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Estrutura e constituiglo da clinica psicanalitica Uma arqueologia das peitien de cura, psicoterapla e (ratamento Christian I, L, Dunker } ANNABLUME, Nota sipniocréricn PREFACIO A EDICAO INGLESA INTRODUGAO Capfruto 1. A Dovipa pe Uuisses 1.1. Priticas Narrativas ¢ Formas de Mal-Estar 1.2. Etica ¢ Técnica 1.3. O Caso Quesalii Simbdlica do Xama Eficdcia ¢ Exceléncia Captruto 2. O Rerorno be Emrépocies 2.1, Empédoeles entre a Falta € 0 Excesso 2.2. Hipécrates ¢ 0 Tempo da Cura 2.3. Platio ¢ a Medicina Filoséfica 2.4. A Clinica na Antiguidade ¢ a Teoria Psicanalitica do Retorno Captruto 3. O ATO DE ANTIGONA 3.1, O Teatro Terapéutico e a Dimensao Estética do Sofrimento 55 60 65 72 87 87 95, 101 104 115 117 sis Integrativa ativa a : ¢ Desejat 7 (TERPRETAGAO, “rORICAS DA INTER ot i Convencimento ¢ Convicgao i ares da Interpretagao e trutura Temporal da Sessio Psicanalitical 6) aradoxos da Interpretagao 42. 4,3. Dispos! 44, Elocutto: 168 Capfruto 5. A CURA COMO CUIDADO DE SI 193 puto 5. A 93 7 aa poder ¢ Experiéncia de Mal-Estar 208 53. Ascese 2 5.4, Meditagao 24 5.5. Meméria 23 5.6. Método 5.7. Sécrates e a Cura de Alcebiades 233 5.8. A Verdade e a Constituicao da Cura 237 Captruto 6. MONTAIGNE: O MAIS CETICO DOS HisTERICos 251 6.1. A Cura Real 251 6.2. Confissoes de Agostinho e Vidas Paralelas de Plutarco 262 6.3. Montaigne: Escrita de Si como Questao 271 CapfruLo 7. A MEDITAGAO DE DESCARTES 285 7.1.'A Imoralidade da Verdade 289 7.2. Sonho e Loucura na Génese do Método Cartesiano292 73. O Tratamento Légico do Sujeito 298 re a CONTROVERSIA DO METODO 31 -1. O Real e a Constituic4 4 Aue 313 8.2. Método de uigao do Método Clinico 3 ‘Tratamento e Método de Investigacao 318 Carer 91 Prime, - STRUTURA DO TRATAMENTO Psicanattrico 327 .1. Prime oT ; ro Tempo: emergéncia do sujeito do inconsciente 33 9.2. Segundo Tempo: Mutagio da Transferéncia 9.3. Terceiro Tempo: Separagio do Objeto a 9.4, Ato e Discurso do Psicanalista CapfTULo 10. KANr & 0 ParoLocico 10.1. O Objeto Patoldgico como Experiéncia de Determi! Ss wa 10.2. O Sujeito Etico como Experiéncia de Indeterminagao 10.3. Antropologia e Psicopatologia Cap{TULo 11. O Nascimento DA CL{NICA 11.1. A Estrutura da Clinica Classica 11.2. Clf{nica na Psiquiatria 11.3. Clinica na Psicandlise 11.3.1. Semiologia 11.3.2. Etiologia 11.3.3. Diagndstica 11.3.4. Terapéutica 11.3.5. A Subversao Psicanalitica Cap{ruLo 12. HEGEL: 0 REAL E SEU NEGATIVO 12.1. Fenomenologia da Experiéncia Psicanalitica 12.2. Senhor e Escravo 12.3. Légica do Real Capfruto 13. A CONSTRUGAO DO Caso CLiNICO 13.1. Pinel ea Superficie da Cura aut 13.2. Liébault ea Superficie Psicoterapeutica 13.3. Charcot e a Superficie Clinica : 13.4, Freud: o Caso Clinico como Construgao co Lepneee Limites da Forma Ro mance 13.6. O Caso Singular ¢ 0 Caso Genérico 340 NOTA BIBLIOGRAFICA Ts OS TEXTOS DE FREUD FORAM CITADOS A PARTIR DAS Obras Completas Sigmund Freud, edigio Amorrortu, tradugao de José L. Etcheverry (1988) ¢ cotejadas com a Sigmund Freud Studienausgabe, S. Fischer Verlag (1989) ¢ com as Sigmund Freud Standart Edition, wadugio de Jaime Salo- mao, Imago (1983). Quando disponivel utilizou-se também as Obras Psicolégicas de Sigmund Freud, tradugio de Luiz AL berto Hans et alli (2004). Tanto os titulos quanto as passagens citadas constam em portugués com traducao do autor. Para as datas de citacdo, utilizou-se a padronizagao (ano/letra) sugeri- da pela Edigao Amorrortu. Para Lacan utilizou-se as obras em portugués Os Escritos, edigao Jorge Zahar, traducao de Vera Ribeiro (1998) (coteja- dos com Herits, Seuil (1990) e com Ecrits — a selection, tradu- cao de Bruce Fink, Norton (1999)) © Outros Escritos, edigao Jorge Zahar, tradugio Vera Ribeiro (2003) (cotejados com “Autyes Ecrits, Seuil (2001)). Para as obras sem publicagao em portugués foram utilizadas diversas fontes, sempre com tra- ducao do autor. As datas da citagéo foram padronizadas pela equipe da Colegio Ato Psicanalftico, com fins de facilitar o trabalho de identificagéo das obras. Buscou-se utilizar as dacas de primeira aparigio, respeitando o valor histérico dos tex- tos, assim como diferenciar textos do mesmo ano ¢ seguindo a hierarquia Seminitios, Esea € outros textos. Ao longo do texto narios, Escritos ¢ Outros E: identificador Sx, E, ¢ OF respectivamente, ‘Todos os livros publicados nesta Colegio seguem a mesma padronizagio para Freud e Lacan, 14 PRE AcIO A EDIGAO INGLESA TAN PARKER Manchester Psychoanalytic Matrix TE LIVRO TRAGA UMA HISTORIA DA PRATICA PSICANALITIC ‘Uma histéria da “clinica” como espago soci | circunseti to, no qual um ser humano fala com outro e descobre como tal fala evoca algo sobre a verdade acerca dos envolvidos n ta experiéncia. Uma cl{nica que opera como contraponto ao mundo organizado pelo simulacro, um mundo que parece convocar cada sujeito a demitir-se de seu desejo, a enganar a si e aos outros para sobreviver. O que Christian Dunker nos mostra é que a cura pela palavra (talking cure), que tomou sua forma no mundo Ocidental depois de Freud, constituiu sua racionalidade a partir de diversos campos ¢ debates envolvi- dos nas relagdes entre linguagem e verdade. Sua genealogia exaustiva sobre o que significa bem falar remonta aos antigos estudos sobre a ret6rica, passando pela teologia medieval, pela histéria da medicina, pela critica moderna da subjetividade, pela literatura, até chegar As investigagdes filosdfica: natureza das representagOes linguisticas. Este livro é uma jornada pelas condigdes de pos bilidade deste complexo histérico, que permitiu ao sujeito se dirigir ao outro no espago psicanalitico. Ele dé um passo signiticativo para alcangar como Freud — ¢ Lacan, depois dele — conseguiu estabelecer um lugar na cultura do Ocidente que se multipli- sobre a cou através do mundo. Dunker, em seu magis do. : stral relato, centa a sensibilidade psicanalftica & genealogia da pei introdu ndo assim outra torgio naquilo que nds F sobre as relagdes entre discutsa ¢ suijeito, Ele ¢ histéria o argumento crucial sobre a “lugar” ¢ “posiga Para esta ; espago” estruturais para pensar ag e de recusa do cxercfcio de poder, que catac. terizam a politica do tratamento ps 3” como categori relagdes de pod alftico. Este en topologia histérica mostra como o psicanalista preci aio de articu- lar estes trés registros de forma a evitar reduzir a psicanilise a uma psicoterapia de adaptagéo conformista, a um método de tratamento de formagées patoldgicas, ou a uma cura ontold- gica de suas alienagdes. Por outro lado, o psicanalista também nao deve esquecer que, na constitui¢ao histérica de sua pra- tica, estas trés superficies estao constitutivamente envolvidas. Neste ponto, Dunker esté no cruzamento entre o que ha de melhor em Lacan ¢ o que hé de melhor em Foucault. E neste momento que nos damos conta de como as nogoes de espago, lugar ¢ posi¢ao emergem como conceitos centrais do estudo histérico realizado neste livro. Alguém poderia dizer que isso € genealogia feita as avessas, que se contenta em reativar batalhas j4 vencidas, imperfeita- mente lembradas e teorias da linguagem ou do sujeito ja supe- radas. No entanto, € sé agora, depois do evento representado pela psicandlise na histéria das praticas de cura, de tratamen- to e de terapia, que torna-se poss{vel reconhecer a relevancia formativa das teorias pré-psicanaliticas sobre 0 mal-estar, @ importancia construtiva dos métodos pré-psicanaliticos para lidar com o sofrimento humano, tendo em vista a constituigio da psicandlise como clinica auténoma e irredutivel. Este li- vro é uma interpretagao sobre 0 espago psi mudar a forma como falamos ¢ pensamos o lugar desta pratica no mundo de hoje, . A clinica psicanalitica, ¢ seu trabalho tedrico cortelato, cit- cula entre multiplos e perpendiculares universos simbdlicos, nalitico que pode marcada pelo confronto agon{stico entre discursos que envol- vem a psicandlise, mas também a psicologia, a psiquiattia, a moral, as polfticas ptiblicas, a educagio ¢ assim por diante. A Colegio Lines of Symbolic Series, da Karnac Books, na qual a primeira versio deste livro foi publicada, enfatiza as’ conexdes entre diferentes lugares culturais nas quais a psicandlise laca- niana se desenvolveu, em diferentes formas, com distintas for- mulagGes criticas, mas tendo em comum o questionamento da ideia de que existe uma tinica e correta leitura e aplicac4o da psicandlise. Assim como na Colecio Ato Psicanalitico, da edi- tora Annablume, na qual o livro aparece agora em sua versao brasileira, nds nos preocupamos em contribuir para que o tra- balho reflexivo da psicandlise, que traduz Lacan pelo mundo, trace um caminho alternativo, entre as tentacées metalingufs- ticas, os apelos de redugao imagindria, a demanda em produzir um olhar complacente sobre a psicandlise ¢ o imperativo de que a psicandlise precisa ser a mesma em toda parte do mundo na qual é praticada. A elaboracao da psicandlise no simbdlico alcanga sua teoria e sua prdtica, na hist6ria ¢ na politica de seu trabalho, em uma variedade de intervengGes que tocam o real. 17 INTRODUCAO Nao é de se e: ntar que no existam dois his- toriadores ou dois clinic que tenham a mesma experigncia, e que discusses sem fim sejam fre- queates & cabeceira do doente. Paul Veyne 1890, FREUD REDIGE UM PEQUENO ARTIGO PARA UM MANUAL le medicina no qual advoga beneficios € importancia dos tratamentos psicolégicos realizados por meio das palavras. Este é um dos textos fundadores da psicoterapia tal qual a con- cebemos hoje, relativamente distinta dos tratamentos da alma. Tratamento Psiquico — Tratamento da Alma (Psychiche Bahan- dlung (Seelenbehandlung)| aparece em uma obra de divulga- G40, a Gesuntheid (Satide). Nas suas sucessivas reimpressdes percebe-se claramente 0 estado embrionatio da disseminagio cultural ¢ do reconhecimento social das praticas psicoteripi- cas, A retérica deste artigo oscila entre a exigéncia e necessida- de da abordagem cientifica das causas dos estados patoldgicos € os aspectos histdricos das praticas de cura pela palavea, Em torno desta consideragio histérica levanta-se o problema da eficdcia de técnicas psicoterdpicas, pritticas de sugestio, influ- éncia € hipnotismo. A passagem do traramento da alma (See- co (Prychiche go rraramento psique f be Baebes dla behandlung) )» apan lenb su Transigao necessdria para O aparecimer e Em grande medida este livro € uma eck, sc. Em £ ; tio ee eae resta dos tratamento da alma na época dos tr, sobre 0 se Ima especie de reedigio modificads g tamentos psiquicos- Uma espect 7 se fazia em 1890. ee vem a set psicoterapia ainda hoje € obje. to de confusa classificaga0- em variados an seja pela sua orientagio tedrica, por SUS ere te fi ae Por seus fins ou por sua cficicia diferencial. Sua ahnid nde cial com praticas migico-religiosas, com aoe ou com visées de mundo particulares combina-se com um amplo dispensirio de técnicas (corporats. grupals, aa gicas, pedagégicas). Algumas parece melhor justiticadas que outras. Consideremos a psicandlise uma forma de psicot ou nio, o fato inarredivel € que Freud tem papel fundador ¢ inaugural nesta epopeia moderna das psicoterapias. Nio se pode dizer que antes de 1896a psicandlise jd estivesse estabclecida como método de tratamento'. No entanto Freud recebia pacientes ¢ acompanhava tratamentos ha pelo menos dez anos. Do servigo de psiquiatria com Meynard (1883), aos experimentos com a cocaina (1884); dos estudos com Charcot (1885) ao trabalho no Instituto de Doengas Infantis (1886) ¢ do emprego da cletrotcrapia ¢ do hipnotismo (1887) ao estu- do clinico sobre as afasias (1891) ha, na trajetéria formativa de Freud, uma recorrente combinagio entre experiéncias de observagio ¢ experiéncias de traramento psiquico, ' Portanto, antes de se tornar psicanalista, clinico ¢ um psicoterapeuta. Clinico refer mente ao paciente € metédico exercicio d go e comparagao de fendmenos. ircunstan- jas cientiticas Freud era um €-se aqui principal- oe le observagao, descri- clinico é, sobretudo, um 1. A primeira aparicio da expresso “psicandlise” ocorre no art das neuroses (18962). artigo A heranca e a etiologia 20 leitor dos signos que formam o campo de uma semiologia € organizam uma diagnéstica de forma a justificar as escolhas de tratamento (a terapéutica). Esta conotagio pode soar estranha se lembrarmos que o elfnico & também um pritico ¢ que sua figura descende do cirurgiao barbeiro, do médico de familia ou do profissional liberal, cujo habitat natural é 0 consultério eantes disso, a casa ou a rua, nao o hospital ou a universidade. Ocorre que esta antiga e pertinente acepgio do termo “clini- co”, como praticante da arte da cura, é anterior a formagio do dispositivo clinico moderno, que se estabelece apenas em fins do século XVIIL A partir de entao o saber proveniente da experiéncia, relativamente assistematico € sujeito a regras de transmissao pessoais, artesanais ¢ idiossincraticas, incorpora-se a uma nova forma de racionalidade. O dinico, no sentido da ciéncia médica moderna, deve submeter sua pratica & primazia do método de tal forma a fa- zer corresponder, mas no equivaler, as regras da investigacao cientifica as regras da conducao do tratamento. Sua intuigao do objeto mérbido se constrange 4 descrigao universal das for- mas do adoecer (diagnéstica), ao cédigo comum de suas des- crigdes (semiologia) ¢ a remissio de seus efeitos as suas causas (etiologia). Quando afirmo que Freud era um clinico e« um psicoterapeuta, isto se presta a indicar seu lugar estratégico no movimento das disciplinas médicas, nesta operagao de conver- sao da “clinica antiga” a “clinica moderna’: Nem sempre fui psicorerapeuta. Como outros neuropato- Jogista, fui preparado para empregar diagndsticos locais ¢ eletroprognésticos, ¢ ainda me causa estranheza que os relatos de casos que escrevo paregam contos e que, como se poderia dizer filre-thes a marca da seviedade da cignci (...) Os casos clinicos desta natureza devem ser julgados como psiquidtricos; entretanto possum uma vancagen sobre estes iiltimos, a saber, uma ligagdo fatima entee & histdria do sofrimento do paciente ¢ os sintomay de sua doenga— uma ligagao pela qual ainda procurames em a vio nas biografias das outras psicoses. (Freud & Breuer, 1895d, p. 174) Percebe-se como Freud interpretava esta passagem de neu- ologista A psicoterapeuta pela introdugao do elemento érico: a histéria do sofrimento do paciente, a biografia das Psicoterapeuta, considerando-se a acepgao da época, é uma designagdo mais genérica do que clinico. Compreende um campo difuso de praticas curativas que vao do tratamento moral, ao magnetismo animal, da metaloterapia as praticas de purificacao, incluindo um leque de compromissos com dis- cursos religiosos, pedagdgicos e misticos. Talvez seja a convi- véncia com este campo heterogéneo de narrativas que o habi- lite a contar, interpretar e raciocinar em termos da histéria dos sofrimentos do paciente. O psicoterapeuta na virada do século XIX francés é alguém principalmente interessado na eficdcia de sua agao. Eficdcia regulada pela avaliacao subjetiva do préprio paciente, e tam- bém do ptblico que o acompanha. As hipéteses causais e a descricio dos sintomas lhe dizem respeito na medida em que podem contribuir para estes efeitos no Ambito do assentimen- to do paciente e do incremento de sua fama de terapeuta. Para 0 clinico, ao contrério, as impressdes subjetivas do paciente sobre seu prdprio estado, sua origem ou causalidade, sao irre- levantes senao perturbadoras. O paciente deve relatar e deixar ao médico a interpretagao dos fatos. Sua histéria clinica, obti- da pela anamnese, deve ser traduzida na forma de signos, sin- tomas e sindromes segundo um vocabuldrio convencionado e de pretensio universal. Para os psicoterapeutas, ao contririo, a forma de apresentacao do sofrimento, segundo a nomeagio do préprio paciente, em seu sentido popular e local, ¢ 0 crivo da expectativa de cura. Ele age transformando a teoria da cura e da doen 1, que o paciente carrega cons igo, absorvendo-a em uma Narrativa plausfvel para o paciente. Portanto, de maneiras distintas, tanto o Psicoterapeuta quanto o clinico sao espe- 22 a faut a ae de inversio da expert. no significa desqua- ier 0 saber do paccate Geconhecendo sus dignkade no agente do eae Ki isi ea transferir o saber para o iapemoalanc ci i 7 er do qual se faz seu representante » NO clinico, ou seu agente direto ¢ pessoal, no caso do Psicoterapeuta (Nathan, 1996). Um decreto francés datado de 1803 estabelece as regras para a legitimidade da prética médica separando-a dos char- lates ou curandeiros ilfcitos, em nome da seguranga da po- pulagdo. Em 1838 ocorre a regulamentagao da psiquiatria. Mas é s6 em 1872 que o termo psicoterapia € utilizado, pela primeira vez, por Daniel Tuke. Ele € popularizado por Ber- nheim em um texto de 1888, do qual Freud fez a traducio para o alemao (Roudinesco, 2005). Ha, portanto, um hiato de 69 anos entre a legitimagao social-juridica do clinico ea le- gitimacao cientifico-universitaria do psicoterapeuta. Este hia~ to exprime a dificuldade em assimilar ao campo estritamente clinico aquilo que caracteriza a eficdcia das psicoterapias, ou seja, a importancia da autoridade pessoal do psicoterapeuta sobre o paciente. As psicoterapias sao tratamentos baseados na influéncia ou relagao entre paciente ¢ terapeuta. O tratamento clinico, ao contrdrio, toma a influéncia como um elemento adjuvante operando sobre causas ou mitigando efeitos que sfio, a principio, independentes da forma como o paciente os concebe ou de como a cultura popular os interpreta € legitima. ‘Assim, a nogdo de autoridade pessoal associada & figura do clinico em sua acep¢4o antiga, torna-se um obstaculo para a fundamentacio cientifica das disciplinas médicas. Para estas 0 programa epistemoldgico depende da transferéncia da autori- dade da pessoa para a ‘autoridade impessoal do método: ‘A expectativa confante (gliubige Erwartung) com que ele (o paciente] vai ao encontro da infuéncia direra de uma providencia médica depende, de um lado, daextensdo de sua prdpria ansia de cura (Genes), e, de outro, de sua 23 confianga em ter dado 0 passo certo para iss OW ejay dle sew mopeito pela arte médica em geri depente ain, do poder que ele atribul d pessoa do médica € até rnesiyg dda simpatia punamente hummina que este desperta nete (,,) Assim, tanto naguela epoca [Antiguidade] quanto hyje, pessoa do médica ent una das coudicdes principuic Para pow mower no doente o estado pslquica propleia a enra Heilang), (Freud, 1890a, p. 123 [rif nosso]) i oO trecho faz, referén ia A ideia de cura duas yezes, nao obs- tante, utiliza termos distintos para isso (Genesung ¢ Heilung) mas evitando palavras diretamente dispontveis para isso em alemao: Kur ou Sorge. Examin: m a composigio da ex- pectativa de cura, Retenhamos a sutileza da exp: > gliubige, que provém do verbo glauben, ou seja, crenga ou conviccio, Erwartung, remonta ao verbo warten, ou seja, espera. O con- junto nos conduz a cura como capacidade de espera ~ alids, de onde vem o termo esperanga — acrescida de crenga e conviccio, mas nao necessariamente fé. Esta atitude, que © texto reputa favordvel ao tratamento (Behandlung), é composta por dois aspectos: (a) o desejo de sarar, de encontrar a satide (Genesung) e (b) o reconhecimento de corregao da escolha, de um médico, deste médico. O sinal que verifica este segundo aspecto é a simpatia puramente humana (rein menschlichen Zuneinigung). A expresso € curiosa, pois sugere que haveria uma simpatia néo puramente humana. Isso sem falar na expressio Zuneini- gung, que contém a ideia de einigung, ou seja, unificacio (ein, um). Mas ao final do trecho hé uma mudanga de termo. Em vez de reencontrarmos a ideia de satide € saramento (Gene- sung), aparece a expressio Heilung, que nos remete a antiga tradigao da salvagio, das curas magicas (healing) e de todo 0 universo pré-moderno da cura. Se tudo gira em torno da pessoa do médico (Artzes Person) vemos que esta pessoa se decompoe em referéncias distintas: a arte, a formagao ¢ a ciéncia a que constrdi uma expectativa de satide (Genesung), da que este médico é um representante; a forga da antiguidade desta 24 expectativa de salvacao (Heilung) e a possibilidade de manter- se nesta espera com alguma convicgao, ou seja, de ser capaz de trabalhar e incluir sua prdpria expectativa no proceso de cura ou cuidado (Kir), 0 trabalho de deixar-se cuidar. A ideia de salvagio (Heilung) decompée-se ainda, ocasionalmente, em uma no¢gao muito importante para a terapia, a saber, 0 resta- belecimento (Herstellung). Reestabelecer-se, estabelecer-se no- vamente, voltar ao ponto em que se estava estabelecido, é uma ideia que liga, originariamente, 0 adoecer com a experiéncia da perda de lugar. _Apenas para mostrar como esta problematica no fica res- {rita a este texto seminal examinemos brevemente como Freud refere-se 4 pratica psicanalftica em um de seus textos de ma- turidade. Em Observagées sobre Amor de Transferencia (1915a, pp. 163-167), encontramos afirmagées como: a transferéncia dificulta o desenvolvimento da terapia psicanalitica (psycho- analytischen Therapie), mas pode ser conciliavel com a cura (Kur); em caso de enamoramento pelo analista 0 paciente pode renunciar ao tratamento psicanalitico (psychoanalytis- che Behandlung), mas isso jamais prestara uma contribuicéo tao boa ao restabelecimento (Herstellung) do paciente; isso pode nao parecer auspicioso para a cura (Kur) uma vez que © paciente perde o interesse no tratamento (Behandlung), ¢ pode declarar-se sio (gesund, adjetivo derivado de Genesung); o analista menos experiente ter dificuldade de manter a situ- acio analitica (analytische Situation) ou achar que o tratamen- to (Behandlung) chegou efetivamente ao fim. O tratamento psicanalitico se constrdi sobre a verdade (psychoanalytische Behandlung auf Wahrheitkeit aufgebaut ist) ea cura (Kur) tem que se realizar sob abstinéncia. Corresponder ao amor do pa- ciente é uma derrota para a cura (Kur) e uma diminuigao da influéncia do tratamento (Behandlung); mas ha pacientes que permanecem inexordveis em serem correspondidos ou em suas pretensdes de vinganga contra os interesses da cura (Kur). Tanto os enamoramentos dentro do tratamento psicanalitico 25 (amalininy weme)s quanto fora da cur semelhamese aos feinve Kw analitiog (ang. s fondmenos ‘ 2). asseny anormais da alma (ebmormnale seelinvien f ne) O enamoramento Apare ‘ y ; ; parece geando se intmodue oO tratamento. psicanaliticn (anahp Tron I (analytischen tO pavr a curr das neuroses (Heilung we Bor sume a psicanilise nao é um metodo de Nrgmethode) sem petigos ou tiscos ( Sos eM UTR prigina sequen, deste que é dos textoy mais importantes de Freud sobre a pritic nalise, sem a oscilagio de termos em torno do tr curr eda terapia, As oscilagdes entre os result nda uma destas vertentes da puitica insistencias, como a que liga a cura (Ki) ao animico (alma), 0 traramento (Behandlung) ao metodo e a terapia (Therapie) ao rstabelecimento ed técnica, Infiltramese nesta variagio certos sontentos diferenciais: a autoridade do médico, a eficdcia do tratamento, a contianga na cura, Observemos que a nogio de autori do programa metodolégico das ciénci der Neurg. Matamenty Aarmlosen), Ou Provavelmente um a da psica ‘atamento, da ados diferenciais slo notdveis, Surgem lade pessoal, excluida as médicas, encontrarg ampla recepgio no quadro das ciéncias sociais neste mesmo periodo. Neste hiato entre a instituigdo juridica da medici- na ¢ o reconhecimento universitério da psicoterapia emerge uma questo na filosofia politica. Torna-se um problema saber como a autoridade juridica se transfere para os individuos e inversamente como a autoridade dos individuos pode solapar a autoridade instituida. Nogées politico-teoldgicas tais como carisma, influéncia, magnetismo, sugestao ¢ relai a pessoal (rapport), nogdes chaves para © nascimento da psicore he tornam-se 0 foco da discussio sociolégica sobre a autoridae . Uma pergunta corrente em meados do século XIX diz eee 8 possibilidade de que uma pessoa, pel: forca 7 ol Lane lidade ganhe poder e aparega como um legislador es ae como um lider carismatico, um artista de talento ou w ia tista genial, em vez do direito adquirido ou pela ee tro das regras burocraticas (Sennett, 1973, p. 332). S pia, om Weber (1864-1920), historiadores como Ténnies (1855- 1936) ¢ tedricos da democracia como Tocqueville (1805-1859) indagavam-se sobre as origens desta transmutacao do individuo como valor. Trata-se de uma espécie de anomalia que torna alguém nao apenas uma pessoa dotada da fora de reconheci- mento da comunidade de origem a que pertence, ou ainda de um individuo que pela habilidade engenho se faz reconhecer na massa de anénimos das comunidades artificiais ¢ nem mes- mo de um Sujeito que pelo exercicio das faculdades universais da razio, da linguagem ou das trocas humanas realiza-se em uma obra comum. A anomalia desta nova forma de ser alguém, de constituir uma autoridade pessoal dotada de forga e expressiio universal, remonta ao fato de que ela aparentemente contraria as estratégias de reconhecimento das quais provém ¢ nas quais se origina. Como no caso dos lideres que sao pessoas tao de- masiadamente humanas que despertam a perigosa simpatia nao puramente humana. Ou ainda do artista que na expressio de sua singularidade alcanca o universal. Isso para néo mencionar o grande herdi sem qualidades, aquele que tal como ninguém, mostra-nos o para além do humano no homem. Vé-se assim como a nogio de personalidade surge simultaneamente como uma nogio politica ¢ psicoterapéutica. Benjamin Rush, fundador da psiquiatria americana e sig- natério da Declaracao de Independéncia daquele pais, nos ofe- rece um étimo exemplo de como a estratégia psicoterdpica, desde as suas origens, implica em uma tatica de poder. Eis suas recomendag6es para encontrar-se com um paciente: “Olhe-o nos olhos até desconcerté-lo, ha chaves no olho. Um segun- do meio de fazé-lo obedecer € através da voz. Em seguida 0 semblante deve ajustar-se a0 estado da mente e a conduta do paciente” (Zaretski, 2006, p. 27). 3 O olhar, a voz ¢ 0 semblante sao categorias que nos acostu- mamos a encontrar na andlise da formagao dos regimes disci- plinares ¢ nas taticas de poder sobre os corpos ¢ pelos discursos. ‘A crer na estreita relagio entre a constituigio do dispositivo 27 médico e psiquidtrico ¢ a invengao de uma nova forma de poder, baseada na autoridade institucional e na confianca no método, sugerimos que a distingio entre psicoterapia e clinica reside em duas estratégias distintas, duas formas-poder, E comum acentuar a importancia da experiéncia de Freud com Charcot em seu perfodo de formagio junto 4 Escola d, Paris. Charcot era, antes de tudo, um clinico. Suas Westies passam, por exemplo, pela comprovagao de que a histeria po- deria acometer 0 sexo masculino, pela possibilidade de um diagnéstico diferencial entre histeria e epilepsia ou ainda pela minuciosa descrigéo das quatro fases do ataque histérico (Charcot, 2003). O emprego do hipnotismo por Charcot en- fatizava a possibilidade de simular os sintomas histéricos, nao de curd-los. Era um método de investigag4o nao um método de cura. Vé-se assim como-as duas acepc6es de clinica, antes apresentadas, cruzam o caminho de Freud. Charcot é um cli- nico moderno, pois emprega o método clinico de investiga- go, baseado em inquérito, descricdo e intervencio controlada sobre a génese e transformagao dos fendmenos patoldgicos. E nesta dire¢do que Freud comenta sua experiéncia pessoal com Charcot: (...) considerava 0 hipnotismo uma érea de fenémenos que ele submeteu a descrigao cientifica, tal como fizera muitos anos antes, com a esclerose muiltipla e com a atrofia mus- cular progressiva. (...) sua mente leva-me a supor que ele no consegue descansar enquanto nao descreve e classifica corretamente algum fendmeno que o interesse, mas dorme tranquilamente sem ter chegado 4 explicagao fisiolgica do fenémeno em questao. (Freud, 1886/1956a, p. 42) Foi na heranga do ensino de Charcot que desenvolveu-se a tradicao cl{nica francesa de psicologia, cujo maior expoen- te foi Pierre Janet. Atento aos fatos, Janet era um especialista em descrig6es clinicas e no levantamento de regularidades psi- copatoldgicas. Seguindo a tradigio iconogréfica, que incluia 28 o uso do desenho e da fotografia para capturar as formas de apresentacao da histeria, Janet dedicou-se ao minucioso tra- balho de compilar narrativas clinicas. Formalizando o méto- do clinico, que vira em ago nas maos de seu mestre, Janet exemplifica 0 contexto de cientificizagao da medicina e por extensao da Psicologia. Janet foi contemporaneo de Freud em sua experiéncia na Salpétriére e o vienense sempre considerou a Escola de Paris como sua principal concorrente tedrica. Menos valorizado que a aprendizagem com Charcot sao as pequenas incursdes que Freud fez, principalmente ao leste da Franca, para conhecer melhor as técnicas de hipnotismo € encontrar figuras como Liébeault e Bernheim. Auténticos “curadores de almas” eles declaravam-se capazes de aliviar o sofrimento pelo poder da relacio pessoal (rapport), da suges- tao € do hipnotismo. A psicoterapia como um movimento de expressao popular, exposto & crftica permanente de charlata- nismo, impregnou pejorativamente o termo, especialmente na Franga (Roudinesco, 2005). Contribuiu para isso a figura de Anton Mesmer, psicoterapeuta que baseava seu programa de cura no magnetismo animal, energia fluidica que ele afirmava evadir-se dos corpos causando as doengas. Mesmer colocava li- malhas de ferro sobre uma mesa giratéria na qual jazia o corpo de belas senhoras da aristocracia europeia promovendo autén- ticos espetdculos de cura. Freud nao deixou de cruzar seu caminho com outros psico- terapeutas, como Fliess (para alguns o analista de Freud), Gro- deck (0 pai da psicossomatica) ¢ Oskar Pfister (o pastor peda- gogo). Note-se que no caso de Fliess a nogao de psicoterapia inclui praticas materiais como cirurgias no nariz, 6rgao fonte e regulador das neuroses para este autor. No caso de Groddeck dé-se o inverso, ele alegava que suas representagdes teatrais coletivas, entre pacientes e médicos, poderiam agir sobre as afecg6es organicas e psiquicas das mais diversas. Para Pfister a psicandlise mostrava potencial para renovar o antigo tratamento moral sem alterar substancialmente seu enquadre educativo ea 29 situagdo de aconselhamento da consciéncia. Freud cede NOs trés casos, mas nao sem reformulagées cruciais: admite a hipdtese da bissexualidade — sugerida por Fliess — mas retira sua conexio nasal; introduz 0 conceito de Id — empregado por Groddeck — mas integrando-o a uma teoria da pulsio; ¢ concede designar a psicandlise como uma pés-educagao — acolhendo as expectativas de Pfister — mas convidando a uma reflexao sobre o que sig- nifica educacao. Este perfodo, no qual se pode designar Freud como um clfnico e como um psicoterapeuta foi lembrado, vinte € quatro anos depois, da seguinte maneira: (...) uma época heroica, ao splendid isolation nao faltam vantagens nem atrativos, Nao tinha nenhuma bibliografia que ler, nenhum oponente mal informado a quem escu- tar, ndo estava submetido 4 influéncia alguma nem urgido por nada. Aprendi a refrear as inclinagées especulativas e, atendendo ao inesquecivel conselho de meu mestre Charcot, a examinar de novo as mesmas coisas tantas ve- zes quanto fosse necessério para que elas, por si mesmo, comecassem a dizer algo. (Freud, 1914d, p. 21) ‘A énfase na observagio faz prevalecer a experiéncia cl{nica sobre 0 contato com a psicoterapia, mas a alusio A inoperancia de influéncias é falaciosa: Freud vivia agudamente a influéncia de Fliess. O fascinio pela personalidade deste otorrinolarin- gologista de Berlim € patente na correspondéncia entre am- bos (Masson, 1986). Compreende-se que, neste fragmento, Freud tenha evitado as referéncias 4 psicoterapia, mas isso nao elimina o texto de 1890. O titulo deste artigo - Tratamento Psiquico (Tratamento da Alma) — assinala, como vimos, uma ambiguidade entre alma (Sele) ¢ psiquico (Psychische). O dois termos sao precedidos pela palavra tratamento (Behandlung). Diante do exposto seria simples associar a nogao de alma & psicoterapia e a nogao de ps/quico & nova cl{nica emergente, de aspiragao cientifica. Desta maneira a conversao freudiana 30 esis * Passagem da alma ao psiquico, Contudo, um dos odjetivos co presente trabalho é€ mostrar que hd uma triparti- 40, € nao ipartiga ticas forma e $20) € nao apenas uma biparticao, nas praticas formativas que deram origem a psicanilise. SE ESE Comecemos salientando que a nogao de alma (Seele) nao deve ser considerada, excl ¢ Tick i lusivamente, como uma nogao ma- gico-rellgiosa, especialmente se levamos em conta 0 contexto alemao do século XIX. A palavra lo século XI Seele é coloquial, e nao técnica como psiquico, ou intelectualista como mente (mind). Em ale- mao;a Palavra Seele tem sua conotacio filtrada pelo romantis- mo literério e filosdfico e pela sua etimologia gético-paga, que deve ser ponderada com a sua conotagio crista. Ademais Freud utiliza ambos os termos (psfquico e alma), com pequenas va- tiagSes, ao longo de toda sua obra, como por exemplo, no uso recorrente da expresso: Seelenleben (vida da alma, traduzida por vida animica). Nos manuais médicos da virada do século XIX encontramos 0 termo Seelenariz para designar o francés alié- niste (alienista) ¢ o inglés alienist ‘physician (médico alienista) e ainda Seelenanalyse, para designar... psicanalista (Hanns, 1996, pp. 332-337). Se a nocdo de tratamento (Behandlung) é a que melhor se ajusta aos principios do método clinico ¢ a ideia de psiquico, remonta 4 modernizago da tradicao psicoterapéutica, que se autonomiza das prdticas religiosas mais instituidas, o que fazer com a preservagio insidiosa na nogao de alma? A questao seria meramente filolégica nao fosse o fato de que ela se coordena com uma série de outras ambiguidades que aparecem quando lemos os textos de Freud em busca da caracterizagao da pratica da psicanilise. Principalmente no infcio da obra, e especialmente quando se tratam de textos dirigidos & comunidade médica, como notas enciclopédicas, prdlogos ¢ apresentagdes em manuais, Freud nao hesita em ca- racterizar a psicandlise como um tipo de psicoterapia (Psycho therapie). Uma psicoterapia distinta do hipnotismo catértico ¢ da terapia moral de inspiracao psiquidtrica. Quando se, tratam, | de textos sobre a técnica ou da explicitagao de conceitos clinicos La 31 , resisténcia ou interpretagao Freud da des- to (Behandlung). Contudo, quando se os clinicos ou de se referir A trajetdria racasso do proceso, € ainda quando uc cles esto fazendo na si- io onipresente: cura (Kur). se o fato de que cada distintas como transferénci taque ao termo tratamen trata da exposigao de cas ou desenrolar, ao éxito ou ft analista ou analisante nomeiam o 4 tuagao p 4 uma expressi Essa diferenga seria irrelevante nao fos: emprego difer al dos termos envolvidos remete a acepgoes do que se pode esperar da experiéncia psicanalitica. Quando Freud fala da psicandlise como uma psicoterapia a expresso recorrente para designar seus fins é Genesung, isto é restabelecimento, convalescéncia, retorno @ um estado cura como resultado, em francés guerison. Quando Freud fala da psicandlise como um método clinico de tratamento a expresso que encontramos privilegiadamente é Heilung, isto é, atividade e processo de sarar, cura como exer- cicio de meios adequados, em francés cure. Todavia, vimos que Freud tem um terceiro termo para designar a pratica da psicandlise, ou seja, Kur. Sua tradugao direta para cura (cure) obscurece 0 fato de que sao dois ter- mos distintos na origem (Kure Heilung), ambos comprimidos pelas tradugdes brasileira, francesa ¢ inglesa na mesma expres- sao. Falta, portanto, um termo cortelato para designar os fins da experiéncia psicanalitica quando esta € tomada como Kur. Este termo existe em alemfo, mas é de emprego raro, mas nao ausente em Freud, trata-se do cuidado (Sorge). Curiosamente a expressao Sorge traduz-se tanto por cuidar de, quanto preocu- par-se come ainda por fatar de. Estamos assim diante de um termo que compreende ambas acep¢6es anteriores, a psicote- rapéutica (preocupar-se) ea clinica (tratar), mas além disso introduz uma nova ressonancia semantica que ficara esque- cida nas tradugées, perdendo assim parte de sua autonomia: 0 cuidado. O problema é realmente espinhoso, pois implica reconhecer a diferenga entre a cura como substantivo (Kur, cura) e a cura como atividade (Kur, cuidado). anterior, ou seja, 32 Ocorre que en quanto Gey indi. te resultados, a cura comme eae indica principalmente os assividade do paci elecimento da satide envolvendo pass Paciente, Heilung refere-se ao meios do tratamento, sugerindo uma int processo € aos a Interv a i i e pontual do agente da cura, So ! engao mais ativa : a ‘a. Sorge (cuidado), contudo, suge- re ao MesMo tempo pequenas inter 6 ‘ a special e conti tvengGes, associadas’ a um regime especial e continuado d. i raticar na arte da jardi le aten¢ao, como a que se deve praticar na arte da jardinagem?, Sorge indi widad. fi ‘dade, incluindo a i » Sorge indica passividade ¢ ati- vidade, incluindo a importancia d omo se verifica no f; be ‘Ancia da passagem do tempo, tal cl ne i yj 7 ooveda un t 0 : rico do queijo ¢ do vinho, que devem e «oe ok s' Veiamos ‘mpo de “cura” até que o processo se complete. 4 o fa exemplo: um filho procura seus pais, choran- mM ul £ lo i j nk aaa no pé. Podemos fazer ataduras € assep- sia local (Hetlung), mas ao mesmo tempo perguntamos 0 que aconteceu para saber a extensio e gravidade do ocorrido ou avaliar a adequacao dos procedimentos (Behandlung). Temos ainda que acalmar o rebento (Therapie) desviando sua aten- 40, oferecendo palavras de consolo e resignacao. E de bom tom sugerir aquietago imediata, contudo é preciso tempo até que se realize a cicatrizagdo (Genesung) e complete-se 0 restabelecimento (Heilung). Neste tempo costuma intervir a meditagao sobre 0 ocorrido, as ponderagdes sobre as causas, as imprecages para que 0 caso nao se repita. Durante todo 0 rocesso, mesmo depois dele ¢ a causa dele, serd preciso cui- dado (Sorge). Vé-se assim como Sorge implica nao apenas a cura como retorno da satide, mas a experiéncia legada por seu processo, a integracao, a histéria dos envolvidos, da cicatriz formada, dos conselhos recebidos ¢ do sentido do evento ... ou de sua falta de sentido. i — aml A palavra cura tem sido preterida em relagao a nogio de lo em vista sua assoclacao direta ¢ automitica deia de resultado. Além tratamento tend i com a conotagéo médica ¢ com a I 2 pe wdcieso ue ae ar ao lt elson d 2. Devo a discussdo destas variagbes semanticas 20 Prof, Nel 33 disso, a nogio de cura ecoa conotagao magico psicoterapéu- amos em express6es como “a cura de guas”, iiza em balnedrios € sanatorios, ou a “cura religiosa”, tibui a centros de peregrinagao como Lurdes ou Fatima. A nogdo de cura contr sta tanto com a de terapia ade tratamento. Freud menciona varias vezes que seus pacientes, antes do tratamento psicanalitico, passaram por xis diversos tipos: Emmy Von N. enfrentou uma associada a banhos elétricos; Elizabeth Von Atica; o Homem dos Ratos ¢ 0 Ho- mem dos Lobos passaram periodos intermitentes de cura em sanatérios; sem falar em Anna O., 0 caso seminal da psicand- lise, que esteve por mais de 10 anos em sanatérios. A mesma Anna O. que definiu a psicandlise como uma “talking cure”, ou seja, cura pela palavra. Freud discute duas formas tica que encontra que se real como a que Ss quanto com curas dos ma cura de massagens R. tentou uma cura hidrop de cura aparentemente muito populares na época. ‘A cura de Weir Mitchell (Freud, 1988a), ou cura de playfair, consiste na conjungio entre isolamento absoluto, aplicacao sistematica de massagens, faradizagao ¢ ali- mentacao intensiva. Sua concorrente direta, a cura do Pastor Kneipp (1821-1897), implicava banhos de contraste, repouso caminhadas no pasto com os pés descalgos, no famoso sana- torio de Bad Wérishofen, localizado na Sudbia (Idem, 1898a, pp- 265-266). Freud atribui a eficdcia relativa de tais curas a dois fatores: (1) retirado de seu ambiente patégeno e expos- to a condicées favordveis para a terapia moral a relagéo com novas formas de autoridade amenizariam as exigéncias causais da neurose (Idem, 1889a), ¢ (2) alteragdes substanciais nas exigéncias ligadas 4 prética sexual, quer pela relativa licencio- sidade tolerancia de alguns sanatério, quer pelo afastamento das contingéncias ¢ limites da sexualidade conjugal. A cura pelo repouso descendia da antiga pratica de retirar-se para lu- gares isolados nos quais se podia recuperar as forgas perdidas ou dispersas na atribulagao cotidiana. Esta forma de cura estd estreitamente ligada 4 nogio de ambiente, de contato com a 34 natureza ¢ de “retirada do mundo”. Ela incorpora ainda a anti- ga imagem de que uma cura assemelha-se a uma viagem, uma peregrinacao ou uma caminhada. Em contraste com a énfase na nogao de ambiente, presente na cura, a pratica da terapia desenvolve-se em torno da nogao de instrumento € de técnica. A eletroterapia, técnica popular na virada do século, foi proposta por Erb e estudada longa- mente por Freud que comprovou sua ineficdcia. Um exem- plo pitoresco do desenvolvimento das técnicas terapéuticas encontra-se no livro de Hartenberg (1912), Tratamento das Neurastenias, um caso representativo da emergente literatu- ra dedicada & terapia das afeccSes nervosas. O livro de Har- tenberg inclui dentro da proposta mais ampla de tratamento (waitment): (1) instrugdes detalhadas para a construgéo de um dinamémetro para diagnosticar a fraqueza muscular (astenia) caracteristica da neurastenia, (2) lista minuciosa de exercicios voltados para a recuperacao do ténus muscular, (3) descrigao de substAncias excitantes que deveriam ser evitadas, (4) pres- crigdes de higiene, repouso e ténicos medicamentosos, € (5) psicoterapia orientada para o reforgo da vontade ¢ mudanga de habitos. Veja-se como a psicoterapia ¢ uma entre outras técnicas inclufdas no tratamento. Ela é explicitamente com-SX parada ao treinamento disciplinar da mente e aos exercicios / militares e pedagégicos ‘Admitida a possibilidadede que a pratica da psicandlise seja considerada Como unta (cura) como uma psicoterapiaje como um tratamento clinico, seria preciso explicar_porqué as duas primeiras~conotagoes estao virtualmente ausentes nos textos contemporaneos de psicandlise, nos quais vigora a expressao canénica € soberana “clinica psicanalftica”. O caso da psico- terapia parece mais simples. A autonomizagao da psicoterapia como uma pratica dependente da formacao em Psicologia, Psi- quiatria ou, em alguns paises em Social Worker (trabalhador so- cial), cria um sério obstéculo diante dos principios formativos da psicandlise (andlise pessoal, supervisdo € transmissao dentro 35

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