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k= Analise do Discurso & Literatura adlise do Discurso e a Literatura se véem, neste livro, a relacio de interface, de confluéncia. Andlise do surso enquanto disciplina que enxerga a Literatura uma manifestagao da linguagem e que a trata como Linguagem, evidentemente, distinguivel da aagem usada para outros fins. Mesmo consciente de Literatura € também linguagem que coloca em .eiro plano a prépria linguagem, isso pode provocar mas reagdes contrérias aqueles que defendem uma ragdo clara de ambas. Nesse sentido, a Andlise do urso se apresenta como mais uma possibilidade de dar textos literérios com conceitos ¢ ferramentas que, srovem o contrario, servem para todo e qualquer tipo liscurso e de texto, inclusive, evidentemente, o 4rso € 0 texto literario, lise do Discurso & Literatura. Hoje, uma interface nao ossivel mas real. Ainda assim, discute-se, atualmente, Anilise do Discurso poderia/deveria abordar textos irios, se ela poderia/deveria, com seu prdprio umental teérico e a sua propria histéria, transpor o que . a existéncia de uma fronteira entre a Literatura e a ilistica. E, sobretudo, uma fronteira disciplinar criada nbito académico. Este livro é uma resposta afirmativa apolémica. onceitos “préprios” da Lingiiistica e da Anélise do urso so aplicados a diversos ¢ diferentes objetos ais resultantes da interacdo linguageira, nado seria ivel pensar que essa disciplina nao iria se interessar anélise dos resultados de uma pratica discursiva das + antigas do mundo: a literéria. Vejo que ha um ‘esse crescente dos pesquisadores da Anilise do curso em trabalhar com manifestagdes desse tipo de uagem, numa perspectiva que nao exclua a absorcio roca de ambasas disciplinas. RENATO DE MELLO (Organizador) ANALISE DO. DISCURSO & LITERATURA Faculdade de Letras da UFMG 2005 (gen. -Facuidade da Letras voor, Byiplictaca YS. Abg0. LOOT we ANALISE DO DISCURSO & LITERATURA RENATO DE MELLO (ORGANIZADOR) Niicleo de Andlise do Discurso Programa de Pés-Graduagdo em Estudos Lingiifsticos FACULDADE DE LETRAS DA UFMG i AUFRAG - Facuigade oe Letras ~uaipibiioteca Belo Horizonte 2005 + wvob | ULF.M.G. - BIBLIOTECA UNIVERSITARIA UMAR 173720504 NAO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA 216198 Direitos Autorais reservados ~Lei 5988/73 Copyright ©2003 ~ Nuicleo de Anilise do Discurso da FALE-UFMG Os capitulos assinados sao de responsabi idade de seus autores, ndo traduzindo, necessariamente, a opinidio do NAD/FALE-UFMG. Os capitulos deste livro, no todo ou em partes, podem ser reproduzidos para fins educacionais e de pesquisa, porém, é vedada a sua comercializagao, nos termos da Lei dos Direitos Autorais, Lei 9610/98. Renato de Melio Projeto Cientffico e Editorial Ficha calalogrdfica elaborada pelas Bibliotecérias da FALE-UFMG Anélise do Discurso & Literatura / Renato de Mello A532 (organizador).- Belo Horizonte : Nucleo de Andlise do Discurso, Programa de Pés-Graduacao em Estudos LingOlsticos, Faculdade de Letras da UFMG, 2005." 385 p. : il. - (Andlises discursivas; v. 8). Inclui indice onomastico. ISBN: 65-87470-73-6 1. Andlise do discurso. |. Mello, Renato de. I. Série. CDD : 418 NUCLEO DE ANALISE DO DISCURSO Programa de Pés-Graduacao em Estudos Lingiifsticos Faculdade de Letras da UFMG hutp://www.letras.ufmg.br/nad PROGRAMA DE P6S-GRADUACAO EM EstuDos LINGUisTiCos PROJETO DE EDITORACAO CIENTIFICA SERIE — ANALISES DISCURSIVAS VOLUMES PUBLICADOS 1. Teorias e Praticas Discursivas: Estudos em Anilise do Discurso (1998) 2, Fundamentos e Dimensdes da Andlise do Discurso (1999) 3. Categorias e Praticas de Andlise do Discurso (2000) 4. Anidlise do Discurso: Fundamentos e Praticas (2001) 5. Ensaios em Anilise do Discurso (2002) 6. Anélise do Discurso em Perspectivas (2003) 7, Géneros: Reflexdes em Anélise do Discurso (2004) 8. Andlise do Discurso & Literatura (2005) NUCLEO DE ANALISE DO DiscuRSO FALE-UFMG Av. Anténio Carlos, 6627 - Belo Horizonte-MG — Cep: 31270-901 Tel. (xx31) 3499-6088 — Fax. (xx31) 3499-5124 nad @letras.ufmg.br SUMARIO ‘ APRESENTACAO..... PREFACIO. O discurso literdrio contra a literatura... Dominique Maingueneau Anilise do Discurso & Literatura: uma interface real........ Renato de Mello A autorialidade do discurso literario... Melliandro Mendes Galinari El Sur: uma leitura lingiiistico-discursiva de Borges. Juan Pablo Chiappara Cabrera & Ida Lucia Machado O Tiers em O Alquimista, de Paulo Coelho... Jeter Jaci Neves & Ida Lucia Machado As instancias enunciativas em A Sogra, de Terénci Sérgio Henrique Rodrigues & Renato de Mello Um perfil dos leitores da obra de Ziraldo.. Diléa Helena de Oliveira Pires O discurso enunciativo nas crénicas metalingiifsticas de Luis Fernando Verissim Lucia Helena Junqueira Machado Anilise discursiva das crénicas de Luis Fernando Verfssimo... Ana Maria Gini Madeira & Renato de Mello Estratégias textuais nas crénicas esportivas de Luis Fernando Verissimo. Vera Lticia Aparecida Rezende & Edson Nascimento Campos 45 63 85 101 121 145 167 187 7 19 20 2 Da ficgao rosiana: leis discursivas e suas transgress6cs.... 207 Teresa Cristina Alves de Melo & Renato de Mello Muito além das palavras: a forga do contexto na Produgio de de sentido em Being There... 227 Vera Lticia Menezes de Oliveira e Paiva O discurso ‘transgressivo’ de Chrétien de Troyes... 239 Ida Lucia Machado Aspectos lingilisticos de discursos _ ficcionais sobre trabalhadores: os casos de Germinal e Morro Velho...... 255 Anténio Augusto Moreira de Faria A metalinguagem da pontuagiio em Uma Histéria Distrafda, de Cida Chaves... 279 Ana Maria Ndpoles Villela A organizagao informacional em Uma Histéria Distrafda, de Cida Chaves... - 295 Janice Helena Chaves Marinho A organizagio enunciativa/polifonica em Uma Histéria Distratda, de Cida Chaves.. 309 Janatna de Assis Rufino & Regina Vago Brunetti O manto de Penélope: uma leitura de Uma histéria Distraida, de Cida Chaves. 321 Helcira Lima A dimensio discursiva da déixis... 333 Jerénimo Coura-Sobrinho Vinicius de Moraes ¢ o plano da expresso na Poesia............. Ana Cristina Fricke Matte & Glaucia Muniz Proenga Lara O contrato situacional em O morro dos ventos uivantes, de Emily Brénte .. Jodo Bésco Cabral dos Santos fnDICE ONOMASTICO..... COLABORADORES ANA CRISTINA FRICKE MATTE UFMG, ANA MARIA GINI MADEIRA. UFMG, ANA MARIA NAPOI CEFET-MG VILLELA ANTONIO AUGUSTO MOREIRA DE FARIA UFMG DILEA HELENA DE OLIVEIRA PIRES UFMG DOMINIQUE MAINGUENEAU Universidade Paris X11 EDSON NASCIMENTO CAMPOS UFMG GLAUCIA MUNIZ PROENGA LARA UFMG HELCIRA LIMA UFMG Iba LUCIA MACHADO UFMG JANAINA DE ASSIS RUFINO. UFMG JANICE HELENA CHAVES MARINHO UFMG: JERONIMO COURA SOBRINHO CEFET-MG Jeter JACI NEVES UFMG JOAO Bosco CaABRAL DOS SANTOS UFU JUAN PABLO CHIAPPARA CABRERA UFMG LUcIA HELENA JUNQUEIRA MACIEL BIZZOTTO UFMG MELI.IANDRO MENDES GALINARE UFMG PATRICK CHARAUDEAU Universidade Paris XII REGINA VAGO BRUNETTI UFMG RENATO DE MELLO UFMG SERGIO HENRIQUE RODRIGUES UFMG TERESA CRISTINA ALVES DE MEI.O UFMG VERA LUCIA APARECIDA REZENDE UFMG ! VERA LUCIA MENEZES DE OLIVEIRA E PAIVA UFMG TRADUTORES RENATA AIALA DE MELLO RENATO DE MELLO. APRESENTACAO A coleténea que ora trazemos a ptiblico é 0 oitavo volume publicado pelo Programa de Pés-Graduagio em Estudos Lingiifsticos da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais na séric Andlises Discursivas. O NAD tem congregado projetos de pesquisadores oriundos das mais diversas Areas. Isso tem sido possfvel gragas A natural interdisciplinaridade que rege os conceitos da moderna escola de AD francesa, adotada por varios pesquisadores que a cla vieram se unir. O livro Andlise do Discurso & Literatura se dedica especificamente as pesquisas feitas nas confluéncias entre Lingiistica e Literatura. Segundo Dominique Maingueneau, neste mesmo livro (2004:17), Considerar o fato literdrio em termos de “discurso” é contestar esse ponto fixo, essa origem “sem comunicagdo com o exterior”, que seria a instdncia criadora, para retomar uma célebre formula de Proust em ‘Contra Sainte-Beuve’. E renunciar ao fantasma da obra em si, em sua dupla acepgao: a) a de obra auténoma, b) a de obra enquanto consciéncia criadora... _O NAD tem, nos tiltimos anos, produzido varias pesquisas nas quais Tenova-se a percep¢ao do texto literdrio, a apreensio do fato e do fazer literdrio, considerado em sua diversidade histérica, geogrdfica ¢ social como discurso. Essa abordagem discursiva da Literatura tem sua origem na construgdo de interfaces que leva em consideragiio elementos conceituais da Sociocritica, da Psicandlise, da Teoria da Literatura, da Critica Literdria e também de elementos conceituais advindos de varias teorias lingiifsticas. Nesse novo volume reunimos 21 artigos de pesquisadores (professores ¢ alunos ligados ao POSLIN ou ao NAD) que apresentam suas perspectivas € suas expectativas face ao instigante objeto de estudos que é 0 texto literari Esses artigos que tratam da Literatura tomam muitas vezes por referencial ase um conceito de discurso literdrio que leva em conta as dimensées estética, estilistica e retérica, além de propor reflexdes sobre 0 conceito de ficgdo e€ contrato de comunicagio na construgio das interfaces. Apresentamos, a seguir, um resumo de cada um dos vinte e um artigos. 0 primeiro texto desse livro - O Discurso Litertirio contra a Literatura, de Maingueneau -, j4 havia sido publicado por nés, em francés, no sexto volume da série (2003:17-32). Resolvemos traduzi-lo para o portugués para que ele alcance um ntimero maior de leitores e também porque ele discute exatamente 0 que 0 livro Andlise do Discurso & Literatura se propéc. Para Maingueneau (2004:19), ao falarmos, hoje, de “discurso literdrio”, v» renunciamos & definigdo de um centro ou um lugar consagrado. As condigées do dizer atravessam o dito, que investe suas proprias condigées de enunciagdo (0 estatuto do escritor associado ao seu modo de posicionamento no campo literdrio, os papéis ligados aos géneros, a relagdo com destinatério construida através da obra, os suportes materiais, os modos de circulagdo dos enunciados...). Nessa perspectiva, tratar a Literatura enquanto “discurso literério” faz com que se dé uma maior legibilidade a uma grande parte dos textos literdrios. O segundo artigo, de Renato de Mello, propde uma reflexdo sobre a interface entre Andlise do Discurso e Literatura e um pouco sobre a histéria dessa interface. Em seguida, Melliandro Mendes Galinari_ nos apresenta 0 contrato de autoria no texto literdrio, O pesquisador busca preencher o lugar destinado ao autor no discurso literario, assim como a sua funcionalidade para a compreensio da obra. No quarto capitulo, Juan Pablo Chiappara Cabrera ¢ sua orientadora de Mestrado, Ida Lucia Machado, se propéem a pensar, a partir do conto El Sur, de Borges, assuntos tedricos tais como a interdiscursividade, a questo da relevancia do autor, da paratopia e da heterotopia. No quinto artigo, Jeter Jaci Neves e sua orientadora de Mestrado, Ida Lucia Machado, analisam O Alquimista, de Paulo Coelho, se debrugando sobre o Tiers no espaco interdiscursivo da circulagio dos discursos. No sexto trabalho, Sérgio Henrique Rodriguos ¢ seu orientador, Renato de Mello, buscam identificar as instancias enunciativas que compdem a comédia A Sogra, de Teréncio. 7 Diléa Heleria de Oliveira Pires, no sétimo capitulo, levanta, em uma anilise quantitativa, um perfil do leitor empirico da obra de Ziraldo. O oitavo, o nono € o décimo capftulos sio dedicados a crénicas de Verissimo, Nos trés capftulos, suas autoras se valem da Teoria Semiolingitistica, de Charaudeau. Lucia Helena Junqueira Maciel Bizzotto e sua orientadora, Ida Lucia Machado, tratam das crénicas metalingiifsticas. Ana Maria Gini Madeira e seu orientador, Renato de Mello, buscam conhecer melhor os leitores destinatérios e interpretantes de algumas crénicas publicadas em jornal. Vera Liicia Aparecida Rezende e seu | ‘orientador, Edson Nascimento Campos, tratam das estratégias textuais lagenciadas pelo autor-modelo na construgado de seu feitor-modelo. O décimo primeiro artigo tem como objeto de estudo a obra de Guimaraes Rosa, Grande Sertdo: Veredas. Teresa Cristina Alves de Melo e seu lorientador, Renato de Mello, se debrugam sobre os efeitos de real e de 'ficgdo presentes no Contrato Global de Ficgdo, exposto pelo mesmo autor ¢ ‘fazem um levantamento das leis discursivas ¢ suas transgress6es na obra jrosiana. Em seguida, Vera Lucia Menezes de Oliveira ¢ Paiva, Ida Lucia Machado ¢ Antonio Augusto Moreira de Faria, apresentam seus trabalhos. Vera lapresenta a forga do contexto na produgdo de sentido em Being There, ‘romance de Jerzy Kosinski, que foi publicado em 1971 ¢ ficou imortalizado ‘nas telas do cinema em 1979 com Peter Sellers no papel principal. Ida lanca ‘um olhar discursivo sobre 0 romance Cligés, de Chrétien de Troyes, jtentando deslindar as apostas ou jogos linguageiros do escritor. Ela visa ienfatizar a construgdo da parddia e de seu séqilito de ironias, no caso desse \stjeito-comunicante ou sijeito-escritor, seguindo sintagmas que sio caros 4 [Teoria Semiolingiifstica. Antonio Augusto se dedica aos aspectos . \lingiifsticos presentes em dois textos ficcionais nos quais so retratados trabalhadores: Germinal, de Emile Zola e Morro Velho, de Avelino Féscolo. Antonio Augusto nos mostra que no processo de reflexo e Tefragéo, articulam-se os percursos semanticos intradiscursivos e as oposigées interdiscursivas, tanto no plano do enunciado quanto no da enunciagio. Do décimo quinto ao décimo oitavo textos, temos um grupo de pesquisadoras que apresentaram seus trabalhos na sessio de comunicagio intitulada Um modo distraido de ver o mundo, no Coléquio Literatura e Infancia, realizado na FALE/UFMG, em 2005, Ana Maria Népoles Villela, Janice Helena Chaves Marinho, Janaina de Assis Rufino, Regina Vago \Brunetti ¢ Helcira Lima tém como objeto de estudo a obra Uma Histéria |Distraida, de Cida Chaves. Todas também trabalham com o mesmo jinstrumental teérico: a Teoria de Andlise Modular do Discurso, proposto por pesquisadores de Genebra. Entretanto, cada uma delas trabalha com aspectos diferentes dessa tcoria, fazendo com que seus artigos se complementem. No décimo nono capitulo, Jerénimo Coura Sobrinho trata da dimensio discursive da déixis, se valendo da crénica O homem e suas mdquinas, de Raquel de Queiroz. Jerénimo anilisa categorias enunciativas presentes na crénica que favorecam a compreensio do texto com base no rastreamento da posigao do enunciador em relagdo ora ao destinatdrio, ora a0 objeto ao qual se refere. No vigésimo artigo, Ana Cristina Fricke Matte e Glaucia Muniz Proenga Lara trabalham com dois poemas de Vinicius de Moraes e o plano da expressiio na Poesia. E, no ultimo artigo, Joio Bosco Cabral dos Santos propde uma reflexdo acerca da influéncia do mundo das tematicas nas representagdes imagéticas do universo de ficgdo em O morro dos ventos uivantes, de Emily Bronte. Como o leitor poderd notar, Andlise do Discurso & Literatura nao propde uma teoria sobre o discurso ou 0 texto literrio. Ele é, sobretudo, um livro interdisciplinar e polifénico, composto de vozes de pesquisadores de diferentes universidades ¢ de diferentes origens, que nos falam dos conceitos que cada um preferiu adotar e 0 porqué; dos textos literirios que acharam miais titeis para ilustré-los ¢ o porqué. Pedimos, pois, ao leitor para considerar os artigos a partir de suas diversidades e de suas semelhangas, ou melhor, a partir das perspectivas por elas sugeridas. Acreditamos ser conveniente explicitar 0 contexto de discussdo académica no qual aparece o tema abordado nesse livro. A Andlise do Discurso e a Literatura se véem, aqui, numa relacao de interface, de confluéncia. Andlise do Discurso enquanto disciplina que enxerga a Literatura como uma manifestagao da linguagem e que a trata como tal. Linguagem, evidentemente, distinguivel da linguagem usada para outros fins. Mesmo consciente de que Literatura € também linguagem que coloca em primeiro plano a prépria linguagem, isso pode provocar algumas reagdes contrarias Aqueles que defendem uma separago clara de ambas. Esta atitude é vista com preocupagao por certos pesquisadores. E 0 caso de Machado (2003:83-84), que pensa que: As relagées entre o texto de ficgdo e a AD provocam, ainda hoje, diividas ou discussdes em certos meios onde a Literatura sofre 0 peso de wna tradigdo cultural elitista que insiste em ndo aceitar nenhum tipo de abordagem que tenha suas bases na lingiifstica. Nesse sentido, a AD se apresenta como mais uma possibilidade de abordar textos literfrios com conceitos ¢ ferramentas que, até provem o contrério, servem para todo e qualquer tipo de discurso e de texto, inclusive, evidentemente, o discurso € 0 texto literario. Renato de Mello PREFACIO Literatura e Lingiifstica, reconhecamos, nunca se deram muito bem. Questio de territério - as disciplinas sio separadas: Literatura de um lado, Lingiiistica e Filologia do outro — mas também questdo de método, quando se trata de analisar textos, os lingilistas se interessam mais pelos fatos da lingua, os estudiosos da Literatura mais A estrutura e ao sentido de uma obra. Essa situagdo nfo é de hoje. Na verdade, no passado, quando ainda nao falévamos de Lingilistica, as explicagées literdrias se valiam das nogdes de estilfstica (sobretudo para os textos poéticos) e¢ os gramiticos ou estudiosos da Estilistica se valiam de exemplos emprestados dos textos literérios. Entretanto, os dois domfnios nao se confundiam. Depois veio a Lingiiistica Estrutural e, com ela, a Semiética Literdria. Novos combates surgiram; para ficarmos somente com um exemplo, a polémica entre Roland Barthes e Jean-Pierre Richard a propésito da andlise dos textos de Racine. Varios literatos se apropiaram de certas nogées de ‘ingiifstica e de semidtica (por exemplo, a nogio de “actante”), enquanto ‘que os lingUistas descobriam a necessidade de trabalhar com textos nio literdrios, o que finalmente criava um tipo de gentleman agreement entre os representantes dessas duas disciplinas. E hoje? Primeiramente, me parece que hé um reconhecimento reciproco por parte de cada um desses purceiros pela disciplina do outro. Isso porque trata-se, evidentemente, de duas disciplinas que visam a andlise dos textos: uma levando mais em conta a totalidade de uma obra e seu contexto, a0 mesmo tempo sociolégico e artistico, a outra se debrugando mais particularmente nas caracteristicas estruturais dos textos. Entretanto, criou- se, em cada uma dessas disciplinas, uma conscientizagao: que quanto mais a andlise dos textos literdrios tomar de empréstimo nogées e procedimentos de varias “disciplinas, mais ela sera apurada: a pouco tempo tivemos o empréstimo & Sociologia (a socioliteratura), depois ao estruturalismo ingUfstico e 4 Semidtica, e agora, 4 Andlise do Discurso. Dito de outro do, a andlise dos textos literdrios nio pode ser sendo pluridisciplinar, etfaculdade de Lelas te, iPiblioteca, Devemos nos afligir, nos alegrar? Evidentemente, é a segunda opcdo que se impde. As Ciéncias Humanas e Sociais modemas nos ensinam que nao ha objeto de estudo reservado a uma s6 disciplina, e que cada uma propde um aclaramento particular que lhe é préprio, sobre o objeto analisado. Mas elas fos ensinam, ao mesmo tempo, que nenhuma dessas disciplinas pode ignorar as outras, que é preciso considerar nelas as afinidades para alargar ainda mais o campo das interpretagdes. Nenhuma dessas disciplinas deve abjurar-se, cada uma guardando sua autonomia, Mas nenhuma pode, doravante, acreditar-se toda poderosa. Entramos na era de uma interdisciplinaridade fecunda. O livro Andlise do Discurso & Literatura testemunha essa interdiciplinaridade, e abre, ao mesmo tempo, o caminho para novas interrogagées. Paris, junho de 2005. Patrick Charaudeau Professor da Universidade de Paris XII Diretor do Centro de Andlise do Discurso Tradugio de Renato de Mello MELLO, R. Andlise do Discurso & Literatura. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2005. O DISCURSO LITERARIO CONTRA A LITERATURA' DOMINIQUE MAINGUENEAU, UNIVERSIDADE Paris XII SOBRE O DISCURSO LITERARIO \Considerar o fato literério em termos de “discurso” é contestar esse ponto fixo, essa origem “sem comunicagio com o exterior”, que seria a instdncia criadora, para retomar uma célebre férmula de Proust em Contra Sainte- ‘Beuve. E renunciar ao fantasma da obra em si, em sua dupla acepcdo: a) a de obra auténoma, b) a de obra enquanto consciéncia criadora. Hé vdrias décadas, numerosos trabalhos tém renovado, neste sentido, nossa percep¢ao da literatura. Entretanto, muito freqiientemente, eles sio compreendidos como retificagées locais, ainda que esse panorama esteja comegando a se reconfigurar. Imposs{vel modificar nossa concepgio da instancia criadora sem propor uma modificagio de nossa apreensio do fato literério, considerado em sua diversidade histérica e geogrfica. No espacd estético aberto pelo romantismo ¢ até os anos 60, 0 centro do estudo era, direta ou indiretamente, o autor. Diretamente quando estudévamos sua vida; indiretamente quando estudévamos o “contexto” de sua criagdo. E quando fazfamos uma anilise estilfstica, 0 objetivo era ler “sua visio do mundo”. Em um certo sentido, com o estruturalismo, nao houve mais centro, mas a literatura ainda se encontrava em sew lugar, nas fronteiras do Texto. Ao falar, hoje, de ciscurso literério, renunciamos 4 || Este texto foi publicado em francés no livre Andlise do discurso em perspectiva Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2003. Publicamos, agora, o mesmo texto, em portugués. | 17 definigio de um centro ou um lugar consagrado. As condigdes do dizer atravessam 0 dito, que investe suas préprias condigGes de enunciagao (0 estatuto do escritor associado ao seu modo de posicionamento no campo literdrio, os papéis ligados aos géneros, a relagiio com destinatério construfda através da obra, os suportes materiais, os modos de circulagéo dos enunciados...). Refletindo, assim, em termos de “discurso literfrio”, ndo se trata somente de proceder a um aggiornamento epistemoldgico, mas de dar uma legibilidade & maior parte dos corpora literdrios: devemos ter acesso a modalidades da enunciagdo que nao advém da concepgao romantica do estilo. Na Franga, por exemplo, a literatura de saldo do século XVII, a poesia petrarquisante, e até mesmo a tragédia classica no sao legiveis, senao quando nos libertamos dos moldes de pensamento herdados do romantismo. Ao dizer que tal ou tais obras nao tém grande interesse literdrio porque nelas se enconiram “clichés demais”, porque trata-se de poesia “oficial” ou de “literatura de salao” , porque elas “pecam por falta de originalidade” ou de “sinceridade”, 86 estamos mostrando que nao as apreendemos com o instrumental adequado. Se essa ldgica é levada a cabo, parece que a prépria nogiio de “discurso literério” torna-se problematica. Ela parece, de fato, pressupor que, por género préximo e diferenga especifica, existiria uma categoria correspondente a um subconjunto bem definido da produgao discursiva de uma sociedade: o discurso literdrio. Mesmo se pudermos sempre contestar © tracado exato de suas fronteiras, essa categoria é inegavelmente pertinente para o regime aberto pela estética romantica, que, precisamente, impés a nogdo de “literatura”, ou melhor, de “Literatura”, oposta ao restante dos enunciados da sociedade, considerados profanos. Mas a etiqueta “discurso literdrio” se revela arriscada quando abordamos outros regimes da literatura além daquele previsto h4 mais de dois séculos (e cuja perenidade nao é, além disso, assegurada). Por um lado, ela designa, hoje, um verdadeiro “tipo de discurso”, ligado a um estatuto pragmitico particular, cuja existéncia € indiscutfvel no nosso tipo de sociedade; por outro lado, ela permite somente agrupar um conjunto considerdvel de fendmenos pertencentes a épocas e a sociedades muito diversas, mas que nao designa exatamente um tipo de discurso, uma unidade delimitavel ¢ estavel. Talvez fosse necessério fazer, aqui, uma distingdo entre o discurso literdrio, nogdo que estaria reservada ao regime da literatura moderna, ¢ a discursividade literdria, que adaptaria configuragdes muito diversas. Mas essa distingdo, como a maioria dos esforcos de terapia terminolégica, corre o risco de nao dar em nada. Além disso, ela s6 faria deslocar o problema para o adjetivo “literario”. O mais simples é, sem dtivida, estar consciente desse duplo estatuto, que é, alias, moeda corrente nas ciéncias sociais. |POSICIONAMENTO E INTERTEXTUALIDADE ‘ Vamos, agora, refletir sobre a “intertextualidade”. Nao se trata de contestar ‘sua importancia — a primazia do interdiscurso é, aliés, um dos princfpios chaves da andlise do discurso, pelo menos na maioria das correntes francéfonas — mas de contestar a interpretagdo redutora que muito freqientemente Ihe é dada. Nos anos 60 a “morte do autor” — diga-se de passagem, mais mididtica que efetiva —, nao se fez em tinico proveito do Texto, mas da intertextualidade?, que chegou ao zénith’. Podemos, além disso, pensar que hd uma relagiio entre 0 apagamento da figura do autor ¢ o sucesso da intertextualidade: esta Gltima permitia conferir uma forma de “exterior” ao texto, sem ter que para isso sair do cfrculo da textualidade. Isso porque privilegiar a imtertextualidade ndo modifica necessariamente a apreensio “textualista” da literatura. Certamente, por af rompe-se com um certo debate entre a consciéncia criadora e a obra, mas pode-se também muito bem perpetuar os moldes tradicionais: ao invés de apreendermos a obra singular como unidade fundamental, apreendemos o conjunto da literatura, gigantesco corpus no qual cada obra se revela feita de uma multiplicidade de outras, cada livro a manifestagdo de um Livro nico. Idéia que Genette coloca sob a _ tutela inevitével de Borges: La littérature est inépuisable pour la raison suffisante qu'un seul livre Vest. Ce livre, il ne faut pas seulement le retire, mais le récrire, fit-ce comme Ménard, littéralement. Ainsi s'accomplit Vutopie borgésienne d'une Littérature en transfusion perpéwelle (ou perfusion transtextuelle), constamment présente a elle-méme dans sa totalité et comme Totalité, dont tous les auteurs ne font qu'un, et dont tous les livres sont un vaste Livre, un seul Livre infini. L’hypertextualité n'est qu'un des noms de cette incessante circulation des textes sans quoi ta littérature ne vaudrait pas une heure de peine. Et quand je dis une heure... (Genette, 1982:453) + Ha, aqui, um problema de terminologia. Em andlise do discurso, distinguimos, em geral, intertexto de interdiscurso. O primeiro € 0 conjunto de textos com os quais um texto particular entra em relacio; 0 segundo é o conjunto dos géneros ¢ dos tipos de discursos que ineragem ‘em uma dada conjuntura, No nivel em que nos situamos aqui, nio faremos a distingio. * 0 termo zenith (apogeu, alge, ponto culminante) surgiu em um artigo de Kristeva (1967): Jakhtine, le mot, le dialogue et le roman”; Barthes o retomou, em 1973, no artigo “Texte” da Encyclopedia universalis. Ww As obras singulares imergem em uma Literatura que atravessa todas elas, uma Literatura presente no menor de seus textos € que retine em museu imagindrio, disponivel para classificagdes e¢ comentérios infinitos. Eo sonho da totalidade dos livros dispostos em prateleiras de uma tinica Biblioteca e 0 sonho correlativo da Biblioteca que estaria contida em ui livro. O sonho de Borges se une, aqui, ao do esteta ou do professor, para que a obra s6 seja tida como tal quando, cada vez mais, ela remeter a uma infinidade de outras obras. Borges nao é 0 tinico escritor que defende essa concepcao “bibliotecdria” da literatura, que remete, além disso, aos letrados e aos universitérios,’ uma imagem da literatura que Ihes parece mais “pura” do que aquela de um escritor engajado, por estar em melhor harmonia com suas categorias € seus gestos de leitura os mais enraizados. Mas uma anidlise do discurso literdrio deve levar em conta formas de criacdo as mais diversas: a literatura se nutre de toda energia criadora, daquela que leva o escritor a viver através de seu préprio refigio do mundo, assim como daquela que 0 coloca no centro dos movimentos da sociedade. Quando consideramos as condi¢ées de emergéncia das obras, o essencial nfo é afirmar a primazia de intertextualidade sobre cada texto - tese, aliés, que ninguém contesta ¢ que & vilida para todos os tipos de discurso - mas, a maneira cujo cada posicionamento criador gera esta intertextualidade. O ponto de vista do bibliotecdrio, ao contrdrio, é o de um universo sem conflitos onde as obras coexistem, mudas em tracos mortos, abertas ao comentdrio infinito: desde que ela alcance o Thésaurus, ¢ seu autor alcance o Pantedo dos grandes autores, mesmo uma obra que se pretendia subversiva, € percebida como um fragmento do patriménio, monumento. Isso tende a relegar ao segundo plano o ato de exclusdo pelo qual se institui uma singularidade: para o escritor, o intertexto é um espaco sempre focalizado, onde ele deve constituir e manter uma identidade enunciativa. A geometria elementar que justapde as obras alinhadas é enganosa; com a gestéio de sua identidade no intertexto, a obra é tinica, ela se estrutura através das tensGes que a tornam possfvel, sua enunciacio nunca cessa de legitimar 0 que a traz € 0 que cla traz. Para os escritores, 0 exercicio do discurso literdrio nio é, entéio, a entrada em um mundo onde as obras dialogariam pacificamente. A criagio vive desses gestos pelos quais o escritor rompe um fio, sai do territério esperado, desloca, desvia, exclui ou ignora, reavalia outras obras... a propria nogdo de “posicionamento” implica uma relago triangular: é se confrontando a posicionamentos concorrentes que o criador define suas proprias trajetérias 20 no intertexto. Dessa forma, ele indica qual é para ele o exere {iteratura. io legitimo da vancemos um pouco mais. Quando falamos de intertexto de uma obra iteraria, pensamos primeiramente em outros textos literdrios. Entretanto, se as obras se alimentam de outras obras, elas se alimentam também das: elagOes entre textos que, em uma conjuntura dada, adyém da literartura € dirs que nao advém dela. A compactagao de um conjunto de enunciados chamados “literérios” é solidaria dessa idade do artista rei onde a literatura aspirava o estatuto de excegdo: de um lado o ruido infinito das palavras vas, “transiti cuja finalidade estaria fora delas mesmas, do outro, 0 circulo. estreito das obras “autotélicas”, “intransitivas”. Mas nao se pode m: contentar em opor um intertexto literdrio “sagrado” a um intertexto n literario “profano”: nos confrontamos com um imenso conjunto de discursos através do qual a literatura negocia sem parar seus modos de enunciacdo. O discurso literdrio ndo tem territ6rio proprio; toda obra 6 a priori dividida entre 0 fechamento sobre 0 corpus, reconhecido como Jenamente literdrio, e a abertura & multiplicidade das praticas linguageiras que excedem esse corpus. A delimitagao do que seria ou nao literatura depende de cada posicionamento e de cada género no interior de um certo regime da produgao discursiva. Trabalho incessante sobre suas fronteiras ~ necessidade de ultrapassi-las e necessidade de reforga-las ~ que € 0 proprio motor dé um discurso “literdrio” que saberia se manter em “seu” lugar. A INTERLINGUA A problemitica do inter- diz respeito as obras, mas também as linguas que mobilizam essas obras, como tentamos mostrar em O Contexto da obra Literdria, Para qualquer posicionamento, ao lado do inyestimento desse ou Jaquele género do interdiscurso, ha também o investimento da interlingua, pelo qual uma obra se inscreve no espago das pritticas verbais e dos idiomas. Ha, aqui, um duplo “investimento": a) entrada em um espago que se pretende ocupar, b) atribuigdo de um valor. Por menos que levemos em conta a diversidade dos égias da produgio literdria, 0 preconceito que diz que o escritor, través de sua obra, pertence plenamente & sua lingua nao se sustenta. Esse preconceito aparece ligado a uma representagao romintica da criagéo como descida as profundezas do eu que se acomoda mal nos espagos entre a literatura e que seria a lingua do “povo”: em particular quando a obra produzida em uma lingua “estrangeira” ou quando existem cddigos esl 2 especfficos para a comunicagao letrada (podemos imaginar, aqui, todos os problemas colocados pela no¢do de “lingua literdria”). De fato, nenhuma I{ngua é mobilizada por uma obra por ser esta a lingua matema de seu autor. Mesmo quando ele escreve em sua Ifngua materna — € & hoje 0 caso mais freqiiente — ele nao saberia fazé-lo porque é “natural” mas porque seu préprio posicionamento o prescreve. Ha, além disso, uma infinidade de manciras de escrever na “sua” \ingua materna: cada obra mobiliza a lingua da maneira que corresponde ao seu universo de sentidos. Uma obra literdria nao é tomada em uma lingua completa ¢ auténoma, cla emerge e se mantém através das tensdes entre linguas e entre variedades linguageiras e a mancira que cada uma tem de gerar estas tensdes € constitutiva de scu posicionamento. A concepgao “amalgamada” da relagio entre uma obra e uma lingua, preferiremos uma outra: a do escritor que constréi sua enunciagio através da multiplicidade da interlingua, das relagdes que, em uma conjuntura dada, se tecem entre as variedades da mesma lingua (diversidade diacrénica, diversidade de uma regiio para outra, diversidade dos niveis de lingua, diversidade dos usos segundo géneros de discurso, os meios, as profissées...), assim como entre csta Iingua e as outras linguas, passadas ou contemporaneas. Através dessa interlfngua, alguns fabricam hibridos, outros se fecham no imagindrio de um uso purificado, ¢ ainda outros circulam entre diversas Iinguas. Essa ultima situagio, largamente atestada, obedece a princfpios muito diversos que perfazem somente um em cada obra: 0 bilingiiismo francés/inglés de um Beckett est4 nos antfpodas daquele que em Guerra e Paz ou em a Montanha Magica faz inserir em Tolstoi ou em Thomas Mann, sem tradugao, paginas inteiras de didlogos em francés. Escrevendo nao tanto para o interior de uma lingua quanto para a fronteira de diversos espagos lingiifsticos, o escritor negocia o cédigo linguageiro que Ihe é préprio ¢ que ele pretende partilhar. Um “c6digo” que se constitui * Notaremos que o esquema espontinco que considera a lingua como independente da Jiteratura, como colocada “abaixo™ de obras que se desenvolveriam a partir dela de maneira contingente, & falso. Cada ato de enunciagio literéria, por mais itris6rio que possa parecer, conforta uma lingua em seu papel de lingua digna de literatura ¢ além dela, de lingua simplesmente. Uma lingua, de fato, no tem qualidade de lingua se nao pela qualidade dos enunciados que passam por ela (Maingueneau, 1995). A unidade ~ inevitavelmente imagindria “= de uma lingua se sustenta da existéncia de um corpus que se conserva ¢ comenta; ¢, além disso, 0 critério tradicional de distingSo entre ingua dialeto. Tomamos melhor consciéncia quando um gesto fundador vem instaurar, dans I'aprés-coup, a “dignidade literéria” de um idioma; 6 0 caso no século XIX, por exemplo, com o Kalevala, de Lénnrot, texto fundador da literatura finnoise. 22 ao mesmo tempo como sistema de regras e de signos de comunicagao ¢ como prescrigiio: 0 uso da Ifngua que implica a obra é também a maneira pela qual é preciso enunciar, a tinica de acordo com universo de sentidos que ela instaura. A relagio de simples inclusao obra/lingua se substitui, assim, um dispositivo de trés termos: interlingua/eddigo linguageiro/lingua. O cédigo linguageiro se esforga em vio em advir de uma lingua particular, ele s6 adquire sentido na maneira singular que cada posicionamento tem de colocar em relagao lingua e interlingua. Citamos freqiientemente uma f6rmula do mestre da poesia simbolista, Mallarmé: s langues imparfaites en cela que plusieurs, manque la supréme”. Dito de outro modo, toda Iingua seria impotente, para dizer a verdade, pelo simples fato de que a linguagem nao pertence somente a ela. Constatagio de “imperfeigio” que esse poeta retoma em proyeito da literatura, de sua literatura: “Seulement, sachons n’existerait pas le vers: lui, philosophiquement rémunére le défaut des langues, complément supérieur” (Mallarmé, 1895/1992:273-274). Nao é, assim, em francés, na plenitude de alguma lingua materna, que Mallarmé escreve, mas em um cédigo linguageiro que visa completar uma falta constitutiva da lingua francesa, enquanto que esta tiltima nao é senio um idioma entre outros. A obra de Mallarmé se enuncia, assim, em um estranho idioma que nao € nem a “lingua suprema”, por definigZo inacessivel, nem o francés das trocas yverbais comuns da massa falante. Isso nio impede que os poemas de Mallarmé tenham um papel privilegiado nos corpora da_ literatura “francesa”, de serem escritos em francés, mesmo se esse francés passa por particularidades obscuras. Mas, ler esses poemas de Mallarmé em sua grandeza, da maneira pela qual eles pretendem ser lidos, isso nao os remete ao nivelamento de um pertencimento aos corpora francéses, € manter atengao entre “Ifngua suprema” e lingua francesa. DO INTERTEXTO A INTERLINGUA Uma das maiores caracteristicas do regime instituido pelo ramantismo, ainda hoje dominante, ¢ que o cédigo linguageiro € supostamente individual: acontece a cada escritor de elaborar o seu, aquele que corresponde & sua “visio de mundo”. Mas, como sugerimos acima, em outros lugares ou em outras épocas, os cédigos linguageiros se impdem, freqiientemente, sob forma de cédigos coletivos associados ao investimento de g@nero de discurso determinados. Neste caso, existem usos especificos da lingua ou até mesmo linguas outras que a lingua de uso, que sao reservados & literatura. A relagio do autor na interlingua aparece, assim, sob uma forma diferente: nao ha conflito, ao contrario, entre a enunciacao 23 liter4ria e a submissao a um ritual linguageiro pré-estabelecido, a distancia entre o escritor e “sua” lingua é fixada nas rotinas, Em se tratando de literatura, a distingao entre lingua “estrangeira” e lingua “verndcula” aparece, assim, muito pobre. Em iiltima instancia, so as obras (em dois nfveis: 0 de cada texto ¢ 0 da diversidade dos textos no interior do opus de um autor) e as condi¢Ges de exercicio da literatura em um momento dado que decidem onde se da a fronteira entre o “interior” e o “exterior”. Entre 0 século XVI € 0 século XIX existiu em muitos escritores europeus ¢ no ptiblico cultivado um plurilingiiismo profundo: o essencial da literatura era produzido em uma relagio constante com o latim, e em uma medida menor com © grego, que nao eram vividas como linguas “estrangeiras”. Na Inglaterra do século XIV coexistiam trés Iinguas de escritura (inglés, francés e latim), enquanto que a literatura medieval francesa lidava com um “plurilingiiismo” singular que permitia aos autores colorir seus textos com tracos dialetais (champanhés, picardos, normandos...) sem que eles fossem para tanto originérios dessas regies e nem mesmo que tivessem vivido 14. O que dizer dos escritores norte-americanos ou sul-americanos contemporaineos que podem escrever mais préximos da lingua do antigo colonizador (inglés, espanhol, portugués e francés) ou, ao contrério, acentuar os tragos lingiifsticos que criam um abismo com ele? * Além disso, entre “intertexto” e “interlingua”, nao hd descontinuidade. Um cédigo linguageiro pode investir uma Ifngua nado porque seria um idioma efetivamente falado, mas porque ela coincide com um corpus literério. E 0 caso de muitos escritores no movimento da Pléaide, no Renascimento (Ronsard, du Bellay em particular) que, ao elaborar um francés literério latinizado ou helenizado, pensavam estar beneficiando suas obras prestigiando-as por pertencerem aos corpora greco-romanos. No final do século XIX, os poetas da corrente parnasiana, alimentavam suas obras com latinismos e helenismos lexicais, sintdticos retéricos, inseridos em uma forma métrica impecavelmente cldssica. Podemos pensar também nos poetas japoneses da época de Edo, que escreviam poemas impecdveis em ideogramas chineses que eles liam em japonés, mas que um chinés pudesse ler em chinés. Esses letrados aprendiam literatura classica chinesa e ignoravam a lingua falada: Le chinois classique n'était pas ressenti comme une langue étrangére. Son apprentissage se faisait par imprégnation, par immersion dans la lecture des classiques, qui étaient appris par a ceeur et dont les phrases devenaient naturellement autant de modéles de composition” (Parvulesco, 1997:80). Exemplo notavel de cédigo linguageiro coletive elaborado nio entre duas linguas, mas entre o japonés e os corpora da poesia classica chinesa. Esses poetas nao escreviam, de fato, nem em “chinés” nem em “japonés”, mas em “poesia classica chinesa”, considerada como a “Ifngua”/escritura digna de poesia. Tal pratica nio era uma escolha individual. Ela era insepardvel de uma comunidade discursiva de letrados que se liam uns aos outros, davam cursos para um ptiblico para que o dominio desse tipo de poesia fosse um signo de distingao social. Uma relagao tao singular na interlingua permitia, ao mesmo tempo, na comunidade dos poetas, afirmar sua legitimidade, abrindo o acesso a um outro lugar que, nessa época e nesse dominio geografico, era 0 universo literario chinés. ‘ Cruzamos, aqui, com a questao dos géneros literdrios. Em se tratando de certos géneros, a remissdo aos corpora de uma “outra” lingua se impunha: assim, no Renascimento, o italiano para a poesia petrarquizante ou o grego para as odes... O romantismo, em contrapartida, desqualificou, ao mesmo tempo, a literatura de género e os cddigos especificamente literdrios, quer se tratasse de Iinguas ou de usos da lingua: géneros e cédigos literdrios eram considerados como obstdculos na apropriagdo da lingua pela subjetividade absoluta do escritor, cuja relagéo com a lingua devia ser pessoal, intima. Os debates no inicio do século XX em tomo da “lingua literaria” testemunham as dificuldades ligadas a esses pressupostos: se 0 verdadeiro escritor define seu estilo pessoal em sua lingua, a propria idéia de um cédigo coletivo, de um tipo de discurso especializado especifico na literatura enquanto instituigdio de fala, ou a idéia de uma “lingua-corpus” (0 grego antigo, o chinés...) que seria colocado como eminentemente literério, trazem problema, j4 que eles introduzem em terceiro a instituigio e descentralizam a insténcia autoral individual. Também os estilistas - que partilham em geral esses pressupostos — procuram freqiientemente dar um curto circuito na relativa autonomia das instituigdes de fala literdria, postulando que a lingua chamada de literdria explora, para os seus prérios fins, os mesmos fenémenos que o uso oral o mais espontaneo, 0 uso “popular”. Vemos que a presenca do mesmo prefixo nas palavras “interlingua” e “intertexto” nado é acidental. Promover o “-inter” é interpretar diferentemente o fato literdrio; ao invés de nos debrugarmos sobre as obras no que diz respcito 4 interioridade do criador ou a intransitividade de corpora de excego, somos levados a abrir espagos e mobilizar formas de subjetividade que nao se deixam apanhar na alternativa entre um eu 35

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