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Research, Society and Development, v. 10, n. 9, €21210917889, 2021 (CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i9.17889 A linguagem como operadora do déficit na cultura: O viés capacitista na satide e educagio Language as an operator of the deficit in culture: The ableism bias in health and education El lenguaje como operador del déficit cultural: El sesgo de capacitismo en salud y educacion ‘Recsbido: 0517/2021 | Revisad’ 15/07/2021 | Acta: 15/07 202t | Publisado: 24072021 Annibal Coelho de Amorim (ORCI bp np 0000-0003-0357-4527 Fundapdo Oswaldo Cruz, Bras ‘Email: enitalamorim foenio@ emt com Lais Silveira Costa, (ORCID: btpe/one rg 0000-0001-6089-7129, Escola Nacional de Sade Piblca Séaio Aronea, Brasil Fundaeao Oswaldo Cruz Brasil E mil: las. costBensp focrz br Sonia Regina da Cunha Barreto Gertner ‘ORCID: itpeorei on 0000-0003-3564.5039 Fundaqo Oswaldo Cruz, Brasil Ema sonia gertmerd oer br ‘Anna Paula Feminel ‘ORCID: itp: orci oe 0000-0003.0693-3: Escola Nacional d Admunistacso Public, Bras ‘F-mall: anna forunela Degp aos br Vitoria Bernardes ‘ORCID: hips ned og 0000-0002-9607-4752 CConseteia Nécioal de Sass, Bras ‘aan eeiah peo Zama oom Resumo © artigo, partindo de bases da sociologia do conhecimento ¢ do movimento construcionista da psicologia social contemporiinea, examina 05 mecanismos de “fabricacao da realidade” que operam na cultura, criando e disseminando categorias eivadas de valores do défict, aqui caracterizados como vieses que retroalimentam redes de significados capacitistas na sociedade, A cpistemologia “crip”, também conhecida como teoria “crip”, serve de base para uma compreensio descolonizadora dos efeitos colaterais da linguagem do deficit, que imiscuindo-se em campos do conhecimento alargam as fronteiras do progressivo adoecimento da cultura. A andlise de documentos da saride e da educagao entremeados com categorias do déficit reiteram mecanismos semisticos politico-ideolégicos que demarcam valores hierarquizadores ainda presentes no terceiro milénio. Interroga-se, em que medida, movimentos anti-capacitistas podem sc insurgir culturalmente contra © complexo-médico-académico-industril ¢ conclui-se que a linguagem do déficit segue domiinante, presente mesmo nos documentos mais progressistas das dias éreas estudadas, amando como um instrumento de opressto contra as pessoas com deficiéncia e contribuindo para afasté-las de seus direitos humanos garantidos na Carta Magna Palavras-chave: Epistemologia “crip”; Linguagem do désicit; Capacitismo: Hierarquizacdo. Abstract The article, based on the bases of the sociology of knowledge and the constructionist movement of contemporary social psychology. examines the mechanisins of "fabrication of reality” that operate in culture, creating and disseminating categories with values of deficit, characterized here as biases that feed back into networks of capacitant ‘meanings in society. The “crip” epistemology, also known as “crip” theory, serves as a basis for a decolonizing understanding of the side effects of the deficit language, which intermingling in ficlds of knowledge widens the frontiers of the progressive illness of culture, The analy’is of documents interspersed with deficit categories reiterates semiotic and political-ideological mechanisms that demarcate hierarchical values still present in the third millennium, It is questioned, to what extent anti-capacitalist movements can culturally rebel against the medical-academic- industrial complex and it is concluded that the language of deficit remains dominant, present even in the most progressive documents of the two areas studied, acting as an instrument of oppression against people with disabilities and contributing to distance them from their human rights guaranteed in the Magna Carta, Keywords: “Crip” epistemology: Language of deficit; Ableism: Hierarchization. Research, Society and Development, v. 10, n. 9, €21210917889, 2021 (CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i9.17889 Resumen, El articulo, basado en los fimdamentas de la sociologia del conocimiento y el movimiento construccionista de la psicologia social contemporinea, examina los mecenismos de "fabricacion de la realidad” que operan en la cultura, creado y difundiendo categorias con valores de déficit, aqui caracterizados como sesgos. que retroalimentan redes de significados capacitantes en la sociedad. La epistemologia del “lisiado”, también conocida como teoria del “lisiado™. sirve como base para una comprensién descolonizadora de los efectos secundarios del lenguaje deficitario, que entremezclado en los campos del conocimiento amplia las fronteras de la enfermedad progresiva de la cultura. El anilisis de documentos intercalados con categorias deficitarias reitera mecanismos semidticos y politico-ideolégicos ‘que demarcan valores jerérquicos atin presentes en el tercer milenio. Se cuestiona hasta qué punto los movimientos anti-capacitalistas pueden rebelarse culturalmente contra el complejo médico-académico-industrial y se concluye que cl lenguaje del deficit sigue sieado dominant, presente incluso en los dacumentos mas progresistas de las dos areas estudiadas, actuando como instrumento de opresién contra las personas con discapacidad y contribuir a distanciarlas de sus derechos humanos garantizados en la Carta Magna. Palabras clave: Epistemologia “Crip”; Lenguaje deficitario: Capacitismo; Jerarquizacién 1. Introducao Julga-se oportuno clarificar que o tema em ques fo — a linguagem do déficit e seus efeitos na cultura ~ nio é algo novo e foi examinado previamente por Gergen (1990), Blikstein (1995), Amorim (1997) e, mais recentemente, Ramos (2014), Lima (2014) ¢ Amorim, Gertner e Amorim (2018) Conrado adgqiriu contornos diferenciados na conferéncia da Universidade de Nova lorque ~ realizada em abril de 2013 ‘onde origens da epistemologia “crip” foram examinadas, particularmente, a partir da exterioridade da anélise de ‘MeRuer ¢ Johnson (2014a, 2014b) denominadas “epistemologias neoliberais altamente Iucrativas”, Artigos ligados 4 nao normatividade (Reynolds, 2017) e as discussdes da “construgdo da normalidade” (Davis temitico as eriticas ao biopoder médico ¢ as demais “profissdes terapéuticas” dele decortentes, como discutido por Kenneth Gergen (1990). Nesse sentido, sio estabelecidas conexdes com as teorias criticas situadas ~ aquelas no campo da injustica 2014) relacionam este contetido epistémica na relagdo com a salide -, _particularmente nas dimensdes (bio)éticas da pritica clinica (Reynolds, 2018). ‘MeRuer e Johnson (2014a) atribuem Lisa Duggan 0 uso da expresso “crip” em 2010, sitira derivada da expressio pejorativa “cripple” (aleijado), por ocasido de “Compos de Conhecimento” — acerca dos estudos “queer/crip” — na Universidade dda Carolina do Sul. Ao publicar suas memérias ("Girl in Need of a Toumiquet”), Lisa descola-se da terminologia médica, nao aderindo ao paradigma da nacrativa da doenga, passa a contestar a patologizagao atribuida 4 deficiéneia, 0 que pode ser verificado ua cartografia histérico-conceitual de representagdes sociais acerca da deficiéncia (Amorim, Gertner ¢ Amorim, 2018) em diferentes periodos da histori, Nas palavras de McRuer ¢ Jonson: [The back and forth in this mix generated discussion about knowing and unknowing disability, making and unmaking disability epistemologies, and the importance of challenging subjects who confidently “know” about “disability.” as though it could be a thoroughly comprehended object of knowledge [...]. (McRuer e Johnson, 2014a, p 130). Ultrapassando muros © caixas construidas pela academia, McRuer © Johnson (2014a, p.130) propem “fazer perguntas sobre locais remotes, estilos ¢ modos de transmisstio do conhecimento proibido sobre a deficiéncia” (em traducdo livre), Postula-se, pois, que uma das poténcias para compreender a linguagem como operadora do déficit na cultura é examinar sua manifesta jo em documentos, mensagens, reunides de departamentos, escolas, exercendo uma anarquelogia do saber construido a partir da epistemologia “crip” para entender os circuitos de opressio direcionades és pessoas com defi sncia. Sem que se examine — de maneira detida ~ 0 uso da linguagem, atravessando-a, decompondo-a em seus miltiplos 2 Research, Society and Development, v. 10, n. 9, €21210917889, 2021 (CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i9.17889 significados, nao se aportaré aos significantes produzidos em sua trajetéria politica e sociocultural. ‘Segundo McRuer ¢ Johnson (2014a) “[...] nesta erise a teoria “crip” deve perguotar quem se importa: literalmente [.-1 Quais corpos / mentes / deficigncias neste momento de crise contardo auténtica e publicamente deficientes? Como a deficigncia ¢ impedimento sero medidos? [...(p. 132) (em tradugao livre) Na linha de argumentagio de MeRuer e Johnson acima referida, cabe destacar as recomendacdes do Conselhio ‘Nacional de Satide (CNS, 2020) no tocante as pessoas com deficiéncia durante a Pandemia da Covid-19, dentre as quais se destacam as medidas para assegurar a protecio e cnidado desse segmento populacional, respeitando os direitos que Ihe so ¢garantidos pela Carta Magna e pela Lei Brasileira de Inclusao. ‘A corponormatividade, deaunciada por McRuer ¢ Johnson, materializa a hierarquizaca0 entre vidas de pessoas, constructo social resultante da opressio historicamente naturalizada contra as pessoas com deficiéncia, tanto no Brasil quanto ‘no mundo, Gavério (2020) prope justamente que a epistemologia Crip de McRuer e Johnson seja utilizada como um recurso euristico para analisar a forma com que corpos ¢ subjetividades esto sendo considerados para passar pela pandemia, Nas palavras do autor: [..] é necessério compreender os contextos ¢ materialidades sociopoliticas que tem produzido comporalidades mais ou ‘menos capacitadas para a cmergéncia sanitéria. Assim é preciso obscrvar como as dimensées do que é normal ou ‘anormal extrapolam essas materialidades corporais a partir de um jogo valorativo com aquilo que é considerado como calturalmente normative [.}(Gavéro, 2020, . 441) A proposta do autor é, com base na epistemologia Crip, compreender que satide, ainda mais em contexto de pandemia € escassez de recursos, ¢ uma questdo essencialmente politica — ¢ aio exclusivamente téenica, como alegam vertentes do biopoder. Estas questdes precisam ser debatidas © cucaradas pela socicdade a partir da argumentagio de Patrice Schuch ¢ Mario Sarettta (2020) ao denunciar [...]© funcionamento dessa eugenia modema ordiniria em Unidades de Tratamento Intensivo ou a desconsideracio invisivel das priticas de cuidado necessirias para a sua vida cotidiana equivalem a uma politica da morte. Essa politica de morte interdita fnturas, mas nao apenas aqueles das pessoas com deficiéncia; confisca também os fururos aque apostem na vatiedade e na diversidade humana [..]. (Schmch, Saretta, 2020, p3). De forma inequivoca esses autores afirmam que em muitas decisdes subjaz uma hierarguia de valores que constitui colunas de sustentagio da necropolitica. Partindo do valor dado ao sujeito normativo ideal que esté no centro das sugestdes de alo ofrecimento de tratamentos de satide adequados para pessoas com deficigacia, em tempos de pandemia, “saem fortalecidas as mesmas hierarquias de um ideal eugénico ou da superioridade racial, que na segunda guetra mundial condenaram & morte pessoas com deficiéncia dentre tantas outras.”(Schuch , Sarcttta, 2020, p.3). Urge indagar fazendo coro com Ferreira ¢ Lopes (2020): "Na ‘guerra’ contra o virus, esté-se mirando a doenga ou quem esté doente?” Ao refletir sobre a alocagdo de recursos escassos no atendimento a pacientes de Covid-19, Weid (2020) disserta sobre protocolos produzidos para “facilitar” a escolha médica sobre quem fazer viver e quem deixar morrer na fila de atendimento nas UTIs, A autora analisa discursos ¢ documentos que demonstram que as escolhas nto sto simplesmente médicas ou cientificas, mas envolvem aspectos capacitistas entranhados em valores morais que embasam a elaboragto dessas orieutagdes. Research, Society and Development, v. 10, n. 9, €21210917889, 2021 (CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i9.17889 © capacitismo, caracterizado pela premissa de que wm corpo fora de certo padrao normatizado & imperfeito e incapaz (percepgao baseada no modelo biomédico da deficiéncia) precisa ser melhor entendido inclusive, mas nao somente, para problematizar as matetializagdes desse preconceito que tem negado a humanidade de wm grupo de pessoas em fungdo de sua diversidade fimcional, Para citar algumias de suas reprodugdes, os grupos ativistas dos direitos das pessoas com deficiéncia se ‘mobilizaram em torno da injciativa “Todas as pessoas importam” (REDE-IN, 2020), buscando o reconhecimento da paridade valorativa da vida humana, sem diseriminacio, dado que algumas localidades comecaram a estabelecer hierarquia entre as pessoas com @ sem deficiéncia para acessar os recursos de saiide necessirias manutengo da vida em face da Covid-19 20; (Costa, 2020). Em que pesem as evidéncias (Hus, et al. 2021; Geason, J. et al, 2021: Stevens e Landes, os, : NYT, Imperatori e Bezerra, 202 10) de que pessoas com deficiéncia tem mais risco de se contagiar ¢ desenvolver formas mais graves da Covid-19, poucas localidades priorizaram esse grupo populacional. Na medida que avanga a medicina dliagnéstica, por exemplo, int cada vez menos nascimentos de bebés com @ trissomia do cromossomo 21 em paises europeus, pontuando a pritica do aborto eugénico decorrente da corponormatividade vigente, cuja ética pode ser contestada tragando um, paralelo com o artigo da Eliane Brum (2016) que aborda a temitica da interrupedo da gestagto de erianeas que nasceriam com a sindrome congénita do zika virus. Ademais, a0 negar recursos ¢ planejamentos adaptados ¢ ao manter ferramentas pedagégicas que excliem a diversidade funcional do ser humane, © capacitismo se materializa a partir da manutengio da corponormatividade no chio da escola, ¢ seu sentido de normalidade ¢ desvio, naturalizam uma construgao sociopolitica que valoriza um grupo em detrimento de ontro (Costa, 20218). © processo de busca de uma participacdo partéria na vida social & complexo e pode exigir acdes de reparacdo com foco também nos gmpos dominantes, de modo a desnaturalizar a normatizacio constmuida tendo como base a exciusio de algumas das manifestagdes da diversidade funcional lmana. Inclusive a necessidade de desconstruir “os prOprios termos em que as diferengas atribuidas sto atualmente elaboradas” (Fraser, 2007, p.123). A concepeto fraseana de justica social econhece 0 efeito da construgdo cultural ¢ da linguagem sobre a perpetuagio da desvantagem de patticipacio paritérias de ‘grupos sistematicamente silenciados na sociedade. Partindo do reconhecimento da assertiva de McRuer e Johnson (2014, p. 131) de “que © pensamento e 0 conhecimento na cultura ocidental do século XXI como um todo sio estruturados ~ na verdade, fraturados — por uma crise endémica de capacidade e deficiéncia” (em traducio livre), recorre-se a epistemologia “crip” como ferramenta da anélise semiética proposta nesse artigo. instigando que essa se dé pr'além da categoria “deficiéncia” on “através de suas fronteiras” No entanto, cabe ressaltar que o viés capacitista que se pretende examinar se desloca para ao que McRuer e Johnson denominam do “coubecimento baseado na corporeidade”, categoria que se aproxima do que Silier (2015) aborda como um territério existencial. De tal forma, na superficie dos debates podem emergir aspectos fenomenologicos, transnacionais afetivos, abrindo “espagos de discussdes interseccionais”. Da “agenda” da epistemologia “crip” anunciam-se perspectivas de estudos de género e deficigncia; de deficiéncia e etinicidade, deficigncia ¢ sexualidade: e tantas interseccionalidades quanto os movimentos de pessoas com deficiéncia juleuem necessitio estabelecer (Marafon ¢ Piluso, 2020; Akotirene, 2018; Mello e ‘Nuemberg, 2012; Moreira ¢ Dias, 2021; Schuch ¢ Saretta (2020) ressaltam que a intersecy#o dos marcadores da diferenga alcrta para o quanto a “deficiéncia é politicamente engendrada”, com particular materializacdo durante @ contemporénea emergéncia sanitéria, que vem reprocuzindo novos cireuitos de exclusto. No campo da interseccionalidade cumpre ressaltar que as questées sobre o estigma, levantadas na década de 60 por Erving Goffinan (1968), encontram-se hoje na ordem do dia, particularmente quando politicas neoliberais exeinem diteitos de suijeitos e de grupos vulnerabilizados. Ao longo da Pandemia do Sars-COV-2, eventos em diversos paises evidenciaram que a estigmatizacio de pessoas com deficiéneia foi utilizada de forma reiterada, retroalimentando “parimetros” para definir quais pessoas teriam assisténcia garantidas em Unidades de Terapia Inteusiva, ou aquelas que foram consideradas no planejamento 4 Research, Society and Development, v. 10, n. 9, €21210917889, 2021 (CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i9.17889 do ensino & distancia (Costa, 20216). Reynolds (2017) questionou a falta de ética de decisdes a partir do vigs/olhar médico de cariter essencialista, a0 que McRuer e Johnson (2014a, p. 133) referiram como “o conhecimento derivado de experiéncias cotidianas daqueles cujo mundo ¢ estruturado por pessoas que nfo tem “fraquezas”™. Estaria esse olhar médico enviesado e essa nogao utilitarista da vida hmmana opondo-se ao dieito fundamental & vida de algumas pessoas consideradas fora do padrio perpetuado também por essa linguagem do déficit? Ressalte-se o direito vida como imperativo ético a ser abservado pela prixis de profissionais da saiide, independente de suas crencas e valores. Estariam as estruturas sociais que negam o direito a vida de pessoas com deficiéncia servindo-se da clausura que o estigma prové como “marca” visivel/invisivel do “destino”? Estar-se-ia voltando ao passado tigubre onde a vida pertencia a quem detinha 0 poder soberano, como atestam em artigo recente Amorim; Gertner; Feminella; Lowzeiro (2021). Quanto de -apacitismo de cada dia” existe no olhar estigmatizante langado sobre a pessoa com deficiéneia? Seré que conceitos ~ particularmente corponormatividade ¢ normalidade — incidem sobre o olhar médico deixando como marcas © enquadramento ddesse viés hievarquizador? Pretende-se examinar estas questdes nos proximos segmentos. Ao coneluir a introdugio, ressalte-se a perspectiva de que a presente discussiio examine aspectos que se constituem em viés do olhar médico (Santander: Amores; Pérez, 2020), que acabam reduzindo sujeitos a “objetos" reificados pela linguagem do déficit, disseminando-2 como constructos sociais na cultura, MeRuer ¢ Johnson enfatizam que © conhecimento sobre a deficiéncia é iado a partir de olhares “especializados”, que sao direcionados as pessoas com deficiéncia © a sociedade em geral (McRuer e Johnson, 2014a, p.133). 2. Antecedentes Historicos e Conceituais da Epistemologia “crip” ‘Amorim, Gertuer ¢ Amorim (2018) apontam que a questio da deficiéncia transitou secularmente entre visdes supersticisas, permitindo ora o exterminio/exposigao de eriangas is cercanias do rio Tibre —registrada na “De Legibu’™ (106 a 43 aC) e n0 “De Ira” (ano 4 a.C a 65 d.C) ~, ora por seu “acolhimento” sob pretensos auspicios religiosos, que durante a Inquisigio sob a égide do “Santo Oficio imputa “condenacdes” aos anteriormente representantes “du bon Dieu”, passando a ser vistos como “possuidos por forgas do mal”, sendo, por vezes, “condenados”. Ultrapassado esse periodo, por inspiracdo de médicos (como Philipus Paracelsus ¢ Jerénimo Cardano) se inaugura visto “pré-cientifica”, Se, de um lado, sepultou-se @ “visto fatalistae inquisitéria” da deficiéncia, por outro lado cede-se terreno a outras “doutrinas” como a médica ¢ a jurista. A partir da “grande internagao”, sob a justificativa de “internar para couhecer, conhecer para intervis", atribuido a Jean Ténon, (Pessotti, 1984) “se afastam pessoas com deficiéncia do convivio social”, alocando-as em instituigdes como Bicétre e Salpétriere, que chegou a reunir cerca de 8.000 pessoas. A partir do século XVIL, inaugura-se na Europa, @ exclusto/invisibilizagdo social da deficiéncia. Assim, segundo Amorim, Gertner Amorim (2018), do caréter de “suib-hnmanidade™ (no periodo clissico greco- recuperabilidade” dé lugar 4 condicdo de “educabilidade” das ‘pessoas com deficigncia, 0 que nao deixa de representar que estigmas cientificos sao contimuamente apostos, por exemplo, como signos da “ordem do discurs0” biomédico (Foucault, 1999). Nos dias de hoje, « epistemologia “crip” contemporanea, reposiciona a tematica, sob o olbar atento da emancipagao critica de individuos e grupos de pessoas com deficiéncia Com esse propésito, busca-se na sociologia do conhecimento (Berger ¢ Luckmann, 1967) ¢ no construcionismo social da moderna psicologia social (Gergen, 1990) passos desconstrucionistas em directo & ruptura de um ocularcentrismo romano) e ultrapassada a visto teolégica, 0 conceito de “ (Santander etal, 2019, p128), por meio do qual, segundo estes tiltimos, “as elites evondmicas e politicas encarregam as elites cicntificas de produzir conhecimento acerca das pessoas coma intengio de usi-lo para realizar ages que levardo estas pessoas a serem consideradas como objeto” (grifo nosso e trad. livre). 5 Research, Society and Development, v. 10, n. 9, ¢21210917889, 2021 (CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOT: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i 1.17889 Amorim, Gertner ¢ Amorim (2018) ressaltam: L...] Cabe-nos interrogar que tipo de ideologia busca justificar esta taxonomia, que ao criar e difundir categorias, emarca historicamente processos de exclusto social [..] apoiados em categorias como “desvantagem’”, ebilidade”,“deficiénca” [...].(p. 58). ~impedimento”, “incapacidade”, “disfungao”, Em cada um dos constructos sociais, fabricados e apoiados por sujeitos ideolégicos, observam-se relacdes capitalistas de um lado que querendo ou nfo, pressupdem o assujeitamento 4 ideologia dominante. Assim, na linha argumentativa, estariam individuos “aptos”, “adequados”, “eficientes” para a forga do trabalho, e de outro, [..-] 0s que tém a marca do deficit como a cifia do destino [...], reafirmando, [...] padres considerados atributos essenciais & produtividade em determinados contextos sociais (..] Sujeitos “eficientes” assujeitados & uma ideologia L...]. (Amorim, Germer, Amorim, 2018. p. 59). Mas onde estes sujcitos ideologicos ~ representantes das foryas capitalistas ~ cncontrariam respaldo para este tipo de assujeitamento? £ Foucault, em “A Ordem do Discurso” (1999), que sustenta essa linha argumentativa ao afirmar que “[...] essa vontade de verdade, apoia-se sobre um suporte institucional (...] Mas ela é também reconduzida, mais profundamente sem dtivida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuido, repartido e de certo modo atribuido [..1" (p.17). A construgto social da linguagem do deficit (Gergen, 1990; Blikstein, 1995; Amorim, 1997; Ramos, 2014: Lima, 2014, Amorim ct al, 2018) fabricada no interior do discurso médico, responde pela maioria expressiva de categorias, segundo Foucault (1999) onde “[..] se observam os principios de classificagao, de ardenacao ¢ distribuicao [...], lembrando que, “[...] para pertencer a uma disciplina deve poder inscrever-se em certo horizonte tebrico [...](p. 19.21. 33). Isso posto, resgate.se Foucault em “O Nascimento da Clinica” (1994) a0 destacar que [.--] para aprender a mutagao do discurso quando esta se produzin é, sem diivida, necessério interrogar outa coisa que nao 08 contetidos temiticos ou as modalidades logicas e dirigir-se & regiao em que as *coisas’ ¢ as “palavras’ ainda nao se separavam, onde, ao nivel da linguagem, modo de ver ¢ modo de dizer ainda se pertencem [...] (Foucault,1994, p. IX) (grifos n0ss0s), Considerando, portanto, a medicina classificatéria (Foucault, 1994; p.3) afirma-se que do entrecruzamento de linhas verticais (Conde se emaranham as implicagdes") ¢ horizontais (“onde as homologias se transferem”) nasce uma forma se sistematizar ¢ hierarquizar pelo olhar, até que por ocasiio do século XVIIL, mantida pelo Estado a medicina das espécies se perder. Foucault (1994) alerta para uma antitese entre o fim do século XVIII ¢ sua nocao positiva da safe ¢ de normalidade, © 0 século XX com o pretincio do caréter singular das ciéncias do homem, voltadas para a positividade da norma, ou em termos mais previsos, para a distingdo entre o normal e 0 patologico. Para Foucault (1994), em razto da “hospitalizagao” das doengas duplica-se o olhar médico: “um olhar que confunde € a dissolve no conjunto das misérias sociais a suprimir, e um olhar que a isola para melhor circunserevé-la em sua verdade de natureza [...]" (P46) Research, Society and Development, v. 10, n. 9, €21210917889, 2021 (CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i9.17889 Sobre o nascimento da clinica e estatizagao da medicina Foucault é taxativo, pois a essa altura “[...] 0 olhar médico ainda nao recebeu, no saber clinico, suas novas condigses de exercicio; ele € apenas um segmento da dialética do Tluminismo transportado para o olho do mé 0 [.--I” (p.57). Paulatinamente, segundo Foucault (1994), “o olho torna-se 0 depositirio © a fonte da clareza” (p. X) conferindo a “permanéncia da verdade [...] a0 [...] poder soberano do olhar empirico que transforma a noite em dia [...], uma vez que “[...] 0 objeto discurso também pode ser um sujet [...] (p. XI-XIIN) (grifos do autor). Assim, onde a experiéncia se transmite por meio das palavras”, apoiado em Coakley Lettson, Foucault afinma que: [..1 a repartico deste saber com um grupo privilegindo e a dissociagtio da relagto imediata, sem obsticulos ou limites, entre Othar e Palavra: 0 que ja se soube s6 era, a partir de entio, comunicado aos outros e transferido para pritica depois de ter passado pelo esotcrismo do saber [..]" (Lettson,1787, como citado em Foucault, 1994, p. 60-61). (arfos 1205505). Os argumentos do entrecruzamente entre o olhar ¢ a palavra ~ corraborados por Gergen (1990); Amorim (1997): Ramos (2014); Lima (2014) e Amorim et al (2018) -, ganham contornes diagramiticos quando Blikstein (1995), partindo da linguistca, serve-se do quadro “A Condicto Humana” de Renné Magritte (vide figura 1) e sistematiza valores pejoratives e meliorativos encontrados em Linguagem eivada de estereétipos. Reside aqui exemplo fidedigno da representacao do olhar médico, que a epistemologia “crip” contemporanea busca se opor. Para Berger € Luckmann (1967), referencias da sociologia do conhecimento, “a conseiéncia é sempre intencional; “sempre tende para’ ou & dirigida para objetos” (p.37), motivo pelo qual postulam que “é a linguagem usada na vida cotidiana quem nos fornece cotidianamente as ‘necessirias objetivacdes e determina @ ordem em que estas adquirem sentido e na qual a vida cotidiana ganha sentido [...] ” (p.38). Para 05 autores, no processo de interagio social comparilham-se subjetividades, ~esquemas tipficadores em termos dos quais 0s ‘outros’ sto apreendides, sendo estabelecidos 0s mods como “lidamos" com eles nos encoutros face a face” (Berger ¢ Luckimann, 1967, p. 49). Em outras palavras, a realidade socialmente construida, cnvolve-nos por intciro, em tiltima anilise represcntando a realidade “dominante”. Parte-se do “pressuposto” que olhares de viés — ou “golpe de vista” como Foucault refere em O ‘Nascimento da Clinica (1994) ~ determinam uma forma particular de construir socialmente discursos na/da realidade. Utiliza-se a Figura 1 “A Condigao Humana’ (Blikstein, 1995) como representagio diagramética de que um esteredtipo (“deficiéncia”) representa um fragmento da “realidade retratada”. Em outras palavras, 0 ato profissional de “ver” & “desorever” uma pessoa com “deficiéneia”, representa a “moldura” que reduz 0 sujeito a um “objeto” recortado pelo olhar, ainda que saibamos de que a realidade observada pode ser bem mais abrangente. Nesse sentido, se for estabelecida uma analogia entre a paisagem retratatada do quadro de Renné Magritte — a partir do olhar da realidade limitada pela moldura da janela — © a condigao humana da pessoa com deficiéneia, perceber-se-a que as categorias utilizadas pelo olhar médico, contém os valores da linguagem do déficit, como afirmaram Gergen (1990) e Blikstein (1995) Research, Society and Development, v. 10, n. 9, ¢21210917889, 2021 (CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOT: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i 1.17889 ‘Figura 1, Diagrama que faz a analogia entre a paisagem retratatada do quadro de René Magritte e sua representagao. Fonte: “Kaspar Hauser ou A Fabricacao da Realidade", Blikstein, 1. 1995. SP: Cults, ESTEREOTIPO Gergen (1990) analisando as “Profissdes Terapéuticas ¢ a Difusio do Deficit”, ressalta que a linguagem derivada do esquadrinhamento do olhar médico - reificada e eivada de valores pejorativos ~ tem contribuido decisivamente para a “proaressiva enfermidade da cultura”, em ciclo permanente de expansto (Amorim, 1997; Ramos, 2014: Lima, 2014: Amorim ct al, 2018) como demonstra a Tabela 1 com o mimero cresceate de “categorias do déficit” em cada edigdo do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - DSM Tabela 1. Expansto do niimero de Categorias Médicas /DSM. Baseado em Gergen, 1990; Amorim, 1997 e Ramos, 2014. DSMI DSM DSM DSMIV DSMV 1982 1968 1980 1994 2013 130 paginas — | 134 paginas | 494paginas | 886 piginas | 1000 paginas 100 categorias | 150 categorias | 250 categorias [297 categorias | +300 categorias Fonte: Autores. Como a linguagem do déficit se difunde na cultura? Gergen (1990) distingue cinco fases diferentes: a traduco do deficit; a disseminaco cultural; a construgao cultural da doenca; as demandas da estruturaglo de servigas e a expansio do vocabulitio do deficit. Fase 1 — Segundo Gergen (1990) a fase de traducdo do deficit data do fim do séeulo XIX e comeco do séeulo XX, quando novas categorias diagnésticas comegaram a emergir. A linguagem profana é sacralizada (Boltanski, 1979) por terminologias cientificas, constituindo-se em referéneias discursivas de praticas profissionais. Research, Society and Development, v. 10, n. 9, €21210917889, 2021 (CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i9.17889 Fase 2 — As categorias resultantes de priticas profissionais (1990) sto aceitas como realidad, cabendo alertar 0 piiblico sobre 0 reconhecimento de “sinais” com vista a “sua prevengdo ¢ tratamento”. Assim, 0 vocabulirio se expande culturalmente pela ampliagao pr’além dos dominios do complexo-médico-académico-industtial (CMAI) (Ramos, 2014). Fase 3 — A construgo cultural da doeaga ocorre na medida em que a disseminacao do déficit na cultura ¢ lentamente absorvida pela linguagem comum nas conversages cotidianas. Assim a realidade social torna-se populada pelo défict, contribuindo para que outros termos assumam este cariter, como sinaliza Gergen (1990): [.-] Esse enfiaquecimento da cultura é progressive, de modo que quando acdes conmuns sao traduzidas em uma linguagem profissionalizada de défict, © essa linguagem é disseminada, a cultura se apresenta nesses termos. Isso eva a uma maior dependéncia das profissdes e estas sto forgadas, por sua vez, a inventar tetmos adicionais de d [..J” Gergen, 1990, p. 353) (Em tradugao livre), Fase 4 Ao mesmo tempo em que agdes das pessoas so construidas socialmente pela linguagem do déficit, observa- se a estruturagto de servigos e oferta de “tratamento especializado” para determinades “quadros” descritos pela terminologia do “défi Quando a este fendmeno se associa o crescimento da indistria farmacéutica ¢ de equipamentos, o ciclo se reinventa progressivamente, por meio de novas categorias. Como tratar “a progressiva enfermidade da cultura”? Existiria antidoto contra o “mal estar” da cultura que se expande? Fase 5 — Por fim, a expansio do vocabulério do défict se caracteriza a partir de duplo movimento, De um lado, a demanda piiblica por ajuda profissional aumenta, estimulando que estes convertam a linguagem conmm em vocabulétio do “expert”. Por outro lado, 0 especializagdes) apoios estratégicos em congressos cientificos. A consequéncia “natural” do erescimento das especialidades, € vio do softimento humano” encontra em outros dominios (equipamentos, “big pharma”, a cxpansio des vocabulos do défict, aponta em direséo a “enfermidade cultural” de cardter progressi Cabe sessaltar que 0s prefixos ¢ os sufixos (per, dis, det, deg, an, in, des), difundidos pela linguagem do déficit na cultura, por seu caréter valorativo (Blikstein, 1995) contribuem de forma significativa para que o capacitismo tome-se um ugar comm em nosso cotidiano. Esses apéndices vocabulares representam etimologicamente 0 que nega, diminui,inferioriza, estigmatiza, hierarquiza — o que “no funciona” ou tem “defeito” — como nas categorias perturbagao, disfuncio, distixbio, degeneracao, anormalidade, anomalia, desequilibrio — corponormativando a condiggo Isimana via taxonomia da “medicina das espécies”. Pr’além de tomar a cultura “enferma” — do latim itgfrmita, infirmitaris (de iyfirmus) que significa fraqueza, debilidade — subjuga a condigao humana e transforma sujeitos de direitos sanitirios (Vasconcellos ¢ Barros, 2013) em “menos pessoas” (grifos n0ss0s), 3. Metodologia © atigo inova ao verifcar as expressbes do déficit da linguagem numa pesquisa. qualitativa (Estrela, 2018; Luddke & Andre, 2013), a partir da anilise documental das teas da saiide © da educaglo publicados a partir de 2006 — quando & realizada a Convengio sobre os Direitos das Pessoas com Deficiéncia — entremeados com categorias do défict que, reiterando mecanismos semidticos € politico-ideolégicos, demarcam valores hierarquizadores ainda presentes no terceiro milénio. Identificados os documentos ¢ 0 periodo e 0 contexto em que foram redigidos, busca-se a localizacao de categorias tipicas da Jinguagem do déficit que, por sua reificag4o, acabam por essencializar as pessoas com deficiéncia. Este estudo faz parte de um projcto de pesquisa (Fioeruz- Rede PMA, 2020) que busca mapear as lacuuas assiseuciais és pessoas com deficiéncia na atengdo primiria em saiide Research, Society and Development, v. 10, n. 9, €21210917889, 2021 (CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i9.17889 Para anilise da area da satide, optou-se por um duplo movimento. O levantamento bibliogréfico nas bases Lilacs, Emibase, WebofScience, googleScholar, LAreferencia, PubMed, Proguest, Academia.Edu, ¢, a partir dos descritores que relacionam a satide & pessoa com deficiéncia, no perfodo compreendido entre 2008 © 2020, mapear as manifestagdes diversas da linguagem do déficit para denominag2o do referido estcato populacional, Adicionalmente foram analisados dois documentos: o Plano Nacional de Saiide de 2020 a 2023 (MS, 2020) e a primeira versio do Edital para a “selec3o voltada a Cursos de Especializacio ~ Latu sensu, Siricto sensu e das Residéncias em Saide, lancado em maio de 2021 (Fioeruz, 2021). Em ambos os documentos apresentou-se a transcrigdo de trechos e a problematizaco das categorias remetidas a linguagem do deficit. Para a anilise da rea da educagao, partiu-se de seis documentos da politica setorial, todos publicados a partir de 2006, ional da Educagio Especial na PRADIME: Programa de apoio aos dirigentes municipais de Educagao (Brasil, 2007b); Diretrizes operacionais da educagiio especial para o atendimento a saber: Educagdo infautil: saberes © priticas da inclusto (Brasil, 2006); Politica N Perspectiva da Educacdo Inclusiva (Brasil, 2007a); Marcos Legais da Educagao Nacional, vol. educacional especializado na educagtio bisica (Brasil, 20092); Marcos Politico-legais da Educagdo Especial da perspectiva da Educagio Inclusiva (Brasil, 20102): ¢ A educacio especial na perspectiva da inclusto escolar: a escola comum inclusiva (Brasil, 20106). Inicialmente buscou-se localizar as expresses ‘especial’, ‘norm’, “diferen’, “distixbio’, ‘atraso’, “atrasad’, & “transtorno’. Como a anili proposta é qualitativa, nao se preocupon em estabelecer a frequéncia desses termos e sim em cotejar o seu significado nos cireuitos de segregacdo e opressio e na perpetuacio da hierarquizacdo entre o valor da vida de seres lmmanos ¢ o viés reproduzido na construcdo sociocultural da valoracdo que marca a estrutura societéria na humanidade. No comeco dos anos 2000, a Convencio sobre os Direitos das Pessoas com Deficiéncia institmcionaliza a defesa do uso da terminologia “pessoas com deficiéneia” lista uma série de recomendagdes e orientagdes no tocante a desianacto desse estrato populacional, a saber: sempre colocar a pessoa & frente de qualquer outra qualificagdo atribuida & mesma; nio camuflar a deficiéncia; mostrar com dignidade a realidade atrclada a diversidade foncional; combater eufemismos; defender a igualdade entre as pessoas com e sem deficiéncia; ete (Sassaki, 2014). A importincia do uso de terminologia correta, particulamente quando 0 tema ou grupo populacional em tela for eivado de preconceito e estigma, é ressaltada por Sassaki (2003). O autor alerta que 20 longo da histéria houve intimeras mndangas na recomendaeio da forma coreta para se referir A pessoa com defcitnca: inclusive mutes terminologias consideradas adequadas no passado, hoje j4 tem o seu uso banido, Esse movimento linguistico segue em evolugao, dado que condiz com as mudangas hist6ricas de percepgdo de valoragao e de direitos das pessoas com deficiéncia na estrutura societaria. Ao mesmo tempo que Sassaki (2003) apresenta a evolug4o dessa tetminologia, ele alerta para os efeitos nocivos da manutengto de termos ¢ conceites absoletos, perenizando pritcas diseriminathriase ciruitos de opressto. © processo de busca da participagio paritéria na vida social ¢ complexo ¢ pode exigir agdes de reparagdo com foco também nos grupos dominantes (Fraser, 2007), de modo a desnaturalizar a normatizac4o construida tendo como base a exclusto de algumas das manifestagdes da diversidade funcional humana. E nesse sentido que a aribuigio do conceit de normalidade a caractersticas funcionais resritas, que nio incliem toda a populagdo, precisa ser desconstruida como uma forma de reparagao 4 histérica injustiga social perpetrada contra as pessoas com deficiéncia. A filésofa pontua, inclusive, a possivel ncessidade de desconstruir “os propros termos em que as diferengas atribuidas sto atualmente elaboradas” (Fraser, 2007, p.123). A concepgao frasereana de justia social reconhece o efeito da construgao cultural € da linguagem sobre a perpetuagto da desvantagem de partcipagto paitéra dos grupos sistematicamentesilenciados na sociedade, tema que esse manuscrito se dedica. Dessa forma, o artigo adere a teoria critica da deficiéucia, consistente com a busca da efetivagdo do potencial ¢ 10 Research, Society and Development, v. 10, n. 9, €21210917889, 2021 (CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i9.17889 emancipacao da populacao cuja diversidade funcional é historicamente estigmatizada em nossa estrutura societitia, Partin-se de bases da sociologia do conhecimento ¢ do movimento construcionista da psicologia social contemporanes para, ent2o, examinar os mecanismos eavolvidos na fabricago cultural da realidade, que resulta na criagdo e disseminacdo de categorias eivadas de valores do déficit, aqui caracterizados como vieses que retroalimentam redes de significados capacitistas na sociedade. A teoria “crip” ou epistemologia “crip” (cripistemologies, no termo original em inglés) fomece 0 percurso teérico para um olhar descolonizador des efeitos colaterais da linguagem do déficit. Com o propésito de demonstrar que mesmo apés a Conveng2o Internacional sabre os Direitos das Pessoas com Deficiencia (Brasil 2007a) a linguagem do déficit faz-se presente na cultura, analisam-se documentos que no III Milénio ainda reduzem sujeitos de direitos sanitétios em “menos pessoas”, apequenados por concessdes de perfil caritativo-religioso, subjugando-os pela invisibilidade social, Considerando-se que nao ¢ incomum que a construgao social da linguagem do défict se faga presente em documentos institucionais e (ou) em planos politicos, na aren da satide e da educagao, optou-se, como proposta metodolégica desconstruir 6 ‘modus operandi da linguagem como operadora do déficit em ambientes politico-institucionais a parti do uso de fragmentos de seus documentos oficiais, 4. Discussio e Resultados Manifestagoes da linguagem do déficit na saride Ressalte-se que é somente no fim da década de 1990, com a Declaracdo de Salamanca, que surge o termo “pessoas com deficigncia”, que segue defendido pelos movimentos de Iuta emancipatoria dessas pessoas. Esse termo € ratificado na Convengao sobre os Direitos da Pessoa com Deficiéncia, em 2006, mias ¢ raramente wtilizado, ¢ persiste a proliferagao do uso de termos desumanizadores, inadequados, desatualizados, aqueles que resumem a pessoa a sua deficiéneia, para nto nencionar 0s pejorativos. Alguns exemplos dessa terminologia equivocada e amplamente disseminada em nossa sociedade sto listados a seguir: “anjos”, “portador de ..",“deficiente Partindo do conceito de direito sanitario como uma expressdo do diteito & saiide ¢ vida em sociedade de pessoas com deficiencia, analisam-se documentos que revelam construgdes socio-histricas reificadas sobre esse segmento populacional. Parte-se da anélise das cigncias sociais eriticas, concordando com Boaventura Sousa-Santos quando afinnia que na discussto em toro da questio igualdade e diferenga, ¢ preciso apontar que a emancipagio critica das pessoas com deficiéncia thes confere o livre arbitrio de “terem o direito de serem iguais sempre que a diferenca 0s inferoriza e 0 direito a serem diferentes sempre que a igualdade os descaracteriza. Dai a necessidade de uma igualdade que reconheva as diferencas ¢ de uma diferenga que ni produza, alimente ou reproduza as desiaualdades” (Souza-Santes, 1999, p.62), s textos levantados nas bases cientificas listadas sio de campos de conhecimento variados (enfermagem, ‘especial”,¢ assim por diante odontologia, psicologia, ciéncias sociais, saiide coletiva, medicina, interdisciplinar). Em que pese o periodo da busea ser a partir de 2008, observa-se multiplicidade de termos inadequados para se referir as pessoas com deficiéncia com marcante reprodugio da linguagem do déficit. A seguir listam-se alguns dos exemplos localizados nos resumos dos textos levantados: crianga, adolescente, pessoa ou paciente com “necessidades especiais” deficiéncia mental: deficiente: deficiente fisico: deficiente visual: deficiente intelectual: incapacidade: incapacidade fisica: irmao deficiente; mulheres deficientes, nto- deficientes: paciente especial; portador(a) de necessidades especiais: portador de deficiéncia; pacientes impossibilitados de falar; pessoa deficiente; pessoa com dependéncia; retardo mental. A gravidade da proliferagao de terminologia que desrespeita a humanidade da pessoa com deficiéncia, a infetioriza ¢ a estigmatiza segue como marca da reproducdo e retrato marcado por uma exterioridade, contribuindo para a segregacao, 0 distanciamento e a bierarquizago. Por exemplo, a altura da implantagio das orelhas de uma crianca com trissomia do 1 Research, Society and Development, v. 10, n. 9, €21210917889, 2021 (CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i9.17889 cromossomo 21 € classificada como baixa: isso decorre da normalizagao da altura de implantagao de orelhas, sem considerar determinadas manifestagdes da diversidade humana. Nesse sentido ainda nao se conquistou um mundo habitado por pares, todos diferentes entre si. E sim um grupo hegemOnico, « um outro grupo marginalizado, fora do padrao, a quem se tem negado 6s direitos numanos mais basicos. Quando se debruca sobre um documento como 0 Plano Nacional de Saiide 2020-2023 (MS, 2020) pode-se observar 0 efeito deletério da linguagem do deficit; e diversos parigrafos suscitaram, por parte do Conselho Nacional de Saiide, uma anilise critica pormenorizada acerca da pessoa com deficiéncia. Ressalte-se que a deficiéncia é uma categoria invisibilizada no referido Plano Nacional de Saiide (PNS). Ao mesmo tempo em que nao se preocupau com a acessibilidade comunicacional, a exemplo da falta de descrigao dos grificos — 0 que impede pessoas com deficiéncia visual de acessar informagées -, da inexisténcia de sua tradugdo para Libras e em linguagem simples, tornando-se inacessivel para muitas pessoas; também nao rnomina essa populago ao decorrer do plano, para além do subcapitulo destinado especificamente as pessoas com det Em que pese a Politica Nacional de Satide da Pessoa com Deficiéncia (MS) prever a participagao desse estrato populacional, desde a concepedo, nas politicas que Ihe dizem respeito, hi uma invisibilizagto da deficigncia no texto do Plano. Mesmo as agdes de salide constantes visando & prevengio de deficitneias stio manifestadas tatando da questo da doenga em si, sem cia suscitar a populagio ¢ abandonando um conceito de said integral, perdido com o apagamento dos modos de andar a vida das pessoas com deficiéncia Adicionalmente, a abordagem da deficiéneia a partir de seu modelo biopsicossocial, conforme determina a LBI, sucumbe, no PNS, a um ultrapassado modelo biomédico da deficiéncia, onde as pessoas com deficiéncia continuam sendo subsumidas pela “deficiéncia” ao invés de contempladas em sua condi¢@o humana: § Pigina 24: “A cireulagio do virus Zika no pais modificou o cenério epidemiologice, bem como a sua vigilénci. (..] foi identificado um aumento significativo de manifestagoes neurolégicas associadas infecsie prévia por arboviras [.] § Pagina 32: [..] A hanseniase & uma doenca transmissivel, crdnica e com alto poder ineapacitante. A doenca € mas frequente na populaeio adulte e masculina-tratamento oportuno e prevencdo de ineapacidades. (.] Diante disso a ampliaco do acesso & detecco precoce [..] ainda se configuram como desafios para o controle da hanseniase [..] em vvirrade do caréter erénico e potencial ineapacitante da doencs [..]” § Pagina 34: No tocante “[...] As doengas cronicas nao transmissiveis (DCNT), a0 se considerar a carga total de morbidade, [..] as DCNT representaram em 2017 cerea de 85% do total de anos vividos com incapacidade [..J” § Pagina 36: “O custo para a pessoa acometida por wna DCNT também ¢ bastante alto no Brasil [..] Uma andlise do Banco Econdmico Mundial estima que paises como Brasil, China, india ¢ Russia perdem, anualmente, mais de 20 milhoes de anos produtivos de vida em razio das DCNT2. [...] Estimatives uacionais indicaram que a perda de produtividade [..] levaria a uma perda na economia brasileira [ § Pagina 37: “[..] As causas externas (acidentes ¢ vi Léncias) representam um importante desafio para 0 padrio de morbidade da populagio em fungdo do elevado mimero de internagdes ¢ sequelas fisicas, scjam temporarias ou permanentes [..]. sobrerudo na populacao jovem. economicamente ativa ee grande onus aos servigos de satide[..]” § Pégina 39; ~ [..] © MS monitora, por meio do Sistema Nacional de Agravos de Notificagdo — Sinan, nove doengas © agravos relacionados a0 trabalho, a saber: perda auditiva induzida por mido (PAIR), lesdes por esforcos repetitivos e distirbto osteomuscular relacionado ao trabalito (LER/Dort) transtorno mental [..]” 12 Research, Society and Development, v. 10, n. 9, €21210917889, 2021 (CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409 | DOI: http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i9.17889 § Pagina 95: “[..] A Rede de Atencio Psicossocial (RAPS) atua de forma a garantir a atengao integral as pessoas com transtormos mentais, por meio de diferentes servigos e estratégias de organizagao do cuidado em saide mental [1 § Pagina 102: “[...] Com vistas a subsidiar a gestdo, os indicadores de alimentagto © mutrigao devem ser reforgados [..] Contudo, ainda se observa em populagdes especificas, como indigenss, um cenario preocupante onde persistem altos indices de déficit nutricional principalmente quando estratificado por regio [.]” (grifos nosso) Se por um lado, é perceptivel a auséncia de dados epidemiolégicos que reconhecam a categoria deficiéncia, assim como a compreensdo sobre o que € deficigncia nas mais variadas politicas. por outro, chama a atengao no PNS que os ‘pardmnetros ¢ as anélises provedidas se desloquem para a lbgica em que a produtividade social da pessoa ¢ umn valor primordial, resumindo o ser humano a partir de una logica wilitarista, Deixa-se de lado, portanto, a condigéo humana e valoriza-se 0 corpo como parte do processo produtivo. Portanto, & simbélico que na atual estrutura do MS, as questées referentes & deficigncia estejam na Atengdo Especializada ¢ se resumam a reabilitacdo, “reintegrando” a pessoa com deficiéncia como forca de trabalho. (arifo nosso), Ressalte-se, ademas, que mesmo na insereo produtiva, a linguagem do déficit taz um vis, uuma vez que © PNS associa as manifestagdes da diversidade funcional estigmatizadas com uma incapacidade de contribuir na sociedade, uma vez mais positivando algumas formas de contribuigdo em detrimento de outras. © Plano traz manifestagdes recorrentes das expressées lesdes, distirbios, sequelas, consideradas potentes aterializagbes da linguagem do déficit, como, por exemplo, a potencial diversidade foncional decorrente da hanseniase traduzida como uma “incapacidade”. fortalecendo e perenizando a ideia equivocada de que a pessoa com deficiéncia seria, de alguma forma, incapaz; 0 mesmo se repete para a colateralidade da diabetes. Outra questio digna de mengdo nos trechos reproduzides nessa anélise é que a populacto com a sindrome congénita do zika virus sequer é mencionada; fica reduzida & mengio de manifestagoes meurolégicas, reduzindo o ser humano & sua lesio, ¢ pontuando que © nefasto modelo biomédico segue presente nos relatos da deficiéncia também nos principais documentos do campo da sate. ‘Ainda que a Rede de Cuidados Pessoa com Deficiéncia (RCPD) reconheca a necessidade de articulagdo com a Atensio Bésica, ndo é 0 que se evidencia na leitura critica do PNS. Torna-se, pois, urgente a incluso da deficiéncia nos prontuitios e diferentes sistemas, programas ¢ redes, com vistas a regulamentacao do indice de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBR-M). que € instramento de avaliacdo biopsicossocial da deficiéncia, para garantir a pessoas com deficiencia, em todos os agendamentos, acessibilidade necessiria aos mais variados servigos de sali. Ao avalisar outro documento institucional, referido primeira verso de edital para a selecio voltada a Cursos de Especializagdo — Latu sensu, Stricto sensu ¢ das Residéncias em Satie, Iangado em maio de 2021 (Fiocrz, 2021) havia a ocorréncia da designagto “pessoas portadoras de deficitucia” presentes nos itens 5.0, 5.1, 6.1 ¢ 6.2 (Da Selectio dos Candidates Cotistas). Em tempo, 0 Comité Fiocruz pela acessibilidade inclusto da pessoa com deficiéncia fez um alerta quanto a utilizacao da linguagem do déficit ¢ o documento foi cortigido. Dessa forma, destaca-se a importincia de instancias com representatividade de pessoas com deficiéncia c a com proatividade das liderancas na Iuta por scus direitos. Contudo, © item 5.1.2 desse Edita requer por parte do candidato 0 “laudo médico (original ou cépia autenticada), emitido nos tltimos 18s (3) meses, por médico especialista da deficiencia apresentada, atestando a espécie ¢ 0 grau, ou o nivel da deficiencia, com expressa referencia a0 Cédigo correspondent da Classificacéo Internacional de Doengas (CID 10)" Ressalte-se que nem todas as deficiéncias encontram na medicina modema o seu diagnéstico. Diferente do louvivel avango conquistado pelo movimento negro, em que cabe ao individuo determiner a sua raca e ao Grae piblico respeitar 0 seu selato, o mesmo nio se observa quando se trata de uma pessoa com deficiéucia. Uma hipétese plausivel para tal desrespeito é 0 13

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