplesmente tentar chamar atencao para um campo ainda tao pouco explorado e carente de estudos mais especializados. Oficina de tradugao ou translation workshop? Embora tenha tentado mostrar ao leitor que oficina de tradugdo pode ser um titulo sugestivo ¢ eficiente, na medida em que enfatiza a abordagem pritica que pretendo desenvolver aqui, devo confessar que esse titulo nao é exa- 9 tamente “original”, tendo, na verdade, surgido de uma tradugao. Enquanto buscava um titulo para o livro, lembrei-me de um curso que fiz na Universidade Johns Hopkins (Bal- timore, EUA), na primavera de 1981, chamado Transla- tion Workshop. Eramos um grupo de seis alunos © nos reuniamos semanalmente para discutir nossas préprias tra- dugées e tradugSes consagradas de textos famosos (a partit de varias linguas, mas sempre para o inglés), sob a orien taco do professor William Arrowsmith, poeta e tradutor de renome nos meios literdrios americanos e internacionais. Antes de iniciarmos 0 curso, jé sabfamos que seria um curso ‘mais pratico do que te6rico, devido ao seu proprio titulo. Segundo 0 American heritage dictionary of the English language (ver Bibliogratia comentada), workshop, além de “oficina’” (“an area, room or establishment in which ma- nual work is done”), também pode se referir a “a regularly scheduled seminar in some specialized field” que, numa tradugio nao muito satisfat6ria para o portugues, seria “um ‘curso regular sobre algum assunto especializado”, Um se- ‘minar, como um workshop, & um tipo de curso para o qual nao temos uma palavra especifica em portugues. De acor- do com 0 mesmo dicionério, um seminar & “a small group ‘of advanced students engaged in original research under the guidance of a professor” (um grupo pequeno de estu- antes universitérios adiantados, envolvidos em trabalho de pesquisa, sob a orientagao de um professor). Um semi- nar, como um workshop, sugere uma dinimica especial cem’sala de aula: os alunos assumem um papel essencial- mente ativo, pesquisando e realizando trabalhos, enquanto © professor passa a ser um orientador. ‘Assim, supondo que este livro fosse escrito € publi- cado nos Estados Unidos, seu titulo, Translation work- shop, envolveria um leque de significado diferentes dos que siigeri no inicio desta introducéo. Além disso, para~ doxalmente, Oficina de traducdo é um titulo mais original pete ie do que Translation workshop, porque seu sentido figurado € inesperado ¢ ainda nao consagrado pelo uso. Em inglés americano, workshop, no sentido de curso ou seminar, ji 1ndo impressiona mais como metéfora; é, por assim dizer, uma metéfora gasta, que perdeu sua forga figurativa. Seria, entao, minha tradugio mais original do que o proprio “original”? Seria a minha uma boa traducdo? Se- tia oficina de traduedo fiel a0 “original” translation work- shop? Que relagdes se estabelecem entre 0 “original” e 0 “traduzido”? Em sintese, essas sio também as questdes bisicas que envolvem a realizacao e a avaliagao de qualquer traducio, © 6 sobre elas que convidarci o leitor a refletir nas péginas que se seguem. Além disso, ao tentarmos refletir sobre 0s ‘mecanismos da tradugdo, estaremos lidando também com ‘questdes fundamentais sobre a natureza da propria lingua- gem, pois a tradugZo, uma das mais complexas de todas as atividades realizadas pelo homem, implica necessaria- mente uma definigio dos limites e do poder dessa capa- cidade tio “humana” que & a produgio de significados. final, nfo é por acaso que até hoje, em nosso mundo cada vez mais computadorizado, nao hé nem a mais remota possibilidade de que uma maquina venha substituir satis- fatoriamente o homem na realizagio de uma tradugao. 2 A questao do texto original Todo texto é tnico ¢ 6 ao mesmo tempo, a. tradugio. de outro” texto. enti texto € completamente or. ral porgue a prépria lingua, em Sta Esséncl, d-€ uma tradupho: em prt ‘metro lugar, do’ mundo mao-verbae, fm segundo, porque todo signo e toda frase € a taugio de outro signa ¢ de ui ate riety ete re ‘mento pode ser modifi sem per. or ame valde: ton exe sriginais porque toda wradugao€ di. YJerente. Toda tadugao até certo onto, uma erlao e, como tal, cons. tinal tir texto eo. (Octavio Paz) © significado/carga e o tradutor/transportador ‘Uma das imagens mais freqiientemente utilizadas pe- los tedricos para descrever 0 processo de traducio & a da transferéncia ou da substituigo. De acordo com J. C. 2 Catford, um dos teéricos mais conhecidos divulgados no Brasil, a tradugio € a ‘‘substituigo do material textual de uma lingua pelo material textual equivalente em outra lingua” *, Eugene Nida, outro teérico importante, expande ‘essa imagem através da comparacio das palavras de uma sentenca a uma fileira de vagbes de carga®. Segundo sua descrigao, a carga pode ser distribuida entre os diferentes vagdes de forma irregular. Assim, um vagio poder conter ‘muita carga, enquanto outro podera carregar muito pouca; em outras ocasides, uma carga muito grande tem que ser dividida entre vérios vagbes. De maneira semelhante, su- gere Nida, algumas palavras “carregam” varios conceitos © outras tém que se juntar para conter apenas um. Da mesma maneira que 0 que importa no transporte da carga no € quais vagies carregam quais cargas, nem a seqiién- cia em que os vagies estio dispostos, mas, sim que todos 05 volumes alcancem seu destino, o fundamental no pro- cesso de traducdo é que todos os componentes significati- vos do original alcancem a lingua-alvo, de tal forma que possam ser usados pelos receptores. Se pensamos 0 processo de traduedo como transporte de significados entre lingua 4 e lingua B, acreditamos ser © texto original um objeto estavel, “transportével”, de con- tornos absolutamente claros, cujo contedido podemos clas- sificar completa ¢ objetivamente. Afinal, se as palavras de ‘uma sentenga so como carga contida em vagies, & per- feitamente possivel determinarmos e controlarmos todo 0 seu contetido ¢ até garantirmos que seja transposto na {integra para outro conjunto de vagdes. Ao mesmo tempo, se compararmos o tradutor ao encarregado do transporte dessa carga, assumiremos que sua funcio, meramente me- cfnica, se restringe a garantir que a carga chegue intacta 1 Uma teoria lingstca da traducto, p. 22. V. Bibliografia comen- ada. SLanguage structure and translation, p. 190. V. Bibliografia co- mientads.. a a0 seu destino, Assim, 0 tradutor traduz, isto é, trans- porta a carga de significados, mas ndo deve interferir nela, dio deve “interpreti-la”. ssa visio tradicional, que obviamente pressupe uma determinada teoria de linguagem, se reflete também nas diretrizes em geral estabelecidas para o trabalho do tra- dutor. Nesse sentido, os trés principios bisicos que defi- nem a boa tradugio, sugeridos por um de seus tedricos pioneiros, Alexander Fraser Tytler, ainda sio exemplares: 1) @ tradugdo deve reproduzir om sua totalidade a idéia do texto original 2) 0 estilo da traducio deve ser 0 mesmo do original; € '3) a tradugdo deve ter toda @ fluéncia e a naturalidade do texto original. “Pierre Menard, autor del Quijote”, uma ligao de Borges sobre linguagem e tradugao Para que possamos discutir os problemas e as limi tages dessa imagem consagrada que vincula a tradugio transferéncia de significados de uma lingua para outra, vamos examinar um conto do escritor argentino Jorge Tunis Borges que tem um titulo instigante: “Pierre Menard, autor del Quijote” *, Embora seja um conto bastante com- plexo que, & primeira vista, pode desiludir os leitores me- nos acostumados a visitar 0s textos labirinticos de Borges, vale @ pena tentar penetrar sua trama aparentemente sim- piles, mas que oferece, em suas poucas paginas, um dos comentarios mais brithantes © mais completos que jé se ‘esereveu sobre os mecanismos da linguagem ¢ suas impli- 5 The principles of translation, publicado em 1791. Apud Basswerr- ‘McGuire, Susan. ‘Translation studies, p. 63. V. Bibliografia co- ‘mentada Sin: — Ficeiones, p. 47-59. V. Bibliografia comentada. Todas as citagdes serio traduzidas do original pela Autora 4 cages para uma teoria da tradugao ¢ para uma teoria da literatura ®, (© conto é apresentado como uma resenha péstuma das obras de Pierre Menard (personagem ficticio eriado por Borges), um homem de letras francés que viveu na primeira metade do século XX. O narrador é um critico literdrio que tenta apresentar 0 verdadeiro catilogo das ‘obras de Menard, de quem se diz amigo, com o objetivo de retificar um catélogo recém-publicado, que considera falso e incompleto, Segundo o narrador, é facil enumerar © que chama a obra “Yisivel” de Menard; e ele nos apre- senta dezenove obras (monografias, tradugées, andlises alguns poemas) publicadas e ndo-publicadas, que sugerem, como escreveu Borges no prilogo de Ficciones, 0 “dia- ‘grama da histéria mental” de Menard: sua ideologia, suas concepgbes tedricas, seus desejos e até suas contradicées. A obra “visivel” de Menard e o sonho de uma linguagem nao-arbitraria Vamos examinar algumas das obras “visiveis" de Me- nard para que possamos entender um pouco sua concep- ‘glo de Tinguagem. Se analisarmos mais detidamente seus rabalhos tedricos, veremos que tém muito em comum com as teorias tradicionais da tradugio. Menard concebe © texto como um objeto de contornos perfeitamente deter- minéveis, acreditando, portanto, que seja possivel, como sugerem os trés principios bisicos de Tytler, reproduzir totalmente, em outra lingua, as idéias, o estilo e a natura- lidade de um texto original. Comecemos nossa leitura 5 Para uma versio mais aprofundada da letura de “Pierre Menard, ‘autor del Quijore” proposta aqui, ver Awxoso, Rosemary. “Piette Menard, autor del Quijote": esbogo de tuma ‘poctica da tradugio Via Borges. Traduedo e Comunicapao — Revista Brasileira de Tra. dutores, n° 5.V_ Bibliogratia. comentada, as pelos seguintes “trabalhos” encontrados no arquivo parti- cular de Menard: Teel ©) uma monografia sobre “certas conexées ou afinidad do pensamento de Descartes, Lelbniz © de John Wilkin 4) uma monografia sobre a Ars megna generalls, de Ramon bull Dy fh) 08 rascunhos de uma monografia sobre a léglca simbé- lica de George Boole (p. 46). © que teriam em comum esses pensadores? No en- saio “EI idioma analitico de John Wilkins”, da coletanea Otras inquisiciones®, 0 proprio Borges sugere algumas co- nexdes entre 0 pensamento de René Descartes (1596- -1650), importante fil6sofo francés, € do religioso inglés John Wilkins (1614-1650). Ambos sonhavam com a pos- sibilidade de uma linguagem universal, que nao fosse arbi- Iria © que, portanio, nao dependesse dos caprichos da interpretacdo; cada palavra teria um significado fixo ¢ inico, independentemente de qualquer contexto. Segundo Borges, no idioma universal idealizado por Wilkins, “cada palavra define a si mesma” (p. 222), constituindo um signo evidente ¢ definitivo, imediatamente decifrivel por ‘qualquer pessoa. ‘Tal idioma, imaginava Wilkins, deveria ser capaz de “organizar e abarcar todos os pensamentos humanos” (p. 222). Borges descreve esse projeto ambi- cioso: [Wikins} dividiu 0 universo em quarenta categorias ou gé- eros, subdivisivels, por sua vez, em espécies. Atribuiu a ‘cada género um monossilabo de duas letras; a cada dife renga, uma consoante; a cada espécie, uma vogal. Por ‘exemplo, de quer dizer elemento; deb, 0 primelro dos ele: SP. 221-5. V, Bibliografia comentada, Todas as ctagGes serio tra: dduzidas do original pela Autora, 16 ‘mentos, 0 fogo; deba, uma porcdo do elemento do fogo, ‘uma chama (p. 222). E examina mais detidamente a oitava categoria, a das pedra: Wilkins as divide em comuns (rocha viva, cascalho, ardé- sia), razodveis (mérmoro, ambar, coral}: preciosas (pérola, pala); transparentes (ametista, safira) ¢ insolivels (carvlo, argila e arsénico). Quase tdo alarmante quanto a oitava 6 nona categoria. Esta nos revela que as metals podem ser Imperfeitas (cinabre, merciro); artficais (bronze, latéo), recrementicios (limalha, ferrugem) © naturals (ouro, esta ‘iho, cobre) (p. 223). De acordo com Borges, ainda no mesmo ensaio, Des- cartes, antes de Wilkins, j4 havia sonhado usar o sistema decimal de numerago para criar uma linguagem univer- sal, absolutamente racional, livre de ambigiiidades. Supu- nha Descartes que, através da utilizagio de algarismos, poderiamos “aprender num sé dia a nomear todas as quan- tidades até 0 infinito ¢ a escrevé-las num idioma novo” (p. 222) O fil6sofo alemio Gottfried Wilhelm Leibniz (1646- -1716), precursor do projeto da Idgica simbélica, cujo objetivo tiltimo € a criagdo de uma linguagem nio-a tréria, também tentou construir uma linguagem universal, que intitulow Ars combinatoria, com base no modelo de John Wilkins © na Ars magna do filésofo € missiondrio espanhol Ramén Lull (1236-1315) De todos esses projetos, a obra de Lull é talvez a mais extravagante, Tratava-se de uma armagao de discos com os quais propunha relacionar exaustivamente todas as possiveis relagdes de um t6pico. A armacdo era cons- Berkeley, University cof California Press, 1918." p. 4 7 titufda de trés circulos concéntricos divididos em compar- timentos. Um circulo era dividido em nove predicados re- levantes; 0 terceiro circulo era dividido em nove pergun- tas: “O qué? Por qué? De que tamanho? De que espé- ie? Quando? Onde? Como? De que lugar? Qual?”. Um dos efrculos era fixo; 0s outros giravam, fornecendo uma série completa de perguntas, e de afirmagées relacionadas a elas’, Finalmente, 0 matemético e I6gico inglés George Boole (1815-1864) é considerado 0 segundo fundador da légica simbélica, intuida por Lull e Wilkins, ¢ formal da, pela primeira vez, por Leibniz Por trés de todos esses projetos ambiciosos, podemos identificar um desejo de se chegar a uma verdade tinica absoluta, expressa através de uma linguagem que pudes- se neutralizar completamente as ambigiiidades, os duplos sentidos, as variagdes de interpretacdo, as mudancas de sentido trazidas pelo tempo ou pelo contexto. Esse desejo, compartilhado por Descartes, Leibniz, Lull e Boole, ¢ que nos fornece um esboco da teoria da linguagem ¢ da teoria da tradugao professadas por Menard, se revela também na teoria literdria implicita em seus trabalhos criticos. Para Menard, o literdrio 6 uma categoria perfeita- mente distinguivel do nao-literario. Tanto 0 poético como © ndo-poético sao caracteristicas textuais intrinsecas ¢ es- téveis, que podem ser objetivamente determinadas. O item b do catélogo de suas obras & por exemplo, ‘uma monografia sobre a possibilidade de construir um voca- bulério postico de conceitos que nao fossem sindnimos ou perifrases dos que informam a linguagem comum, "mas ob: jetos ideais criados por uma convencio @ essencialmente destinados as necessidades posticas* (p. 48) CE. REESE, W. L. Dictionary of philosophy and religion; eastern and western thought. New Jersey, Humanity Press, 1980. Cf. Lewis, E, I, op. city pe 4 O item i € “um exame das leis métricas essenciais da prosa francesa, ilustrado com exemplos de Saint-Simon” (p. 49). O item n é “uma obstinada anilise dos ‘costumes sintéticos de Toulet’”, e o item s “uma lista manuscrita de versos que devem sua eficacia & pontuagio” (p. 50). Para Menard, a critica 6 o catalogar de caracteristicas for- mais evidentes © nao deve “elogiar” ou “censurar”. Como nos informa o narrador, Menard “declarava que censurar e elogiar so operagdes sentimentais que nada tém a ver com a critica” (p. 47). Menard, discipulo de Descartes, Leibniz, Ramén Lull e John s, considera que a cri tica, como a tiadugdo ou a leitura, nao deve “interpretar” ou ir além do texto original e, sim, delimitar seus contor- nos objetivos © imutiv Contudo, a propria bibliografia de Menard sugere a impossibilidade desse desejo. Como poeta c tradutor, ele constantemente produz verses diferentes do ““mesmo” texto. O item que encabeca o catélogo de seus trabalhos € “um soneto simbolista que apareceu duas vezes (com vatiagdes) na revista La Congue (nimeros de marco € outubro de 1899)”. © item g & uma traducdo, “com pré- logos € notas do Libro de la invencién liberal y arte del juego de ajedrex, de Ruy Lépez de Segura”. O item k & outra tradugdo, “uma traducio manuserita” (e, portanto, no uma versio “definitiva") da “Aguja de navegar cule tos”, de Quevedo, intitulada “La boussole des précieux”. item o é “uma transposicao em alexandrinos do ‘Cime- titre Marin’, de Paul Valéry”. Curiosamente, ha também uma “versdo literal da versio literal” que fez Quevedo da Introduction @ 1a vie dévote de San Francisco de Sales (p. 48-50). Porém, entre todos os projetos menardianos, 0 que mais clara ¢ espetacularmente ilustra a impossibilidade de se chegar a uma linguagem nao-arbitréria, que pudesse controlar 0s contesidos ¢ os limites de um texto, é a reali- zagio de sua obra “invisivel”, que examinamos a seguir. A obra “invisivel” e a missao impossivel de Menard Segundo o narrador, a obra que realmente define 0 talento de Menard é seu trabalho “invisivel”, sua obra ‘mais significativa — “a subterrinea, a interminavelmente herdica, a impar”, ou seja, a reprodugao dos capitulos IX XXXVIII da Primeira parte do Dom Quixote, de Mi- guel de Cervantes, e parte do capitulo XXII. Por que seria “invisivel” essa obra de Menard? Em primeiro lugar, em oposi¢do a sua obra “visivel”, seu trabalho “invisivel” pa- rece nunca ter sido publicado, Em segundo lugar, talvez seja “invisivel” porque, mais do que uma obra “real”, trata-se de um desejo, de um sonho que néo péde ser rea- lizado. Além disso, invisivel pode sugerir também que 0 que Menard chama de a “reescritura” ou a “reproducao” do Quixote fosse, na verdade, uma “leitura”, forma “invi- sivel” de se reescrever ou traduzir Conforme nos explica narrador, 0 inusitado obje- tivo de Menard nao era simplesmente reproduzir 0 Qui- ote, mas repetir na integra 0 texto escrito por Cervantes. Pierre Menard busca a totalidade: interpretacZo total, con- trole total sobre o texto, “total identificagao com um autor determinado” (p. 51). Tal atitude rejeita, obviamente, uma interpretagao contemporanea do Quixote e, a0 negar~ -se a simplesmente “interpretar” ou “traduzir” 0 Quixote, Menard pretende recuperar ndo apenas a totalidade do texto de Cervantes, mas também o contexto em que fora escrito: “Nao queria outro Quixote — o que seria facil — mas 0 Quixote” (p. 52). © projeto “invisivel” de Menard reflete, portanto, ‘uma teoria da tradugdo (e uma teoria da leitura) seme- Ihante & de Catford ou Nida, j4 que parte de uma teoria da linguagem que auorza a postibldade de determinar © nificado de uma palavra, ou mesmo de um tats, fore conn erm que ¢ lida’ ow ouvida. A primeira estratégia que Menard pensa em empre- gar para alcancar seu objetivo é, literalmente, transfor- mar-se em Cervantes, isto é: conhecer bem 0 espanhol, recuperar @ f8 catélice, quer: rear contra os mouros ou contra os turcos, esquecer @ his téria da Europa entre os anos de 1602 e de 1918, ser Mi uel de Cervantes (p. 523). Abandona, entretanto, tal método, por ser pouco es- timulante. Afinal, como nos explica o narrador, “ser, de alguma maneira, Cervantes ¢ chegar 20 Quixote pareceu- Ihe menos arduo — por conseguinte, menos interessante — que continuar sendo Pierre Menard e chegar a0 Qui- xote através das experiéncias de Pierre Menard” (p. 52). Menard impoe-se, assim, 0 “misterioso dever de recons- truir literalmente a obra espontanea de Cervantes” (p. 52). Esse “misterioso dever” pode ser interpretado como uma alegoria do que tradicionalmente se pretende atingir fem toda tradugo: Menard se impoe a tarefa de repetir um texto estrangeiro, escrito em outra lingua, por um outro autor e num outro momento, sem deixar de ser ele pr6- prio, isto é, sem poder anular seu contexto e suas circuns- tancias. Menard parece, inclusive, uma caricatura exage- rada do tradutor imaginado por Tytler, refletido nos trés principios bisicos comentados no inicio deste capitulo: 1) a tradugio deve reproduzir em sua totalidade a idéia do texto original; 2) a tradugao deve ter o mesmo estilo do original; e, 3) a tradugio deve ser fluente ¢ natural como © original. Embora reconhega que seu projeto é ainda mais “im- possivel” do que “tornar-se” Cervantes, 0 proprio Menard, como um supertradutor, consegue (aparentemente) ven- cer essa impossibilidade e produz alguns fragmentos ver~ balmente idénticos ao Dom Quixote de Miguel de Cer- vantes. Entretanto, a0 tentar identificar-se totalmente com a Cervantes © proteger a intencdo ou 0 significado “origi- nais” do texto, Menard inadvertidamente ilustra a invia- bilidade de seu projeto. © narrador nos apresenta um fragmento do Dom Quixote reescrito por Pierre Menard © 0 compara a0 fragmento eq alente do Dom Quixote de Cervantes: uma revolagio cotejar 0 Dom Quixote de Menard com 0 de Cervantes. Este, por exemplo, esereveu (Dom Quixote, primeira parte, capitulo nono): “L.] a verdade, cuja mie 6 a histéria, émulo do ‘tempo, depésito das agdes, testemunha do pasado, exem- plo e aviso do presente, adverténcia do porvir". Redigida no século dezessete, redigida pelo “engenho leigo" Cer- vantes, essa enumeragdo 6 um mero elogio retérico da his- ‘ria. Menard, por outro lado, escreve: “Co.J a verdade, cuja mae 6 & historia, émulo do tempo, depésito das a¢ves, testemunha do passado, exem- plo e aviso do presente, adverténcia do porvir". A historia, “mae da verdade; a idéia é assombrosa. Menard, con- ‘temporaneo de William James, no define a histéria como ‘uma indegacéo da reslidade, mas como sua origem. A ver- dade historica, para ele, no é 0 que aconteceu; @ 0 que julgamos que tenha acontecido. As sentengas finals — “exemplo e aviso do presente, adverténcia do porvir” — io descaradamente pragméticas. Também 6 vivido © con traste entre os estilos. 0 estilo arcalzante de Menard — no fundo estrangeiro — padece de alguma afetagdo. O ‘mesmo no acontece com 0 do precursor, que maneja com naturalidade 0 espanhol corrento de sua épaca (p. 57). Menard tenta recuperar 0 significado “original” de Cervantes, mas somente consegue reproduzir suas pala- vras. O que Menard Ié ¢ reproduz como sendo o verda- deiro Quixote (e, portanto, de acordo com Menard, imu- tavel € evidente) é interpretado pelo narrador/eritico como algo diferente, Paradoxalmente, ao “‘repetie” a to- talidade do texto de Cervantes, Menard ilustra a impossi- 2 bilidade: da repeti¢ao total, exatamente porque as pala- vras do texto de Cervantes nao conseguem delimitar ou pettificar seu significado “original”, independentemente de ‘um contexto, out de uma interpretacdo. Essas mesmas pa- lavras assumem um determinado valor quando o natra- dor/critico as relaciona ao contexto de Cervantes, ¢ um valor diferente quando relacionadas 20 contexto de Pierre Menard. Assim, ainda que um tradutor conseguisse che- gar a uma repeticdo total de um determinado texto, sua tradugdo no recuperaria nunca a totalidade do “original”; revelaria, inevitavelmente, uma leitura, uma interpretacao esse texto que, por sua vez, seré, sempre, apenas lido interpretado, € nunca totalmente decifrado ou controlado. ‘Além disso, quando Menard se transforma em “au- tor” do Quixote, seus leitores também interpretam seu texto sob diferentes pontos de vista © no conseguem recuperar suas intencOes originais. Além da interpretacao do narra~ dor/eritico, que j& mencionamos acima, hé, por exemplo, a de Madame Bachelier, que vé no Quixote de Menard “uma admiravel e tipica subordinacao do autor a psico- logia do heréi”. Outros leitores, “nada perspicazes”, se~ gundo 0 narrador, consideram a obra “invisivel” de Me~ nard uma mera “transcrigao” do Quixote. Outros, ainda, como a Baronesa de Bacourt, reconhecem na mesma obra a influencia de Nietzsche (p. 56) © texto original redefinido Até aqui, nossa répida incursio pelo conto de Borges tentou questionar a visio tradicional de texto, sugerida pelas teorias da traducdo esbocadas no inicio deste capi- tulo. Como sugere nossa leitura de “Pierre Menard, autor del Quijote”, traduzir no pode ser meramente 0 trans- porte, ou a transferéncia, de significados estaveis de uma lingua para outra, porque 0 proprio significado de uma palavra, ou de um texto, na lingua de partida, somente poderd ser determinado, provisoriamente, através de uma Ieitura. Assim, se voltarmos s nossas questdes iniciais, referentes ao proprio titulo deste livro, parece ficar mai claro que, a0 traduzirmos translation workshop por “ofi cina de tradugio”, o que acontece nao é uma transferéncia total de significado, porque 0 préprio significado do “ori ginal” nao 6 fixo ou estivel e depende do contexto em que ocorre. Assim, antes de traduzir translation workshop por “oficina de tradugdo”, estabeleceu-se 0 contexto em que havia originalmente ocorrido: titulo de um curso espe~ cial e avancado, oferecido por uma universidade ameri cana, Ao mesmo tempo, a tradugdo que sugeri, “oficina de traducio”, como 0 Quixote de Menard em relagao a0 Quixote de Cervantes, passa a existir num outro contexto e ganha vida prépria, a partir do momento em que se transforma no titulo de um livro publicado no Brasil. O texto, como o signo, deixa de ser a representacao “fiel” de um objeto estavel que possa existir fora do labi- rinto infinito da linguagem ¢ passa a ser uma méquina de significados em potencial. A imagem exemplar do texto “original” deixa de ser, portanto, a de uma seqligncia de ‘vagies que contém uma carga determindvel e totalmente resgatével. Ao invés de considerarmos o texto, ou o signo, ‘como um receptéculo em que algum “contetido” posse ser depositado ¢ mantido sob controle, proponho que sua ima- gem exemplar passe a ser a de um palimpsesto. Segundo 08 dicionérios, 0 substantivo masculino palimpsesto, do sgrego palimpsestos (“raspado novamente”), refere-se a0 “antigo material de escrita, principalmente o pergaminho, uusado, em razo de sua escassez ou alto prego, duas 0 ‘rés vezes [...] mediante raspagem do texto anterior” Metaforicamente, em nossa “oficina”, 0 “palimpsesto” passa a ser o texto que se apaga, em cada comunidade cul- tural e em cada época, para dar lugar a outra escritura m (ou interpretagdo, ou leitura, ou tradugio) do “mesmo” texto. Assim, como nos ilustrou 0 conto de Borges, 0 texto de Dom Quixote nao pode ser um conjunto de sig- nificados estveis e iméveis, para sempre “depositados” nas palavras de Miguel de Cervantes. O que temos, 0 que € possivel ter, sio suas muitas Ieituras, suas muitas interpretagGes — seus muitos “palimpsestos”. ‘A tradueo, como a leitura, deixa de ser, portanto, uma atividade que protege os significados “originais” de uum autor, e assume sua condi¢io de produtora de signi- fieados; mesmo porque protegé-los seria impossivel, como tao bem (¢ tao contrariadamente) nos demonstrou 0 bor- sgiano Pierre Menard. 3 A questio do texto literario Nenhum problema tdo consubstancial ‘com as leiras e seu modesto mistério como 0 que propde uma traduedo. Um esquecimento estimulado pela vai- dade, 0 temor de confessar processos ‘mentais que adivinhamos perigosa- ‘mente comuns, a tentativa de manter intacta e central wma reserva. incal- culdvel de sombra velam as tais escri- turas diretas. A traducao, por outro lado, parece destinada a ilustrar a Aicensei ett (Jorge Luis Borges) © preconceito da inferioridade ou da impossibilidade O ponto nevrélgico de toda teoria de traducao parece ser a tradugio dos textos que chamamos de “literdrios”, questo geralmente adiada ou exclufda tanto dos estudos sobre tradugio quanto dos estudos literérios. ‘A grande maiotia dos escritores € poetas que abor- dam a questio da traducdo de textos literérios considera 6 que traduzir & destruir, ¢ descaracterizar, é trivializar Para muitos, a traducdo de poesia é teérica praticamente impossivel. Para outros, a eventual traduzibilidade do texto poético é vista como sinal de inferioridade. Para 0 poeta americano Robert Frost (1874-1963), por exemplo, a verdadeira poesia & intraduzivel, definindo-se precisa- mente como aquilo que “‘se perde” em qualquer tentativa de traducdo', Segundo o francés Paul Valéry (1871- -1945), “contemporaneo” e “companheiro” de Pierre Me~ nard, a qualidade do texto poético é inversamente pro- porcional & sua traduzibilidade: quanto mais resistente for © texto “aparentemente” poético a0 ataque de qualquer transformagio formal, menor seré o seu grau de poesia ®. George Steiner, em After Babel: aspects of langua- ‘ge and translation (V. Bibliografia comentada), cita varias opinides semelhantes, também de escritores e poetas céle- bres, insatisfeitos com os “‘estragos” causados pela tra- ducdo, Entre outros, Steiner cita 0 poeta alemao Heinrich Heine (1797-1856), para quem as versoes francesas de seus poemas eram “Iuar recheado de palha” (p. 240). O russo- -americano Vladimir Nabokov (1899-197), um dos mai res escritores deste século ¢ que, entre suas inimeras obras, incluiu tradugdes, expressa sua visio no poems “On trans- lating “Eugene Onegin’ ": What is translation? On a platter ‘A poet's pale and glaring head, AA parrot’s speach, a monkey's chatter, ‘And profanation of the dead (p. 240) CSobre a Tradugdo de ‘Eugene Onegin’ * 0 que 6 traducio? Numa bandeja, "Citado pelo poeta € tradutor inglés Donald Davie numa conte Féncia apresentada para os alunos. do Programa de Mestrado em ‘Teoria e Pritica da Tradugio Literéria, Universidade de Essex, Colchester, Inglaterra, no. ano letivo de 1967-1968; texto mimeo” grafado, Fem, ‘A cabeca pilida @ fulgurante de um poeta, A fala de um popagsio, a tagarelice de um macaco, E @ profanacao dos mortos.) Marin Sorescu, poeta romeno contemporineo, tam- bém expressa sua critica através de um poema, intitulado “Tradugio”, que traduzo a partir da versao inglesa: Estava fazendo exame De uma lingua morta E tinha que me traduzir De homem para macaco. Fiquel na minha, Transformando uma floresta Em toxto Mas a tradueéo ficou mais dificil ‘Quando fui chegando perto de mim. Porém, com um certo esforgo, Encontrei equivalentes satisfatérios Para as unhas e os pélos dos pés. ferto dos joolhos Comece! a gaguejar. frto do coragao minha mao comegou a tremer E inundou 0 papel de luz. Mosmo assim, tentei improviser Com os pélos do peito, Mas falhei completamente Na alma. Segundo esses poetas e escritores, a traducéo é uma atividade essencialmente inferior, porque falha em captu- rar a “alma” ou o “espitito” do texto literério ou poétic Essa visio reflete, portanto, a concepgao de que, especi mente no texto literério ou poético, a delicada conjungao 2 centre forma e conterido no pode ser tocada sem prejuizo vital, 0 que condenaria qualquer possibilidade de tradugio bem-sucedida. Uma teoria literaria menardiana Novamente, estamos diante de uma concepgio “me- nardiana” da literatura, reflexo da teoria lingiifstica e da teoria da tradugio que comentamos no capitulo anterior. Como vimos, Pierre Menard somente consideraria legitima uma tradugao que, literalmente, nao alterasse em nada o texto “original”, uma traducao que, em pleno século XX, pudesse resgatar 0 verdadeiro Quixote escrito por Miguel de Cervantes no inicio do século XVII. Para o poeta, tradutor e “romancista invisivel” Pierre Menard, como para 0s poetas e escritores citados acima, o literdrio e 0 poético sao caracteristicas textuais intrinsecas e esta que permitem, inclusive, uma distingdo clara e objetiva centre textos literdrios € textos ndo-literdrios. Portanto, qualquer mudanca (tanto a nivel formal, quanto a nivel de contesido) que pudesse ocorrer num texto “literério” implicaria uma alteragdo de suas caracteristicas €, conse- iientemente, a eventual perda daquilo que o tora “lite- ‘Ao mesmo tempo, podemos observar que a teoria de tradugo implicita nos comentirios desses poetas e escri- tores é essencialmente a mesma do teérico Eugene Nida, cuja comparagao do processo de tradugdo a uma transfe- réncia de carga de um grupo de vagies para outro exami- amos no inicio do capitulo anterior. Nida redime a tra- dugdo de textos ndo-literérios exatamente porque, nesse aso, @ conjuncio contetido/forma nao é considerada fun- damental, no importando, como vimos, em quais vagées se encontram as diversas partes da carga transportada, nem a seqiéncia em que os vagdes se organizam, mas, sim, que todos os contetidos alcancem o seu destino. Essa “transferéncia” nao pode, portanto, ser aceita pelos defensores da intraduzibilidade do literdrio e do poé- tico porque consideram que é precisamente essa intocabi- lidade da conjungao forma/contetdo que constitui a pe- culiaridade do texto “artistico”. A literariedade & assim, considerada como algo que alguns textos privilegiados “contém”, como uma “alma” ou um “espirito”. Conforme ‘escreveu 6 poeta italiano Giacomo Leopardi (1798-1837): ‘As idéias estio contidas e praticamente engastadas nas ppalavras como pedras preciosas num ancl. Elas se incor. poram as palavras como a alma ao corpo, de tal modo que Cconstituem um todo. As Idéias so, portanto, insepardveis, ddas palavras:e, se se separarem delas, no sero mais as ‘mesmas. Escapam a0 nosso intelecto © @0 nosso poder de ‘compreensio; tornam-se irreconhecivels, exatamente 0 que aconteceria & nossa alma se se separasse de nosso corpo. Tanto a imagem de Leopardi, que sintetiza as con- cepgdes de Nabokov, Frost, Valéry e Sorescu (além de Menard), quanto a de Nida, apresentam o texto (literd- rio ow no) como um recepticulo de idéias e/ou carac- teristicas distinguiveis e objetivamente determindveis. No capitulo anterior, através do conto de Borges, tentamos questionar essa concepgio de texto e, imagem do texto/ /vagiio de carga sobrepusemos a imagem do texto/palimp- sesto. Tentaremos, agora, examinar as implicagdes desse texto/palimpsesto para uma definigao da prépria literatura, pois a discussio sobre a traducdo ou a traduzibilidade dos textos que chamamos de literérios ou poéticos depende de uma discussio anterior sobre o status do texto “original”, isto & sobre aquilo que nos leva a considerar um deter minado texto “poético” ou “literério” SApud SteINER, G. After Babel..., nota 1, p. 242. 30 Repensando o literério Se tentéssemos rastrear, através da histria da cultura ocidental, as diversas respostas dadas & pergunta aparente- mente simples: “O que é literatura?”, provavelmente che- gariamos a respostas to diferentes quanto as épocas que as produziram. Basta lembrar, por exemplo, que enquanto Plato bania a poesia de sua Repiiblica por ser “perigosa”, Aristételes a celebrava, principalmente sob a forma de tra~ ia, por seu efeito benéfico de catarse. Mas, nem pre- jsariamos consultar nossos mestres gregos. Se fizéssemos ‘a mesma pergunta a te6ricos contempordneos, também ob- teriamos respostas divergentes. Na verdade, seria surpreen- dente se obtivéssemos respostas muito semelhantes, uma vvez que nossa tradigdo cultural tem chamado de “poemas” textos td0 dispares quanto Os Lusiadas, de Cam@es, “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade, ou Para- dise Lost, de John Milton, e “In a Station of the Metro”, de Ezra Pound. De um lado, temos textos monumentais como os de Camées e Milton e, de outro, textos que um leitor avesso is sutilezas do poético consideraria prosaicos, como 0 poema citado de Pound, constituido de apenas dois versos: ‘The apparition of these faces In the crowd; Petals on a wet, black bough (A apericdo desses faces na multida Pétalas num ramo negro, dimido.) © que teriam em comum esses textos tio diferentes? O que nos permite classificé-los com o mesmo rétulo de “poema”? Certamente, 0 que nos permite chamar tanto Os Lusiadas quanto “Quadrilha” de “poemas” nao sio suas caracteristicas textuais intrinsecas, nem sua temética, ‘nem mesmo-as eventuais “intencOes” de seus autores tio distintas entre si, mas sim, nossa atitude perante os mes- a mos. O postico é, na verdade, uma estratégia de leitura, uma maneira de ler endo, como queria Pierre Menard, um conjunto de propriedades estiveis que objetivamente “encontramos” em certos textos. Assim, ha textos que, devido a circunstincias exteriores e nfo ’s suas caracte- risticas inerentes, nossa tradi¢ao cultural decide ler de forma literdria ou poétic A literatura seria, portanto, uma categoria convencio- nal eriada por uma decisio comunitéria. Como sugere 0 teérico americano Stanley Fish, 0 que seré, em qualquer €poca, reconhecido como literatura é resultado de uma de- cislio, consciente ou no, da comunidade cultural sobre 0 que serd considerado “literério” *. Podemos imaginar, por exemplo, que 0 contexto hist6rico e cultural que produziu € celebrou um poema como Os Lusiadas certamente nio produziria nem reconheceria como “poema” um texto como “Quadriha”. Hoje, entretanto, nossa comunidade cultu- ral, que Stanley Fish chama de “comunidade interpreta- tiva", permite incluir tanto Camées quanto Drummond ‘entre 05 maiores poetas da lingua portuguesa. De ma- neira semelhante, podemos entender também por que al- {guns poetas so tao celebrados durante um certo periodo © completamente esquecidos em outro, ou, ainda, porque as vores “redescobrimos” ou “revisitamos” un pocta “int justigado” no passado. Quando ameixas nado s4o simplesmente ameixas Tomemos um exemplo pritico que possa nos ajudar a ilustrar esas conclusdes sobre 0 literétio ou 0 poético Sp there a text In this class?; the authority of interpretive commu- 8, P. 1-17, V, Bibliografia comentada, 32 a examinar suas implicagées para 0 processo de tra- dug ‘Suponhamos que o seguinte fragmento seja 0 con- teiido de um bilhete deixado por um héspede norte-ame- rieano sobre a mesa da cozinha de seu anfitrido brasileiro, que no domina muito bem o inglés This Is just to say | have eaten the plums that were in the Icebox and which you were probably saving for breakfast. Forgive me, they were delicious: so sweet and so cold Como tradutores de um simples bilhete de caréter pessoal, cujo contexto ¢ funeio acabam de ser estabelecidos, sabe- ‘mos que nosso objetivo & reproduzir a informagio e 0 pedido de desculpas do “original Este bilhete 6 56 para lhe dizer que comi as ameixas que estavam na geladeira e que provavelmente voce estava guardando para o café da manhd. Desculpe-me, elas esta vam doliciosas, tio doces e geladas. Teriamos, entretanto, outras leituras, outras tradugées ¢, portanto, pelo menos um outro “texto” ao constatarmos que o fragmento acima é, na verdade, um poema do ame- ano William Carlos Williams (1883-1963): This is just to say have the plums. that were In the icebox. 50 culo « os argumenogaprknads ag fram inne disevotvsdos em ‘Annoso, Rosemary.-A tsduglo como reeset {trae texto/palimpeesto t umm novo concelio de Tideidade Tre bah cm Lingutsten plicads, Compinas, Universidade Fstadval de-Campinas,tnstato 0e Estudos de Linguagem, dez. 1985, n° 5 ee pis. ‘and which you were probably saving for breakfast Forgive me they were delicious 80 sweet and s0 cold® ‘Ao sermos apresentados a0 “mesmo” fragmento, agora rotulado de poema, 0 que antes era prosaico passa ‘a set poético, Como leitores do poema, membros de uma comunidade cultural para a qual tal texto se enquadra dentro das convencdes literdrias estabelecidas, aceitamos 0 desafio implicito de interpreté-lo poeticamente e passamos a procurar um sentido coerente para ele. Passamos a pen- sar, por exemplo, nas possiveis implicacdes da oposicao entre 0 ato de comer as ameixas e as relagdes sociais que esse ato viola. Oposicdo essa que nao se resolve pacifica- ‘mente: a0 mesmo tempo em que o poema, pela sua propria razio de ser, reconhece a prioridade das regras, através do pedido de perdao, afirma também que a experiéncia sensual imediata € importante (principalmente pelas suas cltimas palavras “so sweet and so cold”) e que as relagdes pes- soais (a relagio sugerida entre 0 J e 0 you) devem ante- ipar_um espago para tal experiéncia ?. Enquanto que a traducio do texto/bilhete no nos trouxe maiores dificuldades, a traducio do texto/poema nos obrigaria a tomar vérias decisbes nada féceis. Um leitor/tradutor que concordasse, em linhas gerais, com a interpretagdo esbocada acima, teria que resolver, por exem- © Em Braouey, S. et ail, ed. The American tradition in literature, 4 ed. New York, Grosiet & Dunlap, 1974, p. 16189, ‘Essa leitura foi esbogada pelo critico americano Jonathan Culler, fem “Seucturalist poetics. New York, Cornell University Press, 1975. p. 1756. plo, 0 problema da traducdo de plums. Se aceitamos que, no poema “original”, as frutas representam um estimulo & sensibilidade que transgride as regras sociais, é importante que as associagies desenvolvidas a partir de plums en- contrem equivalentes no texto traduzido. J4 que passam a representar 0 sensual, ou aquilo que excita os sentidos, 6 importante que essas frutas, cobicadas e consumidas pelo eu do poema e especialmente reservadas pelo vocé para 0 café da manhé, sejam frutas vermelhas ¢ redondas (talvez como a fruta proibida e desejada do Jardim do Eden), de pele lisa e macia, carnudas, suculentas ¢ doces. Tam- bbém passa a ser significative 0 fato de que essas associa- es encontrem eco num outro sentido possivel de plum, que em inglés coloquial pode significar “algo considerado bom e desejével, como por exemplo, um emprego bem re- munerado”, acepcio derivada de outras mais antigas. O Oxford English dictionary (edicao compacta) lista algu- mas que podem nos interessar: “uma coisa boa, um pitéu; uma das melhores partes de um artigo ou livro; uma das recompensas da vida; também 0 melhor de uma colecéo de objetos ou animais”. Ao traduzirmos plums por ameixas, entretanto, 0 le que de associagdes pode se modificar radicalmente. Em primeiro lugar, ameixas nao sin necessariamente plums. Quando falamos em ameixas, hoje, na comunidade cultu- ral em que vivemos, pensamos em ameixas pretas (prunes, em inglés), frutas secas e enrugadas, que dificilmente se- iam associadas ao sensual e que, por uma irdnica coinci- déncia, podem fazer parte de um nada “poético” café da manha, como remédio para distirbios intestinais. Pensa- ‘mos também em nésperas, as ameixas amarelo-alaranjadas, de pele lisa e aveludada que, embora pudessem deflagrar algumas das associagdes que construimos a partir das ameixas vermelhas, nfo sfo as mesmas frutas de que nos fala 0 poeta norte-americano. as Nesse ponto, tocamos em uma questio importante, lids uma das primeiras a ser abordada em qualquer discussio sobre traduedo e, em especial, sobre a tradugio de textos literdrios: a que deve ser fiel nossa tradugao de plums nesse poema? Deve a traducio ser fiel a0 con- texto em que (supomos que) o poema tenha sido escrito, isto é deve a tradugdo levar em conta que 0 poema pro- vavelmente tenha sido escrito na pacata Rutherford, New Jersey, em meados da década de 30? Podemos imaginar que, nos anos 30, numa cidadezinha do nordeste ameri cano, consumir ameixas vermelhas no café da manha nao era necessariamente um hdbito consagrado da populagao em geral, 0 que nos levaria a concluir que as plums do poema de Williams realmente sugerem algo que foge 20 habitual. Mas, quando pensamos em “ameixas verme- Ihas” em nosso contexto cultural, a sugestio no & sim- plesmente de algo que foge ao habitual, mas, sim, de algo muito raro e inacessivel. E isso, considerando que nosso contexto cultural € 0 de um grande centro urbano e de- senvolvido da regiéo Sul do Brasil. Essa sugestiio de raridade e inacessibilidade, que mo- dificaria sensivelmente 0 status da sensualidade no poema traduzido, se intensificaria, por exemplo, se esse poema atingisse um piiblico leitor em ontras regities brasileiras, ‘ou mesmo em outros paises de lingua portuguesa. Assim, ‘mesmo se fosse possivel, uma traducao “literal” do poema estaria estimulando associagies e relagbes diferentes da- quelas que podemos desenvolver a partir do “original”. Por outro lado, uma tradugao “nao-literal” do poema, isto é uma tradugdo que pretendesse recriar e adaptar suas imagens mais importantes, pa que o texto traduzido fosse fiel &s associagdes que construimos a partir do “or: ginal”, uma tradugdo que escolhesse “péssegos” ou “sa- otis”, ou quaisquer outras frutas, como equivalentes do original plums, ndo seria fiel ao poema, enquanto repre-

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