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|. Atondona 2 Egat 5 Pacyen antes Tse. sa Ince para cawogoesomiie: ‘Pesta epics 301072 6" Edis 2007 copsnnore ‘SUMARIO PROLOGO © PROXIMO E 0 DISTANTE O LUGAR ANTROPOLOGICO DOS LUGARES AOS NAO-LUGARES EP{LOGO ALGUMAS REFERENCIAS au } i ; DOS LUGARES AOS NAO-LUGARES- Presenga do passado no presente que o ultrapassa e o reivin- ica: € nessa conciliagéo que Jean Starobinskt vé a essénela da modernidade. Ele observa, a esse propésito, num artigo recente, que autores eminentemente representatives da modernidade em arte de- ram-se “a possibilidade de uma polifonia onde o entrecruzamento Virtualmente infinito dos desti s, atos, pensamentos ¢ reminis- céncias pode basear-se numa marcha de baixo que soa as horas do dia terrestre e que marca o lugar que ai ocupava (que ainda poderia al ocupar) o antigo ritual as do Ulises a as primelras pi de Joyce, em que se fazem ouvir as palavras da Iturgia: “Introibo ad ai re Det"; 0 iniclo de Em busca do tempo perdido, em que a Tonda das horas em torno do campanério de Combray ordena o Titmo “de um vasto € ico dia burgués..."; ou ainda Histoire de wrangas da escola rel Josa, aoragso matinal em latim, 0 benedictte do melo-dia, 0 angelus do cair da tarde fixam pontos de referéncia por tre as janelas, os planos recortados, as fagdes de toda ord que provém de todos os tempos da existéncta, do imaginario e do passado histérico, ¢ que prol ‘ram numa aparente desordem, em torno de um segredo central..." Bssas “figuras pré-modernas da temporalidade continua com as quais 0 escritor moderno pretende mostrar que no as esqueceu no momento mesmo em que se liberta delas” sé alts, figuras espaciais especificas de um mundo que Jacques Le Goff mostrou como se construlu, @ part da Idade Média, em torno da sua igreja e do seu campandro, pela conciliagao de uma paisagem Tecentrada e de um tempo reordenado. O artigo de Starobinski abre-se significativamente sobre uma citacao de Baudelaire ¢ do Primeiro poema dos Tableaux paristens, onde o espetdculo da modernidade retine num mesmo tmpulso: -@ oficina que canta e tagarela: 4s chamings, os campandrios, esses masiros da cidade, E 0s grandes eéus que levam a sonhar com a eternidade.* “Marcha de baixo"; a expressdo usada por Starobinski para evocar os lugares ¢ os ritmos antigos é significativa — a modernida- de nao as apaga, mas as coloca em segundo plano. Eles sio como fer qui chante et qui bavarde:/Les tuyaus, les clochers, ces /et es grands clels qui font rever eter n que indicadores do tempo que passa ¢ que sobrevive. Perduram. comoas palavras que 0s expressam e ainda os expressarao, A moder- nidade em arte preserva todas as temporalidades do lugar, tals ‘como se fixam no espaco ¢ na palavra. Por tris da ronda das horas e dos pontos fortes da paisage! encontramos, na verdade, palavras e linguagens: palavras especiali I", em contraste com aquelas da oficina “que canta ¢ tagarel falando a mesma linguagem, reconhecem que elas pertencem ao : palavras também de todos os que, mesmo \do. © lugar se completa pela fala, a troca alusiva de algumas senhas, na conivéncia e na intimidade ciimplice dos locu- tores. Vincent Descombes escreve, assim, a propésito da Francoise de Proust, que ela compartilha e define um territério “retérico” com todos aqueles que so capazes de entrar em suas raz6es, todos aqueles cujos aforismos, vocabulario ¢ tipos de argumentagao com- poem uma “cosmologia”, a que o narrador de Em busca do tempo perdido chama de “a flosofla de Combray’ Se um lugar pode se def ir como identitério, relacional e rico, um espago que nao pode se definir nem como identi- nem como relacional, nem como hist6rico definiré um 1. A hipétese aqui defendida € a de que a supermoderni- dade € produtora de igares, isto é, de espacos que nao s4o em contrariamente a modernidade bau- agares antigos: estes, repertoriados, wares de meméria”, ocupam ai um si lugares antropolégicos ¢ delairiana, ndo integram os clasificados ¢ promovidos a (0 e especifico. Um mundo onde se nasce numa Jugar circun 2 clinica e se morre num hospital, onde se multiplicam, em modall- dades luxuosas ou desumanas, os pontos de transito € as ocupagées provisérias (as cadeias de hotéis ¢ os terrenos invadi- dos, 0s clubes de férias, os acampamentos de refugiados, as favelas destinadas aos desempregados ou & perenidade que apodrece), onde se desenvolve uma rede cerrada de meios de transporte que sao também espagos habitados, onde o freqiientador das grandes Superncies, das maquinas automaticas € dos cartoes de creaito Fenovado com os gestos do coméreio “em surdina’, um mundo assim prometido a individualidade solitaria, & passagem, ao prov- S6rio € av efémero, propée ao antropélogo, como « objeto novo cujas dimensdes inéditas convém cale yutros, um antes de se perguntar a que olhar ele esta sujeito. Acrescentemos que existe evidentemente 0 nao-lugar como o lugar: ele nunca existe sob uma torma pura; Ingares se recompdem nele; relacdes se reconstituem nele; as “astticias milenares” da “invencao do cotidiano” ¢ das “artes de fazer”, das quais Michel de Certeau propés andilises tao sutis, podem abrir nele um caminho para si ¢ af desenvolver suas estratégias. O lugar e 0 ndo-lugar so, antes, polaridades fugidias: 0 ptimeiro nunca é completamente apagado e © segundo nunca se realiza totalmente — palimpsestos em que se reinscreve, sem cesar, o jogo embaralhado da identidade da relacao. Os nao- gares, contudo, so a medida da época; medida quantificével e que se poderia tomar somando, mediante algumas conversoes entre superficie, volume ¢ distancia, as vias aéreas, ferrovidrias, rodovia- rias € os don méveis considerados “melos de transporte” ” avides, trens, Onibus), os aeroportos, as estagées ¢ as estagdes aeroespaciais, as grandes cadeias de hotéis, os parques de lazer. € as grandes superficies da distribulgao, a meaaa ewuplexa, enfim, redes a cabo ou sem fio, que mobilizam 0 espaco extraterrestre para uma comunicagao tao estranha que multas vezes s6 poe o individuo em contato com uma outra imagem de st mesmo. {A distingao entre lugares e néo-lugares passa pela oposigao do lugar ao espaco. Michel de Certeau propés, das nogdes de lugar ¢ de espaco, uma andlise que constitu’, aqui, um antecedente obrigatério, Ele nao opée, por sua-ve7. os “lugares” aos “espagos” ugares’ pos “ndo-lugares". 9 espaco, para ele; € um “lugar praucado?. “um cruzamento de forgas motrizes": sfio os como ws passanwes que transformam em espaco a rua geometricamente definida pelo urbanismo como lugar. A essa colocagéo em paralelo do lugar como conjunto de elementos, coexistindo dentro de uma certa ordem, ¢ do espaco como animaco desses lugares, pelo deslo- camento de uma forca motriz, correspondem varlas referéncias que precisam seus termos. A primeira referéncia (p. 173) 6a Merleau-Ponty que, em sua Fenomenoloaia dla nercepedo, distingue do espago "geo- métrico” 0 “espago antropolégico” como espaco “existencial”, de uma experiéneia de relagao com 0 mundo de um ser essencial- segunda é a fala € a0 mente situado "em relagao com um meio”. ato de locugio: “O espaco seria parao lugar 0 yuc se wornaa palavra quando € falada, isto é, quando ¢ apreendida na ambiguidade de uma efetivacdo, transformado num termo dependente de mél- tiplas convengées, colocado como 0 ato de um presente (ou de um. B tempo) © modificado pelas transformagoes devidas a vizinhangas sucessivas..." (p, 173). A terceira decorry da anterior e privilegia 0 relato como trabalho que, incessantei “wansforma lugares em espacos ou espacos em lugares” (p. 174). A isso segue-se, turalmente, uma ingao entre “fazer e/ “ver”, que se pode notar na linguagem comum que sucessivamente propée um quadro 4...") € organiza movimentos (“voce entra, atravessa, vira..."), ou hos Indicadores dos mapas — desde os mapas medievais, que comportam essencialmente o tracado de percursos ¢ itinerdrios, até mapas mais recentes de onde desapareceram “os descritores de percurso” e que apresentam, com base em “elementos de origem disparatada’, um “estado” do saber geogréfico; O relato, enfim, ¢ especialmente o relato de viagem, compée com a dupla necessidade t6rias de marchas ¢ de gestos sao sinalizadas pela citacdo dos lugares que delas resultam ou que as autorizam’, p. 177), mas deriva em definitivo do que Certeau chama de “delinguién- cla” porque “auravessa’ “tansgride” € consagra “o privuegio do percurso,sobre 0 estado” (n, 190) Nesse ponto, so necessérios alguns rigores terminolégicos.O lugar, como 0 definimos aqui, nao é em absoluto o higar que Certeau opée ao espaco, como a figura geométrica ao movimento, a palavra calada a palavra falada ow o estado ao percurso: ¢ 0 lugar do sentido Inscrito e simbolizado, o lugar antropolégico, Naturalmente, € preciso que esse sentido seja posto em agao, percursos se efetuem, nada profbe falar de espago para descrever esse movimento. Porém, esse nao € nosso proposuu: mncluimos na nogéo © lugar se anime e que os de lugar antropolégico a possibilidade dos percursos que nele se efetuam, dos discursos que nele se pronunciam e da linguagem que ocaracteriza. Ea nogto de espacos .omo é usada hoje (para falar da conquista espacial, em termos, em st iricos, ou para designar o me linguagem recente, mas ja estereotipada das instituigoes da viagem, da hotelaria ou do lazer, dos lugares desqualificados ou pouco is funcionais do que Wr ou O menos mal possivel, na qualificaveis: “espagos-lazeres", “espacos-jogos", compardvels a “ponto de encontro”), parece poder se aplicar de maneira dtil, pelo préprio fato de sua auséncia de caracterizagao, as superficies nio simbélicas do planeta. Poderfan , ser tentados a opor o espago simbélico do lugar ao espago néo-simbélico do nao-lugar. Mas isso seria ater-nos a.uma definigéo negativa dos ndo-lugares, que fol a nossa até agora, © que a anéllise da nogao de espaco proposta por Michel de Certeau pode nos ajudar a superar, (O termo “espago"yem si mesmo, é mais abstrato do que o de “lugar’, por cujo emprego referimo-nos, pelo menos, a um aconte- cimento (que ocorreu), a um mito (lugar-dito) ou a uma histéria (lugar histérico). Ele se aplica indiferentemente a uma extensao, a uma distancia entre duas coisas ou dois pontos (deixa-se um “espaco” de dois metros entre cada moirao de uma cerca), iré dd, Tepresentativas do nosso tempo. O Grand Larousse destaque a expresso “espaco aéred”, que designa uma parte da atmosfera cuja circulacdo aérea {menos concreta do que seu homé- mo: “as Aguas territoriais") um Estado mas cita também outros empregos que comprovam a plasticidade do te 0. Na expresso “espaco fudicidrio europeu" vé-se bem que a nogdo de fronteira esta implicada, mas que, abstrafda essa nocio de fronteira, € de todo um conjunto institu: sional € normativo pouco localizével que se esté tratando. A expressao “espaco publ if" aplica-se indiferentemente a uma idade nos diferentes veiculos de comunicagao”, ¢ a expresso “compra de Porcdo de superficie ou de tempo “destinado a receber pu espace" ‘aplica-se ao conjunto das “operacdes efetuadas por uma Jardins ("espacos verdes"), a assentos de avio ("Espaco ‘a auromovets (“Espace” Renault), comprovam, ao mesmo tempo, termos que povoam a época contemporanea (a publicidade, a imagem, o lazer, a liberdade, o desloc: nto) € a abstragao que 5 corréi € ameaga, como se os consumidores de espago contem- Pordneo fossem, antes de mais nada, convidados a se contentar com patavras. Praticar o espaco, escreve Michel de Certeau, € “revetir a experiéncia jubilosa ¢ silenciosa da infancla: é, no lugar, ser outro € passar ao outro” (p. 164). A experiéncla jubliosa e silenciosa da 78 Infancia é a experiéneia da primeira viagem, do nascimento como experiéncia primordial da diferenciagao, do reconhecimento de si como si smo € como outro, que reitera a do andar como primeira pratica do espago € a do espelho como primeira identifi- cago com a imagem de si, Todo relato volta a infancia, Ao recorrer & expressao “relatos de espaco”. Certeau ,uer tanto falar dos relatos Iugares (“Todo relato é um relato que “atravessam” e “organiza de viagem...”, p. 171) quanto do lugar que constitui a escritura do relato ("... aleitura ¢ 0 espago produzido pela pratica do lugar que constitui um sistema de signos — um relato”, p. 173). Porém, esse iro se escreve antes de se ler; ele passa por diferentes lugares, antes de constituir um: como a viagem, 0 relato que fala dele atravessa varios lugares. Essa pluralidade de lugares, 0 excesso que ela impée ao olhar e a deserigao (como ver tudo? como dizer tudo?), ¢ 0 efelto de “expatriagao” que dai resulta (nos remeteremos a cle mais tarae, por exemplo, comentando a fotografia que fixou 0 instante: “Veja $6, sou eu, ao pé do Partenon", mas, no instante, acontecla de nos espantarmos: “Que é que vim fazer aqui?") intro- duzem entre 0 viajante-espectador € 0 espaco da paisagem que ele percorre ou contempla uma ruptura que o impede de ver ai um. lugar, de af se encontrar plenamente, mesmo que tente preencher esse vazio com as informagées miiltiplas ¢ detalhadas que Ihe propéem os guias turisticos... ou os relatos de viagem. Quando Michel de Certeau fala em “néo-lugar” ¢ para fazer alusio a uma espécle de qualidade negativa do lugar, de uma auséneia do lugar em si mesmo que Ihe Impoe 0 nome que Ihe & dado. Os nomes préprios, diz-nos ele, impéem ao injungéo vinda do outro (uma histéria...)". E é verdade que aquele que, ao tragar um inerdrio, enuncia seus nomes néo conhece necessariamente muita coisa dele, Por 0s nomes, por si 86, bastam para produzir no lugar “aquela eros4o ou ndo-lugar que ai cava a lel do outro” (p. 159)? Todo itinerario, precisa Michel de Certeau, € de certo modo “desviado” pelos nomes que Ihe dao “sentidos (ou diregdes) at previsiveis". E acrescenta: “Esses nomes criam o néo-lugar nos Iugares; eles os transformam em Passagens" (p. 156), Poderiamos dizer, inversamente, que 0 fato de Passar da um estatuto particular aos nomes de lugar, que a fenda escavada pela lel do outro ¢ onde o olhar se perde € 0 horizonte de toda viagem (soma de lugares, negacdo do lugar), e que o movimen- to que “desloca as linhas” e atravessa os lugares €, por definic&o, criador de itinerarios, isto é, de palavras ¢ de ndo-lugares, © espago como pratica dos lugares nao do lugar procede, na verdade, de um duplo deslocamento: do via te, € claro, mas também, paralelamente, das paisagens, das quais ele nunca tem sendo visdes parciais, stantaneos”, somados confusamente em sua meméria ¢, Iiteralmente, recompostos no relato que ele faz delas ou no encadeamento dos slides com os quais, na volta, ele impée 0 comentério a seu cireulo. A viagem (aquela da qual 0 einélogo desconfia a ponto de “odi: la") constréi_uma relagao ficticia entre olhar ¢ paisagem. F, se lamarmos de “espaco’ Pratica dos lugares que define especificamente a viagem, ainda Preciso acrescentar que existem espacos onde rimenta como espectador, sem que a natureza do espetculo II importe realmente. C se a posigéo do espectador constituisse o essencial do espetéculo, como se, em definitivo, o espectador, em posicio de espectador, fosse para si mesmo seu préprio espetaculo. Muttos prospectos turisticos sugerem um tal desvio, um tal giro do olhar, propondo por antecipacdo ao amador de viagens a imagem lativos, sol de rostos rls ou reunidos,.que escrutam 0 infinito do oceano, a cadeia circular de montanhas nevadas ou a linha de fuga de um arranha-céus: sua imagem, e horia te urbano repleto de ia, Sua imagem antecipada, que 86 fala dele, mas porta um outro nome (Tai Alpe de Fuez, Nova York), O espaco do viajante seria, assim, 0 arquétipo do néo-lugar. © movimento acrescenta A coexisténcia dos mundos ¢ a experiéneia combinada do lugar antropolégico ¢ daquele que néo 0 € mais (pela qual Starobinskt define, em suma, a modernidade) a experiéncia particular de uma forma de solidao e, em sentido literal, de uma “tomada de posigo” — a experiéneia daquele que, 10 pode contemplar, “toma a pose” ¢ tira da consciéneia dessa atitude um diante da paisagem que ¢ obrigado a contemplar e que prazer raro e, as vezes, melancélico, Portanto, nao é de se espantar que seja entre os “viajantes” solitarios do século passado, nao os Viajantes profisstonais ou os clentistas, mas 0s viajantes acidentais, de pretexto ou de ocasio, que estejamos aptos a encontrar a evocacao profética de espaco, onde a identidade, nem a relagdo, nem a histéria fazem realmente sentido, onde a solidao € idualidade, onde sentida como superacao ou esvaziamento da i 81 | 86.0 movimento das imagens dbx enrever por nstan idade de um | futuro. Mais ainda do que em Baudelaire, que se satisfazia com 0 convite & viagem, estamos pensando aqui em Chateauoriand que nao nara de viajar efetivamente, e que sabe ver, mas vé sobretudo a morte das civilizagdes, a destruicao ou a insipidez das paisagens onde elas outrora reluziam, os vestigios enganosos dos monumen- tos que desabaram, Desaparecida a Lacedeménia, a Grécia em ruinas ocupada por um invasor ignorante de seus antigos esplen- dores remetem ao viajante “de passagem” a imagem simultanea da historia perdida e da vida que passa, mas € 0 proprio movimento da viagem que o seduz ¢ o arrasta. Esse movimento nao tem outro fim sendo ele mesmo — senao aquele da escrita que fixa ¢ reitera ‘sua imagem, ‘Tudo € dito claramente desde o primeiro preficio do Itinerd- rlo de Paris a Jerusalém. Ai, Chateaubriand se defende de ter feito ‘sua viagem “para escrevé Imagens” para Os martires. Ele nao pretende a cléncia: “Nao ‘caminho em cima das pegadas dos Chardin, dos Tavernier, dos '. mas reconhece que queria procurar Chandler, dos Mungo Park, dos Humboldt...” (p. 19). De modo que ‘essa obra, confessacamente sem finalidade, corresponde ao desejo contraditério de nao falar senao de seu autor sem dizer nada disso @ ninguém: “Contudo, € 0 homem muito mais que o autor, que veremos em toda parte; falo eternamente de mim, ¢ 0 falava de consciéncla tranailila, 4 que ndo contava em absoluto com publi- car minhas memérias” (p. 20). Os pontos de vista privilegiados pelo visitante € que o escritor descreve séo evidentemente aqueles de onde s¢ descobrem uma série de pontos notéveis (*...0 monte Himete a leste, 0 Pentélico ao norte, o Parnés a noroeste... masa contemplagao termina significativamente no momento em que, vol- tando sobre si mesma ¢ se tomando por objeto, parece dissolver-se na multidao incerta dos olhares passados e vindouros: “Aquele quadro da Atica, 0 espeticulo que eu contemplava, fora contempla- do por olhos fechados ha dots mil anos. Eu passarel, por minha vez; outros homens tao fugidios quanto eu virko fazer as mesmas reflexdes sobre as mesmas ruinas..." (p. 153). © ponto de vista ideal, porque acrescenta & distancia 0 efeito do movimento, é a ponte do navio que se afasta. A evocacao da terra que desaparece basta para provocar aquela do passagelro que ainda procura enxer- la: logo nao passa de uma sombra, um rumor, um ruido. Essa aboligéo do lugar ¢ também o ciimulo da viagem, a pose derradeira do viajant medida que nos afastévamos, as colunas de Sunium Pareciam mais belas acima das ondas: nds as enxergévamos per- feitam te sob o azul do céu, por causa de sua extrema brancura € da serenidade da noi ouvido ainda era al . Ja estavamos bem longe do cabo, € nosso igido pelo marulho das ondas ao pé do Tochedo, pelo murmiirio do vento nos zimbros, e pelo canto dos Brllos que so hoje os “inicos hal ‘antes das ruinas do templo: terra grega” (p. 190) © que quer que diga sobre isso (*Serei talvez 0 tltimo francés saido do meu pafs para viajar pela ‘Terra Santa com as idéias, a esses foram os iiltimos ruidos que 0 final lade ¢ os sentimentos de wi ntigo peregrino”, p. 331), Cha- (eaubriand néo realiza uma peregrinagio. O lugar memoravel no qual termina a peregrinagao 6, por definigao, sobrecarregado de sentido. © sentido que se vai buscar af vale para hoje, como valia vrirlo que leva até ele, sinalizado ontem, para cada peregrino. 0 Por etapas © pontos fortes, compée com ele um lugar “de sentido + uum “espaco", no sentido em que Michel de Certeau usa 0 ‘ermo, Alphonse Dupront observa que a prépria travessia maritima {nfeldtico: “Assim, nos caminhos da peregrinacéo, desde que a travessia se impée. uma descontinuldade e como que tuma banalizacao da heroicidade. Terra ¢ agua bastante desigual- n OS Percursos maritimos, uma mente Mustrativas e, sobretudo, c Fuptura imposta pelo 1o da agua. Dados aparentes, por tras dos quais se dissimulava, mais profundamente — uma realidade que parece impor-se a intuicao de alguns homens da lgreja, no inicio do século XII, aquela, pelo encaminhamento maritimo, da realizagéo de um rito de passagem" (p. 31). Com Chateaubriand, trata-se de algo completamente diferen- te: 0 objetivo final de sua viagem nao é Jerusalém, mas a Espanha, ‘onde ele val ao encontro da amante (porém o Itinerdiro nao é uma confissio: Chateaubriand se cala e @ pose’); os lugares Santos, sobretudo, nao o inspiram. Ja se escreveu muito sobre eles: "Aqui, sinto um certo acanhamento, Devo oferecer a pintura exata dos lugares santos? Mas entéo s6 posso repetir o que Ja se disse antes de mim: tao pouco conhecido Pelos leitores modernos, ¢, todavia, nunca um assunto fol mais completamente esgotado. Devo omitir a parte mais essencial da 84 minha viagem, ¢ com isso fazer desaparecer o que é seu hm e meta?” (. 306). Sem diivida, também, em tals lugares, 0 cristéo que ele quer ser ndo pode celebrar tao faci todas as coisas quanto diante da Atica descreve com aplicagao, dé mostras de rente 0 desaparecimento de da Lacedeménia. Entio, essa vez, 6a abundancia do verbo ¢ dos documentos que permitiria ‘lent os lugares santos de Chateaubriand como um nao-lugar ‘muito Préximo daqueles que nossos prospectos e guias poem em Imagens ¢ frases. Se voltarmos por um instante & anélise da moder- nidade como coexisténcia desejada de mundos diferentes (a modernidade baudelairiana), constataremos que a experiéncia do nforlugar como afastamento de si mesmo e colocagéo & distancia simultanea do espectador e do espetdculo nem sempre esté ausente Glsso. Staropmski, em seu comentario do primeiro poema dos Tableau parisiens, insiste na coexistencia dos dois mundos que a cidade moderna estabelece, chaminés e campanérios confundi- dos, mas também situa a posigdo particular do poeta que deseja, em suma, ver as coisas do alto ¢ de longe, re nem ao igl4o nem ao do trabalho. Essa posicdo corresponde, Para Starovinski, ao duplo aspecto da modernidade: “A peraa do sujeito ni idio — ou, a0 cont cado mela conseiéncia individual” “segunda vista’ 85 Oquetxo apotado nas méos, do alto da minka mansarda, Veret a oficina que canta e tagarela, As chaminés, campanéries...* Assim, Baudelaire ndo poria simplesmente em cena a neces- sérla coexisténcia da velha religiio € da industria nova ou o poder absoluto da conseiénela individual, mas uma forma muito particu- lar e moderna de solidao. A evidenciagao de uma posigdo, de uma “postura’, de uma atitude, no sentido mais fisico e mais banal do termo, efetua-se ao cabo de um movimento que esvazia de qualquer contetido ¢ sentido a paisagem e o olhar que a tomava por objeto, visto que ¢ precisamente o olhar que se funde na paisagem e se torna © objeto de um olhar segundo e indeterminavel — 0 mesmo, um outro. Ea tals deslocamentos do olhar, a tais jogos de imagens, a tais, desbastes da consciéncta que podem conduztr, a meu ver, mas dessa vez, de maneira sistematica, generalizacia e prosalca, as manifestagées mais caracteristicas do que propus chamar de “supermodernidade” Esta impée, na verdade, as consciéncias individuals, novissimas experéncias e vivencias de solidao, diretamente ligadas ao surgimen- toe & proliferagio de nao-lugares. Mas, sem auvida, seria titi, antes de passar ao exame do que sao os ndo-lugares da supermodernida- de, evocar, ainda que de forma alusiva, a relagéo que mantinham com ‘as nogées de lugar e de espaco os representantes mais reconhecicios da “modernidade” em arte. Sabe-se que uma parte do interesse de + Nooriginal "Les deux mains au menton, du haut de ma mansarde {Je verra atelier ‘qui chante et qui bavarde/Les tuys. ls lockers." (NT) Benjamin pelas “passagens” parisienses e, de modo mais geral, pela arquitetura em ferro e vidro, diz respelto ao fato de que ele pode ai discernir uma vontade de prefigurar 0 que sera a arquitetura do -século seguinte, um sonho ou wma antecipagao. Podemos nos perguntar, do mesmo modo, se os representantes da modernidade de ontem, ‘20s quais 0 espago concreto do mundo ofereceu matéria para reflexdo, nao esclareceram por antecipagdo certos aspectos da supermo- dernidade de hoje, nao pelo acaso de algumas intuig6es felizes, mas porque ja encarnavam, excepetonalmente (como artistas), situagdes (posturas, atitudes) que passaram a ser, em modalidades mals prosaicas, um bem comum. Vé-se bem que por “ndo-lugar” designamos duas realidades complementares, porém, distintas: espagos constituidos em relagao a certos fins (transporte, transito, comércio, lazer) e a relagao que Qs individuos mantém com esses espacos. Se as duas relagées se correspondem de maneira bastante ampla e, em todo caso, oficial- (os Individuos viajam, compram, repousam), nao se confundem, no entanto, pois os ndo-lugares medetam todo um. Conjunto de relagdes consigo € com os outros que s6 dizem respelto Indiretamente a seus fins: assim como os lugares antropolégicos criam um social organico, os néo-lugares criam tensio solitér 1. Como Imaginar a analise durkeimiana de uma sala de espera de Roissy? Amediacao que estabelece o vinculo dos indi luos com o sew ‘freulo no espaco do néo-lugar passa por palavras, até mesmo por extos. Sabemos, antes de mais nada, que existem palavras que fazem imagem, ou melhor, imagens: a imaginagao de cada um Gaqueles que nunca foram ao Taiti ou a Marrakesh pode se dar livre a7 curso apenas go ler ou ouvir esses nomes, Alguns concursos de televisdo devem parte de seu prestiglo ao fato de distribuirem ‘muitos prémios, principalmente em viagens ¢ estadas ("uma s na para dois num hotel 3 estrelas no Marrocos", “15 dias com pensio completa na Flérid: ‘ja simples evocagao basta para 0 razer dos espectadores que nao sdo ¢ nunca serao seus beneficié- Flos. O “peso das palavras", do qual se orgulhava um semandrio francés que o associa ao “choque das fotos” nao € somente aquele dos nomes préprios; muitos substantivos (estada, viagem, mar, sol, cruzeiro...) possuem, quando se oferece a ocasiso, em certos con- textos, a mesma forca de evocacdo. Imagina-se, em sentido inverso, @ atracdo que puderam e podem exercer em lugares distantes palavras para nés menos exdticas, on mesmo despidas de qualquer efeito de distancia, como América, Europa, Ocidente, consumo, clreulagao. Certos lugares 6 existem pelas palavras que os evocam, ndo-lugares nesse sentido ou, antes, lugares imaginérios, utopias banais, clichés. Eles sao 0 contrario do ndo-Lugar segundo Michel de Certeau, 0 contratio do lugar-dito (sobre o qual quase nunca se sabe quem o disse e 0 que diz), A palavra, anui @ funcionalidade cotidiana e 0 mito perdido: ela cria a imagem, 10 cava um fosso entre roduz 0 mito e, ao mesmo tempo, o faz functonar (os telespectacores ficam fiéis ao programa, os albaneses acampam na Italia sonhando com a América, 0 turismo se desenvotve). Porém, os néo-lugares reais da supermodernidiade, aqueles que fomamos emprestados quando rodamos na auto-estrada, faze- mos compras no supermercado ou esperamos num acroporto 0 proximo voo para Londres ou Marselha, tém isto de particular — definem-se, também, pelas palavras ou textos que nos propdem: seu modo de usar, em suma, que se exprime, conforme 0 caso, de maneira pres *pegar a fla da direita’), proibitiva fumar") ou informativa (“vocé esta entrando no Beauj recorre tanto a ideogramas mais ou menos explicitos e codificados (os do cédigo da estrada ou dos guias turisticos) quanto & lingua natural. Assim, sdo instaladas as condi¢ées de circulagdo em espagos onde se supde que os individuos sé interajam co outros enunclantes que nao pessoas “morais” ou portos, compai textos, sem tuigdes (aero- aéreas, Mintstério dos Transportes, sociedades comercials, polieia rodoviéria, muntefpios), cuja presenca se adivi- nha vagamente ou se afirma mais explicitamente ("o Conselho Geral financia este trecho da estrada’, “o Estado est trabalhando para melhorar suas condigdes de vida"), por tras das injungées, dos conselhos, dos comentarios, das “mensagens” transmi las pelos Inimeros “suportes” (painéis, telas, cartazes) que so parte inte- grante da paisagem contemporanea. AAs rodovias francesas foram bem desenhadas e revelam pa- sagens as vezes quase aéreas, muito diferentes daquelas que pode ver o viajante que pega estradas nacionais ou departamentais, Com las, passamos do filme intimista para os grandes horizontes dos faroestes, Mas sdo textos disseminados pelo percurso que dizem a aisagem e exp! 1m suas belezas secretas. Nao se atravessa mals 8 cidade, mas os pontos notdveis sio sinalizados por palnéls em que std inscrito um verdadelro comentério, O viajante fica, de certo modo, dispensado de parar ¢ até mesmo de olhar. Assim, pede-se a le, na auto-estrada do sul, que dispense alguma atengao a certa 89

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