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i z hreoy, Koss mary. Trradlu cfm , us Come hy ope 2 Pica. So Rule, Turgo, 1993. 1. A QUE SAO FIEIS TRADUTORES E CRITICOS DE TRADUGAO? Paulo Vizioli ¢ Nelson Ascher Discutem John Donne’ If the translator neither restitutes nor copies an original, it is because the original lives on and transforms itself. ‘The translation will truly be a moment in the growth of the original, which will complete itself in enlarging itself. [...] And if the original calls for a complement, it is becau. se at the origin it was not there without fault, full, com- plete, total, identical to itself. From the origin of the the original to be translated there is fall and exile. Jacques Derrida “Des Tours de Babel” 1. PRELIMINARES Em 29 de abril de 1985, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma resenha assinada por Nelson Ascher sobre John Donne: O Poeta do Amor e da Morte, antologia bilingtie organizada ¢ traduzi- da por Paulo Em 5 de maio do mesmo ano, a Fotha publi- cou a réplica de Vizioli c, no domingo seguinte, a tréplica do exftico Ascher. As questécs centrais que nutriram essa polémica sio tam- bém fundamentais para aqueles que se dedicam ao estudo ¢ A Pratica da tradugio. A tarefa do tradutor, como a tarefa so criti- co de tradugio, é norteada por preocupagées relativas a uma pre- tensa “fidelidade” devida a0 chamado texto “original”. Entretanto, o que em geral se omite na tentativa de se atingir ou avaliar essa “fidelidade” € exatamente o status do original. Quan- a ee ge 16 A Que Sao Ficis ...? do avalia uma tradugio, estaré o eritico considerando 0 mesmo “original” que o tradutor? Ou, cm outras palavras, concorda- riam critico ¢ tradutor a respeito dos significados do texto de partida? F em torno dessa pergunta que se desenvolve a reflexdo que dé corpo a este trabalho. Através da andlise da polémica Vizioli x Ascher, convido o leitor a repensar as questées da fidelidade em traducio ¢ da avaliagio de textos traduzidos, a partir de uina re- formulagio do conceito de texto “original”. Il, PERSPECTIVAS TEORICAS Hi alguns anos, venho tentando desenvolver uma reflexio acerca dos problemas tedricos da tradugio que se coloca em franca oposi¢ao ao conceito tradicional de texto “original” ¢, conseqiientemente, ao conccito tradicional dé fidclidade ¢ a vi- sio do ato de traduzir que esses conceitos propocm. Em linhas muito gerais, as teorias da linguagem que emer- gem da tradigao intelectual do Ocidente, alicergadas no logocen- trismo e na crenga no que Jacques Derrida chama de “significado transcendental”,? tém considerado 0 texto de partida como um objeto definido, congelado, receptiiculo de significados estaveis, geralmente identificados com as intengdes de set autor. Obv mente, esse conceito de texto traz consigo uma concepcao de lei- tura que atribui ao leitor a tarefa de “descobrir” os significados “originais" do texto (ou de seu autor). Ler seria, em tiltima andl se, uma atividade que propée a “protegio” dos significados origi- nalmente depositados no texto por seu autor./Embutida nessa concepgio de leitura, delineia-se a concepcio de traducao que tem orientado sua tcoria ¢ pratica: traduzir € transportar, é trans~ ferir, de forma “protetora”, os significados que sc imaginam est- veis, de um texto para outro ¢ de uma lingua para outra/Assim, quanto mais “protetor” puder ser 0 trabalho do tradutor, quanto mais préximo do “original” conseguir chegar, melhor sera seu re- sultado. ¢ ‘A essa tradigio opdem-se, implicita ou explicitamente, algu- mas correntes do pensamento contempordnco: a “arqueologia” de Michel Foucault, a “semioclastia” de Roland Barthes e, sobre- A Que Sao Fiis ..? 7 tudo, a “desconstrugio” de Jacques Derrida, que trazem, em maior ou menor grau, a influéncia do pensamento brilhante ¢ demolidor de Friedrich Nietzsche ¢ dessa revolugao intelectual que Freud instalou no centro da reflexio do homem sobre si mesmo. ‘Num ensaio magistral ¢ quase cruel, originalmente intitula- do “Uber Wahrheit und Liige im aussermoralischen Sinne’,’ datado de 1873, Nietzsche desmascara a grande ilusio sobre a qual se alicercam nossas *verdades”, nossa filosofia, nossas ciéncias, 0 pensainento que chamamos de “racional"f Segundo Nietzsche, toda “verdade” estabclecida como tal foi,’no inicio, apenas um “estimulo nervoso". Todo sentido que chamamos de “literal” foi no inicio, metafora ¢ somente pode ser uina cringao humana, um. reflexo de suas circunstncias e, nfo, a descoberta de algo que Ihe seja exterior: / primeira metafora: um estimulo nervoso transformado em percepgio. Essa percepcio, entio, acoplada a um som. Quando falamos de Arvores, cores, neve € flores, acredita- ‘mos saber algo a respcito das coisas em si, mas somente.pos- suiimos metiforas dessas coisas, © cssas mctiforas correspondem de mancira alguma a esséucia do original ‘mesma forma que o som se manifesta como mascara efém 1a, 0 enigmsitico x da coisaemsi tem sua origem num ¢ mulo nervoso, depois se manifesta como percepcio ¢, finalmente, como som. (p. 178) ‘A reflexio de Nietzsche sobre o carter “ficticio” de todas as“ nossas “verdades" e de todos os nossos significados chega exata- mente onde teria chegado a reflexio do préprio pai da lingiiisti- ca estrutural, Ferdinand de Saussure, se este pudesse ter levado As diltimas conseqiiéncias suas conclusdes acerca clo signo arbitrs- rio e convencional. Ao admitir, em sua tcorizagio sobre 0 signo, que 0 significante é “imotivado, arbitrério em relagao ao sig cado, com 0 qual nao tem nenhum lago natural na realidade” (p. 88), Saussure teria que admitir também que esse significado ¢, também, sempre “atribuido” ¢ nunca imanente, o que implica di zer que esse significado é sempre “produzido” por convencdes € nunea “descoberto”, e que mudara A medida que mudarem as s0- ciedades ¢ as convencdes que as regem. 18 A Que Séo Fidis ..? Assim, de acordo com a perspectiva aberta por Nietzsche, 0 homem nio € um descobridor de “verdades” originais ou exter- nas ao seu descjo, mas um criador de significados que se plas- mam através das convengées que nos organizam cm comunidades. E 0 impulso que leva 0 homem a buscar a “verda- de”, a fazer ciéncia e a formular teorias, segundo Nietzsche, nao passa de uma dissimulacao de scu desejo de poder, conseqiiéncia de seu instinto de sobrevivéncia ¢ de sua inseguranga enquanto habitante de um mundo que mal conhece e que precisa dominar. O homem inventa “verdades” que tenta impor como tal a seus se- melhantes para se proteger de outcos homens ¢ de outras “verda- des”, e para sentir que controla um mundo do qual pode apenas saber muito pouco. ‘Em complementaridade ao pensamento “desconstrutor” de Nietzsche acerca das possiveis relagées entre-sujeito e objeto, po- demos incluir a psicandlise de Freud, cujo conceito de “incons- ciente” vira do avesso a propria nogio de sujeito: 0 homem cartesiano que se definia pelo seu racionalismo passa a definir-se pelo desejo que carrega consigo, que molda seu destino € sua vi- sio de mundo, ¢ do qual nao pode estar plenamente consciente. Quer consideremos o desejo de poder, ou o inconsciente, como propulsor da criagio do conhecimento, das ciéncias ¢ de todos 08 “significados” e “verdades” humanas, estaremos descartando a possibilidade de um relacionamento puramente objetivo, ou pu- ramente subjetivo, entre homem e realidade, entre sujeito e obje- to, entre leitor e texto. Essa linha de reflexio no traz consigo, como poderiam ar- gumentar alguns, a implicacio absurda de que o mundo real nao existe sem um sujeito que o perceba, Traz, sim, a implicagao de que 0 sujcito ndo poder escapar dos desejos que o constituem € das circunstncias — seu tempo, sua idcologia, sua formacio, sua psicologia — que, literalmente, “fazem sua cabeca”, para usar essa feliz expresso da gfria contemporanea, Através da ética apenas esbogada acima, seria ingénuo e sim- plista estabelecermos normas de Ieitura que contassem com a possibilidade do resgate total dos significados “originais” de um texto, ou das intengdes de seu autor. O leitor de um texto ndo pode proteger os significados originais de um autor porque, a gor, nem o préprio autor poderia estar plenamente consciente Dee ————— A Que Sao Fidis...? 19 de todas as intengdes ¢ de todas as varidveis que permitiram a produgao ¢ a divulgacio de seu texto. Da mesma forma, no mo- mento da leitura, o Ieitor nio poder deixar de lado aquilo que 0 constitui como sujeito € como leitor — suas circunstancias, seu momento hist6rico, sua visio de mundo, seu préprio inconscien- te. Em outras palavras, o Ieitor somente podera estabelecer uma relagio com o texto (como todos nés, a todo o momento ¢ em todas as niossas relagées), que serd sempre mediada por um pro- cesso de interpretagao, um processo muito mais “criativo” do que “conservador”, muito mais “produtor” do que “protetor”. ‘Assim, o significado nao se encontra para sempre depositado no texto, A espera de que um leitor adequado 0 decifre dle maneira correta. O significado de um texto somente se delineia, ¢ se cria, a partir de um ato de interpretacao, sempre provisoria ¢ tempo- Fariamente, com base na idcologia, nos padrdes estéticos, éticos € morais, nas circunstancias hist6ricas ¢ na psicologia que consti tuem a comunidade sociocultural — a “comunidade interpretati- va", no sentido de Stanley Fish — em que é lido. O que vemos num texto é exatamente 0 que nossa “comunidade interpretati- va" nos permite ler naquilo que lemos, mesmo que tenliamos como tinico objetivo o resgate dos seus significados supostamen- te “originais”, mesmo que tenhamos como tinico objetivo nio nos misturarmos ao que lemos. Do mesmo modo que nio pode- mos deixar de lado 0 que somos € 0 que pensamos quando nos relacionamos com 0 mundo real, também nao podemos ler um texto sem que projetemos nessa leitura as circunstincias ¢ os pa- drdes que nos constituem enquanto leitores ¢ membros de uma determinada comunidade. Aplicadas & tradugio, formulam os conceitos tradicionais de texto “original” c de fideli- dade. Assim, nenhuma tradugio pode. ser exatamente ficl,ao “original” porque o “original” nao existe como um objeto estivel, guardiio implacdvel das intengdes originais de seu autor. Se ape- nas podemos contar com interpretagées de um determinado tex- to, leituras produzidas pela ideologia, pela localizacio temporal, geogrdfica € politica de um Ieitor, por sua psicologia, por suas circunsténcias, toda tradugdo somente poder’ ser fiel a essa pro- dugdo. De mancira semelhante, a0 avaliarmos uma traducio, a0 compararmos 0 texto traduzido ao “original”, cstaremos apenas -ssas conclus6es necessariamente re- 20 A Que Sao Fiéis...? ¢ taosomente comparando a tradugio & nossa interpretacio do Soriginal” que, por sua ver, jamais poderd ser exatamente a “mes- ma” do tradutor. Il. O CONFRONTO TRADUTOR X CRITICO | Em sta resenha, depois de uma breve introdugio & poesia de John Donne, Nelson Ascher inicia 0s comentérios sobre as tradugdes de Paulo Vizioli, tomando como paralelo as tradugdes do poeta e ensa(sta Augusto de Campos. Em primeiro lugar, 0 eritico nao concorda com o titulo da antologia de Vizioli: “cha- mélo [a John Donne...] de ‘o poeta do amor ¢ da morte’, como faz Vizioli no titulo do livro, € perder de vista a esséncia de sua poesia’. A “falha” de Vizioli, Ascher contrapée 0 “acerto” de Au- gusto de Campos, que dew a sua antologia de poemas do poeta Inglés o titulo “o dom e a danacio”, “sublinhando”, segundo As- cher, “um dos recursos favoritos do poeta, o jogo de palavras”. Prosseguindo sua comparagio entre as duas tradugdes, As cher observa que 0 que as distingue, “de fato”, a “concepgao de tradugio que as norteia”. Enquanto a de'Vizioli @ a “obra empe- hada de um erudito”, “um valioso subsidio para o estudo ¢ a apreciagao do autor, correta ¢ esclarecedora", a de Augusto de Campos é 0 “trabalho magistral de um poeta”, “o préprio Donne cem portugués". Entre o trabalho “erudito” de Vizioli eo trabalho Sinagistral de pocta”, Ascher prefere, obviamente, o segundo: Vi- zioli “um erudito profissional e competente, mas pocta amador”, nao pode substituir o trabalho de “um poetatradutor ¢ inventor Ge Hnguagens profissional”, Enquanto a tradugio de Vizioli ¢ “Guile muito necessiria”, por sua “funcao didatica ¢ inforn va", somente a de Augusto de Campos é “obra criativa”. Assim, segundo Ascher, Augusto de Campos criow para Donne uma “linguagem prépria € yma diccio poética condizente”, a0 paso que a de Vizioli é “conservadora e com uma dicgao poética ultra: passada”. ‘Apropriadamente, Paulo Vizioli fundamenta sua resposta ‘Ascher num argumento cujas implicagdes ¢ conseqiiéncias pre~ tendo desenvolver no préximo segmento deste trabalho. Como sugere Vizioli, o que, na verdade, parece incomodar ao erftico € an A Que Sao Fidis aque suas traducbes sio, de certa forma, “infigis” as verses de Augusto de Campos: ‘Tive a nitida impresso de que, na verdade, o seu autor se revoltous menos com as pretendidas deficiéncias de meu tra- balho que com minha petulancia em incursionar por terre: no onde antes perambulara Augusto de Campos. Nessa linha de argumentacio, Vizioli questiona, por exemplo, o critério que leva Ascher a considerar “um lance realmente inven- tivo” de Augusto de Campos a incorporagao de um verso de Lar picinio Rodrigues ao poema “A Aparicio” ("Onde seris, falst rectal, uma muther/Qualquer nos bragos de um outro qual: quer”). Conforme questiona Vizioli: E sera mesmo verdade, como sugere Ascher, que a inventivi- dade do trabalho poético ¢ responsivel fica garantida quan- Go cle enxerta no texto dos poctas ingleses versos de Lupicinio Rodrigues? De modo semelhante, 20 comentario de Ascher sobre @ “dicgao tica ultrapassada” de suas tradugées, Vizioli responde que sua Fiecio poética é “propositadamente ultrapassaca” j6 que se trata Ge um autor nascido no século XVI. Finalmente, em seu comen- tdrio mais certeiro, Paulo Vizioli aborda a comparacao estabeleci- dda por Ascher'entre aua tradugio (“Mais cobertura tu desejas do que um homem?") ea de Augusto de Campos (“A coberta de um fomem te bastante?”) do verso final da elegia “Going 1o Bed” (“What need’st thou have more covering than a ‘man?"): Nio traduzi © poema com base na versio de Augusto de Campos, mas diretamente do original inglés. 14, © pocta fala em covering, nio em cobertor. E. covering & cobertura mesmo, com o duplo sentido de “cobrir © corpo com as ves- tes" e “cobrir sexualmente” IV. ACRITICA DA CRITICA Como jé foi sugerido, a questio central em torno dla qual Vi zioli ¢ Ascher se confrontam é basicamente o significado ¢ 0 va- lor dos originais de Donne. 22 A Que Sao Fiéis...? A critica de Ascher, que atribui a 0 “defeito” de “ter perdido de vista” a “esséncia” da poesia de John Donne, se torna especialmente problemitica quando consideramos a carreira conturbada que essa poesia tem seguido deste sua criagio, no sé culo XVII. A prépria designacio de “metafisico”, com que até hoje se rotula esse poeta inglés, j4 foi, como lembra F. S. Eliot, “desde um insulto até um indicador de gosto singular e agrada- vel” (p. 2560, minha tradugao). Jean Jacques Denonain lista al- guns significados possiveis da mesma designagio, entre os quais uem-se “filosdfico”, *pedante”, “irreal ou fantastico” (citado ‘em Campos, p. 124). Como escreve Vizioli na introdugio A anto- logia resenhada por Ascher, Ben Jonson, amigo e contempora- neo de Donne, afirmava que este “merecia scr enforcado por causa do que fizera com a métrica”. John Dryden, nascido em 1631, ano da morte de Donne, “adiiirava as suas sétiras", mas “nio accitava 0s outros poemas". Finalmente, Samuel Johnson, outro leitor importante, “detestava suas jungdes forcadas de idéias sem correlacées” (p. 4). Teriam Ben Jonson, Dryden e Samuel Johnson (apenas para mencionar os criticos citados acima) também deixado de reco- nhecer a “esséncia” da poesia de Donne? Se houvesse, na poesia de Donne, ou em qualquer outro texto, como quer Ascher, algo ‘como uma “esséncia”, um significado intrinseco ¢ imanente, que pudesse ser eternamente preservado, nio deveria essa “esséncia” estar ao alcance de seus leitores mais catcgorizados? Por que te- ria Augusto de Campos o privilégio de possuir 0 acesso a esse sig- nificado tio rec6ndito do texto de Donne? Além disso, em que bases pode Ascher se firmar ao sugerir que, para traduzir Donne (ou a “esséncia” de sua poesia), de maneira efetiva, é salutar, por ‘exemplo, que se incorpore ao pocma “A Aparicio” um verso de Lupicinio Rodrigues? Naturalmente, as respostas que proponho a essas perguntas ‘emergem das concepgdes textuais que esbocei rapidamente no inicio deste trabalho. O que Ascher vé como a “esséncia” da poe- sia de Donne, ou como 0 “préprio Donne em portugués”, no passa, na realidade, do reflexo de sua leitura do poeta, leitura ‘essa que parece ter sido forjada nas tradugGes e nas concepcdes te6ricas desenvolvidas por Augusto de Campos. © “John Donne” que Ascher adinira é 0 “John Donne” produzido pela tradigio in- 23 A Que Sao Fiéi telectual & qual se filia Augusto de Campos. Ao criticar o titulo do livro de Vizioli, ou sua opcao por uma “linguagem conserva- dora” ¢ por uma “dic¢do pocticamente ultrapassada”, 0 que As- cher contrapée a Vizioli nao é, de modo algum, a “esséncia” da poesia de Donne, mas sua prépria visio da visio critica de Au- gusto de Campos sobre o mesmo poeta. De forma semelhante, 0 que Augusto de Campos vé c admira em Donne é 0 que vé e ad- mira em outros poetas do passado e do presente, aos quais atr bui pontos em comum com o Concretismo, movimento estético do qual é figura proeminente: Donde a valorizagio, no presente, ¢ a revalorizacio, no pas- sado, de toda poesia onile repontem os tragos dessa litcicla uta com a linguagem, em contraposicio aquela poesia satis- fcita, na qual a linguagem nao passa de mero recipiente pas- sivo de assentes sentimentos sentimentais. (Campos, p. 126) Enquanto a tradicao na qual se inscreve Augusto de Campos valoriza “a luta com a linguagem, os jogos de palavras”, a tradi- ¢4o A qual se filia Vizioli parece pi rr outras caracteristicas. Em sua introdugio a antologia de Donne, Vizioli escreve sobre ‘os metafisicos: Os escritores dos novos tempos, devendo projetar as sttas in- certezas € 0s seus conflitos interiores, precisavam de um ¢s- tilo mais dinamico, recorrendo, por iss0, a0 movimento ¢ A teatralidade. Tinham que causar impacto [...]. O poeta pode, no entanto, despertar o assombro de vérias manciras. Uma delas consiste em servirse da linguagem coloquial e direta, mas carregada de ironia ¢ paradoxos entremeada de ima- gens complexas ¢ incomuns, surpreendendo os leitores pelo inesperado; outra reside no tom dignificado e nobre, conce- dido pela riqueza do vocabulirio ¢ pelas complicagées de sintaxe, deslumbrando pela magnificéncia. (p. 2) Se nos detivermos apenas nos subtitulos das antologias assinadas por Vizioli e Augusto de Campos (respectivamente, “o poeta do amor ¢ da morte” € “o dom c a danacio*), podcmos obscrvar que, enquanto Augusto privilegia 0 wit — 0 gosto pela ironia, pelo paradoxo e pelo jogo de palavras — Vizioli privilegia o que ele mesmo chama de “o terrivel dualismo” da época em que vi- ry A Que Sao Ficis: veu Donne. E, como terd percebido 0 leitor familiarizado com 0 discurso do barroco literério, tanto 0 wit, como o dualismo, a0 invés de constituirem opostos irreconcilidveis, sio, na verdade, ‘caracteristicas paralelas em geral atribuidas a esse movimento es- tético. ‘Ao afirmar que 0 que distingue “de fato” as duas tradugbes € “a concepcio de tradugio que as norteia”, Ascher parece estar se referindo as duas concepgées opostas de tradugao tradicional- mente citadas: uma, atribuida a Vizioli, é a tradugio “literal”, pré- xima as palavras do “original”, “obra empenhada de um erudito”, gue “se contenta com uma Tinguagem conservadora ¢ com uma diego poeticamente ultrapassada”, “valioso subsidio para o est do € a apreciagio do autor, correta ¢ esclarecedora”; a outra, at buida a Augusto de Campos, é a tradugio supostamente “criativa”, com “lances inventivos”, “trabalho magistral de um poeta”, que consegue 0 impossivel: criar, “de certa forma, 0 pré- prio John Donne em portugués”. Obviamente, essas duas con- Eepcdes de tradugio também se baseiam na hipétese de que ha uma “esséncia”, um sentido original e estivel, na pocsia de Don- ne, A qual apenas alguns eleitos podem ter acesso. Assim, segun- do Ascher, embora Vizioli seja um tradutor “erudito”, capaz de oferecer, com seu trabalho, “um valioso subsidio para o estudo € a apreciagao” da pocsia de John Donne, seus esforgos mio conse- guem “realmente” produzir um Donne em portugués, porque nao atingem a “esséncia” do texto inglés. ‘Como jé foi observado, a tradugéo de um poema ¢ a avalia- io dessa tradugao ndo poderao realizar-se fora de um ponto de Vista, ou de uma perspectiva, ou sem a mediacio de uma “inter- pretacéo”.* Portanto, a tradugio de um pocma, ou de qualquer Sutro texto, inevitavelmente, ser4 fiel a visio que o tradutor tem desse poema e, também, aos objetivos de sua tradugio. Portanto, ‘a questio nao é — como afirma Nelson Ascher — que Vizioli “se contenta” com wma Tinguagem conservadora € com uma dicg’o pottica ultrapassada, oti que ao scu trabalho “erudito” falte o gé- fnio de poeta. A linguagem € a dicgio poética escolhidas por Vi- ‘oli sio resultado de suas concepgdes acerca da poesia de Donne fe acerca da tradugio de poesia, isto é, sio, como ele mesmo ob- serva em sua réplica ao critico Ascher, “propositadamente ultra, passadas por se tratar de um autor que nasceu no século XVI". A Que Séo Fiis...? 25 Ou seja, para Vizioli, a tradugao da obra de John Donne deve ter como objetivo a manutencao do que considera a linguagein ¢ 2 icgio poética do poeta inglés. Para Vizioli, um poeta do século XVI deve ser apresentado aos Icitores do século XX como um poeta do século XVI, sua tradugio deve trazer a marca do “o! igi- Par, deve “soar” antiga. Augusto de Campos, por sua vez, cré que a tradugo de um poeta do passado somente terd valor se Duder ser absorvida pelos poetas do presente. No preficio a Ver- ‘so Reverso Controverso, Augusto escreve: ‘A minha maneira de amélos [aos poctas que admira] € tra- Guzilos. Ou deglutilos, segundo a Lei Antropofégica de Os- Wald de Andrade; s6 me interessa 0 que nao é meu. Tradugio para mim € persona. Quase heterdnimo. Entrar dentro da pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor por dor, som por som, cor por cor. Por isso nunca me pro- pus traduzir tdo. $6 aquilo que sinto. $6 aquilo que minto. Ou que minto que sinto, como dia, ainda uma ver, Pessoa ‘em sta prépria persona. (p. 7) Nesse contexto, justifica-se, entre outras coisas, a incluséo de um verso de Lupicinio Rodrigues & tradugio de um poema inglés do Século XVI, que Ascher considera, como vimos, “um lance inven: tivo". Tanto Paulo Vizioli quanto Augusto de Campos sio “figis” as suas concepedes teéricas acerca de traducio ¢ acerca da poesia de Donne e, nesse sentido, tanto as tradugdes de um, como de outro, sto legitimas ¢ competentes. Inevitavelmente, as traducdes Ge cada um deles agradarao aos Ieitores que, consciente ou in- Conscientemente, compartilharem de seus pressupostos, ¢ desa- gradario aqueles que, como Ascher, jd foram seduzidos por pressupostos diferentes. NOTAS 1. Uma versio preliminar deste trabalho foi publicada em Tradugio ¢ Gomunizogbo ~ Revista Brasileira de Tradutores, n# 9, Sao Paulo, dezembro de 1986, pp. 188-142.

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