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ONT VIM Revista Encontros com a Filosofia a ANO Il, n.V, 2015 (JUN) ISSN 2317-6528 A VISAO DOS GESTOS: CORPO, ARTE E CONHECIMENTO EM O OLHO EO ESPIRITO DE MERLEAU-PONTY Adriana Mariada Silva’ Resumo As vinculagdes entre corpo, arte e conhecimento desenvolvidas por Merleau-Ponty em sua derradeira obra concluida em vida, O olho e o espinto (L’oeil et esprit), estéo densamente vinculadas ao problema central da sua filosofia, a percepeao. Por conseguinte, no pensamento do fildsofo, questdes complexas como: representagao-percepgao, alma-corpo e ciéncia-flosofia, aparece imbricadas, Desse modo, pretendemos desenvolver neste artigo uma breve discusséo em torno da percepeao, entendida enquanto movimento do corpo. Para isso, inicialmente centramos nossas analises na critica ao espirito cientifico, estabelecidas na primeira parte do escrito @, posteriormente, dedicamos nossas reflexes @ arte, especificamente a pintura tematizada por Merleau-Ponty, ¢ sua relacao com uma proposta de acesso ao conhecimento por meio da sensivel Palavras-Chave: Representacao-percepgo: Alma-corpo; Ciéncia-flosofia. LA VISION DE LOS GESTOS: CUERPO, ARTE Y CONOCIMIENTO EN EL OJO Y EL ESPIRITU DE MERLEAU-PONTY Resumen Los vinculos entre ef cuerpo, el arte y el conocimiento desarrollados por Merleau-Ponty en su iltimo trabajo completado en la vida, El ojo y el espirtu (L’oeil et L’esprit), estan estrechamente relacionados con el problema central de su filosofia, la percepcién. En consecuencia, en el pensamiento del flésofo, cuestiones complejas como: representacién-percepcién, alma-cuerpo y ciencia-filosofia, aparecen entrelazadas. Por lo tanto, tenemos la intencién de desarrollar en este articulo una breve discusién sobre la percepcién, entendida como un movimiento del cuerpo. Con este fin, inicialmente enfocamos nuestros anélisis en la critica del espiritu cientifico, establecido en la primera parte de la escritura y, luego, dedicamos nuestras refiexiones al arte, especificamente a la pintura tematica de Merleau-Ponty, y su relacién con una propuesta de acceso al conocimiento a través de de los sensibles. Palabras clave: representacién-percepcién; Cuerpo del alma; Ciencie-filosofia, THE VISION OF GESTURES: BODY, ART AND KNOWLEDGE IN THE EYE AND THE SPIRIT OF MERLEAU-PONTY Abstract The links between body, art and knowledge developed by Merleau-Ponty in his last work completed in lif, ‘The eye and the spirit (L’oell et L’esprit), are closely linked to the central problem of his philosophy, perception. Consequently, in the philosopher's thinking, complex issues such as: representation perception, soul-body and science-philosophy, appear interwoven. Thus, we intend to develop in this article a brief discussion about perception, understood as a movement of the body. To this end, we initially focus our analyzes on the critique of the scientific spirit, established in the frst part of the writing and, later, we dedicate our reflections to art, specifically painting themed by Merleau-Ponty, and its relationship with @ proposal for access to knowledge through of the sensitive, Keywords: Representation-perception; Soul-body; Science-philosophy. * Professora no Programa de Educaco Disténcia em pedagogia/ Unirio. Doutoranda no Programa de Pés-Graduagao em Educagao da Universidade Federal Fluminense. 76 © oho vé 0 mundo, ¢ 0 que falta ao mundo para ser quadro, eo que falta ao quadro para ser ele proprio, e, na paleta, a cor que o quadro espera; e vé, uma vez feito, 0 quadro que responde a todas essas faltas, e vé os quadros dos outros, as respostas outras a outras faltas. (..) Instrumento que se move por si mesmo, meio que inventa seus fins, 0 olho aquilo que foi sensibilizado por um certo impacto do mundo e o restitui ao visivel pelos tracos da mao Merleau- Ponty (MERLEAU-PONTY,2013¢, p. 23). E importante destacar, inicialmente, que as reflexdes estabelecidas por Merleau- Ponty em sua obra O olho e 0 espirito (L’oeil et esprit), escrita no verdo de 1960, nao objetivam desenvolver uma teoria sobre a arte ou constituir uma estética, mas sim, de permanecer a escuta do trabalho pratico dos artistas. Trata-se, entéo, fenomenologicamente, de descrever um vivido, uma experiéncia. fildsofo francés, profundo conhecedor da arte moderna, demonstra interesse nas produgdes deste movimento e dedica atengdo as diversas polémicas que envolviam a tematica da arte ocorridas na Franga dos anos 50 como, por exemplo, as divergéncias entre a arte abstrata e a arte figurativa, 0 debate em torno de Georges Bataille” e a descoberta da gruta de Lascaux”, Merleau-Ponty, em uma linha propria & sua filosofia, nos fornece indicagdes do seu engajamento com questées que orbitam no cenario da arte em sua época, entretanto, mesmo acompanhando o contexto histérico em que a arte modema se desenvolve, nao procura o lugar de artista ou de critico da arte, seu interesse 6, enquanto filésofo, expressar o sentir e colocar em relevo a percepgao: 0 que é ver?! Essa questo é norteadora do percurso filoséfico de Merleau- Ponty, que desenvolve reflexdes em torno da percepgao ainda em suas primeiras obras, a saber: A estrutura do comportamento (1942) e Fenomenologia da Percepcao (1945). Ao iniciar a leitura do livro O olho € 0 espirito, esperamos entrar em contato com uma obra estética, liberando o termo da tradigo do século XVIII, como 0 estudo do belo e da arte e expandindo seu uso a toda dimensdo da sensibilidade e nao 2Georges Betallle (1897 - 1962) escritor francés, sua obra transita em torno dos campos da literatura ntropologia, fllosofia, sociologia e historia da arte. Sao tematicas reorrentes em suas obras: o erotismo, a transgresséo 0 sagrado. °A Gruta de Lascaux 6 um complexo de cavernas que foi descoberto em 1940. Lascaux possui pinturas rupestres gravadas em suas paredes e esta locelizeda na Dordogne, regiao sudoeste da Franca, ppréxima a pequena cidade de Montignac-sur-Vezére. De A diivida de Cézanne a O oho # 0 espirito, da Fenomenologia da percepcdo a O visivel @ 0 invisivel, Merleau-Ponty nao deixou de meditar sobre a visao. No quarto onde ele se abate subitamente numa tarde de maio de 1961, um livro aberto, ao qual ele néo termina de se reportar, testemunha seu titimo trabalho: a Didptrica. Até 0 fim, sua vida de fiésofo alimenta a questao a que seus escritos trazem sempre novas respostas: 0 que 6 ver?" (LEFORT, 1999, p. 692) 7 estritamente a beleza, como foi a marca do desenvolvimento histérico dessa categoria conceitual (MAILLARD, 1998), considerando que, no pensamento da fenomenologia francésa, a questéo posta como central é a aisthesis, compreendida enquanto manifestagao da percepgdo, do sentir. Contudo, quando abrimos O olho € o espirito, Merleau-Ponty nos apresenta uma discussdo critica acerca da ciéncia modema e de Descartes como fundador do espirito filoséfico ocidental modemo, Na obra em questo, diversos problemas filosoficos sao submetidos novamente ao exame da percepgao, entre eles, as relagdes contraditorias € conflitantes entre corpo e alma, ampliadas pela tradi¢ao cartesiana e, sobretudo, as divergéncias entre 0 modelo de visdo cartesiano e 0 fenomenoldgico, retratado, especificamente, na experiéncia do pintor (FALABRETTI, 2012}: a qual reflito, como pensamento, inspego do Espirito (...). E ha a visdo que se efetua, pensamento honorério ou instituido (...), [que exergo], e que introduza ordem auténoma do composto de alma e corpo”. (MERLEAU-PONTY, 2013c, p.37). Por esse caminho, Merleau-Ponty busca recuperar 0 sentido originario da percepgao ou da sensibilidade e, de modo mais amplo, do corpo, inabilitado ou manipulado na filosofia de Descartes em favor do pensamento ou representacdo e, mais estritamente, da raz4o. *(...) ha a visdo sobre Desse modo, concordamos coma defesa de que 0 fildsofo francés, em O olho e 0 espirito, convoca € nomeia sua obra inteira (LEFORT, 1999). E inegavel que, desde suas primeiras reflexdes, Merleau-Ponty interroga o fenémeno da percepgao, com o propésito de evidenciar os equivocos gerados pela tradugo intelectualista, para a qual a percepgo é uma operagdio especifica do pensamento ~ um pensamento de ver, um pensamento de sentir -, considerando a sensibilidade apenas uma ocasiao para a atividade do pensamento, ou para a representagao deste. Tanto na ciéncia moderna quanto no pensamento reflexivo, 0 pedago de giz, 0 bastdo, a mesa, 0 cubo, sao representagées de objetos captados por meio do pensamento, produzidos para serem diluidos pelas operagdes ldgico-matematicas, o que os mantém preocupados é afastar os enganos dos sentidos. Sobre isso Claude Lefort (2013, p. 10) assegura: (...) 0 que eles exigem do pensamento, 6 toda a paisagem que Merieau-Ponty evoca, uma paisagem que j havia captado o espirito com o olhar, em que o préximo se difunde no distante ¢ 0 distante faz vibrar 0 proximo, em que a presenga das coisas se dé sobre um fundo de auséncia, em que o ser ea aparéncia se permutam, A obra de arte, notadamente a pintura, provoca e faz nascer um certo modo de 78 perceber, ¢ a propria evidéncia de que todo percebido esta mergulhado no tecido do mundo que permite seu surgimento. Uma manifestagao alheia as formas canénicas da razdo como € 0 caso, por exemplo, da linguagem; a pintura, de modo diverso, expressa em ato 0 que pretende comunicar. Ela se faz enquanto movimento reflexivo do préprio corpo, entrando em contato com 0 mundo através do olhar e da sensibilidade. O filésofo assegura que esse paradoxo — visivel e mével — nao cessa de produzir outros, na medida em que 0 corpo esta preso ao tecido do mundo, sendo, simultaneamente, destinado a ver e se mover, "ele mantém as coisas em circulo ao seu redor, elas sao um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estdo incrustadas em sua came fazem parte de sua definigéo plena, e o mundo € feito do mesmo estofo do corpo”(MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 20).Nesse sentido, para Merleau-Ponty, o trabalho do pintor surge como uma evocagao radical do tema da percepgao, assim, a atividade pictérica é considerada capaz de despertar em nds o mundo que habitamos, por meio da percepgao (CAMINHA, 2010). O pintor emprega seu compo, diz Valery. E, de fato, nao se percebe como um espirito poderia pintar. E oferecendo seu corpo ao mundo que © pintor transforma 0 mundo om pintura. Para compreender essas transubstanciagdes, 6 preciso reencontrar 0 corpo operante @ atual, aquele que nao é uma porgao do espaco, um feixe de fungdes, que é um tragado de viséo e movimento. (..) Meu corpo mével conta com 0 mundo visivel, faz parte dele, e por isso posso dirigi-o no visivel (MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 18). A percepcao, investida na tarefa do pintor - aquele que emprega seu corpo e sua técnica para criar uma obra de arte -, apresenta-se como uma possibilidade de restituigéo da experiéncia sensivel e de conciliagao entre razdo e sentidos, corpo e espirito, esse duplo encontro do mundo e do corpo, € a origem de todo saber que excede 0 concebivel (LEFORT, 2013). Corpo e visa : a critica ao espirito cientifico e a filosofia da ciéncia Encontramos como ponto de partida da obra O oho e o espirito, a critica radical ao espirito cientifico que esté amparado na filosofia cartesiana por meio da recusa a0 modelo tradicional de viséo, instituido na Didptrica escrita em 1637 e em algumas passagens das Meditagdes Metafisicas esoritas em 1641, em que Descartes reconstréi © visivel 2 partir de representacées intelectivas, assegurando a visio como uma operagao exclusiva do pensamento, A tese cartesiana desconsidera o vinculo entre o 79 corpo e 0 mundo percebido, e busca fundamentar seus pressupostos de modo a impossibilitar esta associago, como observamos no trecho que segue de sua segunda Meditacao: ‘Se por acaso nao divisasse pela janela pessoas que passam pela rua, a vista as quais afimo que vejo pessoas do mesmo modo que afirmo que vejo a cera; e, contudo, o que avisto desta janela, a nao ser chapéus e casacos que podem cobrir figuras ou pessoas ficticias que se movem por meio de molas? Mas julgo que sao pessoas de verdade e assim compreendo, apenas pelo poder de julgar que se localiza em meu espirito, aquilo que cria ver com meus olhos (DESCARTES, 1999, p. 266). Para Descartes, vemos somente aquilo que pensamos, ou seja, 0 visivel é considerado uma projegao do mundo pensado: “E breviario de um pensamento que nao quer mais frequentar o visivel e decide reconstrui-lo segundo o modelo que dele se oferece” (MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 28). Sobre a relagdo entre a visio e o pensamento na filosofia de Merleau-Ponty, Caminha (2010, p. 221) adverte: E verdade que Merleau-Ponty reconhece que nao ha visao sem pensamento. Apesar disso, segundo ele, nao basta pensar para ver. A visio depende sempre daquilo que acontece em nosso corpo através das paisagens do mundo percebido em que nés existimos como seres que podem ver. Se de um lado, nés nao podemos nos livrar da consciéncia, de outro, nao podemos nos livrar do corpo. espirito, apontado por Merleau-Ponty em sua critica a tradi¢ao filosdfico- cientifica, denota que a ciéncia e a filosofia tomaram para si um papel de entidade, um deus - assumindo uma relagao de criador e criatura — que procura tratar 0 mundo como um objeto construido e distanciado, e 0 sujeito como desencarnado e dominado pelas operagdes intelectivas. A visdo da ciéncia, baseada nas teses cartesianas, considera © corpo como um objeto diante de um sujeito pensante, sob o modelo de corpo maquina, manipulado a luz de experimentagdes nos laboratorios e afastado do mundo, A ciéncia manipula as coisas e renuncia habité-las. Estabelece modelos internos delas @, operando sobre esses indices ou variaveis as transformagoes Permitidas por sua definicao, 86 de longe se confronta com 0 mundo real. Ela sempre 8, sempre foi, esse pensamento admiravelmente ativo, engenhoso, desenvolto, esse parti pris de tratar todo ser como “objeto em geral’. Isto é, a0 mesmo tempo como se ele nada fosse para nés @ estivesse, no entanto, predestinado aos nossos artificios (MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 15). Contudo, Merleau-Ponty nao se opde ao pensamento ativo e desenvolto, que, seguramente, nutre o interesse de ampliar extensdes diversas para o olhar, nem 80 mesmo nega 0 carater investigativo e revelador da técnica, que possibilita expandir € alcangar outros sentidos, defendendo, ainda, que “toda técnica é ‘técnica do corpo’. Ela figura e amplia a estrutura metafisica da nossa carne” (MERLEAU-PONTY, 2013c, P.26). © que o filésofo francés sustenta ¢ a impossibilidade de suprimir 0 enigma do Ser’ por indices meramente operacionais e artificiais, como os da ciéncia. Trata- se, desse modo, de reestabelecer a relagao entre ciéncia e filosofia ou de incorporar a ciéncia na dimenséo do mundo da vida (FURLAN E ROZESTRATEN, 2005), reabilitando o sensivel por meio de uma reflexao (razao) oriunda do corpo. E preciso que com meu corpo despertem os corpas associados, 08 “outros”, que nao sao meus congéneres, como diz a zoologia, mas que me frequentam, que frequento, com os quais frequento um unico ser atual, presente, como. animal nenhum frequentou os de sua espécie, seu teritério ou seu meio Nessa hisloricidade primordial, pensament alegre e improvisador da ciéncia aprenderé a ponderar sobre as coisas e sobre si mesmo, voltaré a ser filosofia (...) (MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 17). Por esse caminho, Merleau-Ponty ao dialogar com a ciéncia tem como propésito afastar os equivocos instituidos pelo pensamento operatério - expresso decorrente da metafisica cartesiana — e restituir nossa relagdio incindivel com 0 mundo percebido, que no € apenas da ordem do pensamento, mas uma experiéncia de ter um mundo através do corpo que se pée a ver: aquele que ignora. E a pergunta daquele que no sabe a uma visdo que tudo sabe, pergunta que ndo fazemos, que se faz em nés” (MERLEAU-PONTY, 2013c, p.25). E Essa ndo 6, portanto, a pergunta daquele que sabe por meio dessa comunicagao estabelecida pela percepcao e precisamente pelo ato de ver, que a dimensdo estética estabelece um vinculo primordial com a criagdo, é a propria possibilidade de uma filosofia que retome o contato com o mundo e com os outros. Nesse sentido, ¢ preciso retomar, dito nos termos do préprio filésofo, ao estado ante predicativo em que ainda nao ha distingao entre sujeito e objeto. Destarte, o corpo surge como um horizonte para a percepgao de si mesmo, do outro e do mundo. As reflexes em tomo da pintura, desenvolvidas em O olho e o espirito, fundamentam uma “Referimo-nos ao conceito de Ser bruto desenvolvido por Merleau-Penty (2009), na obra O visivel eo invisivel, em que 0 filsofo sustenta a ideia de Ser como sendo 0 Ser da indiviséo, opondo-se frontalmente divisao metafisica e cientifica entre sujeito-objeto/ corpo-almal razao-sentidos. “E este ‘ser selvagem ou bruto que intervém em todos os niveis para ultrapassar os problemas da ontologia eléssica (mecanismo, finalismo, em todo 0 caso: artificialsmo)" (MERLEAU- PONTY, 2009, p. 197. 81 ontologia® que serve de abertura ao entendimento da regiao bruta e selvagem do Ser. Advertimos, ainda, sobre outro equivoco que deve ser evitado nas reflexdes em torno da filosofia de Merleau-Ponty, nado ha uma defesa de substituicdo do cientificismo pelo primitivismo, ou a crenga de uma verdade fabricada por outra originaria e fundante, como se a pintura e a filosofia pudessem expressar um contato primitivo com as coisas aquém da historia (FURLAN E ROZESTRATEN, 2005). A obra de arte, especificamente a pintura, surge como uma possibilidade de retomada da interrogagaio filosofica originaria, por se instalar, necessariamente, nas coisas do mundo. E preciso que o pensamento de ciéncia - pensamento de sobrevoo, ensamento do objeto em geral — tome a se colocar num “ha prévio", na aisagem, no solo do mundo sensivel e do mundo trabalhado tais como 80 fem nosta vida, por nosco corpo, nao esse corpo que é lice afirmar ser uma maquina de informagGes, mas esse corpo atual que chamo de meu, a sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras e sob meus. atos (MERLEAU-PONTY, 2013c, p.17). Essa filosofia que trabalha no avesso do pensamento operatério, artificialista instrumental da tradigdo cientifica, que estabelece suas premissas na mao contraria ao modelo abstrato e dicotémico da modernidade, investindo na reabilitagao do sensivel a partir de uma reflexéo do corpo ou, ainda, uma razéo do corpo; contesta um conhecimento que sobrepée @ ideia de processamento de informagées, encontrando sua maior manifestagdo na expressao artistica, aqui revelada por meio do trabalho do pintor, que harmoniza a técnica com a experiéncia sensivel(NOBREGA, 2010), como sua propria experiénoia do pensar. A visdo dos gestos na pintura de Cézanne Merleau-Ponty, ao tematizar a pintura em O olho e 0 espirito, pretende dar voz & expressdo, trazer a expresso alguma coisa que nao é da ordem da fala, precisamente porque a pintura é muda — revela em ato o que nao pode ser qualificado ou significado por meio da palavra, no sentido de uma operacdo meramente intelectiva -, ela é ante predicativa, Desse modo, a atividade pict6rica constitu uma manifestagao do mundo “Destacamos que @ ontologia proposta por Merleau-Ponty recebe influéncias das concepgbes de Huser! Heidegger e Sartre, no tocante as relagdes do Ser, especialmente com 0 corpo, a consciéncia © 0 mundo. A problematica ontoldgica é, de fato, percebida nas ultimas obras de Merleau-Ponty, a5 quais dedicamos maior atencao em nossa anélise. Essa ontologia alude as possibilidades do conhecer e de significagao, por meio da dindmica do corpo e da experiéncia sensivel 82 que se faz visivel através do percebido, daquilo explorado e conhecido por meio do olhar. Para isso, a pintura se coloca no curso do mundo e se faz mundo através do corpo do pintor, em um entrelagamento de visdo e movimento. No pensamento de Merleau-Ponty a vis4o e 0 movimento so dimensées correspondentes e correlatas relag4o corpo-mundo, 0 movimento ¢ a sequéncia natural e 0 amadurecimento da visdo. Que seria a visdo sem nenhum movimento dos olhos, e como esse movimento no confundiria as coisas se ele proprio fosse seu reflexo ou cego, se No tivesse suas antenas, sua clarividéncia, se a visdo nao se antecipasse nele? Todos os meus deslocamentos por principio figuram num canto de minha paisagem, estao reportados a0 mapa do visivel. Tudo 0 que vejo por principio esta ao meu alcance, pelo menos ao alcance de meu olhar, assinalado no mapa do “eu posso". Cada um dos dois mapas é completo. O mundo visivel @ de meus projetos motores sao partes totais do mesmo ser (MERLEAU-PONTY, 20130, p.19). Paul Cezanne Autorretrato As andlises realizadas por Merleau-Ponty acerca da pintura acompanham todo o desenvolvimento do seu pensamento. A leitura de Cézanne desenvolvida na obra A divida de Cézanne (1945), designa o pintor como sendo aquele que apresenta, em suas telas, aspectos, por exceléncia, do horizonte da pré-objetividade, de modo semelhante ao que 0 fildsofo francés descreve em sua Fenomenologia da percepco (1945). Afinal, Cézanne ndo separava as coisas de suas maneiras de aparecer, ele se dedicava a pintar a vibragao das aparéncias que é 0 bergo das coisas (MOURA, 2012). Destarte, encontramos nas primeiras obras de Merleau-Ponty, tanto em suas reflexes sobre a arte quanto em suas andlises filoséficas, a énfase na criagao de um sentido inédito, em estado nascente e sem modelo determinado, que supera a ideia de 83 representatividade ou de imitagdo, como também, excede a ideia de um simples prazer estético. Analogamente ao fildsofo que trouxe @ luz, por meio de suas andlises acerca da percepgao, um mundo ante predicativo, 0 trabalho criativo de Cézanne revela um pintor que expressa, em sua histéria, um mundo primordial, dando a impressao de apresentar a natureza em sua origem, capturada em uma perspectiva vivida. Foi esse mundo primordial que Cézanne quis pintar, e por isso seus quadros, do a impressao da natureza em sua origem, enquanto as fotografias das mesmias paisagens sugerem os trabalhos dos homens, suas comodidades, sua presenca iminente. Cézanne nunca quis pintar ‘como um bruto”, mas colocar @ inteligencia, as ideias, as ciéncias, @ perspectiva, a tradigao novemente em contato com o mundo natural que elas esto destinadas a compreender, confrontar com a natureza, como ele diz, as ciéncias “que sairam dela” (MERLEAU-PONTY, 2013a, p. 131-132). Giulio Carlo Argan (1992, p. 111) destaca, ainda, que apenas Cézanne supera o que havia de arbitrario e eticamente injustificavel nessa vontade de tomar e se apropriar, reestabelecendo um equilibrio absoluto, até mesmo uma identidade, entre a realidade interior e exterior, entre 0 eu e o mundo, entre o efetuar-se da consciéncia e © efetuar-se da realidade. Se existe uma filosofia na maneira em que Cézanne se apropriava da realidade, por meio da sua pintura, nao seria, porém, uma filosofia que procedia de silogismos, mas que se efetuava junto com a experiéncia, viva e atual, da realidade efetuada pela consciéncia. Para 0 critico e historiador de arte, a pintura é 0 modo de fundir e estabelecer uma identidade entre a experiéncia (a sensagao) e 0 pensamento (razao), ela é a tinica que no sé permite acompanhar a transformagao, como também transforma concretamente a impressdo sensorial fugidia, quase inapreensivel, em um pensamento concreto, vivid, de modo a realizar a consciéncia em sua totalidade, Assim, Cézanne efetuava com a pintura uma filosofia que nao poderia ser realizada de outra maneira. Sobre essa totalidade conquistada através do trabalho do pintor, lemos em A diivida de Cézanne: Cézanne nao acreditou ter que escolher entre @ sensagao © o pensamento, como entre 0 cacs @ a ordem. Ele nao quer separar as coisas fixas que aparecem ao nosso olhar € @ sua maneira fugaz de aparecer, quer pintar a matéria em via de se formar, a ordem nascendo por uma organizacao espontanea. Nao estabelece um corte entre os “sentidos” @ a “inteligénoia mas entre a ordem espontanea das coisas percebidas ¢ a ordem humana das ideias e das ciéncias. Percebemos coisas, entendemo-nos sobre elas, estamos enraizados nelas, ¢ € sobre essa base de “natureza” que construimos as ciéncias (MERLEAU-PONTY, 2013a, p.131) Merleau-Ponty, ¢ importante evidenciar, na ocasiao em que escreve A divide de 8a Cézanne, se associa ao primeiro momento da criagao do artista. A busca do sentido primitivo permite aproximar a vida engajada do pintor ao mundo e a experiéncia do filésofo com a fenomenologia, dirigida a descrever a percepcao. Em O olho e o espirito, com 0 aprofundamento de suas analises em torno de uma ontologia, 0 fildsofo busca a Ultima fase da producdo de Cézanne, marcada por seu afastamento do impressionismo que supée uma volta ndo ao objeto, no 4 paisagem, mas um retorno as coisas mesmas que figuram no campo da viséo. Nesse momento, Cézanne retrata as coisas em sua mais profunda integridade, em sua solidez, em suas cores, em sua carne e em todos os indices que as tornam presengas visiveis. Agora, interior e exterior estdo envolvidos em uma Unica camada: a textura do visivel (FALABRETTI, 2012). Essa extraordinaria imbricagao, sobre @ qual nao se pensa suficiente, probe conceber a viséio como uma operagto de pensamento que ergueria diante do espirito um quadro ou uma representagao do mundo, um mundo da imanéncia € da idealidade. Imerso no visivel por Seu corpo, ele proprio visivel, o vidente nao se apropria do que vé; apenas se aproxima dele pelo olhar, se abre a0 mundo, E esse mundo, do qual ele faz parte, nao 6, por seu lado, em si ou matéria. Meu movimento nao 6 uma deciséo do espirito, um fazer absoluto. que decretaria, do fundo do refiro subjetivo, uma mudanga de lugar milagrosamente executada pela extenséo. Ele & a sequéncia natural ¢ 0 ‘amadurecimento de uma visao (MERLEAU-PONTY, 20136, 19) Nessa fase final, as reflexes “merleau-pontyanas' se dirigem, especificamente, para as questées da visdo e do Ser. Desse modo, 0 sujeito da percepgao ndo é mais 0 corpo préprio, 0 corpo de cada um como o vive e 0 percebe, mas a carne, essa carne que escapa 4 filosofia da subjetividade e, mesmo aquela do sujeito corporificado, estabelece com a carne do mundo uma relagao ainda mais estrita. As mudancas terminolégicas percorrem 0 mesmo reordenamento da filosofia de Merleau- Ponty. Da consciéncia e da percep¢ao para uma ontologia, assim, os termos visdo € ser tornam- se eixo principal em seu iltimo pensamento, “a visio é 0 encontro, como uma encruzilhada, de todos os aspectos do ser” (MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 53). Portanto, o entrelagamento do corpo com o mundo acontece na visao. A visio do pintor nao & mais o olhar posto sobre um fora, relagéio meramente fisico-6ptica” com o mundo. O mundo nao esta diante dele por representagao: 6 antes 0 pintor que nasce nas coisas como por concentragao @ vinda a si do visivel, € 0 quadro finalmente 86 se relaciona com 0 que quer que seja entre as coisas empiricas sob a condigao de ser primeiramente “auto figurative"; ele s6 6 espetaculo de algume coisa sendo “espetéculo de nada’, arrebentando a pele das coisas", para mostrar como as coisas se fazem coisas @ 0 mundo, mundo (MERLEAU-PONTY, 2013c, p.44) 85, Para Merleau-Ponty, é possivel ver na pintura um ato que patenteia a comunhao corpo/mundo. Contudo, essa operacdo nao é da ordem da coisa-objeto, mas das modulagées sensiveis que conferem visibilidade ao visivel. Os elementos da pintura como qualidade, cor, luz, forma, linha, profundidade, contomo, fisionomia, entre outros, apresentam-se como ramificag6es do ser(MERLEAU-PONTY, 2013c, p. 54). Todos esses indices da visibilidade nao estdo no sujeito, nao nascem da consciéncia, ndo sao uma ilusdo de otica, nao estdo presos as coisas ou limitados pelo corpo préprio; esses emblemas da visibilidade se comunicam com o corpo que os acolhe e, também, se faz visivel por meio deles. O equivalente interno e a meditagao carnal se colocam como uma dupla presenga. “A visd0, portant, 6 movimento de encontro entre o visivel e 0 invisivel. No emprego do olho e da mo, o pintor nunca se apropria da natureza, no maximo, realiza uma reintegragao entre aquele que vé e aquele que é visto. (FALABRETTI, 2012, p. 220), Nesse sentido, a pintura é a meditacéo mais efetiva da nossa experiéncia sensivel originaria. Ela amplia a poténcia da visibilidade e favorece a descrigao do sentido bruto das coisas. O quadro depée sobre uma linguagem muda capaz de expressar a nossa iniciagao ao mundo, a partir da poténcia criadora da visdo, ele ilustra a visdo em gestos (ato). E nesse fazer e refazer produzido pela experiéncia da pintura, nessa dupla acao que significa e re-significa as coisas no mundo, que encontramos a expresso de um conhecimento singular, proprio de cada espectador, que olha e é convocado a ser olhado na apreciagao criadora de novos sentidos. E nesse jogo de visivel e invisivel, provocado por meio dos sentidos — o sensivel do corpo — que © conhecimento se faz experiéncia, em constante nascimento. “Ora, essa filosofia por fazer é a que anima o pintor, no quando exprime opinides sobre o mundo, mas no instante em que sua viséo se faz gesto, quando, dir Cézanne, ele ‘pensa por meio da pintura’.” (MERLEAU- PONTY, 20136, p. 40). Por este caminho, 0 sensivel assume um dos eixos principais da filosofia “merleau-pontyana” e, como vimos, ndo ¢ diferente em seu Ultimo escrito concluido em vida, O olho e o espirito, sendo também um elemento norteador das suas reflexdes ontolégicas. Dessa forma, 0 filésofo francés ao sugerir uma articulagao entre a pintura moderna, especialmente a de Paul Cézanne, e 0 conhecimento sensivel, na medida em que ela se realiza na contramao da ideia de representatividade da realidade, favorece uma viséo de mundo em profundidade e essencialmente carnal. Assim, “o 86 sensivel é uma realidade constitutiva do ser e do conhecimento que se manifesta nos processos corporais” (NOBREGA, 2010, p.83). A partir do corpo estabelecemos nossa comunicagao com as coisas e com o mundo, ja que a realidade sensivel redimensiona a profundidade da nossa existéncia, no fuxo das diferenciagées, na transitoriedade, nos desvios, na fissura que possibilita diferentes interpretagées e viabiliza a criacdo de novas formas de acesso ao conhecimento. Um pintor como Cézanne, um atista, um fiésofo, [um educador] devem nao apenas criar ¢ exprimir uma ideia, mas ainda despertar as experiéncias que a enraizaréo nas outras consciéncias. Se a obra de arte é bem-sucedida, ela tem © estranho poder de ensinar-se ela mesma, Seguindo as indicagdes do quadro ou do livro, fazendo comparagoes, esbarrando de um lado e de outro, guiados pela clareza confusa de um estilo, o leitor ou espectador acabam por redescobrir 0 que Ihe quiseram comunicar. O pintor péde apenas construir uma imagem. Cabe esperar que essa imagem se anime para 0s outros. Entao, a obra de arte tera juntado vidas separadas, nao existira mais apenas numa delas como um sonho tenaz ou um delirio persistente, ou no espago como uma tela colorida: ela habitard indivisa em varios espiritos, presumivelmente em todo espirito possivel, como uma aquisi¢ao para sempre (MERLEAU-PONTY, 2013a, p. 140). Sendo o impulso criativo da pintura 0 fio condutor que nos permitiu chegar a este ponto da nossa andlise, ainda em gestagdo, precisamos considerar a dimensao proviséria dos caminhos apontades por esta reflexdo, sobretudo, por estar sustentada no pensamento de Merleau-Ponty que demonstra a necessidade de um sentido ciclico em sua filosofia, Bibliografia: ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna: do iluminismo aos movimentos contemporaneos. 2. ed.Sao Paulo: Companhia das Letras, 2013. CAMINHA, Iraquitan de Oliveira. O distante-préximo e 0 proximo-distante: corpo e percepcao na filosofia de Merleau-Ponty. Jodo Pessoa: Editora Universitaria da UFPB, 2010. DESCARTES, René. Meditacées. Sao Paulo: Nova Cultural, 1999. La Dioptrique. In: CEuvres completes, coll. Bibliotheque de la Pléiade, Paris, Gallimard, 1996. FALABRETTI, Ericson. A pintura como paradigma da percep¢ao. Dois pontos. 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