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| Paulo Lobo Direito Coisas volume 4 De acordo com. * Decreto n. 9.310/2018, que regulamentou a Lei n. 15.465/2017 - Direito real de laje | 4? edicao 2019 saraiva ff, A multpropriedade, ante a possbilidade de divisio dias, semanas, meses OU horirios de uso, tem sido utiliza; da, ter para remporad como para a vide profissional (consuleéy tanto pa tolgicas, esrtérios de advogndos, correrores), bem OS meg tage industrial e outras atividades de servicos. Uma mesma "coma 0 empreendimentos, para melhor aproveitamento See dades determinadas de tempo. ce ata ‘alacg Prog, ao . 0 na eae ti ~ 122 — Carituto V Fungdio Social da Propriedade Suméria: 5.1. Contornos da Funcio social da propriedade eda pose. 5.2. Funcéo social como ruptura do modelo moderno de propriedade. 5.3. A progresiva insergio da funcdo social nas constiuigées brasileiras. 5.4. funcio social no significa limie externo da propriedade. 5.5. Fungéo social e interpretacio das rnormas infraconstitucionais. 5.6. Fungo social da posse. 5.7. Inter-relacio com 60s principios da justiga social e da solidariedade. 5,1. Contornos da Funsdo Social da Propriedade e da Posse ‘A fungio social é incompativel com a nogio de pertencimento absoluto da coisa a alguém, em que se admite apenas a limitagéo externa, negativa. A funcio social determina o exercicio ¢ 0 préprio direito de propriedade ou o poder de faro (posse) sobre a coisa. Licito € o interesse individual quando realiza, igualmente, © interesse social. O exercicio da posse ou do dircito individual da propriedade deve ser feito no sentido da utilidade, nao somente para o titular, mas para todos. Dai ser incompativel com a inércia, com a inutilidade, com a especulacio. O principio da fungao social aplica-se a qualquer tipo de propriedade ou de posse, de coisa mével ou imével. Todavia, é na propriedade imével, particular- mente na propriedade dos bens de producio, que o princtpio teve a sua génese € se manifesta ainda hoje com maior vigor (Ascensio, 2008, p. 33). Para determinadas situagées, a Constituicao estabelece o contetido da fungio social, como se lé no art. 182, § 29, elativamente & propriedade urbana, € no art. 186, relativamente 4 propriedade rural. Neles, evidentemente, nao se esgota seu alcance. A desapropriacao por interesse social arma o Poder Piblico de poderoso instrumento para alcangé-la, pois nao se trata de expropriagéo tradicional, que transfere o bem particular para o dominio piblico, mas de transferéncia de bem. particular, que nao realizou a funcio social, para o dominio ou posse de desti- natdrios particulares, que presumivelmente a realizario. No caso da propriedade urbana, outros mecanismos de intervengio estatal estéo previstos: o parcelamento — 123 — ou aedificaio compulsdrios eo imposto progressivo no tempo. O conflico entre a concepsio individualista da propriedade e a concepcao social emerge na reacig que se nota i implementagio, pelos municipias, do imposto progressivo sobre terrenos urbanos desocupados, apenas utilizados para fins especulativos, Depreende-se da Constituicio que a utilidade e a ocupacao efetivas sip decerminantes, prevalecendo sobre o titulo de dominio, que transformava o pro. ptietdrio em senhor soberano, dentro de seus limites, permitido como estava g usar, gozare dispor de seus bens como lhe aprouvesse. O direito & habitacio entroy na cogitacéo dos juristas, competindo com o direito de propriedade. Segundo Ricardo Pereira Lira (1997, p. 189), a propriedade, como decorréncia da funcig social, deixa de ter 0 nao uso no leque das suas faculdades; nao é do interesse social “a propriedade ociosa, que, se mantida tal, deixa de exercer a sua funcéo social? A.ideia de funcao social da propriedade—e, por correlagao, da posse —detiva da integracéo de deveres & propriedade. Ou seja, a propriedade € direito, mas também é dever. O século XIX foi o triunfo do direito soberano ¢ irrestrito da propriedade, da soberania individual sobre a coisa. A propriedade foi o direito subjetivo por exceléncia, concebido como paradigma para todos os outros. No século XX ocorre progressivamente a viragem no sentido de se tera propriedade, igualmente, como fonte de deveres, no direito positivo. Hé quem sustente que entre os precedentes mais notéveis do moderno conceito de funcao social encontra-se a concepcio crista da propriedade, desde a especulagéo patristica de bonum commume, conservada substancialmente nas enciclicassociais, no sentido de que a propriedade “deve ter”, nao “é” uma funcio social (Rodot’, 2013, p. 217). Os deveres que configuram a fungéo social séo deveres em relacéo & sociedade, 20s interesses sociais ou coletivos. Nao séo apenas deveres correlativos 20 diteto subjetivo, ito é os que se atribuem a todos os outros para que respeitem aquele, para que nao 0 violem. Sao deveres atribuidos ao préprio titular, a0 pro- prietério (ou possuidor), no sentido de exercer 0 poder de fato ou de direito nto apenas para atender seus interesses individuais egitimos, mas também e neces- sariamente os interesses da sociedade ou da comunidade onde esta inserido 0 objeto de pertencimento. A funcao social constitui elemento interno do direito subjetivo do proprietério (Tepedino, 2009, p. 99). Na atualidade, direito de pro- priedade e regulacao nao séo inimigos mortais, na sociedade democratica (Singer, 2000, p. 8). O exercicio do direito de propriedade repercute inevitavelmente no ambiente social, para o bem ou para o mal. “Quem néo cumpre a funcio social da propriedade perde as garantias, judiciais ¢ extrajudiciais, de protegao da posse, inerentes & propriedade, eas ages —124- possessérias. A aplicagio das normas do CC ¢ do CPC, nunca é demais repetir, ha de ser feita & luz dos mandamentos constitucionais, ¢ nio de modo cego mecinico, sem atengao as circunstincias de cada caso, que podem envolver 0 descumprimento de deveres fundamentais” (Comparato, 1997, p. 97). Nesse sentido, 0 ST] (HC 4.399): “nada impede, por exemplo, que a Administragio Pablica, quando de uma desapropriagio, ov o Poder Judiciirio, no julgamento de uma acio possesséria, reconhecam que o proprietirio nio cumpre o deve fun- damental de dar ao imével uma destinagdo de interesse coletivo, ¢ tirem desse fato as consequéncias que a razio juridica impée”. Para Judith Martins-Costa, a discussio no campo juridico da funcio social, coms caracteristicas que ostenta atualment, iniciou “com base nas formulaciss acerca da figura do abuso do direito, pela qual foi a jusisprudénca frances gradativamente impondo certos limites ao poder absoluto do proprietrio” (2002, p. 146). Por certo, 0 surgimento ¢ o desenvolvimento da teoria do abuso do direito muito contribuiram para a consolidacao da teoria juridica da funcio social da propriedade, mas esta é a projecio no dircito das ideas politica, socaise econémicas sobre a superacio do modelo exclusivamente individualista da propriedade, que despontaram com forca ainda na segunda metade do século XIX, no sentido nao apenas de limitagao dos abusos, mas de ressignificacio da propriedade como conjunto de direitos. deveres necessriamentefuncionalzados De modo sintético, diz-se que 0 abuso do direito dirige-se, em primeira linha, contra os interesses privados; a lesio da funcio social, contra os interesses coletivos (Ascensio, 2008, p. 39). Mais que simplesmente nio praticar atos emulativos (dever negativo de conduta), a compreensio funcional do dieito& propriedade imp6e a promogao de interesses social mente relevantes, no ambito dos quais o meio ambiente se torna essencial (Tepedino, 2009, p. 111). A construcio da ideia de funcio social da propriedade ¢ da posse € um processo inconcluso. Permanentemente inconcluso, Em cada tempo e lugar ela se revela e adquire dimensées de acordo com os valores sociais que se afirmam. Por isso, as referencias no direito positivo & funcio social da propriedade em deter- minadas situagdes, como os arts. 182 ¢ 186 da Constituicéo de 1988, sio exem- plificativas, nao contemplando todas as demais, que emergem dos casosconcretos levados a apreciagao da autoridade judiciaria. A concepgéo contemporanea de funcio se contrapée & de finalidade. A fungao encontra-se na dimensio interna do direito, na sua conformacio e deter- minacio, enquanto a finalidade é 0 escopo a se atingir, sendo, portanto, exteior ao direito referido, Para Stefano Rodota (2013, p. 221), finalidade é uma destinagio auma tarefa abstratamente fixada e imutavel, enquanto fungao ¢ um posiciona- mento histérico e concreto ante situacées sempre renovadas e diversas. = 125 - vr. social distanc ia-se da que prevalcn, Aconcepgio contemporanea da fun cm sua origem, marcada pelo advento de outta concepgio, consistente cm lin, a0 poder abvoluto (ilimitado) do propricuirio. A relagio com 0 abuso do dite, como limite extetno, j4 tinha sido considerada insuficiente por Léon Dupuy, uum dos pais da concepyéo contemporinea da fungio social ~ para muitos, of, cursor do conccito juridico de fungao social -, para quem a propricdade "€" ung fancio social, por Ihe ser inerente (1975, p. 241), nao sendo adequado diner que ¢limitada por la, Duguit também langou luz sobrea insuperavel intrlocus entre fungio social e deveres do proprietirio, ao ponto de afirmar que a propre dade nao seria diteito, mas sim uma fungio social a cumprit. Antes da construgao da doutrina da fungao social, principalmente na viragem do século XIX para o século XX, influentes juristas jé cogitavam do “carder social dos direitos privados’, Assim Rudolf von thering denominou o fenémeno, em uma de suas mais conhecidas obras, dedicada ao fim do dircito (1946, p. 250 Jéem sua época, disse Ihering que todos os direitos privados estio influenciados ¢ vinculados por consideragées sociais, “Nao ha. um s6 direito cujo sujeito possa dizer: esse dircito possuo exclusivamente para mim, sou amo ¢ senhor dele,¢2 logica juridica impede quea sociedade ponha limites ao exercicio de meu dircio. Nao é necessirio ser profeta para prever que a concepgii social do dircito privado » individualista’, substituird pouco a pouco a concepgai Para alguns parece haver uma contradigio nos termos, assim resumida pot Francesco Galgano (1988, p. 152): pode a propriedade ser, ao mesmo tempo, Um dircito ¢ uma fungio? Pode um mesmo sujeito ser contemporaneamente portadot de um diteto, que € protegio juridica de seu interesse, ¢ de uma fungio, q¥e¢ poder rconhecido para satsfazer interesses de outros? Essa aparente contradigio que desponta formal e paralelamente nos incisos XXII (diteto de propriedade) € XXIII (fungio social da propriedade) do art. 52 de nossa Constituigéo, resolve com a concep¢io contemporinea de propriedade como complexo de direitos deveres. Nio € conciliagio de opostos, mas de emergéncia de conceito juridce fundado no equilibrio entre interesses do proprietério ¢ interesses dos nio pro” Prictirios ¢ da coletividade, que se impés pelas transformagées sociais ¢, no ¢35° brasileiro, pela opgio explicita do legislador constituinte. A doutrina tem acentuado que a propriedade nao mais existe em isolamen"® cé latente o conflito de interesses, pois “o reconhecimento ¢ o exercicio do direit® de propriedade afetam os interesses dos outros, incluindo outros proprietérios nao proprictarios” (Singer, 2000, p. 6). Pietro Perlingieri (1997, p. 222) advert quea relagio de propriedade ¢ a “ligayio entre situagao do proprietario ¢ aque" Jes que entram em conflito com esta ¢constituem centros de interesses antagonicos ~ 126 ~ impondo-se o dever de coopetagio, tal coma v di conn om omar, de bees que. is veres, ocorre prevaléncia ao interesse do pepe cas wee, wpe see 1 yooyeadte apresentam-se como posighes antaghnicas ans dite st dos outros sujcitos. Afitma-se que os interesses confltsen werkt § ttie nhecidos, uma espécie de “contradircitas” (Tepedisi, 2008, p 46 Aanilise das fontes constitucionas infraconstitconns so Era nom raza lume a natureza equivoca do ditcito de propriedade, “gue spatoce tam a social, canto como um dieito ligado pron ty como instrumento de polit individuo”, como bem acentua Anne-Frangoise Zattara (2001, p Esclarega-se que nao sio as coisas que tém fungi social (pot maa ene + condicionada juridicamente), mas os ditezos que us téncia nao pode s tém sobre clas ¢, na verdade, a forma como os exercem, sendo 0 wo ape dos exercicios possiveis (Herkenhoff, 2008, p, 321). Para Froulths Corrine (2002, p. 184) a protecio da pessoa humana enquanto see dotado de diprsdade forma o nucleo essencial da carta constitucional; nesse sentido, todas as sormsae que tratam especificamente da fungio social da propriedade devern ser hes como complementares & protegio que a Constituigio oferta} pesos humans Nao apenas os dircitos, mas igualmente os poderes fiticos de pose. Tambér assim distingue Fabio Konder Comparato, pois importa a religio jusides gue tem a coisa por objeto (1986, p. 73). Com efeito, as coisas em si nio exercem qual quer fungi, para o direito, mas sim a utilizagio que as pessoas fazem om dover fazer delas. 5.2. Fun¢éo Social como Ruptura do Modelo Moderne de Propriedade O modelo moderno de propriedade alcangou seu ipice duraresvginc do Estado liberal, assim entendido o que nio regula ou intervéen eas elses privadas de cardter econdmico, nem mesmo para protesio dos sajcooy vuln veis, Politicamente, o Estado liberal realizou 0 ideirio do liberalism clues ou individualista, para o qual as relagdes ¢ os problemas de nareres condmica deve ser resolvidos por si mesmo, no ambiente do mercadn. gas poster sobre os interesses sociais ou piiblicos. A fungio do dire era o deg do mercado, livre de regulages, fungio essa metamente negativa Nowe aca setia contraditorio cogitar-se de fungio social dos dire da propriedade. rt ealumets A fungao social da propriedade ingressoa no dir com © abvese de Estado social, quando 0 modelo moderna ¢ liberal de propeisade nce seca instrumento de iniquidades ede exploracio da liberdade, em beneficio dom poderosos. A Fungio social é 0 marco da viragem da concep¢io individualig paraa concepgio solidatia da propriedade e da posse Segundo Stefano Rodota (2013, p. 213),a primeira grande fratura a0 mode, modetno liberal de propriedade se dé quando é abandonada @ ideia de go exclusivo para si e se entra no conceito de fungio de caréter social. Concebida como inerente& estrutura da propriedade, a fungao socal en diminuindo.a margem deindeterminagio, que € proprio desua natureza de princi clistico, ¢ adquite contornos mais precisos de uma reconstrugao que pode, cm plenalegtimidade,levar em conta todos os elementos presentes no sistema, pan determinar sua operatividade nas situagdes mais particulares. Na contemporaneidade, quando 0 modelo moderno e liberal da propri dade deixou de existir, em ordenamentos legais como o brasileiro, a fungéo social cumpre duas finalidades pela (I) Harmonizagéo dos interesses individu do titular da posse ou da propriedade com os interesses sociais ¢ supraindivi duais (como a preservagio do meio ambiente); (2) Remogao dos obstéculosi emancipagao das pessoas néo proprietarias ou possuidoras, notadamente com a redugao das desigualdades sociais, cumprindo-se o mandamento constitucion de justiga social. Divergindo da longeva cortelagao da fungao social como deveres com os outros, sustenta Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk (20114, p. 167) que os instituros de direito civil em entre suas Fungdes a protecéo da liberdade coexis- tencial, que difere da idcia abragada por Duguit de liberdade como cumpriment de dever social dai conclur pela “tesponsabilidade reefproca entre os individus pela liberdade dos outros” (p. 199). Com efeito, os deveres juridicos derivads do principio normativo da fungio social, na contemporancidade, estéo inter ligados a ditetriz da emancipacio real das pessoas, no sentido da obtengio de suas liberdades substanciais, 0 que s6 € posstvel com a funcionalizagio da pro- priedade, cuja antiga primazia do interesse individual nao a satisfazia. Assim € que o conceito de liberdade articula-se com o de alteridade, como 0 faz Luie Edson Fachin (2006, passim), pois apenas ha pessoa em relagao ¢ o principio da fungio social da propriedade configura possibilidade de redugo das desi gualdades sociais, a ser operada, em especial pelo Judiciério, na decisao do caso concreto (2012, p. 342). A correlagio da fungo social com deveres, para com os outros ¢ com a soci dade, impée consequencias juridicas 3 inatividade do proprietario, pelo descum- primento daqueles, retirando-lhea legitimidade & titularidade ou ao exercicio do diteito de propriedade, — 128 — 5,3. A Progressiva Insercdo da Fun¢do Social nas Constituicdes Brasileiras ‘A progressiva viragem na diregio dos deveres, que integram a fungéo social da propriedade, estd bem retratada na trajetéria das Constituigées brasileiras do século XX, desde a de 1934, As Constituigées de 1824, 1891 ¢ 1937 deram & propriedade um comtetido pleno ¢ irrestrito, salvo a desapropriagio por utilidade pablica com prévia inde- nizagéo. Na Constituigao de 1937, até mesmo a garantia da prévia indenizagio foi suspensa pelo Decreto n. 10.358, de 1942; 0 direito de propriedade, igual- mente, seria suspenso quando fosse declarado pelo Presidente da Repablica o estado de emergéncia. A insergio constitucional da fungio social da propriedade teve inicio com oadvento da primeira Constituigao instituidora do Estado social brasileiro, a de 1934, que assim estabeleceu (art, 113, n. 17): “E garantido o dircito de proprie- dade, que nao poderd ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma quca lei determinar”, Nao hé referéncia explicita& fungao social, masa finalidade da norma a cla se adequava, notadamente quanto & conformidade ao interesse social e coletivo do exereicio do dircito de propriedade. Na Constituigéo de 1946 a fungio social da propriedade comparece vinculada Arealizacio do bem-estar social ¢ a0 dircito de acesso garantido a todos: “Art. 147 ~ O uso da propriedade sera condicionado ao bem-estar social. A lei poderd, com observncia do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuigio da propriedade, com igual oportunidade para todos”, Essa Constituigio, tal como a de 1934, ressalta o exercicio do direito de propriedade ("uso da propriedade”), que marcard o desenvolvimento do conceito de funcéo social, no Brasil. A funciona- lizagio esté orientada ao bem-estar social, que o exercicio do dircito de propriedade deve observar. Sobre este tiltimo ponto, Pontes de Miranda (1968, p. 46) esclareceu que uma coisa é 0 limite a0 uso, claborado milenarmente, como as regras entre vizinhos, outra coisa é o bem-estar social, conceito mais vasto que vizinhanga ou proximidade; “o uso da propriedade hé de ser compossivel com o bem-estar socal’. Apenas na Constituigéo de 1967 a expressio “funcio social da propriedade™ é explicitamente referida (art. 157), no capitulo da ordem econémica e social. Vinculava-se, portanto, & propriedade dita dinamica, ow seja, a que integrava a atividade econdmica. Essa distingio entre propriedade estitica ¢ propriedade dindmica é corrente na doutrina do direito econémico (Vaz, 1993, p. 318), para a qual o conceito de atividade ¢ essencial, E.a propriedade em movimento, como objeto de organizagées empresarias ¢ de trocas. = 129- A Constituigio de 1988 elevou a fungéo social da propriedade & categoj, de direito fundamental. Os institutos juridicos da propriedade e da funcéo soc) estio visceralmente imbricados, devendo ser interpretados conjuntamente, Nig hi propriedade sem funcio social. A dificuldade de ruptura com o paradign, individualista da propriedade revela-se nos enunciados dos incisos XXIeXXI | do art. 52 da Constituigao, pois um garante a propriedade privada tout courte outro condiciona seu exercicio & funcio social, Essa aparente incompatbildade das normas constitucionais decorreu de solugdo de compromissos entre interesses ideoldgicos contrapostos no periodo de sua claboragio, sendo que os constituiny conservadores propugnaram pelo inciso XXII e os consticuintes progressistas ply inciso XXIII. Como a interpretacéo de um inciso nao pode dispensar a do outro, pois a antinomia é aparente, para a aplica¢io das normas constitucionais di infraconstitucionais impde-se a harmonizacio deles, em virtude de sua necesita interpenetra¢io, compondo-se assim a norma: “é garantido o direito de proprie- dade, que deve realizar sua funcio social”. 5.4, A Funcéo Social néio Significa Limite Externo da Propriedade A propriedade ea posse nao sio limitadas negativamente pela fungio social, pois esta as conforma e determina em sentido positive. Nos seus primérdios,2 ideia de funcio social esteve comprometida com a de limites negarivos ou externos 20 direito de propriedade, 20 lado de outros institutos, principalmente os diets de vizinhanca, 0 abuso do direito eas limitagdes administrativas. Os limites exter nosainda refletem a concepcéo de intocabilidade do diteito de propriedade, segundo 0 modelo moderno do individualismo liberal, ou seja, pode ser soberanamente cexercido até onde confine com esses limites. Nacontemporaneidade, a funcéo social afastou-se da concepcio de limits cexternos, passando a integrar os préprios contetidos da propriedade e da pose Estaéa orientagéo que se adotou na Constituigéo de 1988. Integra como conjunto de deveres que devem ser cumpridos pelo titular sempre que exerga seus poderesée fato ou de direito. Nio é mais algo externo, mas sim interno a essastitularidades, determinando suas proprias naturezas e seus exercicios. Veja-se que a Constituigo utiliza enunciados que remetem a deveres ¢ nao a limites, a exemplo do art. 182, § 2 ("A propriedade urbana cumpre sua fungao social quando atende 3 exigéncias...”). Cumpre-se 0 que se deve. Ai nao esta dito que a propriedade estt limitada 2 fungao social, mas sim que esta é dever juridico que deve ser cumprido. Assim também no art. 186 (“A fungao social é cumprida quando a propriedade — 130 — rural atende...”). Neste tiltimo, a fungio social é desdobrada em alguns deveres juridicos, de cumprimento permanente, como aproveitamento racional ¢ adequa- do da terra, preservagao do meio ambiente, observancia da legislacao trabalhista, favorecimento do bem-estar dos proprietiriose rabalhadores. Deveres juridicos permanentes que se impéem ¢ condicionam o exercicio da posse ¢ da propriedade nio podem ser considerados limites externos. Com- pate-se, por exemplo, com as limitagées administrativas de no construgéo de edificagdes em determinados zoneamentos urbanos, ou de fixagio de recuos para construgdes as margens de rodovias, ou de sueigio & passage de redes de trans- missio de energia elétrica, Esses séo exemplos de limitagées externas ¢ nio de deveres impostos ao exercicio do direito de propriedade ou ao exercicio da posse, O Cédigo Civil repercute a transigéo paradigmatica a0 estabelecer no art. 421 que a liberdade de contratar serd exercida “em razao ¢ nos limites da fungéo social” do contrato. O exercicio da liberdade - do contrato ou da propriedade ~ diéi-se “em razao”, mas nao “nos limites”, pois esta iltima referencia reflete a impre- cisio que ainda desponta, em nosso sistema juridico, da atual dimensio da funcéo social. Mas 0 mesmo Cédigo, no parigrafo tinico do art. 2.035, proclama a supre- macia da fungao social sobre a liberdade de contrato ou de propriedade, 20 esta- belecer que “nenhuma convengéo prevalecerd se contratiar preceitos de ordem puiblica, tais como os estabelecidos por este Cédigo para assegurara funcéo social da propriedade ¢ dos contratos”. A funcéo social, portanto, prevalece sobre dois pilares de nosso direito privado, que sio a auconomia privada e a garantia do ato juridico perfeito, uma vex que este, constituido sob o império da lei antiga, & alcancado pela regra da lei nova (CC/2002), que suprime a eficicia jutidica de negécios juridicos que contrariem a fungio social da propriedade, ainda que esta nao fosse clara no momento de suas conclusées. Sobre o tema, Pietro Perlingieri (2008, p. 940) é concorde no sentido dea fungao social da propriedade privada nao concernir a limites. Para ele, em um sistema inspirado pela solidariedade politica, social e econdmica e pelo pleno desenvolvimento da pessoa, o contetido da funcio social assume um papel pro- mocional, de maneira que a disciplina das formas proprietérias ¢a sua interpre- tacao deveréo ocorrer de forma a garantir e promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. A fungdo social deve ser entendida nio como uma intervencao in odio & propriedade privada, mas torna-se a prépriarazio pela qual 0 dircito de propriedade foi atribuido a um certo sujito, Reconhece que (p. 942) a funcdo social nao é auténoma, mas sim parte essencial da garantia e do reco- nhecimento da propriedade privada, a razéo da propria tutela da apropriagio privada dos bens, de acordo com as circunstincias histéricas que caracterizam a = 131 - concretacomposigio deiteresse.Igualmente, em obra clisica, Salvatore Puglia afirmara que, enquanto destinacio a interesses diversos do proprietario e inclusig de obrigagées positivas, mais que limites postos ao exercicio da propriedade, ¢ a fungéo social a prépria “raza que determina os limites’, podendo-se adorar 3 férmula “propriedade-funcao” para designar o aspecto que assume o dito de propriedade contemporineo (1964, p. 144). Essa orientaso repercuiu no Cbg Civil brasileiro de 2002, cujo art. 421 alude a “em razéo e nos limites da fungi social” quando trata da liberdade de contrat. A fungio social da propriedade como limite extemno “parece superado na doutrina contemporénea” (Ruzyk, 20114, p. 252), pois a compreenséo da pro- ptiedade como um dircito que contém, em sua estrutura e no seu interior, uma fungéo social, afastaria entendimentos advindos de suas primeiras concepgées no século XIX. Nesse sentido, também, Gustavo Tepedino (2013, p. 266): "a fungio social da propriedade, como expressio da primazia constitucional dos valores de solidariedade, igualdade e dignidade humana, torna-se elemento interno do dominio", néo mais podendo ser vista como a atribuigéo de poder tendencal mente pleno, cujos confins sio definidos externamente, ou com caréter predomi- nantemente negativo, Igualmente, Eros Grau (1997, p. 255), para quem o que mais releva enfatizar€ fato de que o principio da fungio social da propriedade impée ao proprietdrio o dever de exercé-lo em beneficio de outrem e nao, apenas, de nao o exercer em prejuizo de outrem. Para Marco Comporti (1984, p. 313), a disciplina da propriedade privada “nio funciona mais apenas como um limite externo, mas assume, frequentemente, o cardter de obrigacao positiva, confor mando, assim, o conteiido de um direito limitado por superiores exigéncias de solidariedade social”; em outro escrito diz que a nogao de fungéo social deve set entendida nio tanto como exigéncia produtivista do sistema econdmico, mascomo critério pata realizagio da pessoa humana e de respeito & dignidade do homem (1993, p. 164). Nio se compatibiliza a ideia de limite externo com os deveres juridicos que cemergem da configuragio da fungéo social, tanto na Constituigao quanto na le gislacio infraconstitucional. A fungao social, em nosso direito, foi concebida ese desenvolveu como complexo de deveres, Deveres que tém por finalidade a prote- ci dos eres vulnerives, alcancados pelo exercicio das titularidades da posse ou da propriedade sobre as coisas, inclusive o meio ambiente, Desses deveresjuridicos promanam obrigacées de fazer, em grau maior que obrigagées de nao fazer. Por outro angulo de argumentagio, afirma-se que, se a fungio social da propriedade eda posse fosse mero limite, sera possivel qualificar toda e qualquer resttigéo a essas como funcio; assim, of direitos reciprocos de vizinhanga, que — 132 — implicam limites de exercicio, seriam fungSes, do mesmo modo que as limitagées administrativas (Ruzyk, 20114, p. 257). 5,5. Fungdo Social e Interpretacdio das Normas Infraconstitucionais Ainterpretagao das normas infraconsttucionas, inclusive do Cédigo Cv, deve ser feita em conformidade com as normas constitucionais que estabelecem 2 primazia da fungio socal da propredade sobre qualquer meres individual. A redacio da legislacéo civil brasileira repercute ainda, em sua literalidade a con- cepsio individualista da propriedade. Dai a ntrpretago em conformidade com 2 Constituigo, sem reducéo do texto legal, orientada realizar da funcio social Qualquer norma infraconstitucional, cua interpretaci em conformidade com a Constituigao nao seja possivel, por serincompativel com 2 fungio social dha propriedade ou da posse, deve ser declarada inconsttucional. Ese éum ci tério de interpretagéo obrigatério para o juiz ¢ demais aplcadores do dito, Como diz Pietro Perlingieri (2008, p. 942), esse critériolegitima ano apicagao das disposig6es legislativas nascidas como expresses de tipo individualistico, ou concretizadoras de uma funcdo social de natureza divesa daquelaconstitcional, como a inspirada na maxima produgio ou na autossuficiéncia econdmica, ‘A ungéo social da propriedade nao ¢ apenas dirgia ao aplcador do dirt Diz respeito, essencialmente, a0 dever de sua observincia permanente pelo rclar da posse ou da propriedade, que 0 seu principal desinatti, em todo.o momento em que exergam seus poderes de direto ou de fato. Da mesma forma que aauto- nomia privada negocial deve ser exercida em razio da fungio social (CC, a 421), 4 autonomia para o goz0 e disposi da posse eda propriedade também o Esse um dever legal, que no depende de consentimento ou acordo, Ainterpretagéo das normas infraconstitucionais nao pode levar a0 equivoco, ainda corrente, da confusio entre fungio social e aprovetamento econdmico. Pode haver maximo aproveitamento econémico ¢lesio& fungi social da pro- priedade ou da posse. Na situagéo concreta no hi Fungo socal quando, para maximizacao dos fins econémicos, o titular de imével urbano nio atende &s exigéncias fundamentais de ordenagio da cidade (CF, art. 182, § 28), ou o titular deimével rural néo promove o aproveitamento racional eadequado da tera, ou no utiliza adequadamente os recursos naturais disponiveis, ou nio preserva o meio ambiente, ou nao cumpre a legislacao trabalhista, ou néo promove os bem-estat dos trabalhadores (CF, art. 186). Nio sio, portanto, a produtividade ou os fins — 133 -— yp econdmicos que orientam a aplicagio da fungio social da propriedade ou dy posse, Todavia, STF (MS 32.752) entendeu que a invaséo do imével rural por movimentos sociais compromete sua produgio e frustra a fungao socal, 0 que leva ao impedimento da desapropriagio pata fins de reforma agri. Outro equivoco que deve ser evitado é relacionar a propriedade privada ay dircito piblico, tendo em vista que a fungéo social dela foi introduzida pelas Constituicées. Jé tivemos oportunidade de dizer que s4o distintos os conccitos de publicizagéo e constitucionalizagao das relagdes privadas. Se se entende como publicizacéo a submissio dessas matérias ao ambito do direito puiblico, entéoé incorreto tal enquadramento. O fato de haver mais ou menos normas cogentes nao climina a natureza originaria da relacao juridica privada, vale dizer, da rela Gio que se dé entre titulares de dircitos formalmente iguais; nao € este o campo proprio do direito piblico. Para fazer sentido, a publicizagao deve ser entendida como 0 processo de intervengio legislativa infraconstitucional, a0 passo que 2 Constitucionalizagao tem por fito submeter o direito positivo aos fundamentos, de validade constitucionalmente estabelecidos (Lébo, 1999, p- 100). A literatura juridica mais atenta as caracteristicas atuais da funcao social da propriedade tem demonstrado que a proptiedade, orientada & realizagio de fungao social, verteu-se em instrumento para protegio da pessoa humana. A utilizagao dos bens privados ¢ 0 consequente exercicio do dominio devem, por tanto, respeitar e promover as situacées juridicas subjetivas existenciais e sociais por cla atingidas, nao bastando 0 mero aproveitamento econdmico (Tepedino, 2013, p. 267) O legislador infraconstitucional tem tentado densificar conceitos abertos ou indeterminados utilizados pela Constituigao. No que concerne a0 conceito de “propriedade produtiva”, insuscetivel de desapropriagao, segundo o art. 185, Il, da Constituigéo, a Lei n. 8.629/93, considera aquela que, explorada econémica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilizagao da terra e deeeficiéncia na exploracdo, segundo indices fixados pelo érgao federal competente. Mas a qua- lificagao como propriedade produtiva, segundo esses critérios, nao afasta o cum- primento dos deveres de fungao social, pois s4o de natureza distinta. Igualmente, o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001) densifica a fungio social da propriedade urbana, prevista na Constituigao, de modo a assegurat 0 atendimento as necessidades dos cidadaos quanto a qualidade de vida, & justiga social e a0 desenvolvimento das atividades econdmicas. A fungio social da pro- priedade urbana assume relevo, quando se considera que a taxa de urbanizacdo no Brasil, em 2010, era de quase oitenta ¢ cinco por cento da populacio. — 134 = 5.6. FuncGo Social da Posse A posse, assim como a propriedade, deve exercer uma fungio social enéo apenas individual, segundo o estalio constitucional arts. 52, XXIII; 170, II], da Constituigao). Assim, nao basta 0 uso econdmico da cosa, que se revla por sinais exteriores, mas é necessario que realize a fungio social, segundo os cierios pais, para que a protecao seja assegurada 4 posse. O direito & posse recebeu especial influxo da idea de fungéo socal da propriedade. A posse, para continuar merecedora da proteio juridica erin trumento mais democritico de acesso das pessoas is coisas, hi de realizar sua funcio social, ao lado da fungéo individual. Miguel Reale, que coordenou a comissio elaboradora do anteprojeto do Cédigo Civil, testemunhou que “oi revisto ¢ atualizado o antigo conceito de posse, em consondncia com os fins sociais da propriedade” (1999, p. 8). Toda a rica produgio intelectual que se tem em torno da fungéo social da propriedade, em nosso meio, aplice-se, com mais razio, & posse, pois é esta que a realiza, na dimensio positiva da utilizacio real da coisa. Porque, como diz Luiz Edson Fachin (1988, p. 13), a posse ndo ¢s0- mente contetido do direito de propriedade, mas sim sua causa, entendida com sua forca geradora, ¢ sua necessidade, pois exige sua manutengio sob pena de recair sobre a coisa a forga aquisitiva, mediante usucapiio; por isso, a funcéo social émais evidente na posse do que na propriedade(p. 19), por sua natureza de uso cutilizacio. AA doutrina tem distinguido a fungio social da posse em duas tuagées (1) quando a posse esté integrada & propriedade; (2) quando a posse é auténoma. Na primeira situaglo, a funcéo social da posse coincide com a da propriedade, pelo exercicio desta. Quando a posse é aurénoma, entende Gustavo Tepedino (20114, p. 57) que sua fungao social mostra-se essencialmente dct edefine-se 4 posteriori, dependendo do direcionamento do exercicio posesiro a valores protegidos pelo ordenamento (dignidade da pessoa humana, solidariedade social, igualdade, moradia, trabalho), quea legitimem ejustifiquem sua protego legal inclusive contra o proprietirio. Pode-se afirmar que a Constituigio criou um novo pressuposto pata a obtencéo da protecio possesséria, ou sea, a prova do cumprimento da funcio social; a correta interpretacio dos dispositivos constitucionais leva reconstrugio do sistema de tutela processual da posse, que deve seriluminado pela exigéncia de observancia da fungao social (Didier Jr, 2008, p. 102). Nem sempre a posse est em conformidade com a fungio social, nio havendo Presungao de que seu exercicio esteja orientado a uma finalidade social relevante, = 135 — maxime nas situagdes de posses equivalentes a latifiindios ou que promoran devastagdo ambiental, A fungio social ressalta a utilizagao da coisa, razio por que esta mais pg. xima da posse do que da propriedade. A posse, por ser poder de fto,éconcey_| ¢ ral, enquanto 0 direito de propriedade é abstragio, desenvolvida no mung iealizado ou dos pensamentos. Quando se diz fungio social da propridad Pressupée-se a da posse que a integra. Mas a circunstincia de a funcio social dy | propriedade estar inserta nas garantias constitucionais nao lhe confere qualqus primaaia em rclagio & funcéo social da posse. 5.7. Inter-Relacéio com os Principios da Justi¢a Social e da Solidariedade Na Constituigao (art. 170), funcéo social da propriedade é ordenada pare a realizacio da justica social. Assim, quando a propriedade integra a atvidade econémica, compondo-a ou sendo objeto de circulagéo, deve seu exerci re. | liza “os ditames da justica social”. O principio normativo da funcio socal d propriedade (inciso III do art. 170) é, consequentemente, modo de realizacio da justiga social, que, por sua ver, tem por fito “assegurar a todos existéncia digna, para o que é necessério “reduzir as desigualdades sociais” (CF, arts. 32, III, ¢ 70, VIN), Desse modo, a existéncia digna de todos que sejam afetados pelo exercca a posse eda propriedade é a finalidade iltima da fungdo social destas, ¢0 meio para alcangi-la é a redugio das desigualdades sociais. ‘A funcéo social da propriedade ou da posse néo é meca a ser alcancada.E princ{pio juridico do qual emergem deveres juridicos conformados pelo megaprin- cipio da justica social. Sem a prossecucao da justiga socal, a fungao social da pro priedade e da posse descola-se indevidamente de sua fundamentacao. constitucional c abre-se em especulagées vazias de sentido. Ainda que a justiga social esteja explicicamente referida na disciplina da ordem econémica, hé referéncia indireta dela na Constituigéo, no art. 38, Ill, quando alude & reducao das desigualdades sociais. Essa norma é ainda mais abrangente que o art. 170, pois cuida exatamente dos abjetivos fundamentais da Repailica, consequentemente dos direitos que os concretizam. A justica social ndo se satisfaz com a consideragio das circunstancias exis tentes, pois é justiga promocional, no sentido de promover as redugées das dest gualdades materiais na sociedade. Diferentemente da justica comutativa (data cada um o que é seu, considerando cada um como igual ~ princ(pio da igualdade juridica formal) e da justiga distributiva (dar a cada um o que é seu, considerando — 136 — a desigualdade de cada um), a justiga social implica transformagio, promogio, mudanga, segundo os precisos preceitos constitucionais. Enquanto as justicas comutativa ¢ distributiva qualificam as coisas como estio, a justia social tem por fito transformé-las, de modo a reduziras desigualdades (Lébo, 2011, p. 67). O principio da justica social, por sua vez, entronca-se com outto principio estruturante da ordem juridica brasileira, que € o da olidariedade socal. A regra matriz do principio da solidariedade ¢0 inciso I do art. 32 da Consttuigio. No mbito internacional, a Declarago Universal dos Direitos Humanos (at. XXIX) estabelece que “todo homem rem deveres para com a comunidade, na qual o livree pleno desenvolvimento de sua personalidade¢essencial”. A solidariedade, no direito brasileiro, somente apés a Constitui¢ao de 1988 inscreveu-se como principio juridico explicito. Antes de sua apropriagao pelasciéncias sociais pelo dircito, a solidariedade exprimia dever moral ou dever religioso. Ainda que, anteriormente, alguns autores mencionassem topicamente a solidariedade, como principio, deve-se a Léon Bourgeois sua primeira sistematizagao, com a obra Eusai d'une phlosophie de la solidarité, publicado em 1902, em seguida a um pequeno livro, Salidarité, pu- blicado em 1896 (Remy, 2004, p. 4). No ambito do ditcto civil, René Demogue, em obra classica de primeira edigao de 1911, embora considerando as teses de Bourgeois ingénuas, aplicou a regra da solidariedade principalmente na afitmagio da mais justa “reparticdo das perdas”,além da afirmagio, avangada para a época, de que “todo homem deve sempre ter dircito a um minimo de existéncia” (2001, p. 158-169). O que ressalta no principio juridico da solidariedade é a compreensio de que a solidariedade nao é apenas dever positivo do Estado, na realizacio das poli- ticas piblicas, mas também queimporta deveresrecfprocos entreas pessoas, pois, como disse Bourgeois, os homens jé nascem devedores da associacéo humana € sio obrigados uns com os outros pelo objetivo comum. A imposiga riedade levou ao desenvolvimento da fungao social dos ditctos subjetivos,inclu- sive a da propriedade, que se tornou lugar-comum. Sem a solidariedade, asubje- tividade jurfdica e a ordem juridica convencional stio fadadas a constituir mera forma de conexao de individuos que permanecem juntos, mas isolados. O principio da solidariedade é um dos grandes marcos paradigmaticos que caracterizam a transformagao do Estado liberal em Estado democratico ¢ social (por alguns, justamente denominado Estado solidario), com suas vicissitudes € desafios, sendo este 0 modelo adotado pela Constituico de 1988. E superacio do individualismo juridico pela fungao social do direitos. O principio juridico da solidariedade resulta da superacéo do individualismo juridico, que por sua vez € = 137-

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