You are on page 1of 23
Diversidade lingiiistica, lingua de cultura e ensino de portugués* 1. 0 tema O ensino é um trabalho de criagao e nao uma obrigacio mecanica que se repete a cada aula que se dé. O gosto e o prazer do trabalho e o exercicio critico permanente sao essenciais ao professor, sobretudo se se trata de professor de lingua materna, no nosso caso especifico, de lingua portuguesa. Qualquer individuo normal que entre na escola para ser alfabetizado em sua lingua materna ja é senhor de sua lingua, na modalidade oral pr6pria a sua comunidade de fala. Admitido esse principio, qualquer trabalho de ensino da lingua materna se constitui em um processo de enriquecimento do potencial lingiiistico do falante nativo, nao se per- dendo de vista a multiplicidade de comunidades de fala que compoe 0 universo de qualquer lingua natural, multiplicidade que variar4, a de- pender das caracteristicas de cada uma, enquanto lingua histérica, isto é lingua inserida tanto sincrdnica quanto diacronicamente no contexto histérico em que se constitui e em que se constituiu. Entendidas assim as linguas naturais como fenémenos histéricos em con- tinuo processo de fazer-se e refazer-se, 0 ensino de qualquer lingua ma- terna € um processo continuo aberto, que tem de ter como ponto de referéncia basico e essencial o fato de ser o estudante o sujeito ativo fundamental e 0 professor, também como falante nativo da mesma lingua * Este artigo é versio ligeiramente adaptada da comunicagéo apresentada pela Autora ao | Simpésio sobre a Diversidade Lingiiistica no Brasil, comemorativo do centendrio de nascimento de Antenor Nascentes e dos 40 anos de criagio da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 14-17 de outubro de 1986, realizado no Instituto de Letras da UFBA, com 0 apoio do CNPq e do INEP. a Diversipave uncotsnc DE CULTURA E ENSINO Do FoRTUGUES sobre 0 processo pedagégi eh ico qu . hoje ja criticada e lait itaneun nao se proponha explicitamente a isso aus ee na subseqiiente pratica ha ep da alfabetizacio “ ae e da escrita, apaga os aes t ial 3 ae $ on decorrentes de razdes sociais, culturais, Beog! : a cada vez maior de individ - madas sociais e de proveniéncias Tegionais diferentes traz a ae 10. Na sua tradigao, ida, a escola, embora Em outras palavras e de maneira direta, poderiamos dizer que € © processo zm tabula rasa do saber lingiifstico difere suem, em nome de leva-los a dominar o padrao culto idealizado, o qu 36 alcangam, havendo excegdes, claro, alguns daqueles que j4 ea xy camadas socioculturais em que esse padrao é a base da comunicagio cotidiana, apenas com diferengas préprias aos registros de formalidade Acrescido ao fato fundamental de que ao aluno em geral no é aa tido ser o sujeito atuante e critico no processo de escolarizacao. a escola tradicionalmente — e is facil de ser aplicado — faz nciado que os individuos pos~ O objetivo ultimo da tradigao do ensino da lingua materna, que j4 vem formulado nos gramiticos do século XVI e é reforcado no século XVII, a partir do paradigma francés do bon usage vaugelasiano, continua até hoje, como bem ressalta Celso Cunha, em “O Projeto NURC e a ques- tao da norma culta brasileira”: “De admirar, porém, é que nos dias que correm, num pais como o Brasil, em que se impée a adogao de uma pedagogia verdadeiramente democratica para que todos os seus filhos possam responder ao desafio da construgio He uma identidade nacional por uma das particulares, haja professores — e até lingiiistas — que defendam a mesma postura elitista vaugelasiana de uma aristocracia do discurso, 4 qual, obviamente, nado tem acesso a jmensa maioria dos locutores” (1985: 153). O “bidialetalismo funcional”, atitude recente na teoria da metodologia do ensino de portugués, discutido por Magda Soares no seu livro Lin- guagem e escola. Uma perspectiva social, possivelmente surtird efeito para novas propostas de ensino. Esse bidialetalismo, a referida autora “0 enriquece e reformula, no livro citado, em bidialetalismo em uma esc 0 a escola reprodutora ‘escola transformadora, que opoe & escola redentora a escola e impotente. Levando ; bidialetalismo funcional a0 ambito da escola 29 ie kee igoamento 4 para o aperte causaram surpresé Na carta de encamil ‘Abgar Renault, fica explicito 0 ¢ tépicos conexos--- para definir novos rumos 0 no da lingua portuguesa” te expresso, cabe a05 P da Comissao, nao ap ‘OISTICA, LINGUA DE CULTURA E ENSINO DO PORTUGUES caem por terra quando lemos os tépicos > Tespectivamente, tratam das orientagdes icas e dos programas de ensino. Analisando-os, fica claro que sa da pedagogia de tradicéo secular, em relagdo a diversi- Jade lingiifstica, se mantém no documento oficial de 1986, apesar do diagndstico que faz da realidade social e de suas conseqiiéncias para a realidade lingiifstica. Antes de passarmos a examinar os principios metodolégicos e os pro- gramas, vale ressaltar que o entendimento de “lingua de cultura’, ob- jetivo Ultimo a ser alcangado pela politica de ensino proposta é definido nas Diretrizes como mais abrangente que o de lingua culta ou de norma culta. Nao nos deteremos, no entanto, na apreciagao tedrica do conceito: “O conceito de lingua culta, conexo ao de norma culta, nao coincide, pois, com o de lingua de cultura. As Iinguas de cultura oferecem uma feicio ibeerteliets bos seus milhdes de ususrios, cid! wai dos qui pode pre " servar, a0 mesmo tempo, usos nacionais, locais, regionais, setoriais, profis- __ sionais” (pp. 5-6). _ Note-se, complementarmente, que o entendimento de “cultura” € ex- u restringe-se apenas @ cultura letrada das classes dominantes, te6rica indefensavel por qualquer antropologia contemporai pratica, indefensdvel para quem entende a democratizagao e da cultura nao apenas como difusio do “saber e da cultu 7 privilegiados” (Dir., p. 1), mas também como difuséo do das culturas das diversas camadas sociais e culturais qi a sociedade brasileira. metodoldgicas” e os “programas de ensino” introdugao as Diretrizes pode deixar alguma expectati a politica de ensino para a lingua portuguesa, jé q! que nio se deve estigmatizar as “variedades li ‘no processo natural de socializacao” (Dir., p. 2) “e 8 deixa bastante claro que, na pratica, 31 ——, wo rowrvcuts 3 |, desde a Tt série escolar, se WY leura”, desconhecendo in defi rca na escola esa ot rengas chet ling’! os que 8 I ‘anterior 40 se pnsequent nente @ diversidade lingiiistica que se icidade poe a realidade sociocultural tera i Se se assum" lade diversificada, as diretrizes m, ileirg, os programas de e propostos levarao ao mesmo oe ; we a introducae ao documento diz pretender superar: ne Mocratizasio 40 saber e da cultura socialmente vivo é peat chegaré @ democratizagao do saber € da cal ados” as, destacando-se 0 para quem, + © pare a que ces merodol6gic ortugues, respondem as Diretrizes (p. 13), a di rais € ae na multiplis bh e essa realid © nsino que s¢ Nas orienta eo como ensinar Ps nova clientela”; para possibilitaa todos. eles 7 para “esta “lingua de cultura”, e quanto ao como, ce; ligadas — a da leitura, a da pistaeeeaneal 10 de textos ¢ vamente, dominio da trés praticas inter! posterior andlise lingiiistica. permitira ao aluno o convivio com a lf nanan z ingua a segunda “visa a aproximagao do ee de culture ‘© produzido 4 luzido ag formas da lingua de cultura” (Dir., p.14) e a terceit para o ensino médio, “permitiré comparar ances (Ue se propie variedades lin. giiisticas e, mantendo a variedade ja ; co que ja domi chegar 4 expresso na lingua de cultura” (Dir. a ia a Retenha-se que, 86 no ensi i é Y ino médio, é que se expli re . ae “i li ; a ra variedade lingiiistica, quando, pode-se - nhs = 2 si excluiu da escola grande parte, exatam: aoe s de variedades lingiiisticas que nao sao “li fente daqueles pore so “lingua de cultura’, se- gundo as Diretrizes. Confront it ae ar ‘ oriental metodolégicas com os p de p , fica transparente e i ser ni previ inici re : c area iniciante na escolaridade ae 7 es. of 0s objetivos especificos para Pe ace 7 as quatro séries iniciais: ) entendimento da crita como forma de interlocugéo a distin 32 “A primeira (Dir., p. 13); ISTICA, LINGUA + LINGUA DE CULTURA E ENSINO DO PORTUGUES que a escrita obed ae ece a uma convengao ortografica ‘ura, mediante o convivio constan: eee vivio cor \Dirypetd), stante com obras 8* série, além da manutengio da “criagio do gosto constituigao do falante e do autor (Dir., p. 15). “Enfim, respira-se, surge o “falante” a partir da 5* série! Os objetivos especificos dos programas de ensino nao deixam mais nenhuma pepertative quanto as intengdes das Diretrizes: existe, ¢ legi- tima, respeite-se, nao se estigmatize a variedade lingiifstica da “nova dientela da escola brasileira...” E se fica por ai. As proposigdes concre- tas continuam a tradicao dialetofagica das anteriores politicas de ensino da lingua portuguesa, embora o proprio documento critique 0 processo glotofagico que, juntamente com o etnocidio, caracteriza a politica indigenista brasileira... (cf. p. 28). A oralidade de todos os que se iniciam na escola e a oralidade de grande parte que provém de grupos sociais que vivem basicamente na oralidade fica ignorada. As Diretrizes, portanto, podem ser definidas, sem receio de errar, como propondo uma escola redutora e reprodutora da situagao sociocultural que, sem conviccio embora, critica no inicio de sua introducao. 3. Que defendemos, entao? E justo que se coloque a questao, pois foi a mesma que nos colocamos ao terminar de ler as Diretrizes do relatério conclusivo. Nao 6 certamente, por seu caminho que se chegaré ao que suponho deva ser uma verdadeira democracia lingiiistica ou, para fugirmos ao ja to termo, ao verdadeiro dominio da lingua portuguesa e nao apenas ao da “lingua de cultura”, por todos aqueles que sio seus usuarios. 33 ao ontuauts #40 008" nhecimento da maltiplici at ae ningua — devde OF ecteiaeaea aaa démicos, perpassando por eleg hs in 8 que paseo ualqueditie a ea ter sobre a lingua materna. bec. ° ; todos én igi, que serd certamente considerada idealists, Talver eat possivel de fazer com que & lingua deixe de ser “9 ben mais poderoso para Dloquear 0 acesso ao poder”, “ expressou Maurizzio Gnerre (1985: 16) em Linguagem, e: cae ¢ discriminagio. e «a politica educacional vigente? Perm conheciment vei Seré isso que dese) afirmar que nao. REFERENCIAS Conan C Eda 0 pajeo NURCea (ieee ee rs do Congresso sobre a Situagao Actual da Dares Lisboa: Instituto de Lingua e Cultura Direreizts para o aperfeigaamento do er tuguesa. Brasilia: MEC, 1986. Geratpi, W,, Escrita, uso da escrita e leitura e produgao. Campinas: Gnerre, M,, Linguagem, poder e poder. Sao Paulo: Martins Fontes, Houaiss, A., A linguagem oficial, in: de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p Mateus, M. H. et alii, Ensino do portugu a Congresso sobre a S tura Portuguesa, 198 Soares, Magda B., Lingua Atica, 1986, © portugués Variaga0, muda do ensino do de uma educaio que se “democratans? ‘chances de igusldade de condi © {cs eg, em contrapartida, mar bse?” (hid 195}. A plitia edacciomal ue ent ‘igor prilegio a guantidades cm detimento (: profeseres © nis do slo XIX, eo des mutes portugues Tats doe nfrmamy que td 6 lasses us he hi uma ira coerens considera ‘ic-paao com lembete€a mas estigmatizad,@ seu ws. jf que € mas eonscente do que w cor Considerando or dado da exit de ecole de cscolas mnicpis minis, Rose AS pro. 37.7% do rlatva com lembretee 57 ese corpus ene a nlorpade, a ‘ols poco interfer na agin da Infcatvn noe dador de Ross Asis & 0 correo, canserarem 4.9% da do lembrete Iso parece querer diet profssores percebem @ nio-us0 da ‘arantesiorpadrio que & a mais Com base neve conju de da possibidades convents no ser mie fore candida ast dente como dss da padrio que ‘errant uy fator de peso aut jo tnxerag lnguistica no Brasil 5. Para finalizar (+ dados que troune como madingae snterrelconadas na culo pasado, ntentaram octal brasileira sua ‘Apontam cles para uma nog dow de soolinguisticn € padeo tradicional pre Tugs mo processo de Uma pritie esol pedagiion © a8 Pose A Tee EM Cis SINE) SPM IRATE SmSTUCO MUU Sea Novas fronteiras, velhos problemas c1p-BRASIL CATALOGAGAO-NA-FONTE -ATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ‘Mattos & “lore , novas fronteiras, velhos ‘ia Mattos € Silva. ~ ‘Sao Paulo: ISBN 85-88456-22-2 1. Lingua portuguesa ~ Estudo ¢ ensino- L Titulo I. Série e DD 372.6 Ava CDU 811.134.3 Pardbola Editorial Rua Clemente Pereira, 327 - Ipiranga 4216-060 Sao Paulo, SP Fone: [11] 6914-4932 | Fax: [11] 6215-2636 home page: www.parabolaeditorial.com.br e-mail: parabola@parabolaeditorial.com.br ee Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ow quais- quer meios (eletrOnico, ou mecinico, incluindo fotocépia ¢ 8™*- vagio) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissio por escrito da Pardbola Editorial Ltda. ISBN: 85-88456-22-2 2° edigdo: fevereiro de 2006 © Parébola Editorial, Sdo Paulo, SP, abril de 200%

You might also like