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Introducgad Prof. Dr. Hugo Franco Apostila de Evolugao dos Conceitos da Fisica Publicagio IFUSP 1336/98 - 2" edico 2002 Nossa civilizagio criou condigdes de vida excepcionalmente favordveis para o homo sapiens, permitindo-Ihe uma vida longeva em comparagao com seus antepassados pré-histéricos. Os homens do final do Neolitico, genetica- mente muito préximos do homem contemporaneo, tinham uma expectativa ile vida inferior a 30 anos, ¢ findavam com os corpos marcados por uma existéncia fisicamente dura. Seus despojos, em sitios arqueolégicos, revelam os fraturados em cacadas, uma compleicéo fisica marcada por uma ali- mentacao inconstante e pela exposigéo continua a uma Natureza agressiva, ique estes humanos estavam Jonge de controlar] Hoje, protegido dos mamutes ¢ tigres de dentes de sabre, das intempéries, b homem consumidor do século XX e XXI tem uma grande divida para com o conhecimento cientifico que Ihe permite desfrutar tal existéncia. A agricultura mecanizada e a indiistria, aliados a medicina ocidental, lastreados todos na fisica, quimica e biologia, possibilitaram aos seres humanos, ao menos aos que participam desta economia, uma vida privilegiada na historia ida espé Mas 0 homem ocidental contemporaneo nem sempre enxerga as ciéncias bxatas e biomédicas como suas generosas benfeitoras. Ao contrario, a totali- Made da ciéncia foi atacada por muitas correntes filoséticas ao longo do século , € 6 freqiientemente encarada com desconfianga pelos seus usuarios, ‘como uma forma de saber insatisfatéria, incompleta para as demandas do espirito humano, Num ensaio intitulado “O Proceso de Galileu no Sécule \XX", 0 filésofo Paolo Rossi afirma que “.... 0s magos, os alquimistas e os feiticeiros foram ocupar o lugar de Bacon, de Galileu e de Diderot”. ‘Vida como mértir do nascimento da ciéncia, tardiamente absolvido pelo Vaticano, Galileu Galilei estaria enfrentando, metaforicamente, um “novo processo” em que foram colocados em cheque nao apenas sua obra, mas o prdprio “métods cientifico” que inaugurou. v |A razao cartesiana era uma das musas da Revolugao Francesa, esclarece- \lora dos espiritos avidos dle conhecimento desde 0 lluminismo. Desse espirito renovador nascen, por exemplo, 0 sistema métrico decimal. Mas, ao longo do século XX, a razdo perdeu sua tradicional aura libertaria. O desprestigio da ciéncia no século XX, apontado por Rossi, se manifesta de forma difusa, mas recorrente, nas estantes de nossas livrarias, através da marcada presenca de uma literatura pseudo-cientifica. Livros sobre astrolo- gia, magia, poderes dos cristais, numerologia, tar6, alquimia... esses temas parecem fazer sucesso. Quase se torna prestigioso a qualquer ativ Made alternativao “mérito” de ndo ser abencoada pela ciéncia. Quanto mais misteriosa a doutrina, mais atraente, como um novo “fruto proibido” O saber alternative, multiplicado pela cultura de massa, mescla sem muita distingao textos lapidares de dois milénios, tais como o “Corpus Her- meticumn” , com textos com dezoito séculos de idade, com obras de um even- tual astrdlogo de ocasiao contratado pela editora. A cireunspecta Fisica foi involuntariamente incorporada a este caldeirdo de maravilhas do conheci- mento. Privados das “tediosas equagGes” , expresses técnicas do jargao da Fisica moderna sao vulgarizadas e esvaziadas de seu significado origi mal, para integrar esta salada editorial. O pretenso papel da Fisica no mundo ido saber alternativo se restringe ao de legitimar o oculto, afirmando-se ‘com argumentos tropegos que a relatividade e a mecanica quantica possuem. homélogos na ciéncia antiga! O universo do saber alternativo acusa a ciéncia ‘moderna de ser uma mera repeticao imperfeita do conhecimento dos “anti- (gos? Na esteira do fisico Fritjof Capra, que presenteou o mundo com seu popu- lar livro “O Tao da Fisica” em que tenta fazer um coquetel de fisica moderna com budismo Zen, multiplicam-se na literatura titulos bizarros como “Cura Quéntica” , em que se tenta arrastar a Fisica do século XX, com seus de- safiantes paradoxos, para esta mesma arena do saber “alternativo” . Mas bo irdnico deste fendmeno é que muitos desses corpos de conhecimento “al- ternativo” nao sao, de fato, corpos estranhos & ciéncia: sao, em sua maioria, fragmentos de etapas antigas da propria ciéncia, oportunamente exu- imadbos do esquecimento e entregues a interpretacdes deslocadas do contexto priginal neste “museu de grandes novidades’ |Ao mesmo tempo, a histéria da ciéncia passou, durante a segunda ‘metade do século XX, por uma gradual mudanca de enfoque, que trouxe a itona aspectos menos difundidos, mas fundamentais, das origens da ciéncia cidental. Diversos episddios da histéria politica contemporanea foram de- liberadamente modificados, visando interesses de diferentes regimes politicos. No entanto, as revisdes da histéria da ciéncia ocorrem de maneira mais sutil e Insidiosa que estas deliberadas manipulacées de fatos. Uma das dificuldades {que encontramos é 0 seu comprometimento com o papel de legitimadora ida ciéneia e sua metodologia. Esta era a énfase dada a historia da ciéncia até fins do século XIX, e como tal, procurava acentuar seus contrastes com fos conhecimentos “pré-cientiticos” O nascimento da Fisica de Galilen e Newton, como a conhecemos nos livros texto de Mecanica, é comumente apontada na historia da ciéncia como b exemplo mais significativo do triunfo do pensamento cientifico, espelhando esta concepcao do século XLX. Segundo tal concepgao, a genese desta ciéncia situar-se-ia no Renascimento, coincidindo com uma ruptura crescente com preceitos da Igreja. A civilizagao ocidental teria entao se libertado da “Idade das Trevas” ~_a dade Média. O passado mAgico-religioso teria sido, entao, deixado para tras por uma linhagem de pensadores: Copérnico, Kepler, Galileu, Newton, que teriam constituido um novo género de pensamento na Fisiea. Rsta visio da Fisica como resultado de uma “revolugio cientffiea’ sta claramente presente, por exemplo, no livro “A Revoluedo Copernicana” Wo antor Thomas Kuhn. ‘Tal revolugio do conhecimento ocidental teria se ini- eiado com 0 enunciado da hipétese heliocéntrica por Copérnico, e as iniimeras imndancas de perspectiva que implic: |A énfase na ruptura com 0 pensamento méagico-religioso tornou-se parte integrante de nossa identidade cultural cientifica. Estamos habitu- dos a ver em certos personagens como Galileu ou Giordano Bruno, heréi fundadores da ciéncia moderna, em luta com o “obscurantismo” que a Igreja imporia 4 humanidade. Talvez a peca teatral “Galileu Galilei” , de Bertold Brecht, seja um exemplo acabado deste retrato de Galileu. No entanto, a histéria do Galileu real revelou-se consideravelmente mais complexa do que 2 mostrada em tal retrato, e novas interpretagdes mostram a presenca de importantes ingredientes politicos em seu confronto com a Igreja, que pouco tinham a ver com heresia ou ruptura com o pensamento cristao, como procura Hemonstrar Pietro Redondi, em sua obra “Galileu Herético” . No entanto, a fronteira entre a ciéncia e as formas de pensamento que fh precederam revelou-se mais ténue do que desejariam os historiadores da tciencia de meio século atrés. Um exemplo marcante sao os escritos alquimicos ide Newton. Todo um extenso conjunto de anotagdes deste importante pen- sador ficou confinado a um calhamaco de papéis velhos, arrematados em Jeildo na década de 30. Estes textos revelam que Newton dedicou, de fato, longo tempo a estudos alquimicos, cuja redescoberta neste século suscitou inicialmente “perpleridade, desdém, horror e incredulidade” junto & comu- inidade académica. A imagem do pensador positivo, racional, mostrou-se incompativel com esse corpus de manuscritos, sobre os quais apenas recen- temente a histéria da ciéneia se dehrncon. Mesmo obras mais conhecidas de Newton, como 0 * wa, pticks”, que teve fem sua época diversas edigoes, foi “condenado” a um longo periodo de es- {quecimento. Nesta obra, Newton expde uma teoria hibrida, ao mesmo tempo corpuscular e ondulatéria da luz, 0 que foi sentido como um equivoco menor do grande pensador quando a teoria ondulatéria da luz se consoli- Mou. O “Opticks” somente foi publicado novamente nos anos 30, depois da onsolidacdo da mecanica quantica. A recém adquirida nocao de dualidade nda-particula emprestaram certo lustro e mesmo um tom profético a estes bescritos Estes fatos ilustram a suscetibilidade da histéria da ciéncia que, a e- Kxemplo deste caso de Newton, vemos servir como legitimadora do estilo de pensamento em voga. Por outro lado, veremos aspectos da ciéncia da \Antigiiidade que sao surpreendentemente préximos de nossos métodos, ais como a determinagao aproximada da distancia da Terra ao Sol feita por Aristarco no século III a.C. Com algumas honradas excegies, a maioria dos livros didaticos busea uma assimilacao eficiente de idéias e técnicas através de uma tra- Jet6ria légica, em detrimento da seqiiencia historiea. Os nomes da historia ida fisica por vezes acabam se reduzindo a nomes de leis e de equacées, rétulos mneménicos tao distantes do personagem histérico quanto os nomes ide ruas esto dos vultos que evocam: “Avenida Brigadeiro Luis Antonio”, “Praca Benedito Calixto”; assim se tornam as leis de Newton, a equagdo de d’Alembert, as equagdes de Huler-Lagrange..|

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