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Kant ndo possut outra biografia sendo aa bistérta do seu filosofar Otfried Héffe nasceu em 1943 e, de 1964 a 1970, estudou Fi- losofia, Histéria, Teologia e Sociologia nas Universidades de Miins- ter, Tiibingen, Saarbriicken e Munique com Joachim Ritter, Walter Schulz e Hermann Krings. De 1978 a 1992, foi catedratico de Ftica ¢ Filosofia Social e diretor do Instituto Internacional de Filosofia Social e Politica da Universidade de Friburgo (Suiga). Desde 1992, é professor titular de Filosofia na Universidade de Titbingen (Ale- manha). Publicou, entre outros, os seguintes livros: Praktische Phi- losaphie — das Modell des Aristoteles (1971), Strategien der Hurnanitit (1975), Ethik und Politik (1979), Sittlich-Politische Diskurse (1981), In- troduction a ta Philosophie pratique de Kant (1985), Politische Gerech- tigkeit (1987), Kategorische Rechisprinzipien (1990), Moral als Preis der Moderne (1993), Vernunft und Recht (1996), Demokratie int Zeitalter der Globalisierung (1999) e, recentemente, Kants ‘Kritik der reinen Vernunft’ (2004); é organizador/editor de Lexikon der Ethik (1977), Grosse Denker (1980ss), Klassiker Auslegen (1995), Zeitschrift fur Phi- losophische Forschung. Otfried H6ffe Immanuel Kant Tradugio CHRISTIAN VIKTOR HAMM VALERIO ROHDEN Martins Fontes Sao Paulo 2005 UNICAMP iNSTITUTO DE ESTUDOS DALINGUAGEM Esta obra fot publicads originalmente em alemdo com o titulo IMMANUEL KANT, por Verlag CH. Beck, INDICE Copyright © Verlag C.H. Beck oHG, Munique, 2004 Copyright © 2005, Livraria Martins Fontes Editora Ltda, ‘Sto Paulo, para a presente edigio. 1 edigao smaio de 2005 Tradugio CHRISTIAN VIKTOR HAMM. VALERIO ROHDEN Acompankamento editorial Luzia Aparecida dos Santos Revisées graficas Marisa Rosa Teixeira Maria Regina Ribetro Machado ‘Mauro de Barros rte Zoran de Sa Modo de citar......... 0 grifica : corer Abreviaturas ....... Paginacio/Fotolitos ene pee Scio in Nota sobre a edigdo brasileira... XV casas atau davONRCCK 1. Introdugao . XVIL (Camara Brasileira do Livro, SF; Brasil) Hoffe, Otfried fmmanuel Kant / Otfried Héffe ; tradugdo Christian Viktor ime niece Rib Sartactn Monies tiem ania I. AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO ~ (Tépicos) : ‘Titulo original: Immanuel Kant 2. O periodo pré-critico .......... 3 Blogs oe 2.1 Familia, escola, universidade 3 1 fleofa > Kant tmmanuel, 1728-180 1.1. eet 2.2 Professor particular e primeiros escritos 6 fs ; Immanuel, Titulo, I, Série. 2.3 O professor bem-sucedido e mestre ele- 05-2835, cbD-193 ante 10 fndices para catalogo sistemitico: 8 . “ 1. Filosofia alema 193 3. A filosofia transcendental critica... 14 — 3.1 A caminho da Critica da razéo pura... 14 Todos os direitos desta edigto para a lingua portuguesa reserondos & rips desta lei pao igus poreigiess : 3.2. A realizacdo da filosofia transcendental Rua Consetheiro Ramatha, 330 01325-000 Sao Paulo SP Brasil critica ... 20 ‘Vel. (11) 3241.3677 Fax (12) 3107.1042 e-mail: info@martinsfontes.com.br hilp:/fwww.martinsfontes.com.br 3a ° conto com 1 censure - .4 A obra da senectude ma I O QUE POSSO SABER? A CRITICA DA RAZAO PURA 4, O programa de uma critica transcendental da razao 4.10 campo de batalha da metafisica ( facio” a primeira edigao) 4.2 A revolugdo copernicana (i oelitia” a se- gunda edicao) 4.3 A metafisica como ciéncia, ou sobre a possibilidade de juizos sintéticos a priori (“Introdugao”) . A priori — a posteriori. Analitico — sitrtético 4.4 A matematica contém juizos sintéticos a PHIOPE? voocecssecoreeess 4.5 O conceito de transcendental 5. A Estética transcendental................- 5.1 Os dois troncos de conheciment bilidade e entendimento 5.2 A exposigdo metafisica: o espago e 0 te! po como formas a priori da intui¢ao......... 5.3 A fundamentacao transcendental da geo- 5.4 Realidade empirica e idealidade trans- cendental de espago € teMpo.... een 6, A Analitica dos conceitos 6.1 A idéia de uma légica transcendental....... 6.2 Conceitos empiricos e conceitos puros (categorias) 6.3 A deducao metafisica das categorias 64 A dedug&o transcendental das categorias O problema. O primeiro passo da demonstra- (ao: a autoconsciéncia transcendental como 33 33 40 origem de toda sintese. Excurso: argumentos transcendentais. O segundo passo da demons- tragao: a limitagao das categorias a experién- cia possivel 7. A Analitica dos principios........ 108 7.1 A doutrina do esquematismo 11 7.2 Os prineipios do entendimento puro . 118 7.3 Os principios mateméaticos 7.4 As analogias da experiéncia..., A permanéncia da substancia, oO prinetpio de causalidade 7.5 Os postulados do pensamento empirico... 137 127 8. A Dialética transcendental ........ceesseccscceessesees 140 8.1 A légica da aparéncia 8.2 A critica da metafisica especulativa 8.2.1 A critica da psicologia racional......... 8.2.2 A critica da cosmologia transcen- dental 8.2.3 A critica da teologia natural A demonstracao ontolégica de Deus. A de- monstragao cosmologica de Deus. A demons- tragio fisico-teolégica de Deus 8.3 As idéias da razio como principios da completude do conhecer 151 174 Il. O QUE DEVO FAZER? A FILOSOFIA MORAL E A FILOSOFIA DO DIREITO 9. A Critica da razdo pritica 9.1 Sittlichkeit como moralidade 9.2 O imperativo categérico os O conceito de imperativo categérico, Mdximas, Universalizagéo. Exemplos 187 190 197 215 222 229 9.3 A autonomia da vontade 9.4 O factum da razao 10. A Filosofia do Direito e do Estado... 10.1 O conceito racional do direit 10.2 O direito privado: a fundamentagao da pro- Ptiedade o.....sseessecsssneesseseeteeceteeneeneereeens 243 10.3 O direito puiblico: a fundamentagao do Es- tado de direito 10.4 O direito penal estatal .. IV. O QUE ME E PERMITIDO ESPERAR?_ A FILOSOFIA DA HISTORIA E DA RELIGIAO 11. A Histéria como progresso do Direito .........0.... 270 12. A Religiao da raz@o pratica senses 278 12.1 A imortalidade da alma e a existéncia de 279 284 V. A ESTETICA FILOSOFICA EA FILOSOFIA DO ORGANICO 13. A Critica da faculdade do jutZ0 ..ssieserreccccen 291 13.1 A dupla tarefa: andlise objetual e funcao SIStEMICA.....-cesssseeee 291 13.2 A fundamentagao critica da Estética 297 O belo. O sublime 13.3 A teleologia Critica... teeeesseesessesereseess 306 Entre teleologia universal e mecanicismo uni- versal. A conformidade a fins de organismos. A fungdo regulativa da teleologia 14. Recepcdo, desenvolvimento ulterior e critica a Ne Du pw VI. SOBRE A REPERCUSSAO 14.1 Primeira difusao e critic 14.2 O Idealismo Alemio .. 14.3 Kant no exterior . 14.4 O neokantismo 14.5 Fenomenologia, correntes. 14.6 Depois da Segunda Guerra Mundial stencialismo e outras . Cronologia . Bibliografia A. Obras de Kant B. Obras de consulta C. Estudos . Indicagado de fontes das ilustracdes .... . Estruturagao da Critica da razdo pur : Indice de autores . . Indice de matérias 317 317 321 328 331 339 343 345 366 367 369 375 MODO DE CITAR Cita-se Kant segundo a “Akademieausgabe’; p. ex,, VII 216 = vol. VIL, p. 216. Na Critica da razdo pura s4o indicados os ntimeros de pagina da primeira (A) ou segunda (B) edicao; p. ex. is) Ap. 413 = primeira edicao, p. 413, . Nas cartas (p. ex., Briefe, 744/406), 0 primeiro numero ~_ (744) designa os nimeros das cartas na “Akademieaus- ~ gabe”, o segundo (406) designa os ntimeros da selecao na “Philosophische Bibliothek” (ed. por O. Schéndérffer, Hamburg, 2° ed. 1972). A referéncia a literatura indicada por capitulos, no Apéndice, é feita pelo nome do autor (se for preciso, mais o ano de publicagéo) e o mimero de pagina; em caso de varias edic6es ou reimpressdes, cita-se segundo a edicao nao posta entre paréntese. N ‘ ABREVIATURAS Anfang Fak. Frieden Gemeinspruch GMS Idee KpV Mutmasslicher Anfang der Menschenges- chichte [Inicio presumivel da histéria hu- mana] (VIII 107-123) Der Streit der Fakultdten [A disputa das fa- culdades] (VII 1-116) Zum ewigen Frieden [A paz perpétua] (VII 341-386) Uber den Gemeinspruch: Das mag in der Theo- nie richtig sein, taugt aber nicht fiir die Pra- xis [Sobre o dito comum: isto pode ser cor- reto na teoria, mas nao serve para a pratica] (VIII 273-313) Grundlegung zur Metaphysik der Sitten {Fun- damentagao da metafisica dos costumes] (IV 385-463) Idee zu einer allgemeinen Geschichte in welt- biirgerlicher Absicht [Idéia de uma historia universal de um ponto de vista cosmopo- lita] (VIL 15-31) Kritik der praktischen Vernunft [Critica da ra- 240 pratica] (V 1-163) XIV KrV Ku Log. MAN MS Prol. Ref. Rel. RL TL IMMANUEL KANT Kritik der reinen Vernunft [Critica da raz&o pura] (A: IV 1-252, B: II] 1-552) Kritik der Urteilskraft [Critica da faculdade do juizo] (V 165-485) . Logik. Ein Handbuch zu Vorlesungen [Légi- ca. Um manual para prelegdes], ed. por G. B. Jasche (IX 1-150) Metaphysische Anfangsgriinde der Natur- wissenschaft [Principios metafisicos da ciéneia natural] (IV 465-565) . Die Metaphysik der Sitten [A metafisica dos costumes] (VI 203-493) Prolegomena zu einer jeden kiinftigen Me- taphysik [Prolegomenos a toda metafisica futura] (IV 253-383) Reflexionen [ReflexGes] (XIV ss.) Die Religion innerhalb der Grenzen der blos- sen Vernunft {A religiao nos limites da sim- ples razao] (VI 1-202) Metaphysische Anfangsgninde der Rechtsleh- ve [Principios metafisicos da doutrina do direito] (= 12 Parte da MS VI 203-372) Metaphysische Anfangsgriinde der Tugend- lehre [Princfpios metatfisicos da doutrina da virtude] (= 2 Parte da MS VI 373-493) NOTA SOBRE A EDICAO BRASILEIRA A traducao da presente obra de Otfried Héffe, profes- sor da Universidade de Tubingen, Alemanha, baseou-se no texto da 5? edicao alemi, revista e ampliada, do ano 2000. Realizada em parceria, coube a Christian Viktor Hamm traduzir as Secdes 1 a 8 e parte da Sec&o 10, e a Valerio Rohden a traducdo das demais partes. Comparada e dis- cutida entre ambos, ela, néo obstante, manteve em cada caso certa individualidade de estilo, de preferéncias de ter- mos e de sintaxe, nao plenamente identificaveis entre si. A obra ja foi traduzida para varias linguas, mas prin- cipalmente alcangou em seu pais de origem, em curto es- paco de tempo, sucessivas edicdes, transformando-se em um best-seller kantiano. O 8xito explica-se, em grande par- te, pelo seu cardter introdutério ao pensamento geral de Kant, inteligentemente aliado a um nivel académico exi- gente, detalhado, seguro e fundamentado no tratamento de todas as questdes € conceitos. Além disso, o texto si- tua-se 4 altura da critica filosdfica contemporanea, res- pondendo a suas objecées, desfazendo mal-entendidos € ptojetando o pensamento de Kant para o futuro. Vale a XVI IMMANUEL KANT pena citar, a propésito, a frase com que 0 autor encerra © livro: “O projeto da filosofia transcendental critica pare- ce conter um potencial de pensamento que nao se esgo- ta rapidamente, que talvez até hoje ainda nao tenha sido devidamente medido.” O empenho da Livraria Martins Fontes Editora em editar o presente livro ainda no decurso da comemora¢ao dos 200 anos da morte de Kant merece, por isso, 0 nos- so reconhecimento e nossa admiracao. VALERIO ROHDEN E CHRISTIAN VIKTOR HAMM Porto Alegre/Santa Maria, 19 de agosto de 2004. 1. INTRODUGAO. Sera que Kant é apenas uma figura histérica da Filoso- fia, ou continua merecendo ainda nosso interesse sistemA- tico? Kant 6 um dos maiores pensadores do Ocidente e tem influenciado, talvez como nenhum outro, a filosofia da modernidade. Mas pode-se dizer também de Galilei e Newton que sao cientistas excepcionais na sua drea. Nao obstante, eles aparecem hoje como representantes de uma concep¢ao passada da Fisica que foi indubitavelmente su- perada pela teoria da relatividade e a teoria quantica. Cabe dizer 0 mesmo também com respeito a fildsofos? Repre- senta Kant uma figura eminente, sem divida, mas, mes- mo assim, superada do pensamento humano? Historicamente, Kant pertence 4 época do Iluminismo europeu. A orientagao geral desta época torou-se fragil em muitos aspectos: a idéia de que o homem pode do- minar todas as coisas, a fé no progresso constante da hu- manidade e, em geral, a confianga otimista na razao. Como movimento histdrico, o iluminismo pertence ao passado. XVIII IMMANUEL KANT Mas significa isso que também todas as suas idéias cen- trais perderam seu valor? Nao é verdade que razao e liber- dade, critica e maioridade sao disposiges e tarefas hu- manas fundamentais que, bem entendidas, permanecem validas para além dos séculos XVII e XVIII? Kant desenvolveu uma compreensao das idéias ilu- ministas que se manteve eqitidistante de um iluminismo ingénuo e de uma atitude contra-iluminista, segundo a qual tudo o que existe é bom e belo. A filosofia de Imma- nuel Kant representa nao s6 0 apogeu intelectual mas tam- bém uma transformagao do iluminismo europeu. “Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu proprio entendi- mento!” — esse lema da época é assumido por Kant (Was ist Aufklarung? VIII 35) e elevado a principio universal. O iluminismo como processo: a superagao de erros e precon- ceitos a partir da decisao de fazer uso do juizo préprio, a rentincia gradual a interesses particulares e a descoberta sucessiva da “razao humana universal” — tudo isso é uma idéia comum da época. Em Kant, esta idéia resulta na cri- tica de toda filosofia dogmiatica e na descoberta do fun- damento tiltimo da razo, cujo principio é a autonomia, a liberdade enquanto autolegislagao. Ao mesmo tempo, Kant critica profundamente a posigao de um otimismo ili- mitado, ja enfraquecida anteriormente pelo Primeiro dis- curso de Rousseau (1750) e também pelo grande terremo- to “sem sentido” de Lisboa (1755). Partindo da investigagao de problemas internos da filosofia, Kant vai avancar nao s6 até as origens mas também até os limites da razao pura, tanto da tedrica como da pratica. Kant fica profundamente impressionado com o pro- gresso das ciéncias naturais modernas (Galilei, Newton) e com o desenvolvimento anterior da Légica e da Mate- mitica. Por isso, parece-lhe intoleravel que a Primeira Filo- INTRODUCAO Figura 1. Kant. Desenho de Puttrich, de cerca de 1798. XX IMMANUEL KANT sofia, chamada tradicionalmente de Metaffsica, perma- neca envolvida em uma disputa sem fim em torno das questdes de Deus, da liberdade e da imortalidade. Kant considera esta controvérsia sobre os fundamentos meta- fisicos um escandalo que a filosofia tem que superar, caso ela pretenda realmente manter seu lugar entre as ciéncias. A fim de conduzir a filosofia ao caminho seguro de uma ciéncia, Kant deixa de lado, primeiramente, a inves- tigagéio sobre Deus, a liberdade e a imortalidade. Ele co- mega num ponto mais basico e pergunta se a filosofia pri- meira, a metafisica, pode ser ciéncia. Antes de investigar, a partir dos seus princfpios, o nosso mundo natural e social, a filosofia tem a tarefa de examinar a sua prdpria possi- bilidade. A filosofia nao vai mais comegar como metafi- sica; ela comega como teoria da filosofia, como teoria de uma metafisica cientifica. A questo da metafisica como ciéncia introduz na discussao filoséfica uma radicalidade até entao desconhe- cida. Essa radicalidade se torna possivel somente através de um novo e mais profundo modo de pensar. Kant 0 des- cobre na critica transcendental da raz4o. Por meio dela ele analisa a capacidade da razdo e fundamenta um filosofar cientifico autonomo, sem deixar de determinar o necessa- rio limite deste ultimo. Quem vé em Kant apenas a origem de uma nova metafisica assume, portanto, uma visao nao menos unilateral do que aquele que 0 considera, como Mendelssohn, um mero “destruidor da metafisica”. A questao de uma filosofia cientifica auténoma nao pode ser resolvida de modo abstrato, mas somente por uma investigagao de problemas objetivos centrais. Com efeito, uma filosofia aut6noma, a filosofia enquanto cién- cia racional, pressupde que o conhecer ¢ o agir humanos, no Ambito do Direito, da Histéria e da Religio, e nos juizos INTRODUCAO: XXI estéticos e teleolégicos, contém certos elementos que sao validos independentemente de toda empiria; pois sé nes- se caso pode-se conhecé-los filosoficamente, e nao apenas Pelas ciéncias empiricas. Por isso, a questdo central kan- tiana da possibilidade de uma filosofia cientifica auténo- ma nao € uma questo preliminar; ela implica a aborda- gem de problemas substanciais. Em investigacdes de ori- ginalidade exemplar e de sutileza conceitual, Kant tenta mostrar como os diversos campos do nosso conhecimen- to sao constituidos efetivamente por elementos indepen- dentes da experiéncia. Assim, ele explica como s30 pos- siveis, apesar da finitude (receptividade e sensibilidade) do ser humano, a universalidade e a necessidade do ver- dadeiro saber, do agir moral ete. Uma filosofia cientifica exige, no entanto, que os ele- mentos independentes da experiéncia se deixem encon- trar mediante um método e expor de modo sistemdtico. Segundo Kant, isso se efetua na critica transcendental da tazao. Foi a descoberta dos elementos nao empiricos e da critica da raz3o como meio da sua andlise que real- mente fez época. Ela revolucionou o modo tradicional do pensar e conseguiu, no entender de Kant, colocar a filo- sofia sobre um fundamento definitivamente seguro. Até quem se mantém cético com respeito a tal pretensiio de fundamentacao deve reconhecer que Kant mudou radical- mente © cenério filoséfico: a teoria do conhecimento e do objeto, a ética, a filosofia da histéria e da Teligiao, e tam- bém a filosofia da arte. Se pensamos em conhecimentos 4 priori e a posteriori, em juizos sintéticos e analiticos, ar- gumentos transcendentais, idéias regulativas e constitu- tivas, no imperativo categérico ou na autonomia da von- tade — o mimero dos conceitos e problemas da discussdo atual que tém sua origem em Kant é surpreendentemen- Xx IMMANUEL KANT te grande. As mais diversas orientagdes do pensamento escolheram Kant como ponto de referéncia, seja em sen- tido critico, seja em sentido afirmativo. Os conceitos-chave da filosofia kantiana, critica, razéo e liberdade, sao as palavras decisivas da “época da revolu- ao francesa” (de 1770 a 1815, aproximadamente). Assim, Kant nao é apenas um dos classicos eminentes da filoso- fia e um interlocutor importante da época atual. Ele é, ao mesmo tempo, um dos representantes mais significati- vos daquela época que Jaspers intitulou de “tempo eixo” e que tem influenciado muito, até hoje, nosso pensamen- to e o nosso mundo de vida sociopolitico. Apesar disso, nao podemos ver em Kant 0 precursor da atualidade. Pois ha, por um lado, muitos filésofos con- temporaneos que criticam Kant em pontos essenciais. E, por outro, Kant néo é um antecessor das ciéncias natu- rais, humanas e sociais contemporaneas, nem fundador da atual filosofia da ciéncia. Kant também nao é promo- tor da transicao dos Estados democraticos de direito para Estados sociais. O positivismo légico ¢ a filosofia analitica contestam elementos independentes da experiéncia e exi- gem, assim como 0 estruturalismo, uma rentincia a qual- quer tipo de fundamentagao ultima. A ética de Kant & questionada pelo utilitarismo ou pela “ética do discurso . a sua filosofia da liberdade pelo determinismo e behavio- tismo, a sua filosofia do direito pelo positivismo. Em resu- mo: Kant esta em desacordo com importantes tendéncias em filosofia, ciéncia e politica. Na medida em que Kant nao esta conforme com a consciéncia da nossa época, a leitura dos seus escritos fa- cilmente provoca certa resisténcia interna. A seguinte in- trodugdo a biografia, no desenvolvimento filoséfico e sua influéncia, mas sobretudo a obra, tenta abrandar tal re- INTRODUGAO XXII sisténcia e fazer do leitor nao necessariamente um parti- dario de Kant, mas despertar pelo menos seu interesse e tornar compreensivel a constante influéncia que sua filo- sofia tern desde a sua origem até nossos dias. Uma introducao no pensamento de Kant pode esco- lher como fio condutor a histéria do seu desenvolvimento filos6fico ou a histéria da sua influéncia. Para ambos os caminhos hd boas razées. Por isso, esbogaremos primei- ro o desenvolvimento (caps. 2-3) e no final (cap. 14) a in- fluéncia do pensamento kantiano, entremeando, de vez em quando, algumas indicagdes histéricas. Mas 0 nticleo da nossa exposicdo constituirao os escritos principais. Pois € neles que o pensamento de Kant alcanga, depois de um trabalho preliminar de anos e decénios, aquela forma que © proprio fildsofo considerou como decisiva. Sem dtivi- da, as obras péstumas de Kant esclarecem muitos aspec- tos histéricos e tematicos cuja desconsideragiio faria com que alguns elementos de teoria permanecessem obscuros ou estranhos; também é certo que as prelegdes revelam certos pressupostos e complementagSes importantes, e que o material do ultimo periodo, o chamado “Opus pos- fumum”, sugere continuagdes e modificagdes que uma ex- Posi¢ao mais profunda deve tomar em consideragao. Mas de maior prioridade sao os escritos criticos principais, com seus problemas e conceitos basicos, suas propostas de so- lugdo e a estrutura argumentativa delas. Uma introdugao nao fornece um comentario porme- norizado que enfoque as miltiplas dificuldades de uma teoria. Pretende, antes, apontar para 0 alto nivel de refle- xo, a diferenciacao conceitual e a consideravel consistén- cia que, nao obstante algumas ambigitidades e contradi- goes, caracterizam a proposta filoséfica de Kant. Por outro lado, a filosofia transcendental nao é livre de certos pre- XXIV IMMANUEL KANT conceitos cientificos e politicos, como, por exemplo, a opi- nido de que existe s6 uma geometria, a euclidiana, ou a convicgao de que o cidadao economicamente indepen- dente é superior em comparac&o com o economicamente dependente. Uma exposicgao sélida tem que assinalar tais elementos, mas deve também mostrar que eles nao fa- zem parte da propria reflexao transcendental de princi- pios. Isso nao exclui, entretanto, que, em outros estudos, possa ser oportuno submeter o pensamento kantiano a uma critica sistematica. No entanto, a presente introdu- ¢4o a vida, 4 obra e a influéncia de Kant se atém, no todo, a seguinte maxima: j4 que Kant nao pode mais falar, faz sentido interpreté-lo de modo dindmico e favoravel. Uma filosofia séria se dedica aos problemas funda- mentais do homem, segundo Kant: na medida em que se manifesta neles um interesse da razdo. Tal interesse con- flui nas trés perguntas célebres: 1, Que posso saber? 2. Que devo fazer? 3. Que me € permitido esperar? (KrV, B 833). Essa introdugao adota a triparticgo e apresenta primeiro a Critica da raziio pura, depois a filosofia moral e do direito e, em terceiro lugar, a filosofia da histéria e da religido. Mas quem absolutiza essa triparticao desconsidera a impor- tante tarefa mediadora da Critica da faculdade do juizo; devido a sua grande relevancia sistemitica e objetiva, ela é abordada numa parte especial. Devo agradecer particularmente aos colegas Riidiger Bittner, Norbert Hinske e Karl Schuhmann suas amisto- sas observacées criticas, a Viera Erben-Pollak e Edith Zic- kert a paciente transcricéo do manuscrito, e aos meus colaboradores Lothar Samson, Lukas K. Sosoe e Bernard Schwegler a ajuda prestada na correcdo e na confeccdo dos indices. I AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO Dificilmente se pode escrever uma biografia emocio- nante sobre Kant; sua vida exterior foi equilibrada e mond- tona. Nés nao encontramos episédios que pudessem cha- mar a atencao de seus contemporaneos, nem aventuras que pudessem despertar o interesse da posteridade. Kant nao levou, como Rousseau, uma vida errante, nem se cor- tespondeu, como Leibniz, com todos os grandes persona- gens de seu tempo; diferentemente de Platio ou Hobbes, no esteve envolvido em empreendimentos politicos, nem em histérias amorosas, como Schelling. Também o seu es- tilo de vida nao teve nada de extravagante: nem vesti- menta esquisita nem a cabeleira, ner gestos patéticos do “Sturm und Drang”. Kant era de um carter extraordinaria- mente reservado. Ainda que a sua obra critica talvez se deva, igual & de filésofos como Santo Agostinho, Descartes ou Pascal, a uma iluminacdo stibita (cf. Refl. 5037), Kant no fala em nenhum de seus escritos de uma vivéncia filo- sdfica que houvesse alterado bruscamente o seu pensa- mento anterior. Assim, no encontramos nada que corres- ponda a imagem de um génio. Entao, a personalidade e a 2 IMMANUEL KANT biografia de Kant sao decepcionantes? E verdade, como afirmou Heine (83), que Kant nao foi um génio? Podemos entender Kant somente por sua obra, na qual se expressa com rigor inquebrantavel e com uma ex- clusividade quase inquietante. Essa obra se chama ciéncia, sobretudo ciéneia racional: conhecimento da natureza e da moral, do direito, da religiao, da histéria e da arte, a partir de principios a priori. Ainda mais que de outros filésofos, pode-se afirmar de Kant que os acontecimentos se pro- duzem no pensamento; Kant nao possui outra biografia senao a histéria do seu filosofar. Entre os grandes filésofos da modernidade Kant é (talvez depois de Chr. Wolff) 0 primeiro que ganha o seu sustento através do exercicio profissional da dacéncia na sua disciplina. Ao contrario da maioria dos representantes do esclarecimento inglés e francés, levou a vida de um dou- to burgués, uma vida rica em trabalho, mas pobre em acon- tecimentos externos. Isso significa também que, em Kant, a filosofia académica adquire uma originalidade inova- dora. Esta tradicao continua em Fichte, Schelling e Hegel pata romper-se depois; filésofos come Schopenhauer, Kierkegaard e Marx se mantém alheios e inclusive opos- tos aos pensadores académicos, tanto como Comte, Mill e Nietzsche. Kant nunca abandonou a regiéo de Konigs- berg, sua cidade natal. Apesar disso, numerosos escritos de Kant, de natureza nao especulativa, revelam, além de fantasia e de humor, um conhecimento extraordinario do mundo, Kant deve este conhecimento a leitura, 8 com- preensao e a uma rara capacidade de imaginacao criativa. Nossos conhecimentos da vida, da personalidade e do desenvolvimento filosdfico de Kant adquirimo-los, em grande parte, através de sua correspondéncia. As cartas constituem uma importante complementacao e continua- cdo dos tratados escritos de Kant. Elas documentam a AVIDA E O DESENVOLVIMENTO FILOSOFICO 3 evolugdo académica, as relagdes com amigos, parentes, colegas e estudantes. Falam de seu relacionamento com célebres personagens contemporaneos, com correntes @ acontecimentos culturais e nos permitem conhecer o pri- meiro efeito da filosofia kantiana. Porém, ”s6 ocasional- mente e, por assim dizer, com resisténcia, deixam trans- parecer uma disposigdo ou um interesse pessoal” (Cas- sirer, 4). Nao menos significativas que as cartas so as primeiras biografias de seus contemporaneos Borowski, Jachmann, Wasianski, Hasse e Rink. Todos eles viveram também em Kénigsberg e tiveram um longo trato pessoal com 0 filésofo. Dado que a maioria das cartas escritas e recebidas por Kant sao posteriores a 1770, quando Kant ja tinha 46 anos de idade, e que, além disso, a biografia dos contempora- neos se centra no periodo de maturidade de Kant, enfim, que as anedotas sobre seus caprichos caracteristicos sao desta época, existe o perigo de conceber a personalidade de Kant excessivamente a partir da perspectiva de sua ve- lhice e de sua propensao a rigidez e ao pedantismo. Na tealidade Kant era socidvel ¢ até galante no seu estilo de vida. Mas cada vez mais tomou forma a sua vocacdo que, finalmente, sobrepés-se a todos os outros interesses a filo- sofia transcendental critica, que o proprio Kant viveu como uma revolugéo do pensamento e se mostrara efetivamen- te revolucionaria na histéria da filosofia européia. 2. O PERIODO PRE-CRITICO 2,1 Familia, escola, universidade Immanuel Kant nasceu no dia 22 de abril de 1724 como o quarto de nove filhos de um modesto seleiro nos

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