Foucault
Repensar a Politica‘964 Niche Foucault -Ditose Bsertias
cola, na usina (felizmente, sobre este iltimo ponto, a lei da anis-
ta levantou o véu),
‘Que alguns dos grandes problemas morals ~ como esse - rea-
parecam no campo politico, que haja em nossos dias um novo €
sério desafio da moral a politica, considero uma revanche so-
bre todos os cinismos. E acho que essas questées (vimos com
respeito as prisbes, aos imigrantes, as relagoes entre os sexos)
devem ser colocadas com a interferéncia continua do trabalho
intelectual e dos movimentos coletivos. Tanto pfor para aqueles
que se lastimam de nada verem a volta deles que valha a pena
ser visto; esto cegos. Multas cosas mudaram ha 20 anos, eno
que é essencial que mudasse: no pensamento, que ¢ a maneira
como os humanos se defrontam com 0 real.
1983
A Propésito Daqueles que Fazem a Histéria
‘A propos des faseurs d'histoire” (conversa com D. Eribon), Libération, nf
521,21 de anetrode 1983, p. 22. (Scbre J. Attl, Histotre di temps, Pais, Fa
yard, 1982.)
~ Para além do caso dos plagios, é preciso, talvez, interro-
gar-se sobre o género a que pertence o lluro de Jacques Attalt?
~ Gosiaria de recolocar a questo que vocé me fez em uma
certa conjuntura intelectual. Durante muito tempo, a flosofia, a
reflexio te6rica ou a “especulacdo” tiveram com a historia uma
relagdo distante e, talvez, um pouco altiva, la-se exigir da leitura
de obras hist6ricas, frequentemente de muito boa qualidade,
lum material considerado “bruto” e, logo, “exato”: bastava, en:
‘Ao, refletir sobre ele, para dar-lhe um sentido e uma verdade
que ele préprio nao possuia. O livre uso do trabalho dos outros
era um género admitido. E tao admitido que ninguém sonhava
em esconder que elaborava um trabalho jé feito; citava-se sem
vergonha.
As coisas mudaram, parece-me. Talvez por causa do que se
Passou com o marxismo, com 0 comunismo, com a Unido Sovié-
lica. Nao parecia suficiente conflar naqueles que sabiam e pen-
sar, em um plano mals alto, no que outros haviam pensado em
ver mais embaixo. A mesma mudanga que tornava impossivel 0
que vinha, aliés, suscitar a vontade de nao mais receber tudo 0 que,
das maos dos historiadores, j4 estava felto e sobre o que se devia
refletir. Era preciso ir procurar a si mesmo, para definir ¢ elabo-
rar um objeto histérico. Era o tinico melo para dar & reflexdo so-
bre nés mesmos, sobre nossa sociedade, nosso pensamento,
‘nosso saber, nossos comportamentos um contetido real. Era, in-
versamente, uma maneira de ser, sem sabé-lo, prisioneiro dos
postulados implicitos da historia. Era um modo de dar a refle-
xo sobre os objetos hist6ricos um perfil novo.366. Mite! Foucaall~Ditos¢ Rscrtos
Via.se desenhar, entre filosofia € historia, um po de rela
ges que nao eram nem a constituigio de uma flosofia da hist6-
fla nem 0 deeiframento de um sentido escondido da hist6rla,
‘Também nao era uma Teflexao sobre a historia, era ums refle-
xao na historia, Um modo de fazer do pensamento a prova do
trabalh histérico: umn modo, também, de por o trabalho histé-
rico A prova de uma transformagao dos quadros conceituals €
tedricos,
‘Nao se trata de sacralizar ou heroicizar esse genero de traba-
Ino. Ele eorresponde a uma certa situacao, E win género dif
que comporta multos periges, como todo trabalho que pée em
Joo dois Lipos de atividade diferentes. E-se bastante historla-
{dor para uns, e. para outros, bastante postivista. Mas, de toda
funeira,é uma trabalho que deve ser feito por si mesmo. E pre-
tiso ir a0 fundo do poco; isso demanda tempo: traz um custo
Ealgumas vezes, fracassamos, Ha, em todo caso, uma coisa
Carta: € que nao se pode, nesse género de empreendimento, re-
fleur sobre o trabalho dos outros e fazer crer que fot realizado
por suas préprias maos; nem, também, fazer erer que se reno-
fa o modo de pensar, quando o revestimos, simplesmente, de
digumas generalidades suplementares,
rE o julgamento que voce faz. sobre esse loro?
“Eu contego malo livro de que me fala, Mas, ha muitos anos.
ouvt contarem historias disso e daquilo e voce sabe, ve-se ime-
‘atamente a diferenca entre agueles que escreveram entre dols
fuides e aqucles que sujaram as mAos. Gostarla de ser claro.
Ninguém ¢ forcad a escrever livros, nem a passar anos elabo-
rando-os, nem a reclamar desse géncro de trabalho. Nao ha ne-
hnhuma razao de se obrigar a colocar noias, referéncias, a fazer
bibliografias, Nenhusna razio de nao escolher a livre reflexo So-
bre o trabalho dos outros. Basta marcar claramente que relacao
se estabelece entre o set trabalho ¢ 0 dos outros.
sp respettar um certo niimero de exigencias e de critérios,
~ Gigenero de trabalho que evoquel ¢, antes de tudo, uma ex-
periéneia ~ uma experiéncia para pensar a historia do que so-
nos. Uma experiéneia bem mais do que um sistema, Nenhuma
Teeeita, multo menos método geral, Mas regras técnicas: de de:
Cumentagao, de pesquisa, de verifeacéo, Uma ética também,
pols erelo que nesse dominto, entre técnica eética, nao ha mule
Tas difereagas. Talvez porque os processos sejam menos codifi-
tatlos. Bo principal dessa ética ¢, antes de tudo, respeitar essas
1983 A Props Daqueles que Fazem aHistiria 367
regras téenleas e dar a conhecer aquelas que foram utilizadas.
E uma questéo ética com respeito aos outros, quero dizer,
aqueles que também trabalharam e cujo trabalho pode ser titi.
Essa ética ¢ importante, mas se s6 fosse uma polidez em rela-
‘cdo aos antigos, nao seria essencial.
‘O que me parece indispensavel € 0 respeito em relagao ao let-
tor. Um trabalho dever dizer e mostrar como é feito. E nessa
condigéo que pade nao somente nao ser enganador, mas ser
posttivamente titi. Todo livro desenha em torno de si um cam-
po de trabalho virtual que é, até certo ponto, responsavel pelo.
que torna possivel ou impossivel. Um livro — falo, certamente,
das obras de saber ~ que mistura suas maneiras de fazer nao é
uma coisa boa. Sonho com livros que seriam bastante claros
sobre sua prépria maneira de fazer, a fim de que outros pudes-
sem deles se servir, mas sem procurar misturar as fontes. A li-
berdade de uso e a transparéncia esto ligadas.
—Aauséncia de transparéncia néo viria, atualmente, de uma
mistura entre livros de saber e ensaismo?
Essa mistura, se ¢ interessante falar dela, é que nao éo pro
duto de tal ou tal. Crelo que é um processo bastante geral ¢ ra-
zoavelmente perigoso.
Mas, compreenda-me. Nao quero dizer que os “livros de sa
ber” devam ficar culdadosamente dobrados sobre si mesmos.
‘Tem-se 0 olhar histérico bem curto quando se imagina que foi
necessario esperar a televisao e suas emissdes literdrias para
que os livros de saber fizessem eco € encontrassem repercus-
0 fendmeno é amplificado e se amplificard, € certo. Nada de
‘gemer, intitil chorar sobre o deserto crescente. Os milagres filo:
séficos, como os outros, s6 0s esperamos em Lurdes. Pare-
ce-me que o importante é velar, tanto quanto possivel, para
guardar cada trabalho, tal como fol feito. em sua forma especiti-
a, nao isolé-lo do solo em que nasceu, do que pode legitimé-lo,
dar-lhe valor e sentido, Por que nao falar de um livro que conta:
ria o que se passou desde a fundacao do mundo? Mas € mistura
inadmissivel fazer crer que éa mesma coisa, um pouco melhor,
que Duméail e que, em suma, é Darwin nas ciéncias humanas.
‘Ao mesmo tempo, € possivel e muito bom fazer compreender
‘em que consiste, justamente, o trabalho de Dumézil. Sob 0 ré-
tulo bastante facil da comunicacao e da agitacéo das Idelas. per-
de-se a tinica coisa interessante que € uma idea: a maneira368 ihe! Foucault - Datos e Escrito
como a pensamos. 0 “como” de um pensamento é seu nasci-
mento fragil, é seu valor duravel.
= Vocé pensa que o livro de Attall é um efeito dessa mistura
de que faldvamos?
=O pouco que conheco dessa histéria, tudo 0 que me enfada
nela € um jogo desdiferenciagao. E nao, simplesmente, no pré-
prio livro. Mas, sobretudo, na maneira como fot recebido, 0 fato
de que fot acolhido, primeiramente, por tantos critioos patentea-
dos ¢ universitarios honoréveis, sem recuo nem reflexao sobre
amaneira como fot escrito. O fato de que se tenham atribuido a
Taiva e & rabugice as reacées de certos jornalistas que, justa-
mente, faziam seu trabalho. O fato de que se quis incriminar os
datilografos, os revisores e Impressores pelas misturas que se
deviam a escrita. Este Giltimo ponto é bem menor? Nao posso
me impedir de ai ver 0 simbolo de um desrespeito pelo trabalho
que, precisamente, me surpreende,
1984
Os Direitos do Homem em Face dos
Governos (Intervencao)
“Pace aux gouvernements, les droits de Thomme”, Libération, 967,30 dejuc
nho-1? de julho de 1984, p. 22
'M. Foucault havia does texto, alguns mints aps to escrito, por ecasio
da conferéncia de imprensa aniunciando, em Genebra, a criagao do Corte
Internacional contra a Ptralaria, em junko de 1681. Em seguida, fer questo
que regisse a este texto 0 maior mismero passivel de pessoas, na espera de
chegar 20 que teria podido ser uma nova Declaracso dos Direltos do Homes
Aqui, nao passamos de homens despojados, que nao tém de
outro titulo a falar, ea falar juntos, sendo de um certa dificulda-
de comum para suportar o que se passa.
‘Sei bem, e € preciso se tornar evidente: contra as razbes que
fazem com que homens e mulheres quetram mais deixar seus
paises do que 14 viverem, néo podemos grande coisa. O fato
esta fora de nosso aleance,
Quem, entéo, nos comprometeu? Ninguém. E € isso, justa-
mente, que faz nosso direito. Parece-me que € preciso ter no es-
pirito trés principios que, creio, guiam essa iniciativa, como
bem outras que a precederam: o fle-de-Lumiére, o cabo Ana-
mour, o Avido para o Salvador, mas também Terre des Hom-
‘mes, Anistia Internacional."
1, Existe uma cidadania internacional que tem seus direitos,
seus deveres e que se engaja contra todo abuso de poder, quem
quer que sefa 0 autor, quaisquer que sejam as vitimas. Depols
de tudo, somos todos governados e, sob este titulo, solidarios.
1. Do navioshosptalflede-Lumiére, que socerreu os boat people no mar da
Cina, em 1979, a defesa de todos os prisioneiros politicos, Ne Foucault eve
‘aqui, as miciativas humanitirias das onganizacdes nio governamientas, que
"artir dos anos 1970, promoveram o novo drelto de livre aceaso a vitiogs de
{odos os conties