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PUBLICACGES DA ACADEMIA BRAZILEIRA IE — HISTORIA HANS STADEN VIAGEM AO BRASIL VERSLO DO TEXTO LE MARPURGO, DE 1557, FOR. ALBERTO LOFGREN Revista e anotada FOR THEODORO SAMPAIO aD MMOR- TAL TA TEM 130 OFFICIHA INDUSTRIAL GRAPHICA RUA DA MISERICORDLA, 74 R10 DB JANEIRO AD IMMOR- TEM. HANS 8TADEN VIAGEM AO BRASIL BIBLIOTECA DE CULTURA NACIONAL (Publicagdes da Academia Brazileira) CLASSICOS BRAZILETROS T — Lirerarvra Publicadas: 1 — Prozororta, de Bento Teixeira, 1923. 2 — Prmemas Lerras (Cantos de Anchicta, O Diatoao, de Joie de Lery, Trovas indijenas), 1923. 3 — Mvaca vo Parwasso. — A Inia pe Maré — de Ma- nuel Botelho de Oliveira, 1929. 4 — Onras, de Gregorio de Mattos: I — Sacra, 1929. IL — Lirica, 1923, Ill — Grecioza, 1930. IV — Satirica, 2 vols., 1930. A pwdlicar-se: 5 — Diatoco pas Granpezas po Brazit. 6 — Onnas, de Euzebio de Mattas. 7 — Opras, de Antonio de Si, 8 — O Peresrino pa America, de Nuno Marques Pereira, 2 vols. 9 — A Semana, de Machado de Assis (2* série). 10 — Ihscurses Pouiricos-morars, de Feliciano Joaquim de Sonza Nunes. ll — Eserrros, de Arthur de Oliveira. 12 — Cronicas © Versos, de Adelino Fontoura, TT — Hisrorta Publioadas: 1 — Trarapo pa Terra po Braz. — Historta pa Provi- cr Sawra Cruz — de Pero de Magalhies Gandavyo, 1924. 2— Haws Stapen — Viasem ao Brazm (revista e anotada por Theodoro Sampaio), 1930. A publicar-se: 3 — Pruetros Documentos (Cartas de Pero Vaz de Cami- nha, Mestre Joao, Americo Vespucio, ete.) . PURLICACOES DA ACADEM(A BRAZILEIRA Ll — HISTORIA HANS 5TADEN VERSAO DO TEXTO DE MARPURGO, DE 1557, POR ALBERTO LOFGREN Revista ¢ anolada PO? THEODORO SAMPAIO .c. 1 B4614 1930 OPFICINA INDUSTAIAL @RAPHICA 2UA DA MISERICORDIA, 74 KLO DB JANEIRO NOTA PRELIMINAR © livro de Hans Staten é wa dos classicos de nossa iteratura historica, Cumpria delle ter uma versio fiel ¢ completa, dotada de apperella critica. Nenkuma das tres edigées nossas — Araripe, Lifgren, Lobato — merece taes eneomios, Creio que a nossa, a presonte, é digna deste elagio. Com effeito, traduaido da texto da edigaa de Marpurge por americanista capaz, Alberta Léfgren, “trazida correcedo vernacula por Theadora Sampaio, a compeioncia deste sabio em assumptos nacionaes enri- quecen a texto com infinidade de notag interessantes ¢ indispensaveis. As gravuras nes vim da recente edigao feesimilar de Pronkforte, Temos assim um Hans Staden digno delie ¢ do seu assumpto @ que honra, partanta, as publicagdes da Academia Brasileira. © retrate com que se abre esta edigiio foi achado em 1664 © publicada por Winckelmann, sendo reproduside nessa edigao fac-similar de Frankforte. Se ndo certeza, tem probabilidades de verdadeira, pois é da tempo a te- chnica da gravura em madeira e foi achado em Cassel entre os desenhos originaes do livra. Alias, tambem nao ha certeza sobre a vida do aw- tor, desconhecidas as datas de sew naseimenta ¢ morte. 7 HANS 8TADEN Sabe-se apenas que era filho de um burguez de Hom- berg, ¢ que mais torde vivew em Wolfhagen, como elle mesmo declara, © methor, porém, sua abra, subsiste, e é um da- cumento réelevante da historta da Brasil, PREFACIO DO TRADUCTOR PRESENTE traduceio do interessante Livro de Hans Staden é a segunda em lingua portugueza. A primeira appareceu em 1892, na Revista do Instituto Historico ¢ Geographice Brasi- leire, volume 55, parte 1", e tem por antor o dr. Alencar Araripe, que adopton a orthographia phonetiea. O original de que esta se serviu foi da edic&o franceza da eolleceio Ternanx Compans, que, provavelmente, por sua vez, féra traduzida da versdo latina. Com- parando as duas, vé-se que a traduccRo é@ fidelissima, mas como nao foi o trabalho feito A vista do original allemao, mao é de es- tranhar que se afaste bastante deste, principalmente no estilo que, de todo, foi despresado com sacrificio daquelle cunho caraeteristico, eom qué lembra a sua época. Mas, além destas, ha varias outras traduecedes ¢ muitas edi- goes, tanto do original como das versdes; segundo o que conhece- mos sio ellas: 1*. © original primitivo, publicado em 1557 na cidade de Marburg, em Hessen, na Allemanha [1]. f1] “A obra appareeeu pri mente em 1556 em Frankfort sobre 0 Mena, “durch Weygeodt Han’. Nao ba data no liveo, mas o prefacio é de 1556 e éde suppor que sendo ja Frankfort grande centro bibliographieo, ¢ on- tras edigies fnturas tendo sahido dali, tambem o fisse esta. Como oa pro- vas foram revlatas pelo Dr. Dryander de Marpurgo (o livro tem illusteagtes em mideira quo mal pediam ter sido preparadaa ali}, & de crer que nig ge antisfazendo elle com as gravuraa que, fines como eram, Pouca idfa devam dag aventuras do sou herot, precurnsac fazer outta edigio em Marpurgo mes: mo, € com gravurog mais verdadeiras, 52 bem que nauito toseas, E assim o fez, em 1557," (J, C, Rodrigues, Bibliotheca Bragiliense, Rio, 1907, p. 590). — A. P. HANS STADEN 2°. Segunda edigio, impressa no mesmo anno, mas na e¢i- dade de lrancfort sobre o Meno. 3°. Traduecio flamenga, publieada em Antuerpia, em 1558. 4". Nova edicio allema, publieada em Franefort sobre o Meno, em 1067, ma terceira parte de um livro intitulado: Dieses Welthuch van Newen erfundene Landschaften durch Leb. Francke. ™, Outra edi¢io, ainda em 1567, ma mesma cidade, publica- da na colleeeio das viagens de De Bry. O*. A tradnegdo em latim, em 1567, da colleegio toda de De Bry. i*, Nova edigho latina publicada em 1560 (2). &*. Em 1630 ainda uma terceira. §*. Uma quarts edicio allemf do original, in folio, torna a apparecer em 1593. 10°, Nova traduceao flamenga, publicada em 1630, com o titulo de: Hang Staden van Homburys Beschryringhe van America. 11". Reimpressa em 1646, 12". Quinta edicio allemi, publicada em Franefort sobre o Meno, em 1631. 13". Mais uma sexta edicio, quarto, publicada em Olden- burg no aunoe de 1664. 14. Em 1686 houve outra edigto hollandeza, em quarto, ¢ il- Instrada com xilographiss, publicada em Amsterdam. 14". Mais uma em 1706, numa colleegio de viagens, publicada na cidade de Leyden por Pieter Vanden Aa. 16*. Em 1714 seguiu-se a quinta edigio hollandeza, publicada em Amsterdam, em parte. Esta edigzo é mencionada por Bouche de Richurderie na “Biblothéque Universelle de Voyages”. Tomo V, pag. 503, Paris, 1806. [2] Liifgres 1007, 4 © 08 numeros 5, 6 ¢ 7 da bibliographia do Sr. (J. ©. Rodrigues, Bibliotheca Brosiliense, Rio, --tnatinie dize 0 mera phantasi 1806 apparceca a primeira versio hollandesa (nia mencionada por Brunet ou Greessy) ¢ foi reproduzida (sem o prefacin) em 1627 e 1634 (Am- fterdam...) wenluma dellas sendo aceusida pelo Sr, Ligfren™ (J. CO. Ro= drigues, op. cit. p. HM1), — A, P. 16 VIAGEM AO BRASIL 1i*. Uma traduceio franeeza foi publicada na colleegio de wiagens de Ternaux Compans; Vol. TI, Paris, 1839, em oitavo. 1k*. A sexta edigio hollandeza, in folio, foi publicada em Ley- den em 1727, como nova edieio de Pieter Vanden Aa. 10", A ultima edigio allema que appareceu em Stuttgart em 1859, na “Bibliothek des Liberischen Vereins”, em Stuttgart. Vo- lume XLVI, 20". Em 1874 @ sociedade ingleza The Haklwyt publieou, em volume separado, wma traduccio magistral, feita pelo sr. Albert Tootal, com amnotacses do entao consul inglez em Santos, Sir Ri- ¢hard F, Burton, Esta traduccao foi feita sobre a segunda edigio allema de 1557 e @ até hoje a melhor, 21". Traduegao brasileira na Revista do Institute Mistorico ¢ Geogrephico Brasileira, pelo dr, Alencar Araripe. Tendo o illustrado dr. Eduardo Prado adquirido em Paris um exemplar, original da primeira edigao de Marburg, de 1557, come- ¢imos a comparar este original com a traducgio portugueza e che- gamos 4 conclusio de que talvez houvesse vantagem em dar mma nova edigio deste livre tio interessante para a nossa historia, De- libcramos entéo cingir-nos estrietamente ao methodo ¢ linguagem do autor, conservande integralmente a orthographia dos nomes pro- prios dos logares, coisas e pessoas ¢, quanto possivel, 0 proprio es- tile simples e narrativo, com todas as suas imperfeigdes, ¢ quer-nos parecer que no nosso modesto trabalho nao haja a menor omissaic. Por absoluta falta de tempo ¢, por julgar mais competente, pe- dimos ao nosso distinecto amigo e consocio dr. Theodora Sampaio que s¢ enecarregasse das annotagoes e esclarecimentos relatives aos nomes e posig0es relatados pelo autor. Na traduceaio ingleza, o sr. Burton fez muitas annotacies ¢ deu varias explicagdes, porém, nado sendo todas sempre acertadas, nao as copiamos, julgando necessaria uma revisio completa de todas ellas. As palavras “pela segunda vez diligentemente augmentada ¢ melhorada”, que se acham no titulo, podiam fazer suppor que se tratasse aqui de uma segunda edigio ¢ nao da primeira ou origi- 11 HANS STADEN nal, mas estas palavras devem ser entendidas como “por duas vezes augmentada e melhorada” porque, o prefaciador dr. Dryander tinha, certamente, auxiliado ao autor por ser este pouco versado na arte de eserever ¢ compor. Aceresce que esta edigéo é impressa em Marburg na casa de André Colben, o que por si s6 prova eviden- temente ser a primeira edigio comhecida, visto a segunda edigao ter sido feita em Francfort sobre 0 Meno, ainda que no mesmo anno. Tendo o dr, Dryander revista o manuseripto para ser apresentado ao prineipe em 1556, é muito provavel que, para a impressio, qne 6 teve logar em 1557, o revisse pela segunda vez e nesta oceasifo talvez augmentasse alguma coisa, como diz o titulo. As gravuras sao reprodueGes photographicas, em tamanho igual, das estampas do original. Ignora-se, porém, si os desenhos sio do proprio autor ou de outrem por elle guiado, o que alida é mais provavel, Janeiro de 1900. Awgerro Lirarex, F. L. 8. NOTA — A nota bibliographica de Léfgren, com as modifiengdes cita- das por J, C. Redrigues, devemos necrescentar: I — Hans Just Wynkelmann: Ber Ameritenischen Neuer Welt Beschreib- ung — Oldenborg, 1644, (Tratase de uma curiosa deveripgio da America, e nella se inelue o texto da relagio de Staden, com ag gravuras dn.1* edigio). II — Reimpressiio, na Zeitschrift dex Doutechen Wissenschaftlichen Fe- reins, de Buenos-Aires, do texto da 3* ediglo do Frankfort sobre o Meno, de 1567, pelo Dr. R. Lehmann-Nitscho, Buenos-Aires, 1921, TIT — Hans Staden — edigio da série “Brasil Antigo, da Companhia Editora Nasional, texto ordonade literarinmente por Monteiro Lobato, Bio Paulo, 1925; 2" ed, 1926; 3" ed. 1927. A edigio de M. Lobuto eontém 9é- mente a 1* parte da obra de H. Staden. IV — Edigdo faesimilar da de Marpurg, de 1557, pelo Dr. Richard N. Wegner, Frankfurt 0. M., 1987. — A. FP. 12 DESCRIPCAO VERDADEIRA DE UM PAIZ DE SELVAGENS NUS, FEROZES E CANNIBAES, SITUADO NO NOVO MUNDO AMERICA, DESCONHECIDO NA TERRA DE HESSEN ANTES E DEPOIS DO NASCIMEN- TO DE CHRISTO, ATE QUE, HA DOIS AN- NOS, HANS STADEN DE HOMBERG, EM HESSEN, POR SUA PROPRIA EXPERIENCIA, 0 CONHECEU E AGORA A DA A LUZ PELA SEGUNDA VEZ, DILIGENTEMENTE AUGMENTADA E MELHORADA. Dedicada a sta serenissima alieza Principe H. Philipsen, Landt- graf de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Dietz, Ziegenhain ¢ Nid- da, seu Gracioso Senkor, Com um prefacio de Dr. Jah, Dryandri, denominade Eychman, Lente Cathedratico de Medicina em Marpurg. O conteido deste livrinko segue depois dos prefacios. impresso em Marpurg no anno de M.D.LVII, 13 Ao serenissimo ¢ nobilissima Principe ¢ Senkor, Senhor Phi- lipsen, Landigraf de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Dietz, Zie- genkain ¢ Nidda, etc., men graciaso Principe ¢ Senhor, G RACA & paz em Christo Jesus nosso redemptor, Gracioso Prin- cipe ¢ Senhor. Diz o Santo Rei Propheta, David, no psal- mo cento e sete: “Os que se fazem ao mar em navios, traficando em grandes aguas, “Esses véem as obras de Jehovah e suas maravilhas no pro- fundo. “A um aceno, Elle, faz soprar termentoso vento, que lhe ergue as ondas. “Sobem aos céos, descem aos abysmos: suas almas se aniqui- Jam de angustia. “Tropecam e titubeam como bebedos: ¢ toda a sua sabedoria se Ihes foi. “Clamam, porém, por Jehovah em suas afflicgdes; e Elle os tira dos apertos. “Faz cessar as tormentas, ¢ se aquietam as ondas. “Entio se alegram, porque tranquillizados, e Elle os conduz ao desejado porte, “Louvem, pois, o Senhor pela sua bondade e¢ pelas suas mara- vilhas, para com os fithos dos homens. “Eo exaltem no seio do povo, ¢ no conselho dos ancidos o glo- rifiquem.” Assim, agradeco ao Todo Poderoso, Creador do céo, da terra e do mar, ao seu filho Jesus Christo e ao Espirito Santo, pela grande graga e clemencia de que fui alvo durante a minha estada entre os 15 HANS STADEN selvagens da terra do Prasilien [Brasil], chamados Tuppin Imba (1) e@ que comem carne de gente, onde estive prisionciro nove mezes e corri muitos periges, dos quaes a Santa Trindade inesperada ¢ milagrosamente me salvou, para que eu, depois de longa, triste e perigosa vida, tornasse a vér a minha muito querida patria, no prineipade de Vossa Graciosa Alteza, apés muitos anmos. Modes- tamente « com brevidade tenho narrado essa minha viagem & na- vegagdo para que Vossa Graciosa Alteza a queira ouvir, lida por outrem, de que modo eu, com auxilio de Deus, atravessei terras e mares ¢ como Deus milagrosamente se mostrou para commigo nos perigos. E para que Vossa Graciosa Alteza nao duvide de mim, como si eu estivesse a contar coisas mentirosas, queria offerecer a ‘Vossa Graciosa Alteza, em minha propria pesséa, uma garantia para este livro. A Deus sémente seja, em tudo, a Gloria. Recom- mendo-me humildemente 4 Vossa Graciosa Alteza. Datum Wolffhagen a vinte de Junho — Anno Domini. Mil quinhentos cineoenta ¢ seis. De V. A. subdito Hans Steden, de Homberg, em Hessen, agora cidadao em Wolffhagen. (1) Teppin Zmba 6 mais uma das muitas formas com que se nos depara © nome tupi do gentio brasilico, dominador na costa ao tempo da conquista. Entre os portuguezes dessa epoca esereviase Tupinambd, nome que se vul- garizou. Entre og eseriptores francezes comtemporaneos Mem-se, porém, To- pinombour, Tapinam}ds, Toupinambes, @ até Towoupinambaoult eseroveu Joo de Lery, graphia que, apetar de extranha, foi considerada por Ferdinand De- uis como a mais proximn da verdade. De tio grande diversidade de forma resulta n tio econtrovertida interpretagio do vecabulo que a ninguem aatis- fox. Tuppin ou Tupin quer dizer tio, irmio do pai; imba ou imbé = abd, homem, gente, geragio. Tambem Tu-upi, significa o pat primeiro, o proge- nitor, Tu-upt-abd, a geragio do progenitor. X 16 Ao nobilissimo Senhor H, Philipsen, conde de Nassau e Sar- priick, etc., mew graciosa Senhor, deseja D. Dryander muita feli- cidade, com o offerecimento de seus prestimos, H Ans STADEN, que acaba de publicar este livro e historia, pediu- me de rever, corrigir e, onde fosse necessario, melhorar o seu trabalho. A este pedido accedi, por muitos motives. Primeiro, por- que conhego o pae do Autor, ha mais de cincoenta annos (pois que nascemos no mesmo estado de Wetter, onde fomos edueados), como um homem que, tanto na terra natal, como em Homberg, é tido por franco, devoto e brave, e que estudou as béas artes, e (como diz o rifaio) porque a magi nfo cae longe da arvore, é de esperar que Hans Staden, como filho deste bom homem, deva ter herdado as virtudes ¢ a devogie do pac. Além disso, acceito o trabalho de rever este livro com tanto mais gosto e amor, quanto me interesso muito pelas noticias con- cernentes 4s mathematieas, como 4 Cosmographia, isto é, a deseri- pode e medigaio dos paizes, cidades e caminhos, taes como neste li- vro se deparam, mérmente quando vejo os suecessos narrados com franqueza e verdade, ¢ nao posso duvidar que este Hans Staden conte ¢ esereva com exactidio e verdade a sua narrativa e viagem, nao por tel-as colhido de outrem, mas de experiencia propria, sem falsidade, e que elle dabi nio quer tirar gloria nem fama para si, mas sim, unicamente, a gloria de Deus, com louvor e gratidzo por beneficios recebidos ¢ pela sna libertagio. O seu principal objective é tornar conhecida sua historia a todos, para que se possa ver com que favor ¢ como, contra toda a expectativa, Deus, o Senhor, sal- vou de tantos perigos a Hans Staden, quando elle o implorou, ti- rando-o do poder dos ferozes selvagens (onde durante move mezes, 17 HANS STADEN todos os dias ¢ horas, estava esperando ser impiedosamente truci- dado e devorado), para lhe permittir, a elle, tornar 4 sua querida patria, Hessen. Por essa ineffavyel clemencia divina e pelos beneficios rece- bidos, queria elle agradecer a Deus no limite de suas forgas, e em louvor de Deus communicar a todos o que lhe acontecou. Nesta grata tarefa, a ordem dos acontecimentos o levou a descrever toda a viagem com suas peripecias, durante os dois annos que esteve au- sente da patria. E como faz elle esta deseripgao sem palavras pomposas e flo- ridas, sem exaggerages, tenho plena confianga ma sua authentici- dade e verdade, até porque nenhum beneficio pdéde elle colher em mentir, em vez de contar a verdade. Além disso, fixou-se elle agora com os seus paes mesta terra e nao é dado a vagabundagem, como os mentirosos e ciganos, que s2 mudam de um paiz para outro, pelo que é facil esperar que alguem de volta daquellas ilhas [*] 0 possa acusar de mentiroso. Sou dé opinifio e considero para mim valiosa prova de ver- dade o fazer elle esta descripgio de um modo tao simples e indicar a época, o paiz ¢ o logar, em que Heliodorus, o filho do sabio e mui- to fameso Eoban de Hessen, o qual aqui foi tido por morto, es- teve com Hans Staden naquelle paiz ¢ vin como elle foi miseravel- mente preso e levado pelos selvagens. Esse Heliodorus, digo, péde, mais cedo ou mais tarde, voltar (como se espera que aconteca) ¢ entao envergonhal-o e denuncial-o, como um homem sem valor, caso sua historia seja falsa, on inventada. Para entao resalvar e defender a veracidade de Hams Sta- den, quero agora apontar os motives pelos quaes esta ¢ similhantes historias logram, em geral, pouco eredito e confianca. Em primeiro logar, viajantes houve que, com mentiras e nar- rativas de coisas falsas e inventadas fizeram com que homens ho- nestos ¢ veridicos, de volta de terras estranhas, niio sejam acredi- tados e, entio se diz geralmente: “quem quer mentir, que minta de [*] eja-sc adiante a nota 2. 18 VIAGEM AO BEASIL longe e de terras longinquas” porque nimguem vai 14 para verifi- car, ¢ antes de se dar a esse trabalho mais facil é acreditar. Nada, comtudo, se ganha em desacreditar a verdade por amor de mentiras. H tambem para motar que certas coisas contadas ¢ tidas pelo vulgo como impossiveis, para homens de entendimento niio o slo; e tomadas por veridicas, quando investigadas, mostram sel-o evidentemente. Isto péde-se observar em um ou dois exem- plos, tirades da astronomia. Nés, que vivemos aqui na Allemanha ou perto della, sabemos de longa experiencia a duragio do inverno e do vero e das outras duas estagies, a primavera e o outono. Tam- bem conhecemos a duragio do maior dia de verio e do menor dia do inverno, bem como a das noites. Si alguem entio disser que ha logares na terra onde o sol nao se poe durante meio anno, ¢ que ali o dia maior é de 6 mezes, isto é, meio anno, € que ao contrario a noite maior é de 6 mezes ou meio anno, assim como ha logares. no mundo onde as quatro estagdes sio duplas, o certo é que dois in- vernoes ¢ dois verdes li existem. EH tambem certo que o sol e outras estrellas, por pequenas que nos parécam, ¢ mesmo a menor dellas no firmamento, sio maiores que toda a terra e sdo innumeraveis. Quando entiio o vulgo ouve estas coisas, desconfia, nfo acre- dita e acha tudo impossivel. Entretanto, os astronomos o demons- traram de modo que os entendidos nas sciencias nao duvidam disto. Por isso nfo se deve concluir que assim nio seja, apezar de que o vulgo Ihe nao dé eredito, ¢ eomo nao estaria mal a seiencia astronomieca, si nfo pudesse demonstrar este corpera e determinar, por ealenlos, os eclipses, isto é, o escurecimento do sol e da lua, com indicar o dia e a hora em que elles se devem dar. Com seeulos de anteeedencia podem ser predites e a experiencia demonstra ser werdade. “Sim, dizem elles, quem esteve no céo para ver e medir isso?” Resposta: porque a experiencia diaria nestas eoisas com- bina com as demonstrationibus. B, pois, necessario eonsideral-as verdadeiras, como é verdadeiro sommar 3 e 2 sio 5. E de certas razées ¢ demonstragies da sciencia acontece que se péde medir e ealeular a distancia celeste até a Ima e dahi para todos os plane- tas e finalmente até o firmamento estrellado. Até o tamanho e den- i3 HANS STADEN sidade do sol, da lua e outros corpos celestes ¢ da sciencia do eéo ou astronomia, de combinacio com a geometria, esleulam-se a gran- deza, a redondeza, a largura e o comprimento da terra, coisas estas todas desconhecidas do vulgo ¢ por elle no acreditadas. Esta igno- rancia por parte do vulgo ainda é perdoavel por nao estudar elle a philosophia; mas que pesséas importantes e quasi sabias duvidem destas coisas tio verdadeiras, é vergonhoso e até perigoso, porque o vulgo tem confianga nellas e persiste no sen erro dizendo: si as- sim fosse, este ou aquelle eseriptor nio teria refutado. Ergo, ete. Que S. Agostinho e Lactancio Firmiano, dois santos sabios, nao simente em theologia, como tambem em outras boas artes ver- sados, duvidaram ¢ nao quizeram admittir que pudesse haver an- tipodas, isto é, que honvesse habitantes no outro lado da terra, que andem com seus pés voltados contra és e, portanto, a eabega e o corpo pendentes para o céo, isto sem cair, parece singular, apezar de que muitos outros sabios o admittam contra a opiniiio dos san- tos e grandes sabios, acima mencionados, que o negaram e¢ 0 tive- ram por inventado. Deve, porém, ser verdade que aquelles que habitam ex diametro per centrum terrae sio antipodas e vera pro- pasitio é que “Onme versus coelum vergens, ubiewmque locorum, sursum est.” EB nao é necessario ir até o novo Mundo a procurar os. antipedas, pois elles existem tambem aqui no hemispherio superior da terra. Pois si compararmos e confrontarmos o ultimo paiz do Oeeidente, como é¢ a Espanba no Finisterra, com o Oriente, onde esta a India, estas gentes extremas e habitamtes terrestres sic tam- bem quasi uma especie de antipodas. Pretendem alguns santos theologos com isso provar que se tornou verdade a supplica da mie dos filhos de Zebedeu, quando rogou a Christo, Senhor Nosso, que seus filhos fieassem, um ao lado direito e outro ao esquerdo delle. E isso de facto acontecen, pois. que 8, Tiago sepultou-se em Compostella, niio longe de Finisterra, geralmente denominado Finstern Stern (*) [Estrella eseura], onde é venerado, ¢ o outro apostolo na India, ou onde o sol levanta. Que, (*) Quer dizer estrellas eacuras, por uma especie de trocadilho, 34 pos- sivel nu lingua allemi, (O tradwetor), 20 VIAGEM AO BEASIL pois, os antipodas existiam ha muito sem serem notados, e que ao tempo de S. Agostinho, quande o novo mundo da America, na parte inferior do globo, ainda se nado descobrira, no deixaram de existir, G um facto. Alguns theologos, especialmente Nicolau Lyra (reputado, todavia, excellente homem), affirmam ser a parte fir- me do globo terraquco numa metade apenas fora d’agua, na qual fiuetiia e onde habitamos, a omtra parte occulta-se pelo mar e pela aguz, de modo que nella ninguem pode existir, Tudo isso, porém, é contrario 4 sciencia da Cosmographia, pois que hoje esta verifi- cado pelas muitas viagens maritimas dos portuguezes e dos espa- uhées que a terra é habitada por toda a parte. A propria zona tor- rida tambem o €, 0 que nossos antepassados e escriptores jamais ad- mittiram., A nossa experiencia de cada dia mostra-nos que 0 as- suear, as perolas e productos outros para ci vem daquelles paizes, ‘O paradoxo dos antipodas e a ji referida medigio do céo, mencio- nei-os aqui tao sémente a reforgarem 0 meu argumento, e podia ain- da me referir a muitas outras coisas mais, si nio temesse aborre. eer-Vos com o meu longo prefacio, Muites outros argumentos similhantes, porém, podem-se ler no livro do digno e sabio Magister Casparus Goldtworm, diligente su- perintendente e prégador de V. Alteza, em Weilburgk, livro em seis partes, tratando de muitos milagres, maravilhas e paradoxos dos tempos antigos e modernos, ¢ que sem demora se deve dar a im- primir. Para este livro ¢ muitos outros que deserevem ftaes coisas, como, p. ex., o sen Libri Galeotti, De rebus vulgo incredibilibus, ete., chamo a attengio do benevolo leitor desejoso de conhecer mais estas coisas. Com tudo isso se prova que nao @ necessariamente uma men- tira, o affirmar-se eoisa estranha e descommunal para o volgo como nesta historia se vera, na qual toda a gente da tha (2) anda nia e nao tem por alimento animaes domestieos, mem possue coisas para sua subsistencia das que nés usamos, ¢omo vestimentas, camas, cavallos, (2) Por case tempo, rinda se niio tinha identificnds o inteiro continen- te da America, Os noroa deseobrimentos, isolados, ou deafneados, considera- vam-se Wigs. O Brasil de Hans Staden 4 ainda uma isa. 21 HANS STADEN porees ou vaccas; mem vinho, cerveja, etc., ¢ tem que se arran- jar e viver a seu modo. Quero, porém, para fimalizar com este prefacio, mostrar em poueas palavras o que induzin a Hans Staden a imprimir as suas duas navegacdes e a viagem por terra. Certo, muitos hio de inter- pretar isso em seu desabono, como si quizesse elle ganhar gloria ou notoriedade. En, porém, penso de outra forma e acredito seria- mente que sua intencio & muito diversa, como se percebe em va- rios logares desta historia. Passou elle por tanta miseria e soffren tantes revézes, nos quaes a vida téo a miudo The esteve ameacada, que chegou a perder a esperanca de se livrar ou de jamais voltar ao lar paterno. Deus, porém, em quem sempre confiava ¢ invoca- va, nio simente o livrou das maos de seus inimigos, como tambem, por amor das suas fervorosas oragies, quiz mostrar 4 aquella gente impia que o verdadeiro ¢ legitimo Deus, justo e poderoso, ainda existia. Sabe-se perfeitamente que a oracio do erente niio deve marcar a Deus limite, medida ou tempo; aprouve, porém, a Elle, por intermedio de Hans Staden, 0 demonstrar os seus milagres a estes impios selvagens. E isto nao sei como contestar. Sabe-se tambem como as contrariedades, as tristezas, desgragas e doengas fazem geralmente com que as pessoas se dirijam a Deus e que, na adversidade, nelle acreditam mais do que antes, ou como alguns, segundo o costume catholico, fazem votos a este on Aquelle Santo de fazer romaria ou penitencia, para que elle os livre nos apures, cumprinds rigorosamente essas promessas, a nao serem aquelles que pretendem defraudar o Santo, como nos refere Eras- mus Roterodamus, nos Colloguits sobre o naufragio de um navio de nome 8. Christavam, enja imagem de dez covadoa de alto, como um grande Poliphemo, se acha num templo em Paris, navio em que vi- nha alguem que fizera a promessa a este Santo de offerecer-lhe uma véla de cera do tamanho do proprio Santo, si este o tirasse das suas aperturas. Im companheiro, que estava ao lado nesta oc- easifo, conhecendo-Jhe a pobreza, o reprehendeu por tal promessa; pois ainda que vendesse tudo quanto possuia mo mundo, nao seria eapaz de adquirir a cera de que havia de precisar para tamanha vela. 0 outro, porém, respondeu em voz baixa, que o Santo nfo ou- 22 VIAGEM AO BEASIL visse: “Quando o Santo me tiver salvo destes perigos, dar-lhe-ei uma vela de sebo, do valor de um vintem!” E a historia do ecavalleiro, que esiava arriscado a naufragio, é tambem outra: Esse eavalleiro, quando viu qué o navio ia se per- der, fez voto a S. Nicolau de que, si elle o salvasse, lhe sacrificarin o seu cavallo ou o seu pagem, © criado, porém, advertiu de que niio © fizesse, porque, em que havia de montar depois! O cavalleiro res- pondeu ao eriado, baixinho, para que o Santo nao o ouvisse: “Cala a boca, porque si o Santo me salvar, nfo lhe darei nem a canda do eavallo”. E assim pensava cada um dos dois enganar o Santo e esquecer o bemeficio. Para que, pois, Hans Staden nifio seja taxado assim de esque- eer a Deus que o salvou, assenton elle de o louvar e glorificar com © imprimir esta narrativa e, com espirito christio, divulgar a graga e obra reeebidas, sempre que tiver oceasido, E si esta nao fosse a sua intengio (aliis honesta e juste) podia elle poupar-se a esse tra- balho e economizar a despesa, no pequena que a impressio e_as gravnras lhe eustaram. Como esta historia foi pelo autor humildemente dedieada ao Serenissimo e de elevadissime nascimento, Principe e Senhor, Phi- lipsen, Landtgraf de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Diets, Zie- genhain e Nidda, seu Principe ¢ gracioso Senhor, « em mome de sna Alteza o fez publico, e tendo elle sido, muito antes disto, exa- mainado e interrogado por Vossa Alteza em minha presenga e na de muitas outras pessias sobre a sua viagem e prisio, que eu j& por diversas vezes tinha contado 4 Vossa Alteza ¢ a outros senhores, e eomo eu, ha muito, tinha visto e observado o grande amor que Vossa Alteza manifestou por estas e outras sciencias astronomicas e cos- mographicas, desejava humildemente escrever este prefacio ou in- troduceio para Vossa Alteza, e lhe pedir de aceeitar este mimo, até que possa eu publicar eoisa de maior importancia em nome de Vos- sa Alteza. Reeommendo-me submissamente 4 Vossa Alteza. Datum Marpurgk, Dia de 8. Thomé, anno MDLVI. 22 Primeira Parte CONTECDO DO LIVRO 1 — Dunas viagens de mar, effectuadas por Hans Staden, em oito annos ¢ meio. A primeira viagem foi de Portugal, e a segunda da Espanha ao Novo Mundo — America. 2 — Como elle, no paiz dos selvagens denominades Toppini- kin (subditos d’el-rei de Portugal), foi empregado como artilhei- ro contra os inimigos. Finalmente, feito prisioneiro pelos inimigos e levado por elles, permaneceen dez mezes ¢ meio em constante perigo de ser morto ¢ devorado por elles. 38 — Como Deus livron misericordiosa ¢ maravilhosamente a este prisioneiro, no anno j4 mencionado, e como elle tornou 4 sua querida patria. Tudo para honra e gloria da misericordia de Deus, dado 4 im- pressiio.. 25 ihoy. SSTIWTEDONIADSS YANITD at HONE) SANTOR “UNA LIMIHE Guntpal usu utagad PMs 48 WOLUEG Dlzgsbuumageg sue 23) (peudo:quq ayce /uagpang) saurnlag 42] pj aquny sul quaaualjsig asuoaug, tH agaiar Oo / usaf) J enduad na ¢| Bates ard lagaped pjiapiuye ui thay , 7 antes of fenB yung uapuaiad ig I Ag qu yg eS 1b Roc eth eh lt CAPITULO T Do que vale 4 cidade o guarda, E ao navio possunte nos mares, Si Deus 9 elles nio proteger? E Hans Stapen, de Homberg, em Hessen, resolvi, caso Deus quizesse, visitar a India. Com esta intenefio, sai de Bre- men para Hollanda e achei em Campen [Campon] mavios que ten- cionavam tomar carga de sal, em Portugal. Embarquei-me em um delles e, no dia 29 de abril de 1547, chegémos & cidade de Sao Tu- val [Setubal] depois de uma travessia de quatro semanas. Dahi fui 4 Lissebona [Lisbéa], que dista cinco milhas de Sio Tuval. Em Lissebona alojei-me em uma hospedaria, cujo dono era al- lemio e se chamava Leuhr, o Moco, onde fiquei algum tempo. Contei-lhe que tinha saido da minha patria e Ihe perguntei quando esperava que houvesse expedicio para a India. Disse-me que eu tinha demorado demais e que os navios d'El-rei, que na- vegavam para a India, j4 tinham sahido. Pedi-lhe entéo que me auxiliasse no intente de encontrar outro navio, visto que perdéra estes, tanto mais que elle sabia a lingua, e que eu estava prompto a servil-o por minha vez. Levou-me para um navio, como artilheiro. O eapitéo desta nau chamava-se Pintiado [Penteado] e s¢ destinava ao Prasil, para trafiear e tinha ordens de atacar os navios que commerciavam com os mouros braneos da Barbaria. Tambem si achasse nayios fran- cezes em trafico com os selvagens do Prasil, devia aprisional-os, 27 HANS STADEN bem como transportar alguns criminosos (3) sujeitos a degredo, para povoarem as novas terras. © nosso navio estava bem apparelhado de tudo que & neces- sario para guerra no mar. Hramos tres allemfes, um chamado Hans von Bruehhausen, o outro Heinrich Brant, de Bremen, ¢ eu. (8) Era costume, mess Spoce, levarem-se criminosos em dagredo para aa terras recem-descobertas, afim de aprenderem a lingua dos naturaea @ s¢- rem uteis depois ao commercio « & mavegagho. 28 VIAGEM AO BEASIL CAPITULO II Deseripgio da minha primeira viagem de Lissebona para féra de Portugal aimos de Lissebona com mais um navio pequeno, que tambem pertencia ao nosso capitao, e aportamos primeiro a uma ilha, denominada [ha de Madera, que pertence a El-rei de Portugal, e onde moram portuguezes. & grande productora de vinho e de assucar. Ali mesmo, numa cidade chamada Fontschal [Funchal], embarca- mos mantimentos. Depois disso, deixamos a ilha em demanda da Barbaria, para uma cidade chamada Cape de Gel (4), que pertence a um rei mouro, braneo, 2 quem chamam Shiriffi [Sherife]. Esta cidade pertencia, outr’ora, a El-Rei de Portugal; mas foi retomada pelo Shiriffi. Nella pensavamos encontrar os mencionados navies que negociam com os infiéis. Chegimos e achéimos, perto de terra, muitos pesea- dores castelhanos, que nog informaram de que alguns navios esta- vam para chegar, e ao afastarmo-nos, sain do porto um navio bem earregado. Perseguimol-o, aleancando-o; porém a tripolagao esca- pou nos botes. Divisamos ent&o em terra um bote vasio que bem podia nos servir para abordar o navio aprisionado, e fomos buseal-o, Os mouros brancos chegaram entio a eavallo, a protegerem 0 bareo; mas nio podiam aproximar-se por causa dos nossos canhies. Tomémos conta do navio ¢ partimoes com a nossa preza, que con- sistia em assucar, amendoas, tamaras, couros de cabra e gomma arabica, que levimos até a Ilha de Madera, e manddémos o mosso navio menor a Lissebona, a informar a El-Rei e reeeber instruc- goes a respeito da preza, pois que havia negociantes yalencianos ¢ eastelhanos entre os proprictarios. (4) Bo Gabo de Gels na costa de Marrocos, onde esti a cidade © praga de Arzilla, cerca de trinta milhas distants de Tanger, ¢ qua esteve em poder dos Portuguezes até que D. Joio IIE » abandonou. 29 HANS 8TADEN El-Rei nos respondeu que deixassemos a preza na Ilha e con- tinuasemos a viagem, emquanto Sua Majestade deliberava sobre Oo caso. «Assim o fizemos, e navegaimos de nove, até o Cape de Gel, a ver si encontravamos mais prezas. Porém foi em vio; fomos im- pedidos pelo vento, que, proximo da costa, nos era sempre contra- rio. A noite, vespera de Todos os Santos, uma tempestade mos le- vou da Barbaria para o lado do Prasil. Quando estavamos a 400 milhas da Barbaria grande, um cardume de peixes cereou o navio; apanhamos muitos com o anzol. Alguns, grandes, eram dos que os marinheiros chamavam Aibakores. Outros, Bonitas, evam menores, ¢ 30 VIAGEM AO BRABIL ainda a outros chamavam Duredos (5). Tambem havia muitos do tamanho do harenque, que tinham azas nos dois lados, como os morcegos, ¢ eram muito perseguides pelos grandes. Quando perce- biam isso, saiam da agua em grandes cardumes e yoayam, cerca de duas bracas acima da agua; muitos caiam perto e outros longe a perder de vista; depois, caiam outra vez ma agua. Nés os acha- vamos frequentemente, de manha cedo, dentro do bareo, caidos du- rante a noite, quando voavam, E sio denominados na lingua por- tuguezn — pisee bolader (6). Sao os douredos, nome de varias especies de peixes acanthopte- TYgi08- (8) Boo peive toador, como facilmente se deprehende da narrativa. $1

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