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Exma. Sra. Tarsila Amaral Paris SGo Paulo, 11 de janeiro de 1923. Querida amiga Se 6 mesmo verdade que os gregos e os romanos tratavam seus deuses com familiaridade amiga, creio que foi o cristianismo que trouxe para os homens ocidentais o temor pelas entidades divinas. Aproximo-me temeroso de ti. Creio que @ uma deusa: NEMESIS, senhora do equilibrio e da medida dos excessos. Quando um homem da Terra era demasiado feliz, via crescerem-lhe terras e riquezas, e tinha em torno de si bragos, labios de amor, coroas de gloria e alegrias somente, Némesis aparecia. Vinha lenta, com seu passo lento, sem rumor. Mas ao homem-de-Terra fugiam-lhe riquezes, alegrias. Perdia amor, gléria e riso. fis Némesis, sem divida. Eu era sio. Alegre, confiante, corajoso. Mas Némesis aproximou-se de mim, com seu passo lento, muito lenta. Depois partiu. Doengas. Cansagos. Desconsolos. Ainda todo o final de dezembro estive de cama. Venho agora da fazenda onde repousei 10 dies. Mas seré mesmo Némesis? Que és deusa, tenho certeza disso: pelo teu porte, pela tua inteligéncia, pela tua beleza. Mas a deusa que reprime 0 excesso dos prazeres? Nao creio. Tue recordagao sé me inunda de alegria e suavidade. Bs antes um consolo que um pesar. A verdadeira, a eterna Nemesis, so as horas implacaveis que passam dia e noite, dia e noite, sol e escuriddo. Estou nos meses da escuridéo. Foi a fraqueza que me fez pensar que eres tu Némesis. Perdao. Estou a teus pés, de joelhos. Mais uma vez: perdao! Espero tua carta longa, contando coisas breves de Paris. Ja estou a imaginar a lindeza do meu Picasso. Obrigado. Dize-se alguma coisa da Arte. Ja estas trabalhando? Pintas muito? Recebeste KLAXON n. 7? Adeus. Mario de Andrade.

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